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Do trabalho de servir ao trabalho remunerado: definindo o serviço doméstico a partir da história (Brasil, Rio de Janeiro, c. 1850 a 1950)

From Domestic Servitude to Paid Labor: Defining Domestic Service Based on History (Brazil, Rio de Janeiro, 1850 to 1950)

Resumo

Este artigo tem como objetivo refletir sobre o conceito de serviço doméstico a partir de uma perspectiva histórica, tendo como referência a história do trabalho realizado nos domicílios urbanos por trabalhadoras e trabalhadores escravizados e livres, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, então capital brasileira, entre aproximadamente 1850 e 1950. Para isso, o texto problematiza, a partir de diversas fontes documentais e estudos sobre o tema, noções que costumam estar associadas às definições do trabalho doméstico, em sua face de prestação de serviços, como as que compreendem a natureza das atividades laborais, os espaços em que eram realizadas e o tipo de trabalhadores envolvidos. A hipótese defendida é a da existência histórica de uma grande complexidade nas relações de trabalho estabelecidas no âmbito da domesticidade, sobretudo no que se refere à integração de determinantes de classe, gênero e raça, bem como às características da organização da reprodução social em contextos como os da passagem do trabalho escravo/servil ao trabalho livre/remunerado na constituição do capitalismo no Brasil

Palavras-chave:
Serviço doméstico; Brasil; Rio de Janeiro; 1850-1950

Abstract

This article aims to reflect on the concept of domestic service from a historical perspective, having as reference the history of labor carried out in urban households by female and male slaves and free workers, especially in the capital of Brazil, between approximately 1850 and 1950. For this purpose, the text discusses, based on various documentary sources and studies on the subject, notions that are usually associated with the definitions of domestic labor, in terms of providing services, such as those that comprise the nature of work activities, the spaces in which they were carried out and the type of workers involved. The hypothesis defended is the historical existence of a great complexity in the work relationship established in the context of domesticity, especially regarding the integration of class, gender, and race determinants, as well as the characteristics of the organization of social reproduction in contexts such as the transition from slave/servile labor to free/paid labor in the constitution of capitalism in Brazil.

Keywords:
Domestic Service; Brazil; Rio de Janeiro; 1850-1950

Pisar no terreno movediço que caracteriza a história do trabalho doméstico remunerado envolve um esforço de entendimento e de construção de definições. Como afirma a socióloga portuguesa Inês Brasão, uma das maiores dificuldades na abordagem do tema do ponto de vista histórico é a operacionalização do conceito de trabalho doméstico (Brasão, 2012BRASÃO, Inês. O tempo das criadas: a condição servil em Portugal (1940-1970). Lisboa: Tinta-da-China, 2012., p. 33). Isso se explica por vários fatores, mas um dos mais importantes - e que constituiu a hipótese que orientou o trabalho de construção deste texto -1 1 Ressalte-se que este artigo compreende parte da discussão presente no primeiro capítulo da tese de doutorado intitulada Criados, escravos e empregados: o serviço doméstico e seus trabalhadores na construção da modernidade brasileira, cidade do Rio de Janeiro, 1850-1920 (Universidade Federal Fluminense, 2017), acrescida dos resultados de pesquisa empreendida durante um estágio de pós-doutoramento realizado entre 2018 e 2022, junto ao PPGH-UFF. é que no decorrer da história contemporânea o estatuto do trabalho doméstico e dos(as) seus(suas) trabalhadores(as) sofreu inúmeras transformações nos marcos das sociedades ocidentais e, em especial, na sociedade brasileira. De um trabalho de servir, cujas relações eram estruturadas na servidão e na escravidão, tornou-se um trabalho livre e assalariado, integrado à dinâmica de produção capitalista.

Dessa forma, o presente artigo busca apresentar algumas reflexões iniciais sobre possíveis formas de conceituação do trabalho doméstico remunerado tendo como referência a história brasileira em suas conexões com a história global. Trata-se de um esforço cujo objetivo é remontar, por meio da análise de fontes documentais e estudos secundários, alguns entendimentos e aspectos da prestação de serviços domésticos realizados nos domicílios por trabalhadoras e trabalhadores de diferentes condições jurídicas e sociais, principalmente em espaços urbanos, como os da então capital do Brasil, entre aproximadamente 1850 e 1950. Isso tendo em vista que o estudo do tema do ponto de vista histórico compreende uma grande complexidade, a qual impede a elaboração de definições simplistas ou baseadas no senso comum.2 2 Embora seja conhecida a profícua produção acadêmica sobre o tema no campo das ciências sociais e econômicas, em função dos limites de um artigo acadêmico e dos propósitos do presente texto, optou-se aqui por privilegiar o diálogo com estudos produzidos no âmbito da história. Análises sociais e econômicas são citadas apenas em alguns casos considerados essenciais à discussão. Sobre questões, pesquisas e aspectos políticos do tema nas referidas áreas, sugere-se ver o amplo balanço realizado em: Brites (2013).

O texto está dividido em três momentos. Na primeira parte, a discussão envolve uma análise acerca das melhores formas de se designar a natureza das relações de trabalho doméstico, considerando as especificidades de cada momento histórico na longa duração estabelecida entre meados do século XIX e a primeira metade do século XX. Nesse caso, indaga-se sobre a adequação e as implicações do uso de expressões como “trabalho doméstico”, “trabalho doméstico remunerado” ou “serviço doméstico” para determinados períodos históricos. No segundo momento do texto segue-se o pressuposto da necessidade de se problematizar, a partir de uma perspectiva histórica, noções que comumente costumam estar associadas às definições do trabalho doméstico, em sua face de prestação de serviços, como as que compreendem a natureza das atividades laborais, os espaços em que eram realizadas e/ou o tipo de relações sociais envolvidas. Por fim, na terceira parte do texto, reflete-se um pouco acerca de quem eram os trabalhadores domésticos entre os séculos XIX e o século XX. Nesse ponto recupera-se algumas maneiras pelas quais o serviço doméstico ou o trabalho doméstico remunerado foi definido em termos legais, como quando dos processos em torno da elaboração de regulamentos profissionais e da construção da legislação social brasileira.

Trabalho doméstico remunerado ou serviço doméstico?

Nos estudos históricos sobre o tema trabalho doméstico é comum surgirem dúvidas e controvérsias acerca da melhor forma de expressar a modalidade de trabalho executado nos domicílios, inerente ao funcionamento e à sobrevivência cotidiana de um núcleo familiar, mas que é realizado por trabalhadoras(es) designadas(os) para esse fim e que, na maior parte das vezes, não pertencem ao grupo familiar para o qual trabalham. Tais incertezas e contestações surgem porque, tendo-se referência na organização do trabalho reprodutivo na atualidade, sabe-se que diferentemente do trabalho doméstico feito por um ou mais membros de um núcleo familiar a benefício próprio e de forma gratuita, o trabalho doméstico realizado por terceiros compreende outras relações sociais, embora igualmente envolva a execução de atividades como o cuidado de pessoas, o preparo de alimentos, o asseio e a manutenção de espaços e objetos.

Nas sociedades capitalistas contemporâneas esse tipo de trabalho caracteriza uma das modalidades do trabalho assalariado. Ou seja, um trabalho realizado por um(a) trabalhador(a) livre - desvinculado(a) de relações de clientela e de dependência e desprovido(a) de propriedades que vende a sua força de trabalho em troca de um salário (Marx, 2011MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 675; 2013, caps. 24 e 25). Daí ser esse tipo de atividade laboral denominada de trabalho doméstico remunerado ou emprego doméstico. Neste último caso, o termo faz referência ao fato de que em várias formações sociais, no decorrer do século XX, se estendendo até o presente, muitas(os) trabalhadoras(es) se inseriram no mercado de trabalho, em especial em espaços urbanos, por meio da prestação de serviços domésticos de maneira remunerada. O emprego doméstico constituiria assim a transformação do trabalho doméstico gratuito em venda de força de trabalho por meio de um contrato.

No Brasil, esse tema foi pioneiramente abordado pela socióloga Heleieth Saffioti, que procurou estudar as relações entre o trabalho doméstico e o capitalismo. Em estudo desenvolvido no final dos anos 1970 sobre as trabalhadoras domésticas em Araraquara, no interior paulista, a autora refletiu sobre o papel do trabalho doméstico remunerado no desenvolvimento dependente do modo de produção capitalista no Brasil. Recuperando o debate internacional, ocorrido nos chamados países desenvolvidos, em que a preocupação era pensar no papel das donas de casa que se dedicam exclusivamente ao lar, realizando o trabalho doméstico de forma gratuita, Saffioti chamou a atenção para o fato de que, no caso brasileiro, essa discussão não deveria perder de vista o emprego doméstico. Segundo a autora, a presença de milhões de mulheres em atividades domésticas remuneradas no Brasil revelaria, na verdade, “um profundo significado para o padrão de desenvolvimento do capitalismo brasileiro”, marcado por enorme desigualdade na distribuição da renda nacional (Saffioti, 1978SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Emprego doméstico e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1978., p. 191). Afinal, ao analisar um contexto em que ocorreu um acelerado processo de industrialização e uma expansão do trabalho feminino no mercado, o setor de serviços, em especial o emprego doméstico, cumpriu papel importante na absorção de parte substancial do contingente de trabalhadoras disponível que os setores mais dinâmicos da economia capitalista não conseguiram absorver (Saffioti, 1978SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Emprego doméstico e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1978., p. 192-194).

Contudo, é importante lembrar que o entendimento do trabalho doméstico remunerado como emprego envolve complexidades. Se o emprego for entendido como relação jurídica que envolve contratos e direitos (Fontes, 2017FONTES, Virgínia. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Marx e o Marxismo, v. 5, n. 8, jan./jun. 2017. Disponível em: https://www.niepmarx.com.br/index.php/MM/article/view/220 . Acesso em: 15 jan. 2023.
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, p. 45-67), é fundamental lembrar que em várias sociedades, onde historicamente existe um grande contingente de trabalhadoras(es) domésticas(os) assalariadas(os), como é o caso da América Latina, o trabalho doméstico remunerado se constituiu, na maioria das vezes, como um tipo de trabalho informal, durante muito tempo não associado a contratos formais e direitos trabalhistas, previdenciários e sindicais. Sendo esse o caso brasileiro em função da exclusão das(os) empregadas(os) domésticas(os) da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), em 1943BRASIL. Decreto-lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-5452-1-maio-1943-415500-publicacaooriginal-1-pe.html >. Acesso em 05 abr. 2022.
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, o que fez com que tais trabalhadoras(es) ficassem à margem do pleno acesso a vários direitos sociais, garantidos aos demais trabalhadores assalariados, até o início do século XXI.3 3 Somente em 2013 foi aprovada a Emenda Constitucional de nº 72, de 2 de abril, que estabeleceu igualdade de direitos trabalhistas entre as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) e os demais trabalhadores urbanos e rurais brasileiros, a qual foi regulamentada por meio da Lei Complementar nº 150 de 1º de junho de 2015.

Além disso, há outras questões a serem consideradas em torno do chamado emprego doméstico, como as que foram levantadas por Heleieth Saffioti. De acordo com a autora, não se pode perder de vista que embora tenha sido engendrado pelo capitalismo, “com o assalariamento da força de trabalho específica para desincumbir-se de serviços domésticos em residências particulares” (Saffioti, 1978SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Emprego doméstico e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1978., p. 191), o trabalho doméstico remunerado tradicionalmente não se encontra subjugado ao capital, sendo os salários das(os) trabalhadoras(es) pago com renda pessoal. As atividades realizadas por trabalhadoras(es) empregadas(os) em domicílios para a prestação de serviços domésticos, que resultam em bens e serviços consumidos pelos empregadores e/ou suas famílias, não poderiam, assim, ser denominadas como capitalistas - diferentemente das tarefas domésticas realizadas em bares, restaurantes ou hotéis. Nessa perspectiva, o trabalho realizado pelas(os) empregadas(os) domésticas(os) não seria um trabalho produtivo, pois ainda que haja um contrato para a venda da força de trabalho a uma unidade familiar, o trabalho doméstico remunerado não produz mercadorias para serem comercializadas.4 4 Tal distinção está presente n’O Capital, quando Karl Marx diferencia o trabalho (e o trabalhador) produtivo e improdutivo, sendo chamado de produtivo aquele trabalho que diretamente produz mais-valia, ou seja, o trabalho que é consumido diretamente no processo de produção visando à valorização do capital. Ver: Marx (2013, p. 578). Sendo importante ressaltar que tal distinção é feita do ponto de vista do capital e não se refere à utilidade da atividade para a sociedade, mas sim o seu lugar na produção da riqueza em um modo de produção capitalista. Embora seja inegável que “as atividades domésticas contribuem para a produção de uma mercadoria especial - a força de trabalho - absolutamente imprescindível à reprodução do capital” (Saffioti, 1978SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Emprego doméstico e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1978., p. 196).

Como vem sendo estudado por teóricas feministas, sobretudo aquelas ligadas à Teoria da Reprodução Social,5 5 A Teoria da Reprodução Social pode ser considerada uma perspectiva teórica marxista, que tem suas origens no estudo de Lise Vogel (2013) sobre a opressão das mulheres, assim como um campo de estudos internacionais que tem se consolidado e ampliado nas últimas décadas. Sobre o assunto, ver: Vogel (2013), Bhattacharya (2017) e Ferguson (2020). na esteira do inconcluso debate sobre o trabalho doméstico nos anos 1970,6 6 Entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, estudiosas feministas buscaram teorizar, sob o viés da economia política marxista, o trabalho doméstico não remunerado, visando ao entendimento das origens e das causas da subordinação das mulheres na sociedade capitalista. Uma vasta produção bibliográfica surgiu desse debate, tendo como ponto de partida o questionamento sobre o caráter produtivo do trabalho realizado nas unidades familiares. De acordo com Lise Vogel, apesar de ter legado para futuros estudiosos vários insights, como o que revela a centralidade da opressão das mulheres para a reprodução social do sistema capitalista, o debate sobre o trabalho doméstico não foi adiante por apresentar inúmeras limitações. Entre estas estava o alto nível de abstração, que levava muitas vezes a explicações a-históricas e a certo pedantismo teórico, bem como a sua distância do movimento das mulheres - então preocupado com questões como a dupla jornada de trabalho, a desigualdade salarial e a violência de gênero. Sobre o assunto: Vogel (2013, apêndice). quando se analisa as relações existentes entre as esferas da produção e da reprodução no sistema capitalista, verifica-se que, apesar da aparência de separação e de autonomia, existe uma relação de dependência entre as duas esferas. Isso ocorre porque para que a dinâmica de exploração capitalista se desenvolva é preciso um mecanismo que garanta a reprodução da força de trabalho e as unidades familiares têm cumprido boa parte desse papel nas sociedades contemporâneas. É na família que o sistema encontra, principalmente por meio da opressão das mulheres, as condições necessárias, em termos de segurança, estabilidade e custos, para se reproduzir geracional e cotidianamente a força de trabalho (Pena, 1981PENA, Maria Valéria Junho. Mulheres e trabalhadoras: presença feminina na constituição do sistema fabril. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981., p. 68-75). O trabalho doméstico não pago constitui, juntamente com outros processos como os que envolvem a gravidez, a amamentação e a socialização de crianças, bem como as atividades de cuidado de idosos e doentes, parcela do trabalho necessário para a sobrevivência da classe trabalhadora.7 7 Segundo Lise Vogel, o trabalho necessário (ou seja, a parte de um dia de trabalho que permite ao trabalhador garantir sua subsistência) tem dois componentes: “o primeiro, discutido por Marx, é o trabalho necessário que produz valor equivalente aos salários. Esse componente, que chamei de componente social do trabalho necessário, está indissoluvelmente ligado ao trabalho excedente no processo de produção capitalista. O segundo componente do trabalho necessário, profundamente velado na descrição de Marx, é o trabalho não remunerado que contribui para a renovação diária e de longo prazo dos portadores da mercadoria força de trabalho e da classe trabalhadora como um todo. Chamei isso de componente doméstico do trabalho necessário, ou trabalho doméstico” (Vogel, 2013, p. 192). E vale lembrar que a forma como esse trabalho é organizado nas sociedades contemporâneas orienta também a maneira pelas quais o trabalho doméstico remunerado se estrutura no capitalismo, evidenciando a relação direta existente entre os dois tipos de trabalho doméstico (pago e não pago).

No entanto, se do ponto de vista das formações sociais contemporâneas, já dominadas pelo modo capitalista de produção, a organização do trabalho doméstico remunerado se apresenta de maneira mais clara, sendo possível captar com mais facilidade aspectos de sua natureza e de suas relações, o mesmo não pode ser dito para outras sociedades em diferentes contextos históricos. Isso ocorre porque, do ponto de vista da história, nem sempre o trabalho doméstico realizado por trabalhadores designados para isso foi remunerado e, tampouco, assalariado; nem sempre esses trabalhadores foram livres (tanto do ponto de vista da condição jurídica, quanto em termos de dependência e de formas de subsistência); e nem sempre o que se denominava como trabalho doméstico era o que atualmente se compreende como tal - restrito a determinadas atividades, feitas em um local específico, por meio de relações e contratos de trabalho.

No caso brasileiro, em estudos voltados para determinados períodos históricos, como os que compreende o século XIX, as dificuldades para o uso de termos como “trabalho doméstico remunerado” se colocam em decorrência da existência de um modo de produção que já operava dentro da dinâmica capitalista, mas que tinha no trabalho escravo a sua base de sustentação e funcionamento.8 8 Sobre o papel da escravidão em algumas regiões americanas (como Brasil, Cuba e Sul dos Estados Unidos) na formação, expansão e reprodução histórica do sistema capitalista em escala global ver: Tomich (2011). Até a década de 1880, quando do fim da escravidão, havia trabalhadoras(es) escravizadas(os) que eram alocadas(os) para execução do trabalho doméstico em domicílios urbanos e rurais. Nas cidades, a escravidão doméstica foi uma realidade do Brasil oitocentista e, em espaços urbanos como os da Corte Imperial, os escravos domésticos constituíam a maioria da força de trabalho escravizada (Soares, 2007SOARES, Luiz Carlos. O povo de “Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: FAPERJ; 7Letras, 2007., p. 107). Além disso, durante o século XIX havia outras relações de trabalho marcadas por níveis diversos de compulsoriedade para além da escravidão - voltar-se-á a esse ponto adiante.

Por essa razão, quando se estuda a partir de uma perspectiva histórica, a designação “serviço doméstico” pode se apresentar como mais efetiva para abordar o trabalho doméstico realizado como prestação de serviços nos domicílios. Isso se explica, em primeiro lugar, porque esse termo expressa de uma maneira mais clara a diferenciação entre os tipos de trabalhos domésticos existentes. Ou seja, entre o trabalho doméstico não pago, que é realizado nos domicílios por um ou mais membros de um núcleo familiar - geralmente mulheres - para a subsistência desse mesmo grupo social; e o trabalho doméstico que é realizado por terceiros - também majoritariamente mulheres - no domicílio alheio, por meio de atividades reprodutivas de um núcleo familiar que não é o seu de origem. Neste caso, o trabalho se converte em serviço, que pode ou não ser remunerado monetariamente, dependendo do contexto histórico e da formação social (León, 1993LEÓN, Magdalena. Trabajo doméstico y servicio doméstico em Colombia. In: CHANEY, Elsa M.; Castro, Mary Garcia (org.). Muchacha, cachifa, criada, empleada, empregadinha, sirvientas... más nada: trabajadoras domésticas em América Latina y el Caribe. Caracas: Editorial Nueva Sociedad, 1993. p. 281-302.). O uso da designação “serviço doméstico” pode assim auxiliar na compreensão e na distinção de trabalhos que, embora sejam de natureza semelhante, são marcados por relações sociais diferentes. Além de ser esse um termo que remete a própria ideia de prestação de serviços e, portanto, de venda de uma atividade humana não produtora de bens materiais, diretamente separáveis de seu(sua) trabalhador(a).

Em segundo lugar, o uso do termo “serviço doméstico” para identificar não só as relações de trabalho doméstico, como todo um universo social formado por seus trabalhadores, parece ter se consagrado historicamente como o mais adequado. Desde meados do século XIX, o serviço doméstico se tornou, no Brasil e no mundo, uma categoria ocupacional em recenseamentos, especialmente em arrolamentos populacionais feitos acerca da estrutura ocupacional de determinados países ou regiões. Em decorrência de dificuldades como a classificação ocupacional feminina e infantil, os problemas relacionados à construção dos parâmetros censitários e às indefinições em torno das ocupações, a categoria serviço doméstico foi mantida em vários recenseamentos do século XIX e do século XX (Hill, 1995aHILL, Bridget. Algumas considerações sobre as empregadas domésticas na Inglaterra do século XVIII e no terceiro mundo hoje. Vária História, Belo Horizonte, n. 14, p. 22-33, set. 1995a., p. 26). E assim como ocorreu internacionalmente (Allemandi, 2012ALLEMANDI, Cecilia L. El servicio doméstico en el marco de las transformaciones de la ciudad de Buenos Aires, 1869-1914. Diálogos, Maringá, v. 16, n. 2, p. 385-415, 2012.; Sarti, 2005aSARTI, Raffaella. Who are servants? Defining domestic service in Western Europe (16th - 21st Centuries). In: PASLEAU, Suzy; SCHOPP, Isabelle; SARTI, Raffaella (org.). Proceedings of the Servant Project. Liège: Universidade de Liège, 2005a. v. 2, p. 3-59.), no Brasil, esse grupo foi caracterizado por indefinições e, consequentemente, dúvidas sobre os resultados alcançados nos arrolamentos populacionais.9 9 Para a historiadora Eulália Lobo, o serviço doméstico poderia encobrir uma espécie de “desemprego disfarçado”. Ver: Lobo (1978, p. 235). Vale destacar que no primeiro recenseamento geral do Brasil, de 1872, observa-se que além do grupo profissional denominado de “serviço doméstico”, encontra-se a categoria constituída pelos “criados e jornaleiros”, que provavelmente abrigava trabalhadores remunerados que estavam na condição de servir, embora nem sempre fossem considerados “domésticos” (Brasil, 1874, v. 5).

A respeito desse assunto, pode-se lembrar que nos primeiros recenseamentos gerais brasileiros, ou seja, os censos de 1872, 1890 e 1920, o serviço doméstico se manteve como uma forma de designação de um grupo ocupacional, embora envolvesse também muitas imprecisões. Esse era o caso da classificação de mulheres em condição de “donas de casa” ou “do lar”, assim como de mulheres agregadas a uma família, as quais poderiam ser classificadas como pertencentes ao grupo de prestadores de serviços domésticos. Indicadores da existência desse tipo problema são encontrados nas introduções e orientações para elaboração dos recenseamentos daqueles anos, que contêm algumas observações relativas ao fato de que poderiam ter sido incluídas indevidamente na categoria mulheres que não eram criadas domésticas (Brasil, 1895BRASIL. Recenseamento geral da República dos Estados Unidos do Brasil de 1890 (Distrito Federal). Rio de Janeiro: Tip. Leyzinger, 1895., p. XL; 1907BRASIL. Recenseamento do Rio de Janeiro de 1906 (Distrito Federal). Rio de Janeiro: Oficina de Estatística, 1907., p. 105-106; 1923BRASIL. Recenseamento do Brasil de 1920 (Distrito Federal). Rio de Janeiro: Tip. da Estatística, 1923. v. 2, parte 1., v. 2, part. 1, p. CXVIII-CXIX). Provavelmente por essa razão, em 1910, circularam na imprensa instruções para o preenchimento dos documentos relativos ao censo - que acabou não se realizando naquele ano - nas quais havia referência ao serviço doméstico e ao tipo de trabalhador(a) que ele incluiria: “[...] em relação às mães de família, as filhas de família, por exemplo, que não devem declarar como sua ocupação ‘serviço doméstico’, ficando esta designação exclusivamente reservada aos criados ou fâmulos, assalariados ou não” (O Paiz, 1910O PAIZ. Instruções preliminares para a execução do serviço de recenseamento de 1910. Rio de Janeiro, 02 jul. 1939, ano XXVI, 09401, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/178691_04/2447 . Acesso em: 15 jan. 2022.
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, p. 2).

Em terceiro lugar, vale mencionar que “serviço doméstico” é o termo mais encontrado em documentos históricos do século XIX e do século XX. Para além de documentos como censos, tal designação estava presente em outros registros oficiais, como processos cíveis e criminais, registros de detentos e atas e boletins legislativos. Da mesma forma que, desde o final do século XIX, o chamado serviço doméstico foi recorrentemente tratado em impressos de diversas naturezas, como em periódicos (jornais e revistas), em produções literárias e artísticas (como romances, crônicas, contos e charges) e em manuais domésticos direcionados para o público feminino (Roncador, 2008RONCADOR, Sônia. A doméstica imaginária: literatura, testemunhos e a invenção da empregada doméstica no Brasil (1889-1999). Brasília: Editora da UNB, 2008., p. 17-76). Na cidade do Rio de Janeiro, em particular, esse foi um fenômeno que esteve em consonância com a chamada “crise dos criados”, quando o serviço doméstico passou a ser tratado por intelectuais e grupos dirigentes a partir de análises que indicavam a existência de problemas sociais no setor (Souza, 2019SOUZA, Flavia Fernandes de. Criados, escravos e empregados: o serviço doméstico e seus trabalhadores na cidade do Rio de Janeiro (1850-1920). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2019., cap. 3). E em todas essas situações a designação serviço doméstico era a que melhor identificava o universo das atividades realizadas no âmbito dos domicílios urbanos e de relações de trabalho estabelecidas entre senhoras(es) e escravas(os), amas(os) e criadas(os) e patroas(ões) e empregadas(os) na esfera da domesticidade.

Ao se levar em conta, portanto, todos esses elementos, no que se refere às complexidades sobre as melhores designações para o entendimento, do ponto de vista histórico, do trabalho e das relações que constituem a prestação de serviços pessoais em domicílios, pode-se dizer que talvez a denominação “serviço doméstico” seja mais adequada, sobretudo se usada para determinados períodos históricos - como quando da vigência da escravidão. Todavia, atestar isso não implica o desaparecimento de outros problemas existentes na construção de definições sobre o assunto, quando se parte de uma perspectiva histórica, como se verá em seguida.

O lugar, as atividades e as relações de trabalho no serviço doméstico

Para que se possa ampliar a reflexão em torno da definição e, até mesmo, de certa operacionalização do conceito “serviço doméstico” a partir da história, vale a pena considerar algumas ponderações realizadas pela historiadora espanhola Carmen Sarasúa, em estudo sobre o assunto para a cidade de Madrid entre 1758 e 1868 (Sarasúa, 1994SARASÚA, Carmem. El servicio doméstico em la formación del mercado de trabajo madrileño, 1758-1868. Madrid: Siglo XXI, 1994.). Segundo a autora, são vários os problemas que os historiadores enfrentam em relação ao tema, como as ambiguidades em torno das definições acerca do espaço doméstico, das atividades laborais e do tipo de trabalhador(a), a depender do momento histórico analisado. E, para Sarasúa, tais complicações se relacionam, muitas vezes, com o modelo de trabalho que orienta a análise dos historiadores, pois, na organização capitalista de produção, o que se entende por trabalho tende a estar limitado a um espaço público (ligado a um lugar específico, como fábricas e oficinas) e a um determinado tempo (que possa ser claramente medido). Assim, a autora afirma que esse modelo afeta o estudo do serviço doméstico de duas maneiras:

En primer lugar, porque ignora o trabajo no remunerado, que incluye historicamente no sólo a las mujeres e hijos de los cabezas de família que trabajam dentro de unidades familiares de producción, sino a otros familiares, en general niñas y jóvenes, que trabajan como sirvientes de la clase media baja a cambio del mantenimiento. En segundo lugar, porque ignora o subestima las formas de trabajo remunerado distintas al trabajo fijo a tempo completo, como el trabajo por horas, a domicilio o temporal. (Sarasúa, 1994SARASÚA, Carmem. El servicio doméstico em la formación del mercado de trabajo madrileño, 1758-1868. Madrid: Siglo XXI, 1994., p. 4-5).

Por essa razão, Carmen Sarasúa argumenta que a definição do serviço doméstico para contextos históricos mais recuados no tempo envolve certo grau de complexidade, que pode ser sintetizado em três níveis de entendimento, os quais estão intimamente relacionados e, igualmente, apresentam inúmeros problemas. Isso porque os critérios utilizados pelos estudiosos para definir o serviço doméstico envolvem, em geral, a determinação do lugar onde o trabalho é executado, as tarefas que são realizadas e as relações de trabalho estabelecidas entre as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) e seus patrões(oas), senhores(as) ou amos(as) (Sarasúa, 1994SARASÚA, Carmem. El servicio doméstico em la formación del mercado de trabajo madrileño, 1758-1868. Madrid: Siglo XXI, 1994., p. 5-6).

De acordo com a autora, uma definição do serviço doméstico pelo lugar de trabalho pressupõe que as(os) trabalhadoras(es) são unicamente aquelas(es) que “residem em casa da pessoa ou família para a qual trabalham”. Para Sarasúa, essa definição baseada na coabitação, embora seja verdadeira em muitos casos, é limitada, pois exclui, por exemplo, as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) que, via de regra, não dormiam nos domicílios daqueles para quem trabalhavam. Da mesma maneira que essa perspectiva perde de vista que a partir do momento em que as camadas médias urbanas passaram a compor a maior parte dos empregadores, tornou-se mais frequente que o serviço doméstico fosse realizado por pessoas externas, que não residiam com os amos ou patrões - até porque com o tempo as residências urbanas diminuíram de tamanho (Sarasúa, 1994SARASÚA, Carmem. El servicio doméstico em la formación del mercado de trabajo madrileño, 1758-1868. Madrid: Siglo XXI, 1994., p. 5).

Além disso, pode-se considerar, a partir das ponderações da autora, que a definição do serviço doméstico restrita à noção de lugar também é limitada, porque não leva em conta o fato de que o trabalho doméstico, em séculos passados, compreendia algo bem diferente do que se constituiu atualmente. Como demonstra a historiadora Bridget Hill, em estudo sobre a Inglaterra setecentista, uma parte considerável do trabalho doméstico envolvia, por exemplo, a busca por água (encontrada em fontes, poços, riachos, etc.) e combustível (como lenha, tojo, turfa), o que demandava um longo tempo de trabalho e o trajeto a locais distantes. Ou seja, parcela substancial do serviço doméstico era feita fora dos domicílios (Hill, 1995bHILL, Bridget. Trabalho doméstico é trabalho de mulher: tecnologia e a mudança no papel da dona de casa. Vária História, Belo Horizonte, n. 14, p. 34-48, 1995b., p. 36-37). No Brasil, são inúmeros os relatos de viajantes que estiveram na cidade do Rio de Janeiro, no decorrer do século XIX, acerca dos escravos domésticos carregadores de água, bem como de lavadeiras que trabalhavam em chafarizes públicos (do Campo de Santana, do Largo do Paço, do Largo da Carioca, etc.) ou em riachos que cruzavam a cidade, como o das Laranjeiras (Ewbank, 1976EWBANK, Thomas. Vida no Brasil (ou diário de uma visita à terra do cacaueiro e da palmeira). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1976., p. 64-65; Kidder; Fletcher, 1941KIDDER, Daniel Parish; FLETCHER, James Cooley. O Brasil e os brasileiros: esboço histórico e descritivo. São Paulo; Rio de Janeiro; Recife; Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1941, v. 1., v. 1, p. 16 e 194).

Ressalte-se que a definição do serviço doméstico pelo lugar em que o trabalho é realizado envolve também dificuldades em relação às imbricações durante muito tempo existentes entre os diferentes tipos de trabalho executados no âmbito privado e no público. Considerando-se a história do capitalismo industrial, sabe-se que, em várias sociedades, foi lento o processo de separação entre as esferas da produção e da reprodução e a decorrente perda do caráter produtivo do trabalho doméstico. Como discute Angela Davis (2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 45), o avanço do sistema de produção fabril absorveu algumas atividades econômicas, de caráter produtivo, que em períodos pré-industriais eram realizadas no âmbito da domesticidade (em manufaturas domésticas ou em terras cultiváveis ao redor dos domicílios, por exemplo). Contudo, esse processo não ocorreu de uma hora para outra e seu resultado final foi uma radical alteração na condição social das mulheres - que, de agentes produtivos no contexto de uma economia doméstica, passaram a ter suas funções reduzidas à dimensão da reprodução biológica e cotidiana dos núcleos familiares, reforçando, assim, a inferioridade de sua condição.

No transcurso dos séculos de desenvolvimento industrial e urbano, pouco a pouco, as atividades que eram anteriormente executadas nos domicílios como parte das tarefas domésticas ganharam espaço em oficinas, fábricas e pequenos comércios. Vale lembrar que muitas vezes os domicílios poderiam abrigar tanto atividades propriamente domésticas como outras atividades produtivas que visavam ao mercado. Não por acaso, no Brasil oitocentista, a atuação feminina no mercado de trabalho ocorreu na maioria das vezes em esferas laborais que já eram ocupadas pelas mulheres no período pré-industrial, como era o caso das atividades ligadas à agricultura e ao cuidado de animais, à costura, à fiação e à tecelagem, ao comércio de gêneros alimentícios, à produção de utensílios e, evidentemente, à execução de serviços domésticos (Algranti, 1997ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In: NOVAIS, Fernado A. (coord); SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. v. 1, p. 83-154., p. 132-154; Graham, 1992GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.; Soares; Gomes, 2011SOARES, Carlos Eugênio L.; GOMES, Flávio dos S. “Dizem as Quitandeiras...”: ocupações urbanas e identidades étnicas em uma cidade escravista: Rio de Janeiro, século XIX,Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 3-16, 2011. ; Pena, 1981PENA, Maria Valéria Junho. Mulheres e trabalhadoras: presença feminina na constituição do sistema fabril. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981., p. 103-113). Portanto, pode-se constatar que pelo menos até o final do século XIX, em várias situações, não havia uma separação rígida entre dimensões de público e privado ou de produtivo e reprodutivo.

Tendo em vista tais dificuldades, do ponto de vista do serviço doméstico, é comum fazer a distinção das múltiplas tarefas domésticas entre as atividades que eram realizadas no interior dos domicílios (feitas por cozinheiros, copeiros, arrumadeiras, amas, por exemplo) e aquelas tarefas extensivas a esse espaço, realizadas no exterior das residências e nas ruas (como no caso das lavadeiras e engomadeiras, mensageiros ou “meninos de recado”, jardineiros, cocheiros, “cuidadores” de hortas e de animais, etc.). Sendo importante ressaltar que tal distinção esteve fortemente marcada por implicações resultantes da dinâmica das relações de gênero e de raça em determinados contextos históricos. Afinal, as atividades domésticas executadas no interior dos domicílios eram na maior parte das vezes realizadas por mulheres trabalhadoras. Enquanto as funções empreendidas no espaço exterior possuíam uma predominância dos trabalhadores do sexo masculino ou de mulheres negras, a depender das tarefas. Fenômeno que certamente se associava à emergência das chamadas “ideologias de feminilidade”, ocorridas com o advento do capitalismo industrial - em suas faces colonial, escravista, patriarcal e racista -, por meio da imprensa e da literatura, as quais enfatizavam a centralidade do papel social da mulher - sobretudo das mulheres brancas - no ambiente doméstico (como mães, esposas e donas de casa) (Davis, 2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 17-18 e 24-25; Mies, 2019MIES, Maria. Patriarcado y acumulación a escala mundial. Madrid: Traficantes de Sueños, 2019., cap. 3).

Em seu estudo pioneiro sobre as criadas domésticas na cidade do Rio de Janeiro, a historiadora Sandra Graham tratou um pouco mais detidamente dessa questão ao recuperar expressões da tradição portuguesa (“portas adentro” e “portas afora”), as quais distinguiam as trabalhadoras domésticas de acordo com o espaço privilegiado de trabalho, adaptando-as à chave explicativa “casa e rua”.10 10 Sobre a elaboração desses conceitos por parte da autora, ver: Graham (1992, p. 165, nota 24). Outras referências sobre o assunto na historiografia brasileira encontram-se em: Matos (1994) e Carvalho (2003, p. 41-78). Para a autora, “as imagens contrastantes da casa e da rua marcavam todos os contextos da vida doméstica” (Graham, 1992, p. 16). Afirmando que, no caso brasileiro, a diversidade de espaços onde se dava o trabalho doméstico era decorrente da ausência ou da precariedade dos serviços urbanos (como no caso do fornecimento de água ou da infraestrutura sanitária), Graham definiu da seguinte forma o universo do trabalho doméstico, privilegiando as ocupações femininas:

[...] o âmbito do trabalho doméstico inclui, em um extremo, as mucamas, as amas-de-leite e, no outro, as carregadoras de água ocasionais, as lavadeiras e costureiras. Até mesmo as mulheres que vendiam frutas, verduras ou doces na rua eram geralmente escravas que, com frequência, desdobravam-se também em criadas da casa durante parte do dia. A meio caminho estavam as cozinheiras, copeiras e arrumadeiras [...]. (Graham, 1992GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 18).

Embora a autora tenha partido de um referencial espacial, a definição de Graham do universo do trabalho doméstico trata, principalmente, das atividades e das especializações das trabalhadoras domésticas. Na realidade, a identificação do serviço doméstico pelo local de realização das tarefas envolve o entendimento das funções desempenhadas pelos prestadores de serviços. E, nesse caso, as dificuldades são tão numerosas quanto a da definição pelo lugar de trabalho. Por essa razão, Carmen Sarasúa afirma que um dos problemas da definição do serviço doméstico pelas tarefas diz respeito ao fato de que “as atividades que desempenham os criados estão continuamente se transformando” (Sarasúa, 1994SARASÚA, Carmem. El servicio doméstico em la formación del mercado de trabajo madrileño, 1758-1868. Madrid: Siglo XXI, 1994., p. 6). Em decorrência de inúmeros processos, como no caso dos melhoramentos urbanos ou na emergência de avanços tecnológicos, surgiram no âmbito doméstico novas tarefas e desapareceram outras.

Na história brasileira um exemplo bem característico nesse sentido são as tarefas de despejos de dejetos das casas, que eram realizadas por escravos domésticos conhecidos como “tigres” - “por causa da cor tigrada com que a matéria fecal sujava o seu corpo” (Alencastro, 1997ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império. In: NOVAIS, Fernando A. (coord.); ALENCASTRO, Luiz Felipe de. (org.). História da Vida Privada no Brasil: Império, a corte e modernidade nacional. São Paulo, Companhia das Letras, 1997. v. 2, p. 11-93., p. 67-68) -, quando inexistiam redes de esgoto em espaços urbanos como o da Corte Imperial. Tais escravos despejam barris com excrementos em praias, valas e lugares afastados, sendo também responsáveis pelo carregamento de água para as residências. Ao longo do século XIX, com o desenvolvimento das cidades, essa tarefa constituinte do serviço doméstico em terras brasileiras desapareceu, assim como outras atividades realizadas também por escravos domésticos, como o carregamento de “cadeirinhas” ou liteiras (Soares, 2007SOARES, Luiz Carlos. O povo de “Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: FAPERJ; 7Letras, 2007., p. 116). Outro exemplo é o caso dos(as) cozinheiros(as) anunciados(as) ou procurados(as) em anúncios de jornais da segunda metade do século XIX, que poderiam ter suas especialidades identificadas em função das suas habilidades para o manejo de fogões a lenha, a carvão, ou de ferro, com ou sem forno. Daí as distinções entre “cozinheiras do trivial” ou “de forno e fogão”, com capacidades para lidar com preparos de alimentos no forno e não apenas com as panelas sobre o fogão (Graham, 1992GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 46-47; Almeida; Muaze, 2020ALMEIDA, Anita Correia Lima de.; MUAZE Mariana. “Le dîner est servi!” La cuisine comme lieu de captivité à Rio de Janeiro au XIXe siècle.Brésil(s). Sciences Humaines et Sociales, on-line, n. 18, 2020. Disponível em: https://journals.openedition.org/bresils/7676 . Acesso em: 12 jan. 2023.
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).

Além disso, ainda no que diz respeito à definição do serviço doméstico a partir das atividades, é preciso lembrar que, muitas vezes, esse tipo de trabalho poderia envolver múltiplas funções. Ou seja, o serviço doméstico podia abrigar atividades cotidianas de manutenção de ambientes internos e objetos (realizados por arrumadores e copeiros), bem como higienização e cuidado com roupas (a exemplo das atividades realizadas por lavadeiras, engomadeiras e passadeiras); processos de produção de alimentos e abastecimento (empreendidas por cozinheiros, ajudantes e carregadores de água, por exemplo); atividades temporárias ou cíclicas de cuidado de crianças (próprias de amas-de-leite e amas-secas) ou de cuidado pessoal e de acompanhamento de jovens, adultos e idosos (típico de mucamas, pajens, lacaios e damas de companhias); e, até mesmo, atividades constituintes de uma economia doméstica voltada tanto para a subsistência e consumo interno como para o mercado, tal como no caso de escravos domésticos que também poderiam exercer atividades de quitanda, vendendo doces, frutas, verduras e legumes nas ruas.

De outra parte, as funções domésticas poderiam ser demarcadas por especializações, as quais tinham também relação com a construção de hierarquias entre os trabalhadores domésticos. Entre os escravos domésticos esse fenômeno era facilmente identificável. Em primeiro lugar porque, retomando a clássica argumentação de Gilberto Freyre para a escravidão colonial, na “hierarquia escravista”, os domésticos seriam privilegiados, ainda que entre eles houvesse distinções de status (Freyre, 1980FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1980., p. 489, nota 100). Tal diferenciação entre os escravos domésticos se baseava principalmente nos graus de especialização profissional e na posição social de cada função. Sendo assim, “uma maior ou menor especialização, por sua vez, determinava o seu valor”; até porque, muitos senhores, ricos ou pobres, viviam da renda gerada pelo aluguel de escravos domésticos.

Seguindo esse raciocínio, os cativos de “posição superior” no serviço interno dos domicílios seriam: os mordomos, as governantas, os camareiros e camareiras, as amas secas, as amas de leite e as mucamas. E os escravos que estariam em “posição inferior” seriam “cozinheiros, cozinheiras, copeiros e copeiras, costureiras, bordadeiras, lavadeiras, engomadeiras e os que cuidavam da arrumação e limpeza”, além dos jardineiros e tratadores de animais. Já no âmbito externo, tal hierarquia se dava entre os carregadores de cadeirinha ou liteira, cocheiros ou boleeiros, pajens, “moleques de recado”, de um lado; e, de outro, os compradores, carregadores de água e “tigres” - estes no plano mais inferior da hierarquia escravista doméstica (Soares, 2007SOARES, Luiz Carlos. O povo de “Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: FAPERJ; 7Letras, 2007., p. 114-118 e 122).

Devido a tais complexidades, pensadas a partir do local e das tarefas realizadas pelos trabalhadores, pode-se considerar, somadas aos demais aspectos, as relações de trabalho como o critério determinante de definição do serviço doméstico. Mais uma vez, voltando à proposta de Carmen Sarasúa, vivendo ou não no local onde trabalhavam, realizando ou não atividades específicas, as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) estiveram sempre “ao serviço pessoal de alguém”. De acordo com a autora, do ponto de vista histórico, a “condição” da(o) criada(o) doméstica(o) se caracterizaria, fundamentalmente, pela dependência pessoal - consagrada, muitas vezes, de maneira jurídica. É a pessoa do(a) trabalhador(a) que está à disposição de um indivíduo, de uma família ou de um domicílio. E no caso das(os) trabalhadoras(es) que viviam onde trabalhavam, Sarasúa afirma que elas(es) apresentavam um grau de dependência ainda maior, pois precisavam dos amos para suas necessidades básicas (como alimentação, vestuário, abrigo, cuidado em casos de doença). Nessas situações, a autonomia das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) - seja em relação ao trabalho, seja no que se refere a outras esferas da vida - se encontrava mediada ou restrita ao que lhe era concedido pelo(a) amo(a), senhor(a) ou patrão(oa) (Sarasúa, 1994SARASÚA, Carmem. El servicio doméstico em la formación del mercado de trabajo madrileño, 1758-1868. Madrid: Siglo XXI, 1994., p. 6).

Sobre esse aspecto, é esclarecedora também a colocação do historiador Eric Hobsbawm, tendo em vista o contexto oitocentista inglês, na qual o autor chama a atenção para as diferenças existentes entre a trabalhadora doméstica e os demais trabalhadores assalariados:

Mas a doméstica, embora recebendo salário, o que a igualava ao trabalhador cujo emprego definia o homem burguês na economia, era essencialmente bem diferente deste mesmo trabalhador, já que ela (ou mais raramente ele) mantinha uma ligação com o empregador maior que a de meramente receber um salário, pois era uma ligação muito mais pessoal, e de fato, de forma prática, uma ligação de dependência total. Tudo na sua vida era estritamente prescrito e controlado, já que vivia num quarto magramente mobiliado. Desde o uniforme que usava até a carta-testemunho de boa conduta e ‘caráter’ sem a qual era impossível conseguir novo emprego, tudo simbolizava uma relação de poder e dominação. Isto não excluía relações pessoais próximas, se desiguais, às que haviam nas sociedades escravistas. (Hobsbawm, 1979HOBSBAWM, Eric J. A Era do capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979., p. 249).

Esse entendimento do serviço doméstico a partir das relações de trabalho, proposto por Carmen Sarasúa - aqui complementado por Hobsbawm -, dialoga com análises apontadas por outras historiadoras e sociólogas que se dedicaram ao tema. Inês Brasão, por exemplo, ao recuperar leis que regularam o trabalho doméstico remunerado na primeira metade do século XX em Portugal, destaca que, ao se fundamentar nas normativas do Código Civil de 1867, as relações de trabalho doméstico durante muito tempo estiveram baseadas no primado da obediência e do servilismo, sustentado por uma “estrutura patriarcal e patronal de dominação” (Brasão, 2012BRASÃO, Inês. O tempo das criadas: a condição servil em Portugal (1940-1970). Lisboa: Tinta-da-China, 2012., p. 38). Não por acaso, quando dos debates políticos sobre a definição de direitos e deveres para os(as) trabalhadores(as) domésticos(as), ocorridos em meados do século XX, surgiam argumentos que apoiavam-se fortemente “numa vincada subordinação do prestador de trabalho ao seu amo”. Isso porque, no entendimento social, as relações de trabalho doméstico envolviam uma “dupla dependência”, de cunho pessoal e profissional, a qual se expressava, inclusive, do ponto de vista linguístico, visto que a própria palavra “criada” dá ênfase ao laço de dependência para com a família (Brasão, 2012BRASÃO, Inês. O tempo das criadas: a condição servil em Portugal (1940-1970). Lisboa: Tinta-da-China, 2012., p. 40-41).

Ainda considerando análises históricas sobre as relações de trabalho doméstico, em estudo sobre os serviçais na Europa pré-industrial, a historiadora italiana Raffaella Sarti afirma que “o serviço doméstico não era um trabalho específico, mas sim um ‘tipo de relação’ que poderia existir entre pessoas de classes sociais, origem geográfica, treinamento, renda, afazeres, sexo, idade e status legal e civil diferentes”. De acordo com a autora, o que, em última instância, distinguia os criados era muito mais o fato de ter um amo ou mestre do que executar uma determinada tarefa ou função específicas, pois “ser serviçal era antes uma condição e não uma profissão” (Sarti, 2007SARTI, Raffaella. Contando o conto de Zita: as estórias dos servos sagrados e a história dos servos”. Varia História, Belo Horizonte, v. 23, n. 38, p. 463-89, 2007., p. 467, grifos da autora). De outra parte, a historiadora Bridget Hill argumenta que não é possível ver o trabalho doméstico “como uma ocupação única” e que em séculos passados o empregado doméstico poderia, muitas vezes, fundir-se com o empregado da lavoura ou do pequeno comércio. Nesse sentido, a autora afirma que

não é tanto a natureza do trabalho que define um criado, nem a relação de parentesco com o chefe do domicílio [como no caso de parentes e agregados que trabalhavam em troca de abrigo, alimentação, proteção ou convívio], e sim a natureza da relação com o chefe do domicílio - como ele(a) é tratado(a). (Hill, 1995aHILL, Bridget. Algumas considerações sobre as empregadas domésticas na Inglaterra do século XVIII e no terceiro mundo hoje. Vária História, Belo Horizonte, n. 14, p. 22-33, set. 1995a., p. 27).

Realizando uma reflexão comparativa entre as diferentes situações históricas de trabalhadores domésticos na Inglaterra setecentista com a dos países do chamado “terceiro mundo”, Hill acrescenta que uma característica comum dos trabalhadores domésticos, em especial das mulheres trabalhadoras, era a sua condição de extrema vulnerabilidade. Tal condição poderia ter várias facetas: fosse porque muitas criadas domésticas eram migrantes rural-urbanas - afastadas da família, tendo que se adaptar a um espaço desconhecido e, até mesmo, hostil; fosse pela alta rotatividade nos empregos, decorrente, entre outros fatores da ausência de contratos formais de trabalho, o que levava ao risco permanente de desemprego e à procura pela prostituição como meio de sobrevivência material; fosse pela precariedade das condições de trabalho, sem regras ou garantias, acarretando em explorações, maus tratos e abusos - físicos e morais (Hill, 1995aHILL, Bridget. Algumas considerações sobre as empregadas domésticas na Inglaterra do século XVIII e no terceiro mundo hoje. Vária História, Belo Horizonte, n. 14, p. 22-33, set. 1995a., p. 29-32).

Além disso, é importante considerar que as relações de trabalho presentes no serviço doméstico, em diferentes tempos e espaços, foram fortemente marcadas por outras relações sociais, como as relações de gênero e raça - as quais, por sua vez, reforçavam as características de dependência e vulnerabilidade próprias da condição de classe das(os) trabalhadoras(es). Por um lado, do ponto de vista do gênero, o serviço doméstico tendeu historicamente a ser realizado por uma força de trabalho feminina. Isso foi particularmente válido a partir de meados do século XIX, quando se iniciou uma intensa feminilização do setor em várias cidades europeias e americanas - fenômeno diretamente relacionado à proletarização em massa de milhares de pessoas.

No Brasil, há indícios de que tal processo tenha ocorrido entre o final do Oitocentos e a primeira metade do século XX (Souza, 2019SOUZA, Flavia Fernandes de. Criados, escravos e empregados: o serviço doméstico e seus trabalhadores na cidade do Rio de Janeiro (1850-1920). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2019., p. 86-87). E tendo em vista a posição de subordinação ocupada socialmente pelas mulheres e o caráter patriarcal das famílias brasileiras, as relações de trabalho na prestação de serviços domésticos foram historicamente marcadas por inúmeras formas de opressões de gênero, as quais poderiam envolver agressões de diversas ordens (morais, físicas e sexuais) cometidas por senhores(as), amos(as) e patrões(oas) contra as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os).

Por outro lado, dinâmicas raciais de longa data estruturam a organização do serviço doméstico e suas relações de trabalho em formações sociais capitalistas contemporâneas. Como defende Susan Ferguson, “a racialização do serviço doméstico foi (e ainda é) um fenômeno global, ligado à expansão colonial-imperial e aos padrões de migração internacional”. Em diversas cidades da Europa e das Américas, trabalhadoras(es) domésticas(os), geralmente de origens nacionais, étnicas e raciais variadas, compreendiam o “outro racializado”, a ser estigmatizado e que deveria ficar responsável pelos trabalhados desvalorizados socialmente (Ferguson, 2020, p. 60-61, tradução minha).

Na história brasileira, raça e serviço doméstico também caminharam juntos, primeiramente em função da própria organização do trabalho reprodutivo em uma sociedade que escravizava africanos e descendentes nascidos no país, tendo em vista a escravidão doméstica e toda uma ideologia de degradação do trabalho. Nesse sentido, são conhecidas as observações de viajantes sobre escravos domésticos em espaços urbanos. A escritora e educadora alemã Ina von Bizen, que esteve na província do Rio de Janeiro na década de 1880, afirmou, por exemplo, que “todo o serviço doméstico é feito por pretos: é um cocheiro preto quem nos conduz, uma preta quem nos serve, junto ao fogão o cozinheiro é preto e a escrava amamenta a criança branca” (Binzer, 1982BINZER, Ina von. Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982., p. 34).

A existência da escravidão fazia com que as relações de trabalho doméstico fosse mediada por políticas de dominação como o paternalismo (com toda a sua bagagem, ideológica e real, de autoridade, dependência, reciprocidades, obrigações, intimidade, conflitos e violência) e também pelo estigma de desvalorização que acompanhava o trabalho, especialmente os de caráter pessoal e manual, em uma sociedade escravista. Afinal, todo trabalho, por ser, sobretudo, atribuição dos escravos, era amplamente visto de forma negativa, como castigo ou atividade aviltante. Posteriormente, em contextos de pós-abolição, a relação entre raça e serviço doméstico se colocava, sobretudo, em função da forma como o racismo operou no mercado de trabalho, criando divisões, hierarquias e, consequentemente, desigualdades entre os(as) trabalhadores(as) e fazendo daquele setor um reduto de mulheres negras. A título de exemplo basta lembrar da forma como critérios de cor da pele estiveram presentes em anúncios de jornais com procuras e ofertas de criadas(os) para o serviço doméstico nas primeiras décadas do século XX. Da mesma forma que, entre as décadas de 1930 e 1950, emergiu o requisito da “boa aparência”, o qual operou como princípio seletivo no recrutamento de trabalhadores(as) para escritórios e estabelecimentos comerciais no Rio de Janeiro (Damasceno, 2011DAMASCENO, Caetana. Segredos da boa aparência: da “cor” à “boa aparência” no mundo do trabalho carioca (1930-1950). Seropédica: Editora da UFRRJ, 2011., p. 127-130).

Considerando-se todos esses elementos, pode-se, então, afirmar que a definição do serviço doméstico pelas relações de trabalho revela-se bastante ampla e adequada para a análise do tema do ponto de vista histórico. Em épocas passadas, aquele serviço definitivamente não se definia apenas pelo local de trabalho e pelas atividades realizadas por suas(seus) trabalhadoras(es), pois o espaço de atuação delas(es) poderia ir além do domicílio e as atividades por elas(es) executadas variavam muito, tratando, na maior parte das vezes, de um conjunto variável de atividades que mantinham a vida de um domicílio em movimento. E, nesse sentido, tendo em vista o caso brasileiro, é esclarecedora a afirmação da historiadora Olívia Maria G. da Cunha (2007CUNHA, Olívia Maria G. da. Criadas para servir: domesticidade, intimidade e retribuição. In: GOMES, Flávio dos S.; CUNHA, Olívia Maria Gomes da. (org.). Quase-Cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 377-417., p. 379), em estudo sobre as criadas domésticas, segundo a qual “as fronteiras do território doméstico - lares e residências de famílias - foram desde cedo redefinidas pelos criados, agregados e seus amos”. E, portanto, as relações de trabalho estabelecidas entre eles é fator determinante para o entendimento social daquela esfera laboral a partir de um olhar histórico.

Os(as) trabalhadores(as) domésticos(as)

Ao se considerar as relações de trabalho como um elemento importante para a definição do serviço doméstico em perspectiva histórica, faz-se necessário refletir também sobre os(as) trabalhadores(as) que prestavam esse serviço em diferentes sociedades e contextos passados. E, como ponto de partida, é relevante destacar que essa foi uma problemática que se fez presente em determinados momentos, sobretudo quando se procurou legislar sobre o assunto. Afinal, para que se pudesse regulamentar as atividades realizadas no âmbito da prestação dos serviços domésticos era preciso que primeiramente ficasse claro quem eram as(os) trabalhadoras(es) que atuavam no setor.

Historiadores europeus que se dedicaram a esse tema costumar apontar, como ponto de partida para a discussão, algumas situações ocorridas no final do século XVIII, quando do surgimento de impostos sobre o luxo. Esses tributos recaíram diretamente sobre o costume aristocrático de empregar um grande número de serviçais, os quais passaram a ser considerados artigos de ostentação. Esse foi o caso da Inglaterra em 1777, quando foi criado o imposto anual sobre o emprego de criados domésticos, tendo como justificativa a manutenção da economia de guerra. Segundo a historiadora inglesa Carolyn Steedman, essa medida do direito tributário inglês, que com modificações durou até meados do século XIX, teve surpreendentes efeitos sobre as definições e sentidos do que era ser criado(a) e do trabalho que este(a) realizava. Em sua análise, a autora demonstra como as leis tributárias inglesas do final do século XVIII ampliaram sobremaneira a noção de que criado(a) doméstico(a) seria apenas aquele que vivia dentro “das quatro paredes de uma casa”, pois para se converter em um item tributável, um(a) criado(a) não necessariamente precisaria viver sob o mesmo teto em que seu empregador (Steedman, 2013STEEDMAN, Carolyn. El trabajo de servir: las tareas de la vida cotidiana, Inglaterra, 1760-1820.Mora, Buenos Aires, v. 19, n. 2, p. 101-126, 2013., p. 113).

No Brasil, problemas sobre a aplicação da lei em relação ao serviço doméstico se colocaram, sistematicamente, nas últimas décadas do século XIX, quando ocorreu o processo de regulamentação municipal do setor em várias cidades do país.11 11 Sobre o longo processo de tentativas de regulamentação municipal do serviço doméstico na capital brasileira e suas particularidades ver: Souza (2019). Para outras cidades brasileiras ver: Bakos (1984), Lima (2009), Silva (2016) e Telles (2013). Em um debate ocorrido no ano de 1888, na Câmara Municipal da Corte, em torno de um projeto de postura que visava regular a esfera de trabalho composta pelos prestadores de serviços domésticos na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, foram feitos alguns questionamentos sobre a designação “criados de servir”, então escolhida para definir os(as) trabalhadores(as) domésticos(as). O debate foi levantado pelo presidente do conselho de vereadores, que afirmou convir “liquidar antes de tudo quais são as profissões que abrangem a classificação comum - criado de servir” (AGCRJ, 1888AGCRJ. Boletim da Ilustríssima Câmara Municipal da Corte (julho, agosto e setembro de 1888). Rio de Janeiro: Tipologia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve, 1888., p. 65). Em tal discussão, afirmou-se que uma das definições possíveis seria aquela contida no Código Civil português de 1867, que definia o serviço doméstico como o que “é prestado por um indivíduo a outro que com ele convive, mediante retribuição” (Portugal, 1868PORTUGAL. Código civil português (aprovado por carta de Lei de 1 de julho de 1867). Lisboa: Imprensa Nacional, 1868., p. 236). No entanto, foi colocada a dúvida se os caixeiros, empregados no comércio, estariam compreendidos em tal definição. A resposta dada pelo presidente do conselho de vereadores foi a de que tal designação “só não compreende os caixeiros afiançados, os primeiros caixeiros”, o que causou vários apartes dos vereadores (AGCRJ, 1888AGCRJ. Boletim da Ilustríssima Câmara Municipal da Corte (julho, agosto e setembro de 1888). Rio de Janeiro: Tipologia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve, 1888., p. 65).

Embora essa discussão tenha avançado pouco, é interessante observar alguns pontos. Em primeiro lugar, ainda que o projeto em questão propusesse uma regulamentação para o serviço doméstico, o termo escolhido para definir os trabalhadores foi “criados de servir” e a escolha provavelmente não foi casual. Ou seja, não seriam simplesmente “criados domésticos”, mas “criados de servir” - expressão que remete a uma ideia de maior abrangência para o âmbito de atuação dos trabalhadores. Esse pode parecer um detalhe, mas a sutileza de enfoque na designação talvez envolvesse o que o presidente do conselho visava no sentido de escolher um termo cujo significado pudesse incluir, como ele mesmo disse, “os pequenos serviços que o indivíduo presta a outros mediante certas condições” (AGCRJ, 1888AGCRJ. Boletim da Ilustríssima Câmara Municipal da Corte (julho, agosto e setembro de 1888). Rio de Janeiro: Tipologia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve, 1888., p. 65). Sendo assim, embora a definição utilizada em tal projeto de regulamento fosse do Código Civil português, que envolvia a questão da convivência entre amos e criados - o que é um elemento importante na definição do serviço doméstico -, outros aspectos das relações de trabalho foram, de certa forma, considerados.

Outro ponto relevante é a referência feita aos chamados caixeiros, que, em parte, estariam incluídos na denominação “criados de servir”. Nesse caso, é válido recuperar alguns esclarecimentos feitos pela historiadora Fabiane Popinigis (2007POPINIGIS, Fabiane. Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas: Editora da Unicamp, 2007., p. 34-35) sobre a variedade de funções exercidas pelos trabalhadores do pequeno comércio carioca na segunda metade do século XIX e início do século XX. Segundo a autora, havia uma enorme heterogeneidade de trabalhadores do comércio e o termo “caixeiro” incluía, na verdade, “um espectro amplo de funções que atendiam a uma escala hierárquica”. Ou seja, um caixeiro poderia organizar livros de contas e de letras, cuidando das finanças (nesse caso conhecido como “primeiro-caixeiro” ou “guarda-livros”); ou atender ao público, vendendo, organizando e carregando mercadorias (por isso chamado de “caixeiro de balcão” ou “segundo-caixeiro”); ou ainda ficar responsável por serviços de limpeza, arrumação, entregas e mensagens (sendo denominado de “vassoura” ou “caixeiro de fora”).

Tendo em vista esse entendimento, pode-se concluir que, em determinados contextos, o trabalho realizado por alguns caixeiros poderia se confundir com uma espécie de serviço doméstico. Além da semelhança de algumas atividades e do fato de conviverem - frequentemente, coabitando - com os patrões, muitos empregados do comércio, tal como apontado por Popinigis (2007POPINIGIS, Fabiane. Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas: Editora da Unicamp, 2007., p. 36), possuíam “uma vida de profunda dependência e submissão ao patrão e ao trabalho” que realizavam. E provavelmente em função da existência de situações como essas, a maioria das definições dos trabalhadores domésticos elaboradas em projetos municipais de regulamentação na cidade do Rio de Janeiro incluíam trabalhadores do comércio e de estabelecimentos da prestação de serviços, como “criados de servir” e, portanto, prestadores de serviços domésticos. Entre esses trabalhadores estariam criados e criadas de quarto, camareiras e moços de hotel, de cafés, casas de pasto ou hospedarias (AGCRJ. Códices: 50-1-43AGCRJ. Códice (2923) 50-1-43: Serviço doméstico. Projetos de posturas e Pareceres do Conselho de Estado sobre o serviço doméstico no Rio de Janeiro (1881-1889).; 50-1-47AGCRJ. Códice (2927) 50-1-47: Serviço doméstico. Projetos de postura, propostas e requerimentos (1884, 1885, 1888, 1891 e 1896).). Sendo esse um elemento que indica que até o final do século XIX não havia uma clara distinção entre os criados domésticos e os criados do comércio ou da prestação de serviços em geral.

Não obstante, ao que tudo indica, a separação entre os diferentes tipos de criados e criadas parece ter acontecido por volta do início do século XX. A partir então, pouco a pouco, se consolidou uma distinção entre os(as) “criados(as) de servir” (entendidos agora como aqueles(as) atuantes no pequeno comércio e em estabelecimentos de prestação de serviços de hospedagem e alimentação) e as(os) “criadas(os) domésticas(os)” (que prestavam serviços nos domicílios urbanos).12 12 Fenômenos semelhantes parecem ter ocorrido em outros lugares. De acordo com um estudo sobre a história sindical dos trabalhadores de hotel em Lisboa, realizado pelo historiador e militante português Américo Nunes, ao longo do processo de organização dos trabalhadores do serviço doméstico surgiram distinções entre criados de casas particulares e criados de hotéis, café e restaurantes, as quais foram acompanhadas por clivagens de gênero, tendo em vista que as mulheres, na maior parte do tempo foram afastadas das associações de classe, além de serem alvos preferenciais de regulamentos baseados em princípios de controle social. Sobre o assunto ver: Nunes (2007, p. 159-169). Sendo importante lembrar que essa segmentação do universo da criadagem foi acompanhada pela construção de hierarquias e divisões sexuais e raciais do trabalho, o que impactou a construção de identidades de classe entre os(as) trabalhadores(as). Sobre isso, basta lembrar, por exemplo, que entre os trabalhadores do pequeno comércio havia uma predominância de homens brancos, sendo a maioria imigrantes de origem portuguesa (Popinigis, 2007POPINIGIS, Fabiane. Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas: Editora da Unicamp, 2007., p. 92). De outra parte, o conjunto da força de trabalho alocada no serviço doméstico cada vez mais se constituía por mulheres, sendo a maioria delas brasileiras pretas e pardas.

Na verdade, esse foi um processo que se relacionava com os crescentes fenômenos de feminilização e racialização do setor que ocorriam desde o final do século XIX. No Brasil, o perfil mais comum do trabalhador doméstico foi o de uma mulher trabalhadora e, sobretudo, de uma mulher negra trabalhadora. Ao se observar os dados dos recenseamentos gerais ocorridos no Brasil, nota-se que o percentual de mulheres no serviço doméstico, em cidades como o Rio de Janeiro, cresceu em torno de 10% em 1906, 12% em 1920 e 16% em 1940, e, em paralelo, diminuiu o número de trabalhadores do sexo masculino (Brasil, 1874BRASIL. Recenseamento do Brasil de 1872 (Município Neutro). Rio de Janeiro: Tip. G. Leuzinger, 1874. v. 5., v. 5, p. 61; 1907BRASIL. Recenseamento do Rio de Janeiro de 1906 (Distrito Federal). Rio de Janeiro: Oficina de Estatística, 1907., p. 104; 1923BRASIL. Recenseamento do Brasil de 1920 (Distrito Federal). Rio de Janeiro: Tip. da Estatística, 1923. v. 2, parte 1., v. 2, parte 1, p. 514-15; IBGE, 1951IBGE. Pesquisas sobre os grupos de cor nas populações do estado de São Paulo e do Distrito Federal. Rio de Janeiro: IBGE, 1951., p. 110). Em meados do século XX, as mulheres constituíam mais de 85% (63.964) da força de trabalho empregada no trabalho doméstico remunerado na capital brasileira, enquanto os homens representavam apenas 13% (10.351). Além disso, segundo os dados do censo de 1940, um percentual de 71% das mulheres empregadas domésticas e 61% do conjunto de trabalhadores domésticos (incluídos os homens) eram de cor preta ou parda (IBGE, 1951IBGE. Pesquisas sobre os grupos de cor nas populações do estado de São Paulo e do Distrito Federal. Rio de Janeiro: IBGE, 1951., p. 116). E tais constatações, que revelam que a maioria dos trabalhadores domésticos atuantes na cidade do Rio de Janeiro em meados do século XX era composta por mulheres negras, não ficavam evidentes apenas nos dados oficiais, mas tornavam-se também perceptíveis para muitos contemporâneos. Em um artigo publicado no jornal diário Correio da Manhã, um articulista afirmava, ao analisar a situação do serviço doméstico na capital, que: “antigamente, também havia entre as domésticas muitas negras. Eram crias das casas em que serviam. [...] Hoje, a coisa é bem diversa. É difícil primeiramente encontrar-se uma empregada branca. As mulatas e as negras dominam a profissão” (Correio da Manhã, 1939aCORREIO DA MANHÃ. As empregadas domésticas, flagelo das donas de casa. Rio de Janeiro, ano XXXVIII, n. 13.584, p. 3, 17 fev. 1939a. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/089842_04/50754 . Acesso em: 11 nov. 2020.
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, p. 3).

Outra mudança ocorrida no decorrer da primeira metade do século XX é que as designações oficiais das(os) trabalhadoras(es) e a definição do serviço doméstico sofreram significativas alterações. Ao longo das primeiras décadas do século XX, o termo “criada(o)” (o qual enfatiza a ideia de dependência e de vínculo do trabalhador com um núcleo doméstico e familiar) tendeu a cair em desuso, prevalecendo a terminologia “empregada(o)” - a qual não perdeu o seu caráter de dependência no âmbito da domesticidade. Mas, em geral, isso se vinculava à dinâmica de transformações ocorridas nas relações de produção e de reprodução, bem como às distinções que iam sendo construídas entre determinados segmentos profissionais. A título de exemplo, pode-se comparar as diferenças existentes na definição das ocupações abrigadas sob a denominação “serviço doméstico” em alguns importantes decretos e leis do período. De acordo com o primeiro decreto federal instituído na capital em 1923 (o Decreto n. 16.107BRASIL. Decreto n. 16.107, de 30 de julho de 1923. Aprova o regulamento de locação dos serviços domésticos. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-16107-30-julho-1923-526605-norma-pe.html . Acesso em: 05 abr. 2022.
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, de 30 julho), que consolidou uma longa trajetória de debates e iniciativas em torno da regulamentação do setor - até então ocorrida em nível municipal -, não havia diferença entre os(as) trabalhadores(as) domésticos(as) que atuavam em estabelecimentos do comércio e da prestação de serviços em geral e as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) que atuavam nos domicílios. Em ambas as situações os(as) trabalhadores(as) eram definidos como “locadores de serviços domésticos”, tal como era expresso no artigo segundo do decreto:

Art. 2º São locadores de serviços domésticos: os cozinheiros e ajudantes, copeiros, arrumadores, lavadeiras, engomadeiras, jardineiros, hortelões, porteiros ou serventes, enceradores, amas secas ou de leite, costureiras, damas de companhia e, de um modo geral, todos quantos se empregam, à soldada, em quaisquer outros serviços de natureza idêntica, em hotéis, restaurantes ou casas de pasto, pensões, bares, escritórios ou consultórios e casas particulares. (Brasil, 1923BRASIL. Recenseamento do Brasil de 1920 (Distrito Federal). Rio de Janeiro: Tip. da Estatística, 1923. v. 2, parte 1.).

No entanto, nos anos 1930 e início da década de 1940, quando da construção da legislação social brasileira, os entendimentos oficiais em torno do serviço doméstico e seus trabalhadores mudaram. Em um contexto de transição industrial e de crescimento urbano e comercial, a prestação de serviços domésticos passou a ser considerada uma atividade de natureza não-econômica.13 13 No texto final da CLT, as(os) empregadas(os) domésticas(os) foram excluídas(os) do universo dos direitos sociais com a justificativa de que se tratavam de trabalhadoras(es) que prestavam “serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas” (Brasil, 1943). Nos projetos, debates e leis elaborados e surgidos quando da formulação da legislação trabalhista, previdenciária e sindical, as(os) empregadas(os) domésticas(os) passaram a ser compreendidas(os) como “não cooperadores do capital”. O entendimento que se estabelecia em torno do assunto era o de que havia uma clara distinção entre o trabalho doméstico remunerado e os trabalhos realizados no âmbito da indústria, do comércio, da produção agrícola e das profissões liberais.

Em consequência disso, se estabeleceu entre os legisladores e os setores patronais a noção de que as(os) trabalhadoras(os) domésticas(os) não teriam “função social”, pois elas(es) não cooperariam com o seu trabalho para a dinâmica capitalista - sendo essa a principal justificativa então mobilizada para a exclusão daquelas(es) trabalhadoras(es) do universo dos direitos sociais (Correio da Manhã, 1939bCORREIO DA MANHÃ. A regulamentação do trabalho dos domésticos. Rio de Janeiro, ano XXXVIII, n. 13.620, p. 3, 1º abr. 1939b. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/089842_04/51428 . Acesso em: 12 abr. 2022.
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, p. 3). Assim, as(os) empregadas(os) domésticas(os) passaram a ser oficialmente definidas(os) como distintas(os) dos demais trabalhadores que realizavam atividades semelhantes em espaços do comércio e da prestação de serviços. E a partir de então apenas os trabalhadores que prestavam serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família no âmbito das residências é que estariam classificados como domésticos (Souza, 2022SOUZA, Flavia Fernandes de. De um problema social a um trabalho que não coopera para o capital: a regulamentação do serviço doméstico durante o contexto de criação da legislação social brasileira. Revista Izquierdas, Santiago, n. 51, p. 1-32, 2022.). Percebe-se, pois, que as dificuldades em torno das definições e da abrangência do serviço doméstico em certos contextos históricos se estenderam para a própria identificação de quem era ou não definido como trabalhador doméstico, bem como dos impactos dessas definições na inclusão ou exclusão das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) do âmbito dos direitos.

Nesse sentido, é preciso considerar outra questão importante, que é a condição jurídica dos indivíduos que atuaram no serviço doméstico ao longo do tempo. Em formações sociais modernas e contemporâneas, os(as) trabalhadores(as) daquela esfera laboral nem sempre foram de condição social livre, tendo em vista a existência de práticas de trabalho compulsório oriundas da servidão e da escravidão. Como afirma o medievalista Jacques Heers, a condição dos domésticos poderia se diversificar “numa gama de situações intermediárias, bastardas, amiúde difíceis de circunscrever” (Heers, 1983HEERS, Jacques. Escravos e domésticos na Idade Média no mundo mediterrâneo. São Paulo: Difel, 1983., p. 130). O autor afirma que o serviço doméstico, em regiões do Mediterrâneo, no início da Idade Moderna, por exemplo, constituía um dos espaços sociais que tendia a reunir criados escravizados e livres. Tais criados, de diferentes condições jurídicas, poderiam, em alguns casos, coabitar em um mesmo domicílio.

Sobre esse aspecto, pode-se considerar que se a existência de criados(as) domésticos(as) pertencentes a diferentes estatutos legais foi uma realidade disseminada no chamado Antigo Regime europeu. Em sociedades escravistas americanas tal cenário ganhou contornos ainda mais complexos, sendo a presença do trabalho escravo muito mais que uma mera modalidade de trabalho compulsório. Desde os primórdios da colonização portuguesa nas Américas, utilizou-se a força de trabalho escravizada nos serviços domésticos, por meio da expropriação e exploração do trabalho de povos indígenas e de africanos oriundos do tráfico transatlântico. Nesse caso, mesmo em contextos de transformações na produção escravista americana em relação à economia mundial, com a ampliação em larga escala da produção de gêneros alimentícios para a exportação, característica do século XIX, as demandas internas por escravos domésticos se mantiveram contínuas em diferentes lugares, e em especial em cidades escravistas (Santos, 2012SANTOS, Ynaê Lopes dos. Irmãs do Atlântico: escravidão e espaço urbano no Rio de Janeiro e Havana (1763-1844). 2012. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2012.). Aliás, foi nas cidades que a escravidão se apresentou de forma mais notável no que se refere à prestação de serviços domésticos. E mesmo em contextos de pós-emancipação, eram numerosos os escravizados que conquistavam a liberdade por meio de alforrias condicionais ou contratos de locação de serviços, os quais envolviam, muitas vezes, anos de trabalho na prestação de serviços domésticos sem remunerações monetárias (Lima, 2009LIMA, Henrique Espada. Trabalho e lei para os libertos na Ilha de Santa Catarina no século XIX: arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade. Cadernos AEL, Campinas, v. 14, n. 26, p. 135-177, 2009. ; Ariza, 2014ARIZA, Marília Bueno de Araújo. O ofício da liberdade: trabalhadores libertandos em São Paulo e Campinas (1830-1888). São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2014.).

Deste modo, quando se busca recuperar quem eram os trabalhadores domésticos em séculos passados na sociedade brasileira, é inevitável que se faça uma associação entre as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) e os(as) escravos(as) domésticos(as). Até porque a modalidade doméstica de escravização de pessoas foi responsável pelo estabelecimento de práticas e valores sociais que orientaram relações de trabalho em uma longa duração história que se estende até a atualidade. Todavia, se a condição jurídica foi um importante fator na forma como os trabalhadores domésticos foram identificados, nos mais variados contextos históricos, outros elementos caracterizaram aqueles que dedicaram ao serviço doméstico.

A questão da origem dos trabalhadores foi outro indicador comum da condição dos serviçais em alguns lugares e momentos históricos. Em função da ampliação de movimentos populacionais, que levavam trabalhadores de um lugar para outro no globo, em contextos de desenvolvimento do capitalismo industrial, os(as) trabalhadores(as) domésticos(as) poderiam ter sua identidade social ligada, sobretudo, à sua nacionalidade. Um dos casos conhecidos se refere à história norte-americana, sobretudo em cidades da costa Leste dos Estados Unidos, entre a segunda metade do século XIX até as primeiras décadas do século XX, quando a entrada maciça de irlandeses no país e, particularmente, de mulheres irlandesas no serviço doméstico, levou muitos contemporâneos a associarem esse setor ocupacional ao trabalho preferencialmente realizado por aqueles imigrantes (Sarti, 2005bSARTI, Raffaella. Conclusion. Domestic service and European identity. In: PASLEAU, Suzy; SCHOPP, Isabelle; SARTI, Raffaella (org.). Proceedings of the Servant Project. Liège: Universidade de Liège, 2005b. v. 2, p. 195-284.). Apenas para ilustrar a questão, vale a reprodução de uma citação feita por Eric Hobsbawm na abertura do capítulo sobre os movimentos migratórios na “era do capital”, em que apresenta um trecho de uma carta enviada de Boston pelo poeta inglês Arthur Hugh Clough para o escritor escocês Thomas Carlyle, em 1853: “Disseram-me que os irlandeses estão tirando o serviço doméstico dos negros por toda parte [...] Aqui isso é universal; não se encontra praticamente em lugar nenhum um empregado que não seja irlandês” (Hobsbawm, 1979HOBSBAWM, Eric J. A Era do capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979., p. 207).

Na história brasileira também ocorreram processos semelhantes, a exemplo da imigração de indivíduos oriundos do território insular português (arquipélagos de Açores e Madeira) para algumas localidades do Brasil no século XIX. Entre os anos de 1850 e 1860, aproximadamente, a capital do país recebeu um sem-número de homens e mulheres que ficaram conhecidos como imigrantes “das ilhas”.14 14 Em anúncios de jornais com procuras e ofertas de trabalhadores (em diários como o Jornal do Commercio e o Diário do Rio de Janeiro), datados das décadas de 1850, 1860 e 1870, são numerosas as referências a designação “das Ilhas”, a qual identi ficava imigrantes vindos das ilhas de Açores e Madeira. Sobre o assunto ver: Souza (2019, p. 62-68 e 144-153). Muitos deles vieram por intermédio de circuitos ilegais de transporte marítimos, estabelecidos com o término do tráfico negreiro em 1850 (Alencastro, 1988ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Proletários e escravos: imigrantes portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro, 1850-1872. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 21, p. 30-56, julho 1988., p. 35-40). Embora não haja números oficiais sobre esse movimento migratório, vários documentos indicam que parcela significativa desses imigrantes ingressaram no mercado de trabalho por meio da prestação de serviços domésticos. Em sua maioria, tais imigrantes ficavam presos em acordos para a pagamentos de dívidas de viagem. Tratava-se do chamado engajamento, o qual envolvia uma prática de exploração de trabalho semelhante a uma espécie de “servidão por dívidas” e que era realizada por muitos trabalhadores através da prestação de serviços domésticos (Souza, 2019SOUZA, Flavia Fernandes de. Criados, escravos e empregados: o serviço doméstico e seus trabalhadores na cidade do Rio de Janeiro (1850-1920). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2019., p. 62-68; 144-153).

Na verdade, a história dos trabalhadores domésticos não pode ser dissociada da história das migrações. Quando da intensificação dos fluxos imigratórios para o Brasil, grande parte dos estrangeiros que optavam por permanecer nas cidades empregavam-se na prestação de serviços nos domicílios. Em 1872, por exemplo, enquanto os escravos domésticos representavam cerca de 40% da força de trabalho do setor, os estrangeiros correspondiam a 20% dos 55.011 trabalhadores domésticos existentes na capital (Brasil, 1874BRASIL. Recenseamento do Brasil de 1872 (Município Neutro). Rio de Janeiro: Tip. G. Leuzinger, 1874. v. 5.). Percentuais semelhantes se repetiram nos recenseamentos subsequentes. Ou seja, no final do século XIX, uma parcela das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) era composta por imigrantes. E se, no decorrer da primeira metade do século XX, tais percentuais tenderam a diminuir, é importante destacar que, paralelamente, parece ter aumentado o percentual de homens e, principalmente, mulheres brasileiras oriundas de fluxos migratórios internos na composição da força de trabalho do serviço doméstico. A cidade do Rio de Janeiro, entre as décadas de 1930 e 1950, atraiu numerosos migrantes rural-urbanos, entre os quais havia um grande número de mulheres negras. Segundo Costa Pinto, tratava-se, na verdade, de um “êxodo de moças desta cor, naquelas idades de 20-29 anos, das zonas rurais adjacentes, especialmente do estado do Rio de Janeiro e de Minas, em busca de ocupação nas indústrias e no serviço doméstico” (Pinto, 1998PINTO, Luiz Aguiar Costa. O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade em mudança. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1998., p. 76-78).

Considerando isso, é importante ressaltar que, ao longo da história brasileira, o perfil dos trabalhadores domésticos foi também muito marcado pela faixa etária. Com o avanço da proletarização - que levou famílias inteiras ao assalariamento e ao ingresso no mercado de trabalho -, o apoio de legislações que promoviam o agenciamento do trabalho infanto-juvenil, bem como a existência de valores e práticas sociais - muitas delas de cunho escravistas - que não protegiam a infância e a juventude da exploração do trabalho, era muito comum que crianças e adolescentes fossem empregados na prestação de serviços domésticos. Demandados e ofertados de maneira abundante nos anúncios de jornais, por vezes acompanhados de suas mães, para trabalharem sem remuneração monetária, ou alocados em casas de família em arranjos informais de criação (nos quais se trocava serviços por sustento, aprendizado profissional e/ou socialização), ou ainda como tutelados e assoldadados (a partir de termos e processos abertos em juizados de órfãos), meninos e meninas constituíram parte importante da força de trabalho empregada no serviço doméstico (Peçanha, 2018PEÇANHA, Natália Batista. “Precisa-se de uma menor para pequenos serviços de uma casa”: a mão de obra infanto-juvenil no serviço doméstico carioca (1880-1930). Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 10, n. 20, p. 103-123, 2018.; Geremias, 2020GEREMIAS, Patrícia Ramos. “Como se fosse de família”: arranjos formais e informais de criação e trabalho de menores pobres na cidade do Rio de Janeiro (1860-1910). 2019. Tese (Doutorado em História) - Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.).

Portanto, qualquer análise que busque refletir sobre os sujeitos que atuaram no serviço doméstico deve considerar as particularidades de cada contexto histórico, seja em termos da forma como socialmente eram identificados os(as) trabalhadores(as) domésticos(as), seja no sentido de pensar formas de exploração e composição da força de trabalho empregada. Afinal, esses elementos tiveram uma grande centralidade no processo de formação de classe (e todas as demais dimensões que a compreende, como o gênero, a raça, a origem, a idade) das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) ao longo da história.

Considerações finais

O percurso realizado neste artigo visou, tão somente, apresentar alguns pontos de análise e discussão para um entendimento e definição do conceito trabalho doméstico remunerado/serviço doméstico em uma perspectiva histórica. Acredita-se que esse é um esforço válido, tendo em vista o espaço e a importância que o tema “trabalho doméstico” tem recebido nos domínios da história, em particular no campo da História Social do Trabalho e, igualmente, em outras áreas do conhecimento social e humano (Popinigis; Terra, 2019POPINIGIS, Fabiane; TERRA, Paulo Cruz. Classe, raça e história social do trabalho no Brasil (2001-2016). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 32, n. 66, p. 307-328, 2019.; Souza, 2015SOUZA, Flavia Fernandes de. Trabalho doméstico: considerações sobre um tema recente de estudos na História do Social do Trabalho no Brasil. Mundos do Trabalho, v. 7, n. 13, p. 275-296, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/mundosdotrabalho/article/view/1984-9222.2015v7n13p275 . Acesso em: 17 jan. 2023.
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). Além disso, sendo um fenômeno que atravessa diversos tempos e espaços, visto estar presente em toda a história contemporânea - e até mesmo antes dela - e se apresentar como um dos maiores setores ocupacionais na atualidade, o qual cumpre um papel fundamental na dinâmica de produção e de reprodução capitalistas, o trabalho doméstico remunerado ou o serviço doméstico se revela como um tema extremamente relevante, rico e complexo.

Como foi defendido, os estudos históricos sobre o trabalho doméstico remunerado e suas(seus) trabalhadoras(es) envolvem a compreensão de vários elementos, que vão desde uma problematização sobre a validade de tal conceito para o entendimento de determinados períodos históricos, passando pelos diversos níveis possíveis de definição da prestação de serviços domésticos, até as formas de identificação dos(as) trabalhadores(as) que realizaram esse tipo de trabalho em diferentes contextos históricos. Análises e reflexões em torno desses elementos se mostram importantes porque, a depender da forma de organização da produção e da reprodução em determinada sociedade, bem como da estrutura das relações sociais (de classe, gênero e raça) que elas compreendem, o trabalho doméstico pode ganhar contornos diferenciados e bem distantes do senso comum existente sobre o assunto - que muitas vezes parte de uma perspectiva simplista e estática.

No Brasil, para determinados contextos históricos, como os que caracterizaram a capital do país entre meados do século XIX e o início do século XX, a definição do trabalho/serviço doméstico compreende ainda mais complexidade. Tratava-se de um momento de transição entre uma forma de organização social estruturada em torno da escravidão - que no decorrer do século XIX já operava nos quadros da produção industrial, expandindo-se de maneira a atender a demanda global por matérias-primas e gêneros alimentícios (Tomich, 2011TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Editora da USP, 2011. p. 83) - para uma formação social propriamente capitalista, baseada no trabalho livre e assalariado. A prestação de serviços domésticos, nesse processo, compreendeu tanto fenômenos de continuidade, como de profundas transformações, seja em termos da natureza do trabalho e das bases em que se estruturavam as relações laborais, seja na composição da força de trabalho. E é no entendimento das maneiras pelas quais tais mudanças aconteceram e tais permanências se estabeleceram que a história pode contribuir não somente para a definição do serviço doméstico como também para a operacionalização do conceito nos estudos e pesquisas sobre o tema.

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  • VOGEL, Lise. Marxism and the oppression of women: toward a unitary theory. Chicago: Haymarket Books, 2013.

Notas

  • 1
    Ressalte-se que este artigo compreende parte da discussão presente no primeiro capítulo da tese de doutorado intitulada Criados, escravos e empregados: o serviço doméstico e seus trabalhadores na construção da modernidade brasileira, cidade do Rio de Janeiro, 1850-1920 (Universidade Federal Fluminense, 2017), acrescida dos resultados de pesquisa empreendida durante um estágio de pós-doutoramento realizado entre 2018 e 2022, junto ao PPGH-UFF.
  • 2
    Embora seja conhecida a profícua produção acadêmica sobre o tema no campo das ciências sociais e econômicas, em função dos limites de um artigo acadêmico e dos propósitos do presente texto, optou-se aqui por privilegiar o diálogo com estudos produzidos no âmbito da história. Análises sociais e econômicas são citadas apenas em alguns casos considerados essenciais à discussão. Sobre questões, pesquisas e aspectos políticos do tema nas referidas áreas, sugere-se ver o amplo balanço realizado em: Brites (2013BRITES, Jurema Gorski. Trabalho doméstico: questões, leituras e políticas. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 43, n. 149, p. 422-451, maio/ago. 2013.).
  • 3
    Somente em 2013 foi aprovada a Emenda Constitucional de nº 72, de 2 de abril, que estabeleceu igualdade de direitos trabalhistas entre as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) e os demais trabalhadores urbanos e rurais brasileiros, a qual foi regulamentada por meio da Lei Complementar nº 150 de 1º de junho de 2015.
  • 4
    Tal distinção está presente n’O Capital, quando Karl Marx diferencia o trabalho (e o trabalhador) produtivo e improdutivo, sendo chamado de produtivo aquele trabalho que diretamente produz mais-valia, ou seja, o trabalho que é consumido diretamente no processo de produção visando à valorização do capital. Ver: Marx (2013MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 578). Sendo importante ressaltar que tal distinção é feita do ponto de vista do capital e não se refere à utilidade da atividade para a sociedade, mas sim o seu lugar na produção da riqueza em um modo de produção capitalista.
  • 5
    A Teoria da Reprodução Social pode ser considerada uma perspectiva teórica marxista, que tem suas origens no estudo de Lise Vogel (2013VOGEL, Lise. Marxism and the oppression of women: toward a unitary theory. Chicago: Haymarket Books, 2013. ) sobre a opressão das mulheres, assim como um campo de estudos internacionais que tem se consolidado e ampliado nas últimas décadas. Sobre o assunto, ver: Vogel (2013VOGEL, Lise. Marxism and the oppression of women: toward a unitary theory. Chicago: Haymarket Books, 2013. ), Bhattacharya (2017BHATTACHARYA, Tithi (org.). Social reproduction theory: remapping class, recentering oppression. Londres: Pluto Press, 2017.) e Ferguson (2020FERGUSON, Susan. Women and Work: feminism, labour and social reproduction. London: Pluto Press, 2020.).
  • 6
    Entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, estudiosas feministas buscaram teorizar, sob o viés da economia política marxista, o trabalho doméstico não remunerado, visando ao entendimento das origens e das causas da subordinação das mulheres na sociedade capitalista. Uma vasta produção bibliográfica surgiu desse debate, tendo como ponto de partida o questionamento sobre o caráter produtivo do trabalho realizado nas unidades familiares. De acordo com Lise Vogel, apesar de ter legado para futuros estudiosos vários insights, como o que revela a centralidade da opressão das mulheres para a reprodução social do sistema capitalista, o debate sobre o trabalho doméstico não foi adiante por apresentar inúmeras limitações. Entre estas estava o alto nível de abstração, que levava muitas vezes a explicações a-históricas e a certo pedantismo teórico, bem como a sua distância do movimento das mulheres - então preocupado com questões como a dupla jornada de trabalho, a desigualdade salarial e a violência de gênero. Sobre o assunto: Vogel (2013VOGEL, Lise. Marxism and the oppression of women: toward a unitary theory. Chicago: Haymarket Books, 2013. , apêndice).
  • 7
    Segundo Lise Vogel, o trabalho necessário (ou seja, a parte de um dia de trabalho que permite ao trabalhador garantir sua subsistência) tem dois componentes: “o primeiro, discutido por Marx, é o trabalho necessário que produz valor equivalente aos salários. Esse componente, que chamei de componente social do trabalho necessário, está indissoluvelmente ligado ao trabalho excedente no processo de produção capitalista. O segundo componente do trabalho necessário, profundamente velado na descrição de Marx, é o trabalho não remunerado que contribui para a renovação diária e de longo prazo dos portadores da mercadoria força de trabalho e da classe trabalhadora como um todo. Chamei isso de componente doméstico do trabalho necessário, ou trabalho doméstico” (Vogel, 2013VOGEL, Lise. Marxism and the oppression of women: toward a unitary theory. Chicago: Haymarket Books, 2013. , p. 192).
  • 8
    Sobre o papel da escravidão em algumas regiões americanas (como Brasil, Cuba e Sul dos Estados Unidos) na formação, expansão e reprodução histórica do sistema capitalista em escala global ver: Tomich (2011TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Editora da USP, 2011.).
  • 9
    Para a historiadora Eulália Lobo, o serviço doméstico poderia encobrir uma espécie de “desemprego disfarçado”. Ver: Lobo (1978LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao capital industrial e financeiro. Rio de Janeiro, IBMEC, 1978, v. 1., p. 235). Vale destacar que no primeiro recenseamento geral do Brasil, de 1872BRASIL. Recenseamento geral do Brasil de 1940. (Distrito Federal). Rio de Janeiro: IBGE, 1951., observa-se que além do grupo profissional denominado de “serviço doméstico”, encontra-se a categoria constituída pelos “criados e jornaleiros”, que provavelmente abrigava trabalhadores remunerados que estavam na condição de servir, embora nem sempre fossem considerados “domésticos” (Brasil, 1874, BRASIL. Recenseamento do Brasil de 1872 (Município Neutro). Rio de Janeiro: Tip. G. Leuzinger, 1874. v. 5.v. 5).
  • 10
    Sobre a elaboração desses conceitos por parte da autora, ver: Graham (1992GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 165, nota 24). Outras referências sobre o assunto na historiografia brasileira encontram-se em: Matos (1994MATOS, Maria Izilda. Porta adentro: criados de servir em São Paulo de 1890 a 1930. In: BRUSCHINI, Maria Cristina; SORJ, Bila (org.). Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil. São Paulo: Marco Zero, 1994. p. 193-212.) e Carvalho (2003CARVALHO, Marcus F. M. de. De portas adentro e de portas afora: trabalho doméstico e escravidão no Recife, 1822-1850. Afro-Ásia, Salvador, n. 29/30, p. 41-78, 2003., p. 41-78).
  • 11
    Sobre o longo processo de tentativas de regulamentação municipal do serviço doméstico na capital brasileira e suas particularidades ver: Souza (2019SOUZA, Flavia Fernandes de. Criados, escravos e empregados: o serviço doméstico e seus trabalhadores na cidade do Rio de Janeiro (1850-1920). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2019.). Para outras cidades brasileiras ver: Bakos (1984BAKOS, Margaret Marchiori. Regulamentos sobre o serviço dos criados: um estudo sobre o relacionamento Estado e Sociedade no Rio Grande do Sul (1887-1889). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 4, n. 7, p. 94-104, 1984.), Lima (2009LIMA, Henrique Espada. Trabalho e lei para os libertos na Ilha de Santa Catarina no século XIX: arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade. Cadernos AEL, Campinas, v. 14, n. 26, p. 135-177, 2009. ), Silva (2016SILVA, Maciel Henrique Carneiro da. Nem mãe preta, nem negra fulô: histórias de trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador (1870-1910). Jundiaí: Paco Editorial, 2016.) e Telles (2013TELLES, Lorena Féres da Silva. Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920). São Paulo: Alameda, 2013.).
  • 12
    Fenômenos semelhantes parecem ter ocorrido em outros lugares. De acordo com um estudo sobre a história sindical dos trabalhadores de hotel em Lisboa, realizado pelo historiador e militante português Américo Nunes, ao longo do processo de organização dos trabalhadores do serviço doméstico surgiram distinções entre criados de casas particulares e criados de hotéis, café e restaurantes, as quais foram acompanhadas por clivagens de gênero, tendo em vista que as mulheres, na maior parte do tempo foram afastadas das associações de classe, além de serem alvos preferenciais de regulamentos baseados em princípios de controle social. Sobre o assunto ver: Nunes (2007NUNES, Américo. Hotelaria: de criados domésticos a trabalhadores assalariados: diálogo com a história sindical. Lisboa: Edições Avante, 2007., p. 159-169).
  • 13
    No texto final da CLT, as(os) empregadas(os) domésticas(os) foram excluídas(os) do universo dos direitos sociais com a justificativa de que se tratavam de trabalhadoras(es) que prestavam “serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas” (Brasil, 1943BRASIL. Decreto-lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-5452-1-maio-1943-415500-publicacaooriginal-1-pe.html >. Acesso em 05 abr. 2022.
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    ).
  • 14
    Em anúncios de jornais com procuras e ofertas de trabalhadores (em diários como o Jornal do Commercio e o Diário do Rio de Janeiro), datados das décadas de 1850, 1860 e 1870, são numerosas as referências a designação “das Ilhas”, a qual identi ficava imigrantes vindos das ilhas de Açores e Madeira. Sobre o assunto ver: Souza (2019SOUZA, Flavia Fernandes de. Criados, escravos e empregados: o serviço doméstico e seus trabalhadores na cidade do Rio de Janeiro (1850-1920). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2019., p. 62-68 e 144-153).
  • A pesquisa que resultou neste artigo contou com o financiamento, por meio de bolsa, do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD-Capes) (Processo 88882.306121/2018-1).

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e Eduardo Romero de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2023
  • Aceito
    15 Nov 2023
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