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O Brasil da mitologia racial: eugenia, racismo e utopias nacionais no Modernismo brasileiro dos anos 1920

The Brazil of Racial Mythology: Eugenics, Racism, and National Utopias in Brazilian Modernism in the 1920s

Resumo

O artigo analisa as relações entre eugenia e Modernismo, procurando compreender como a linguagem eugênica mobilizou o pensamento social e a literatura modernista dos anos 1920. Proponho compreender como a eugenia inspirou enredos, imagens e representações sobre o Brasil e os brasileiros, o que alimentou discussões sobre a modernidade nacional, a identidade racial brasileira, a criação de uma sociedade eugenicamente controlada e até mesmo a proposição de medidas extremas de extermínio humano em nome das utopias raciais. Meu interesse é analisar a eugenia como um movimento que se difundiu para além do campo médico e científico, empregada como uma expressão cultural própria da modernidade. Mais do que um discurso centrado em teorias médicas e biológicas, proponho compreender a eugenia como uma filosofia moderna que produziu forte impacto na vida cultural e social de início do século XX. Além de analisar a obra de um grupo de escritores modernistas (entre eles Paulo Prado, Alfredo Ellis Junior, Monteiro Lobato e Adalzira Bittencourt), exploro também a existência de diálogos e debates públicos que forneçam evidências sobre as crenças desses escritores na eugenia, bem como de seus diálogos e relações com o movimento eugênico.

Palavras-chave:
eugenia; Modernismo; raça; racismo; identidade nacional

Abstract

The article analyzes the relationship between eugenics and modernism, seeking to understand how eugenic language mobilized social thought and modernist literature in the 1920s. I propose to understand how eugenics inspired plots, images and representations about Brazil and Brazilians, which fueled discussions about national modernity, Brazilian racial identity, the creation of a eugenically controlled societies and even the proposition of extreme measures of human extermination in the name of racial utopias. My interest is to analyze eugenics as a movement that spread beyond the medical and scientific field, used as a cultural expression of modernity. More than a discourse centered on medical and biological theories, I propose to understand eugenics as a modern philosophy that had a strong impact on cultural and social life at the beginning of the 20th century. In addition to analyzing the work of a group of modernist writers (among them Paulo Prado, Alfredo Ellis Junior, Monteiro Lobato e Adalzira Bittencourt), I also explore the existence of public dialogues and debates that provide evidence about these writers’ beliefs in eugenics, as well as their dialogues and relationships with the eugenics movement.

Keywords:
eugenics; Modernism; race; racism; national identity

A eugenia ganhou força no início do século XX como um conjunto de ideias e práticas estreitamente conectadas com as teorias científicas em voga no período, sobretudo aquelas oriundas da biologia evolutiva e do campo médico. Ao mesmo tempo, a eugenia também expressou as expectativas políticas, sociais e ideológicas em torno do aperfeiçoamento racial e do controle sobre o corpo e a hereditariedade humana. Devido o processo industrial e urbano e o acelerado crescimento populacional que marcou o século XIX, os eugenistas temiam que as mudanças em curso poderiam levar à formação de uma sociedade desordenada, racialmente imperfeita e socialmente atrasada. Além disso, o avanço do imperialismo europeu sobre o continente africano e asiático também colocava em debate o risco que a miscigenação racial representava para o progresso biológico humano e a civilização europeia. Neste contexto, a eugenia prometia intervir no processo evolutivo e impedir a degeneração racial, estabelecendo teorias, medidas e projetos sobre a formação das nações e das futuras gerações. Como resultado, a eugenia se institucionalizou e ajudou a construir ideias e estereótipos sobre as diferenças raciais, a herança genética, a higiene social, o controle da reprodução humana, a estética dos corpos e a saúde física e mental. Essas representações não apenas fortaleceram o determinismo biológico, como criaram medidas violentas baseadas no racismo científico, em preconceitos de raça, classe social e gênero (Kevles, 1985KEVLES, Daniel. In the name of eugenics: genetics and the uses of human heredity. Los Angeles: University of California Press, 1985.; Stern, 2005STERN, Alexandra. Eugenic nation: faults and frontier of better breeding in modern America. California: University of California Press, 2005.; Bashford; Levine, 2010BASHFORD, Alisson; LEVINE, Philippa. (ed.). The Oxford Handbook of the History of Eugenics. New York: Oxford University Press, 2010.; Turda, 2010TURDA, Marius. Modernism and eugenics. New York: Palgrave Macmillan, 2010.).

Empregada como símbolo de modernidade, a linguagem eugênica rapidamente se popularizou e ganhou espaço em leis, regulamentos e projetos de políticas governamentais, em debates na imprensa, em escolas e instituições de assistência médica e social, em concursos de bebês eugênicos e de beleza feminina, ou mesmo em feiras e exposições nacionais e internacionais. Além de dominar a linguagem médica e biológica da época, o discurso eugênico moldou o mundo social e “assegurou aos seus usuários um vínculo com uma nova e vibrante modernidade, estabelecendo-se como uma autoridade científica que apresentava verdades impossíveis de refutar” (Luczak, 2015LUCZAK, Ewa Barbara. Breeding and eugenics in the American literary imagination: heredity rules in the twentieth century. New York: Palgrave Macmillan, 2015., p. 6). Portanto, mais do que um discurso médico e científico, a eugenia se transformou, nas primeiras décadas do século XX, numa filosofia tipicamente moderna com forte impacto sobre o mundo contemporâneo. É por isso que a história da eugenia tem sido tratada mais recentemente como um aglomerado de ideias e práticas biológicas, culturais e políticas que se difundiram por diferentes países do mundo e formataram nossas impressões sobre a modernidade (Turda, 2010TURDA, Marius. Modernism and eugenics. New York: Palgrave Macmillan, 2010., p. 1-2).

A difusão da eugenia foi tão bem-sucedida que a própria literatura incorporou ideias e utopias eugênicas, além de um forte apelo à representação de sociedades perfeitas, à moralização social e à padronização dos comportamentos. Conforme aponta a historiadora Ewa B. Luczak (2015LUCZAK, Ewa Barbara. Breeding and eugenics in the American literary imagination: heredity rules in the twentieth century. New York: Palgrave Macmillan, 2015.), a eugenia não foi apenas um pano de fundo para a imaginação literária das primeiras décadas do século XX, mas um importante tropo, princípio estruturante e até mesmo núcleo ideológico que serviu como reservatório de imagens, metáforas e enredos, um motor que impulsionava a escrita literária. A lista de escritores que adotaram a eugenia é bastante extensa e internacionalmente conhecida, sobretudo na literatura modernista de língua inglesa, entre eles Virginia Woolf, Thomas S. Eliot, William B. Yeats, George B. Shaw, David H. Lawrence, H. G. Wells, Aldous Huxley, F. Scott Fitzgerald, Rebecca West, Arnold Bennett (Childs, 2004CHILDS, Donald J. Modernism and eugenics: Woolf, Eliot, Yeats, and the culture of degeneration. New York: Cambridge University Press, 2004.; Luczak, 2015LUCZAK, Ewa Barbara. Breeding and eugenics in the American literary imagination: heredity rules in the twentieth century. New York: Palgrave Macmillan, 2015.).

No caso do Brasil, a eugenia emergiu nos anos 1910 e 1920 em estreita conexão com os chamados “problemas nacionais”, como a mestiçagem entre brancos, negros e indígenas, as condições higiênicas e sanitárias e a presença de um sem-número de doenças que assolavam a população nos centros urbanos e no interior do país (Stepan, 2004STEPAN, Nancy. A eugenia no Brasil - 1917-1940. In: HOCHMAN, Gilberto; ARMUS, Diego (org.). Cuidar, Controlar, Curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. p. 331-391.). Embora a eugenia estivesse inicialmente associada ao movimento sanitarista, ainda nos anos 1920, outros campos das ciências (como a psiquiatria, a genética, a medicina legal, o direito, a antropologia física e a biotipologia) rapidamente se apropriaram da eugenia em seus projetos de aperfeiçoamento racial, reforma social e modernização da nação brasileira (Mota, 2003MOTA, André. Quem é bom já nasce feito: sanitarismo e eugenia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003.; Stepan, 2004STEPAN, Nancy. A eugenia no Brasil - 1917-1940. In: HOCHMAN, Gilberto; ARMUS, Diego (org.). Cuidar, Controlar, Curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. p. 331-391.; Diwan, 2007DIWAN, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2007.; Muñoz, 2018MUÑOZ, Pedro. Clínica, laboratório e eugenia: uma história transnacional das relações Brasil-Alemanha. Rio de Janeiro: Fiocruz; PUC-Rio, 2018.; Souza, 2019SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras. Guarapuava: Editora Unicentro, 2019. ). Desde então, a eugenia ganhou difusão pública e adesão de setores importantes das elites intelectuais e políticas, sobretudo a partir do final dos anos 1920, com o lançamento do Boletim de Eugenia, a realização do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia e a organização de um articulado movimento eugênico, que contava com o abrigo de instituições como a Academia Brasileira de Medicina, a Liga Brasileira de Higiene Mental e a Comissão Central Brasileira de Eugenia. Ao mesmo tempo, além da publicação de um bom número de livros especializados, manuais escolares e artigos publicados em periódicos científicos, as ideias eugênicas também se popularizaram com a cobertura diária que a imprensa fazia das atividades do movimento eugênico.

Esse cenário permitiu que a linguagem eugênica se tornasse corrente inclusive no domínio da cultura, conforme é possível perceber em debates sobre a educação eugênica, os concursos eugênicos, em textos e imagens publicadas em revistas de variedades, em programas de rádios, no cinema e mesmo em telas de pinturas e em obras literárias. Como destaca Nancy Stepan (2004STEPAN, Nancy. A eugenia no Brasil - 1917-1940. In: HOCHMAN, Gilberto; ARMUS, Diego (org.). Cuidar, Controlar, Curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. p. 331-391.), a eugenia no Brasil revela como o discurso científico foi um elemento constitutivo da moderna história brasileira, e que a própria eugenia foi empregada como símbolo de modernidade, como uma linguagem corrente que expressava as utopias do progresso e dos novos tempos. Contudo, apesar dessa ampla difusão, a historiografia brasileira tem dado pouca atenção para o modo como a eugenia se transformou também em movimento cultural com forte repercussão nos meios artísticos, na literatura e nas representações coletivas.1 1 Exceções podem ser encontradas em trabalhos como a dissertação de mestrado de Paula Habib (2003) sobre as relações entre eugenia e raça na literatura de Monteiro Lobato; a tese de doutorado de Edgar Indalecio Smaniotto (2012), que explorou a relação entre eugenia e literatura no Brasil entre 1922 a 1944; a dissertação de mestrado de Leonardo Dallacqua de Carvalho (2014), que analisou a eugenia no humor da revista ilustrada Careta, entre 1930-1934; o artigo de Gilson Leandro Queluz (2006) sobre a eugenia nos romances futuristas de Monteiro Lobato e Menotti del Picchia. Disposto a compreender como a eugenia penetrou no terreno da cultura, este artigo propõe analisar os usos da eugenia por um grupo de escritores modernistas, especialmente aqueles estreitamente envolvidos em pensar a relação entre raça, identidade nacional, modernidade e a construção de uma nação eugênica.

Embora o Modernismo possa ser lido como um movimento que valorizava a cultura popular e a diversidade antropológica do país, visto muitas vezes como uma antítese da própria eugenia, também é verdade que os modernistas não escaparam das mitologias raciais e de visões antagônicas sobre o Brasil e a sua formação racial. É preciso dizer que o Modernismo brasileiro não é entendido aqui como um movimento homogêneo, nem mesmo que seus adeptos tenham assumido uma identidade artística em comum e aderido oficialmente ao chamado movimento modernista. Ao contrário, suas concepções estéticas e ideológicas estiveram em permanentes disputas, especialmente no período posterior à Semana de Arte Moderna de 1922, evento emblemático para o Modernismo brasileiro. Desde então, novos grupos passaram a expressar distintas leituras sobre o Modernismo e os sentidos políticos da literatura e da atividade intelectual, o que impactou em variadas leituras do Brasil e da identidade nacional (Veloso, 2010VELOSO, Monica Pimenta. História & modernismo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010.). Não é por acaso que entre os modernistas encontram-se escritores que valorizavam a diversidade brasileira, enquanto outros vacilavam em aceitar a formação de uma nação mestiça e de raízes africanas ou indígenas; além disso, havia também aqueles que eram abertamente seduzidos pelas utopias eugênicas e seus projetos de melhoramento racial, e outros ainda estreitamente conectados ao racismo científico e aos projetos autoritários de construção nacional. Muitos destes, aliás, eram profundamente comprometidos com a construção de um país racialmente branco e com o desejo de eliminação dos traços mestiços, indígenas e africanos.

Entre os escritores modernistas mais alinhados com as ideias eugênicas, podemos destacar pensadores sociais como Paulo Prado (1869-1943) e Alfredo Ellis Jr. (1896-1974) e literatos como Monteiro Lobato (1882-1948) e Adalzira Bettencourt (1904-1976). Contudo, é importante dizer que concepções e terminologias eugênicas estavam presentes na obra de outros modernistas do período, mesmo que de forma ambivalente ou menos consistente, entre os quais podemos citar o poeta Jorge de Lima (1893-1953), o médico e literato Berilo Neves (1899-1974), o sexólogo Ernani de Irajá (1864-1969) e até escritores bastante conhecidos como Menotti del Picchia (1892-1988), Plinio Salgado (1895-1975) ou mesmo Gilberto Freyre (1900-1987), um dos nomes mais emblemáticos da história intelectual brasileira.2 2 Já é bastante conhecido na historiografia o modo como a eugenia aparece na obra de Gilberto Freyre, sobretudo em Casa-grande e senzala (Araújo, 1994; Teixeira, 1997; Pallares-Burke, 2005). Ancorado ao evolucionismo neolamarckista, teoria que postulava a herança dos caracteres adquiridos do meio, Freyre retoma o argumento amplamente difundidos entre os eugenistas brasileiros sobre a relação entre raça e meio, segundo o qual a degeneração ou a perfectibilidade das raças dependeriam das condições de higiene, saneamento, alimentação e saúde. Neste sentido, Freyre entende que a “disgenia” brasileira não está relacionada à mestiçagem, mas as questões alimentares, a disseminação de doenças como a sífilis e as verminoses, além dos vícios sociais como o alcoolismo (Freyre, 1983 [1933]).

É sobre o primeiro grupo que pretendo me debruçar com mais atenção, uma vez que suas obras e trajetórias se mostraram mais diretamente associadas à eugenia, alguns deles inclusive entusiastas ou integrantes do movimento eugênico. Ao longo deste artigo, procuro analisar como a obra destes escritores estava articulada tanto com a eugenia brasileira quanto com as ideias eugênicas produzidas em países como os Estados Unidos, cujo movimento eugênico foi um dos mais radicais e institucionalizados do mundo. Neste contexto, proponho inclusive analisar a existência de diálogos e debates públicos que forneçam evidências sobre as crenças desses escritores na eugenia e sobre suas articulações com o movimento eugênico. Meu objetivo não é aprofundar a análise de um ou outro escritor modernista, mas compreender como a obra e a trajetória de alguns deles nos ajudam a entender melhor a difusão da linguagem eugênica para além do campo médico ou científico, como um movimento cultural mais amplo que dominou a mente dos intelectuais brasileiros entre os anos 1920 e 1930. Ao mesmo tempo, busco compreender como a eugenia inspirou enredos, imagens e representações sobre o Brasil e os brasileiros, a miscigenação e a seleção racial, o controle da reprodução humana e as utopias futuras em torno da formação de sociedades e nações biologicamente perfeitas.

Procuro estabelecer uma relação entre eugenia e Modernismo a partir da compreensão de que ambos os movimentos podem ser vistos como forças da modernidade, voltadas para a construção de um novo homem, de uma sociedade regenerada e do estabelecimento de uma nova ordem nacional. Como bem destaca Roger Griffin (2010GRIFFIN, Roger. Series Preface. In: TURDA, Marius. Modernism and eugenics. New York: Palgrave Macmillan, 2010. p. IX-XIV.), o Modernismo deve ser visto como um movimento heterogêneo que se caracteriza, em linhas gerais, pela vontade de intervir na produção de um novo tempo, de uma modernidade baseada no progresso técnico e no desejo de estabelecer não apenas uma renovada ordem estética e cultural, mas também uma nova ordem política, social e biológica. É por isso que, na definição de Marshall Berman (1986BERMAN, Marshall. Modernidade - ontem, hoje e amanhã. In: BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: as aventuras da modernidade. São Paulo: Editora Schwarcz, 1986. p. 15-35.), o Modernismo pode ser compreendido tanto por sua dimensão artística e intelectual quanto pela dimensão material que define a própria modernidade, ligadas às estruturas políticas, sociais e econômicas e aos projetos de intervenção e produção de uma modernidade alternativa. Deste modo, compreendo que Modernismo e eugenia são conceitos estritamente conectados que traduzem a obsessão dos tempos modernos em produzir novas e radicais utopias sobre futuros novos homens, novas nações, novas raças e um novo tempo.

Eugenia, mestiçagem e mitologias raciais modernistas

No final dos anos 1910, com o fim da Primeira Guerra Mundial e a reorganização das agendas nacionais, parte dos intelectuais brasileiros voltaram suas atenções para o chamado “Brasil real”, procurando construir novas interpretações e diagnósticos sobre os “problemas” do país. Esse contexto permitiu a construção de um nacionalismo comprometido com a reinvenção da identidade racial e a reposição do Brasil no cenário internacional e na modernidade ocidental (Oliveira, 1990OLIVEIRA, Lucia Lippi de. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.; Schwarcz, 1993SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.; Luca, 1999LUCA, Tania Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Editora da Unesp, 1999.; Veloso, 2010VELOSO, Monica Pimenta. História & modernismo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010.). Para esses intelectuais, a reforma social e a modernização do país dependiam apenas da ciência, da técnica e do esforço coordenado das autoridades públicas, dos homens de letras e das elites políticas. O próprio movimento eugênico emergiu neste contexto como resultado desse otimismo generalizado em torno da ciência e da agenda reformista proposta por médicos, higienistas e educadores. Não à toa, pelo menos até o início dos anos 1920, os eugenistas brasileiros se preocupavam muito mais com a defesa de medidas sanitárias e reformas do meio do que com projetos radicais de seleção racial e controle da reprodução humana (Stepan, 2004STEPAN, Nancy. A eugenia no Brasil - 1917-1940. In: HOCHMAN, Gilberto; ARMUS, Diego (org.). Cuidar, Controlar, Curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. p. 331-391.).

Contudo, apesar da influência dessa eugenia “preventiva”, o movimento eugênico brasileiro não ficou imune aos determinismos raciais que entusiasmaram os eugenistas em diferentes lugares do mundo. A partir do final dos anos 1920 um grupo de eugenistas, médicos e pensadores sociais brasileiros abraçou o racismo científico e medidas eugênicas mais duras passaram a ser publicamente defendidas. Neste contexto, o debate sobre os efeitos dos cruzamentos raciais teve repercussão tanto no campo científico quanto na imprensa, na cultura e na arena política, mobilizando ideias e projetos de seleção e segregação racial. Se, por um lado, havia um grupo de eugenistas que não se opunham à miscigenação, uma vez que compartilhavam a tese sobre o processo de branqueamento da população, outros entendiam que a mistura racial era responsável pela degeneração e deveria ser evitada a todo custo, sugerindo a implantação de políticas eugênicas rigorosas (Wegner; Souza, 2013WEGNER, Robert; SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Eugenia “negativa”, psiquiatria e catolicismo: embates em torno da esterilização eugênica no Brasil. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 20, suppl. 1, p. 263-288, 2013.; Souza, 2016SOUZA, Vanderlei Sebastião de. A eugenia brasileira e suas conexões internacionais: uma análise a partir das controvérsias entre Renato Kehl e Edgard Roquette-Pinto, 1920-1930. História, Ciência, Saúde - Manguinhos, v. 23, suppl. 1, p. 93-110, dez. 2016.).

No campo cultural, os anos 1920 também marcaram o fortalecimento do Modernismo e a emergência de amplos debates sobre a história, a vida social e a formação de uma cultura moderna e autenticamente nacional. Como a Primeira República concentrou esforços na exploração e redescoberta do interior do Brasil, ao mesmo tempo que assistia a expansão urbana e industrial e um acelerado crescimento imigratório, os modernistas voltavam suas atenções para a modernização das artes e da vida intelectual, a transformação da sociedade e a construção futura do Brasil. Neste contexto, os modernistas entendiam que ser moderno era desvendar os próprios fundamentos da nacionalidade, identificando os aspectos que singularizavam e distinguiam a nação brasileira no cenário internacional (Moraes, 1988MORAES, Eduardo Jardim. O modernismo revisitado. Estudos Históricos, v. 1, n. 2, p. 220-238, 1988.; Veloso, 2010VELOSO, Monica Pimenta. História & modernismo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010.). Conforme sintetizou Mario de Andrade em carta de 1924 ao escritor pernambucano Joaquim Inojosa: “Nós teremos nosso lugar na civilização artística humana no dia em que concorrermos com o contingente brasileiro, derivado de nossas necessidades, da nossa formação por meio da nossa mistura racial transformada e recriada pela terra e clima” (apudInojosa, 1968INOJOSA, Joaquim. O movimento modernista em Pernambuco. Rio de Janeiro: Guanabara, 1968., p. 340-341). Neste sentido, o Modernismo não apenas investia esforços em pensar o lugar da cultura brasileira na civilização moderna, colocando o Brasil em compasso com as experiências internacionais, como também almejava retratar o Brasil com cores nativas, procurando compreender os caminhos e descaminhos da identidade nacional.

Não é por acaso que a questão racial e a representação de um “Brasil mestiço” tenha mobilizado tanto os escritores modernistas. Pode-se dizer que mestiçagem foi uma das principais temáticas dessa geração, como se a reflexão sobre a brasilidade necessariamente tivesse que lidar com o “caráter mestiço” de sua população. Muitos escritores modernistas do período não escaparam de interpretações bastante comuns na tradição intelectual brasileira, algumas delas profundamente enraizadas em mitologias e estereótipos raciais oriundos do século XIX, como a tese do branqueamento ou da homogeneização racial, a crença nas hierarquias raciais e na degenerescência de negros, indígenas e mestiços, ou mesmo no persistente mito da democracia racial. Aliás, a historiografia tem apontado uma estreita relação do Modernismo desse período com a geração de 1870, sobretudo no que diz respeito à permanência de leituras ambíguas sobre a questão racial e a identidade brasileira (Veloso, 2010VELOSO, Monica Pimenta. História & modernismo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010.; Berriel, 2013BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.). Embora o Modernismo seja comumente estudado como um movimento de ruptura estética, Carlos Berriel (2013BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado. Campinas: Editora da Unicamp, 2013., p. 16-17) destaca uma forte dimensão de continuidade com as tradições intelectuais e literárias anteriores, especialmente dos “aspectos programáticos que unem visão social e intencionalidade estética decorrente”.

Como mediadores dessas gerações podemos identificar, por exemplo, escritores pré-modernistas como Graça Aranha, Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, que leram a realidade brasileira a partir de críticas sociais fortemente vinculadas ao darwinismo social e o racismo científico Oitocentista. Para estes autores, cada um a seu modo, natureza, raça e mestiçagem representavam elementos inescapáveis para interpretar os destinos do Brasil, responsáveis pelas virtudes e defeitos nacionais. A obra Os sertões, de Euclides da Cunha, publicada em 1902, é sem dúvida a que melhor expressa as ambiguidades dos pré-modernistas sobre os efeitos da mestiçagem no Brasil. Apesar de encontrar no mestiço sertanejo um “homem forte”, o “cerne da nacionalidade”, Euclides via a mestiçagem entre portugueses e africanos como um “parêntesis irritante”, uma vez que teria produzido um tipo híbrido degenerado, típico das “raças inferiores” (Cunha, 1952 CUNHA, Euclides. Os sertões. Rio de Janeiro: Ed. Paulo de Azevedo, 22ª Edição, 1952 [1902].[1902]). Essas certezas e incertezas sobre a mistura racial marcaram com tonalidades fortes as representações e diagnósticos que tanto eugenistas quanto modernistas fariam sobre o Brasil e os brasileiros nos 1920 e 1930.

Um dos autores modernistas que melhor sintetizou esse dilema foi Paulo Prado, escritor paulista entusiasta do Modernismo e um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922. Contudo, é no terreno do ensaísmo histórico, e não da literatura ou das artes, que seu Modernismo se expressava com mais autoridade. Paulo Prado pode ser visto, inclusive, como um dos primeiros escritores do ensaísmo brasileiro, que nos anos 1930 ganharia força com outros modernistas como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, ambos vinculados pessoal e intelectualmente a Paulo Prado. Aliás, o escritor paulista construiu uma rede de relações e sociabilidades bastante próxima com outros nomes do Modernismo, como Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Alcântara Machado, com os quais fundou e dirigiu revistas, prefaciou livros, além de ser homenageado com dedicatórias em livros como Macunaíma, de Mário de Andrade, ou João Miramar, de Oswald de Andrade (Berriel, 2013BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.).

De todos eles, Paulo Prado foi sem dúvida um dos que mais dialogou com a perspectiva eugênica. Embora não tenha oficialmente integrado o movimento eugênico, há muitas evidências para colocá-lo entre os escritores que empregaram a eugenia para interpretar a história, a formação racial, a psicologia e os destinos do Brasil. Já em Paulística, livro de estreia publicado em 1925, Prado estudou as origens das populações do planalto paulista e os efeitos do caldeamento racial a partir de uma clara preocupação com a constituição eugênica dessa população. Seguindo Euclides da Cunha, Paulo Prado encontrou na relação entre meio e raça a explicação para o entendimento da história regional de São Paulo e de sua excepcionalidade antropogeográfica. Em seu entendimento, a Serra do Mar formou uma espécie de cordão eugênico que isolou os paulistas do restante do país, o que permitiu uma mestiçagem positiva entre bandeirantes e indígenas. Desse cruzamento teria surgido o mameluco, uma “raça nova criada na aspereza de um clima duro, no limiar de uma terra desconhecida”, cujo “isolamento da montanha e a endogamia” protegeram “o desenvolvimento da hereditariedade, que é o fator construtivo das raças, e uma excelente condição para manter a sua pureza” (Prado, 2004 PRADO, Paulo. Paulística. São Paulo: Companhia das Letras, 4ª edição, 2004 [1925].[1925], p. 78, grifos meus).

Paulo Prado explica que, a partir de meados do século XVIII, com a abertura de novos caminhos, esse isolamento da Serra do Mar seria rompido com a corrida do ouro, pela onda imigratória e invasão do melting pot brasileiro, o que teria levado, para lamento do escritor modernista, à decadência eugênica dos paulistas. Em pouco tempo, o “mamaluco incansável, fragueiro, ágil e ardiloso” se transformaria num “pálido caboclo”, degenerado pelos vícios, doenças e indolência, tal qual o Jeca, numa referência que Prado fazia ao caboclo indolente criado por Monteiro Lobato em seu famoso Urupês, livro de 1918 (Prado, 2004 PRADO, Paulo. Paulística. São Paulo: Companhia das Letras, 4ª edição, 2004 [1925].[1925], p. 90). Para Paulo Prado, a aristocracia rural se degenerava e via emergir o industrialismo cosmopolita, que assistia “inerte e desolada à formação de uma nova raça, que ainda não tem nome, e que será a do habitante do futuro São Paulo”. E num tom eugenicamente otimista, acreditava que “da velha semente bandeirante ainda lhe restará (...) o fermento instintivo dos tempos heroicos”, o que contribuirá para a formação de um “tipo eugênico” em terras paulistas (Prado, 2004 PRADO, Paulo. Paulística. São Paulo: Companhia das Letras, 4ª edição, 2004 [1925].[1925], p. 90-91).

Em seu Retrato do Brasil, publicado em 1928, Paulo Prado voltaria seu olhar para a cena nacional, aprofundando suas interpretações sobre os efeitos da mestiçagem na formação do Brasil. Esse famoso ensaio sobre a tristeza brasileira lançava especial atenção sobre a fusão da biologia com a história na conformação do corpo e do “caráter nacional”. Em seu entendimento, o “problema mais angustioso” da formação racial brasileira era a presença do negro, seja como fator étnico, “intervindo pelo cruzamento desde os primeiros tempos da colônia”, seja como escravo, “elemento preponderante na organização social e mental do Brasil” (Prado, 2012 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 10ª Edição, 2012 [1928].[1928], p. 128-129). Paulo Prado julgava que o “negro não é um inimigo”, pois “vive em completa intimidade com os brancos e com os mestiços que já parecem brancos”, de tal modo que “nascemos juntos e juntos iremos até o fim de nossos destinos”. Essa livre mistura racial entre europeus e africanos era vista por Prado como um traço positivo no desenvolvimento do Brasil, uma vez que teria aproximado as raças, evitando a segregação de elementos étnicos, como teria ocorrido nos Estados Unidos, onde a segregação e as “antipatias raciais” teriam predominado (Prado, 2012 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 10ª Edição, 2012 [1928].[1928], p. 130).

Apesar disso, Paulo Prado via a presença africana no Brasil como uma “incógnita” que ainda precisava ser decifrada. Segundo ele, a mestiçagem entre brancos e negros é um “problema da biologia”, “e mesmo da eugenia”, o que justificava a interrogação: “que influência pode ter no futuro essa mistura de raças?”. E citando as pesquisas de Eugen Fischer, um dos mais afamados eugenistas alemães, lembrava que os estudos sobre os cruzamentos de europeus e africanos no sudeste da África teria criado uma raça mista que apresentava “um defeito persistente: falta de energia, levada ao extremo de uma profunda indolência” (Prado, 2012 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 10ª Edição, 2012 [1928].[1928], p. 131-132). No caso do Brasil, Prado parecia ter a mesma compreensão de Fischer, uma vez que via o mestiço brasileiro como fisicamente fraco e com “organismos indefesos contra a doença e vícios”, parecendo “natural indagar se esse estado de cousas não provém do intenso cruzamento das raças e sub-raças”. Em relação aos Estados Unidos, Prado explicava que os cientistas acreditam que “o problema não tem solução, a não ser que se recorra a esterilização do negro”. E concluía, numa clara referência à eugenia: “no Brasil, se há mal, ele está feito, irremediavelmente: esperemos, na lentidão do processo cósmico, a decifração do enigma com a serenidade dos experimentadores de laboratório” (Prado, 2012 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 10ª Edição, 2012 [1928].[1928], p. 132).

Como vimos, enquanto Paulo Prado celebrava a mestiçagem euro-americana, responsável pelo mameluco eugênico, o mesmo não se pode dizer da mistura racial envolvendo os africanos. Essa interpretação foi inclusive um paradigma bastante debatido no Modernismo paulista, especialmente na obra do historiador Alfredo Ellis Junior. Além de um estreito diálogo com as teses de Paulo Prado, Ellis Junior foi sem dúvida um dos modernistas que mais amplamente dialogou com o movimento eugênico,3 3 Durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado em 1929, Alfredo Ellis Junior teve participação destacada com a apresentação de dois trabalhos, um deles intitulado A eugenia paulista nos séculos I, II e III, e outro intitulado Typos raciais brasileiros. Além disso, publicou uma série de artigos sobre eugenia na imprensa paulista, especialmente no jornal Correio Paulistano, inclusive com campanhas sobre raça e seleção eugênica dos imigrantes (El-Dine, 2016; 2017). inclusive com destacada atuação pública em defesa de projetos de seleção eugênica de imigrantes (El-Dine, 2017EL-DINE, Lorenna Ribeiro Zem. A alma e a forma do Brasil: o modernismo paulista em verde-amarelo (anos 1920). Tese (Doutorado em História das Ciências) - Casa de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 2017.). Em sua obra, as perspectivas eugênicas fundamentaram boa parte das reflexões sobre os efeitos da mestiçagem nas populações paulistas, temática central de seus estudos. Em Raça de gigantes, de 1926, analisou exaustivamente a formação antropológica paulista a partir das teorias mendelianas e das relações antropogeográficas, destacando o valor eugênico do caldeamento entre portugueses e indígenas. Assim como Paulo Prado, via o mameluco como uma “raça nova”, um “cruzamento homogenesico eugenesico” que “conseguiu perpetuar-se com uma vitalidade assombrosa e uma fecundidade fora de comum” (Ellis Junior, 1926ELLIS , JUNIOR Alfredo. Raça de gigantes. São Paulo: Editorial Hélios Ltda., 1926., p. 70).

De maneira geral, havia entre os escritores do Modernismo verde-amarelo uma idealização do indígena como elemento sintetizador da brasilidade, inclusive do ponto de vista eugênico. Como vimos em Paulo Prado e Alfredo Ellis Junior, essa visão positiva sobre a mestiçagem euro-americana também é compartilhada por outros escritores do Modernismo paulista, como Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo e Plinio Salgado. Mesmo que nem todos os integrantes desse movimento tenham sistematicamente refletido sobre a eugenia, não há dúvida que neles podemos identificar um esforço de estetização da mestiçagem a partir das concepções eugênicas (El-Dine, 2017EL-DINE, Lorenna Ribeiro Zem. A alma e a forma do Brasil: o modernismo paulista em verde-amarelo (anos 1920). Tese (Doutorado em História das Ciências) - Casa de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 2017.). Para esses escritores essa mestiçagem teria permitido projetar não apenas a uniformização nacional como a formação de uma “nova raça”, uma síntese cósmica dos elementos tipicamente brasileiros.

Não é por acaso, conforme explica Lorenna Zem El-Dine (2017EL-DINE, Lorenna Ribeiro Zem. A alma e a forma do Brasil: o modernismo paulista em verde-amarelo (anos 1920). Tese (Doutorado em História das Ciências) - Casa de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 2017.), que essa visão redentora da mestiçagem produzida pelo verde-amarelismo tenha dialogado com o conceito de “raça cósmica” do escritor mexicano José Vasconcelos, que via na mestiçagem entre ibéricos e indígenas a formação de uma civilização moderna e eugênica no continente americano. Esse diálogo com a estética eugênica de Vasconcelos está presente tanto nos escritos de interpretação do Brasil quanto nos próprios textos literários. Esse é o caso, por exemplo, do romance A república 3000, de Menotti del Picchia, publicado em 1930. O livro é uma narrativa utópica que relata a descoberta de uma cidade bem desenvolvida, mas isolada do mundo pela natureza. Nessa república moderna se constitui uma sociedade perfeita, resultado da mistura racial euro-ameríndia, uma espécie de síntese universal das forças cósmicas. Essa visão utópica de Menotti del Picchia, explica Gilson Leandro Queluz (2006QUELUZ, Gilson Leandro. Eugenias modernistas: O presidente negro de Monteiro Lobato e a República 3000 de Menotti del Picchia. Revista Tecnologia e Sociedade, v. 1, n. 2, p. 241-258, 2006., p. 255), compartilha da estética eugênica de Vasconcelos, do surgimento de uma raça cósmica, desenvolvida na síntese das principais raças entre as bacias do Amazonas e do Prata.

Essa visão positiva da mestiçagem tinha, contudo, alcance limitado quando se projetava a mistura racial com africanos, sobretudo nas reflexões de Alfredo Ellis Junior. Tanto em Raça de gigantes (1926) quanto em Populações paulistas (1934) o autor não apenas apontava a existência de defeitos fisiológicos nos africanos como atribuía à mestiçagem de negros e brancos a causa da degeneração dos mestiços. Em suas palavras, o caldeamento com africanos produzia um “tipo disgenésico”, um “mulato” que tendia à esterilização, o que explicava “a gradual eliminação seletiva do mulato, que vai desaparecendo da nossa população” (Ellis Junior, 1926ELLIS , JUNIOR Alfredo. Populações Paulistas. São Paulo: Companhia Nacional, 1934., p. 73). O radicalismo dessas interpretações chegou a produzir reações críticas até mesmo de intelectuais mais próximos a Ellis Junior, como de Edgard Roquette-Pinto, antropólogo do Museu Nacional e integrante do movimento eugênico (Souza, 2017SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935). Rio de Janeiro: Fiocruz; FGV, 2017.). Embora reconhecesse os usos que o escritor paulista fazia da moderna genética mendeliana, que resultou na valorização da mestiçagem euro-americana, Roquette-Pinto entendia ser um equívoco a condenação que se fazia aos africanos. Seus próprios estudos sobre a mestiçagem entre brancos e negros, cujos resultados foram divulgados no Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, provavam que os mestiços brasileiros eram “perfeitamente eugênicos” (Roquette-Pinto, 1929ROQUETTE-PINTO, Edgard. Notas sobre os typos anthropológicos do Brasil. In: ROQUETTE-PINTO, Edgard. Actas e Trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Rio de Janeiro, 1929. p. 119-147.). Para Roquette-Pinto (1926ROQUETTE-PINTO, Edgard. Raça de Gigantes. O Jornal. Rio de Janeiro, 1926.), Ellis Junior ainda não havia se emancipado da bacharelice de autores como Lapouge e Le Bon e do pan-germanismo de Amon, todos eles comprometidos com as teses arianistas.

O radicalismo eugênico e as utopias nacionais na literatura modernista

Como vimos até aqui, a linguagem eugênica serviu como repertório para alguns escritores modernistas, permitindo distintas leituras e interpretações sobre a questão racial e a identidade nacional. No terreno da literatura, a eugenia foi uma inspiração ainda mais emblemática, uma vez que mobilizou enredos, representações e utopias sobre a construção de um novo homem e de sociedades eugênicas futuras. Alguns literatos, como é o caso de Monteiro LobatoLOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre (vol. 2). São Paulo: Brasiliense, 1951. e Adalzira Bittencourt, produziram ficções futuristas estreitamente vinculadas aos projetos de modernidade, inspirando-se inclusive em ideias e conceitos oriundos da eugenia “negativa”. Essa modalidade de eugenia propunha soluções radicais de intervenção, entre elas a esterilização sexual dos indivíduos supostamente inaptos, a segregação racial, um rígido controle matrimonial e até mesmo o extermínio dos “indesejáveis”. Na memória social, essas práticas eugênicas ficaram mais diretamente associadas aos horrores nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, o que culminou com o Holocausto, uma das maiores tragédias da história humana (Proctor, 1988PROCTOR, Robert. Racial hygiene: medicine under the Nazis. Cambridge; London: Harvard University Press, 1988. ; Kühl, 1994KÜHL, Stefan. The Nazi connection: eugenics, American racism, and German National Socialism. Nova York: Oxford University Press, 1994.). Contudo, desde o início do século XX, a defesa de medidas radicais de eugenia negativa foi recorrente em diversos países do mundo, inclusive no Brasil. Até o advento do Nazismo, os Estados Unidos foi sem dúvida o país que mais abertamente implantou políticas rígidas de seleção eugênica, incluindo milhares de esterilizações e um rígido programa de segregação racial (Kevles, 1985KEVLES, Daniel. In the name of eugenics: genetics and the uses of human heredity. Los Angeles: University of California Press, 1985.; Kühl, 1994KÜHL, Stefan. The Nazi connection: eugenics, American racism, and German National Socialism. Nova York: Oxford University Press, 1994.; Stern, 2005STERN, Alexandra. Eugenic nation: faults and frontier of better breeding in modern America. California: University of California Press, 2005.).

No caso do Brasil, embora a eugenia tenha se caracterizado como uma modalidade menos radical de intervenção eugênica (Stepan, 2005STEPAN, Nancy. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. ), a eugenia negativa teve adeptos de peso, entre eles Renato Kehl. Médico e farmacêutico nascido no interior de São Paulo, Kehl foi autor de mais de duas dezenas de livros sobre eugenia, além de ser responsável pela criação de organizações eugênicas e pela direção do Boletim de Eugenia, periódico de divulgação que serviu como um catalisador do movimento eugênico. No final dos anos 1920, já como um notório líder do movimento eugênico, estabeleceu estreitos contatos com eugenistas dos Estados Unidos, Alemanha, Suécia e Noruega, tendo inclusive realizado viagens frequentes ao norte da Europa (Souza, 2019SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras. Guarapuava: Editora Unicentro, 2019. ). Essa aproximação com o movimento eugênico internacional reforçaria sua agenda radical em defesa da eugenia negativa, o que pode ser observado especialmente em livros como Lições de eugenia, publicado em 1929, e Sexo e civilização: aparas eugênicas, de 1933. Nessas obras, não apenas incorporou a eugenia negativa como produziu interpretações alinhadas com o racismo científico, identificando a miscigenação racial como responsável pela formação de uma sociedade híbrida, degenerada e incapaz. Em seu entendimento, não haveria solução para o Brasil fora de uma política eugênica radical, baseada na política biológica, na seleção racial e no expurgo das consideradas “raças inferiores” (Kehl, 1929KEHL, Renato. Lições de eugenia. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1929.; 1933KEHL, Renato. Sexo e civilização - aparas eugênicas. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1933.).

O escritor Monteiro Lobato, que foi um entusiasta da eugenia e uma figura próxima a Renato Kehl, talvez seja um dos escritores brasileiros que, na atualidade, mais tem gerado polêmicas sobre a defesa da eugenia negativa e de ideias racistas em sua produção literária (Habib, 2003HABIB, Paula Arantes Botelho Briglia. Eis o mundo encantado que Monteiro Lobato criou: raça, eugenia e nação. 2003. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de Campinas, Campinas, 2003.; Carvalho, 2018CARVALHO, Leonardo Dallacqua de. Podar é preciso: Monteiro Lobato e a experiência da eugenia “negativa” estadunidense como alternativa para o Brasil. In: CARVALHO, Leonardo Dallacqua de; BARCHI, Francis (org.). Intelectuais e nação: leituras de Brasil na República. Curitiba: Apris, 2018. p. 115-131.; Leal, 2020LEAL, Rhaiane Mendonça. Nacionalismo militante: uma análise de correspondência de Monteiro Lobato e Arthur Neiva (1918-1942). 2020. Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) - Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2020.; Santos, 2022SANTOS, Wesley Ribeiro dos. À sombra de Monteiro Lobato: racismo e eugenia nas terras do Sítio do pica-pau amarelo. 2022. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2022.; Leal; Silva, 2022LEAL, Rhaiane Mendonça; SILVA, André Cândido da. O racismo em “mangas de camisa”: a questão racial na correspondência entre Monteiro Lobato e Arthur Neiva. Revista Fênix, v. 19, n. 1, p. 514-548, jan-jun. 2022.). Isso se deve especialmente à publicação, em 1926, do livro O presidente negro ou o choque de raças, cujo enredo foi inspirado por violentas ideias eugênicas, como a esterilização da população negra norte-americana. Quando do lançamento desse livro, Lobato já era um escritor bastante prestigiado, sobretudo pela publicação de Urupês, livro de contos lançado em 1918 (Lajolo, 2000LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida. São Paulo: Moderna, 2000., Habib, 2003HABIB, Paula Arantes Botelho Briglia. Eis o mundo encantado que Monteiro Lobato criou: raça, eugenia e nação. 2003. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de Campinas, Campinas, 2003.). Além disso, era conhecido por sua atuação como proprietário e editor da Revista do Brasil, periódico que reunia um grupo seleto de escritores modernistas envolvidos em pensar as questões nacionais e a modernidade brasileira. Engajado na atividade intelectual e empresarial, ainda nos anos 1910, Lobato criou a Editora da Revista do Brasil, que mais tarde se transformaria em editora Monteiro Lobato & Cia e, logo depois, em Companhia Editora Nacional, agitando o mercado de livros no país (Luca, 1999LUCA, Tania Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Editora da Unesp, 1999.).

As polêmicas de Monteiro Lobato sobre a questão racial o acompanham pelo menos desde a publicação de Urupês, livro que reuniu artigos publicados nos anos 1910 no jornal O Estado de São Paulo. Embora a linguagem eugênica não estivesse explicitamente presente nesses escritos, suas representações sobre os caboclos, sertanejos e mestiços brasileiros eram contornadas pelo determinismo biológico e racial que mobilizavam intelectuais, médicos e eugenistas. Nesses contos, Lobato apresentava uma leitura bastante negativa sobre o caboclo que vivia nas áreas rurais do país, a quem nomeou de “Jeca Tatu”, uma espécie de mestiço degenerado que carregava as marcas das “raças inferiores”. Em suas palavras, o Jeca era “um parasita da terra”, um caboclo fraco, preguiçoso e indolente, incapaz de evoluir, alheio ao trabalho e à ideia de progresso e civilização (Lobato, 1957 LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1957 [1918].[1918]).

Apesar das condenações contra o Jeca Tatu, ainda no final dos anos 1910, Monteiro Lobato parecia disposto a rever suas interpretações, sobretudo pelo diálogo e proximidade que construiu com integrantes do movimento sanitarista, entre eles Arthur Neiva, com quem mantinha uma estreita relação pessoal e intelectual (Leal; Silva, 2022LEAL, Rhaiane Mendonça; SILVA, André Cândido da. O racismo em “mangas de camisa”: a questão racial na correspondência entre Monteiro Lobato e Arthur Neiva. Revista Fênix, v. 19, n. 1, p. 514-548, jan-jun. 2022.). Neste contexto, médicos e sanitaristas anunciavam a doença e a falta de higiene como os grandes problemas do país, responsáveis pela fraqueza física e o atraso civilizacional dos brasileiros. Ao mesmo tempo, as novas descobertas da bacteriologia e o otimismo em torno das ciências médicas permitiam que os intelectuais, incluindo o próprio Lobato, repensassem suas visões sobre o Brasil (Lima; Hochman, 1996LIMA, Nísia Trindade; HOCHMAN, Gilberto. “Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil descoberto pelo Movimento Sanitarista da Primeira República”. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Raça Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996. p. 23-40.; Lima, 1999LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan/IUPERJ-UCAM, 1999.). Em livro publicado nesse período, intitulado O problema vital, Lobato reconhecia: “o Jeca não é assim, está assim”, e concluía que o Jeca “é assim porque está amarrado pela ignorância e falta de assistência às terríveis endemias que lhe depauperam o sangue, caquetizam o corpo e atrofiam o espírito. (...) Curado, recuperará o lugar a que faz jus no concerto etnológico” (Lobato, 1964 LOBATO, Monteiro. O problema vital. São Paulo: Brasiliense, 1964 [1918].[1918], p. 285).

Essa guinada teórica de Lobato virou símbolo de um amplo movimento nacionalista que mobilizou as elites intelectuais e políticas e permitiu transformar o pensamento sanitarista numa ideologia de construção da nacionalidade (Hochman, 1998HOCHMAN, Gilberto. A Era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil. São Paulo: Hucitec; Anpocs, 1998.; Lima, 1999LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan/IUPERJ-UCAM, 1999.). Nesse período o próprio movimento eugênico encontrou um terreno fértil para propagar suas ideias e se estabelecer no cenário intelectual, assumindo um importante lugar no discurso regenerador da nação. Dispostos a promover a higiene e o saneamento como panaceia nacional, os intelectuais brasileiros se viram encantados pela eugenia, ao visualizar em seus enunciados “[...] um tipo de extensão e modernização científica do trabalho de figuras heroicas como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas” (Stepan, 2005STEPAN, Nancy. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. , p. 98). É neste momento que Lobato se aproxima do movimento eugênico, empregando, inclusive, a editora da Revista do Brasil, de sua propriedade, para promover a eugenia. Um exemplo disso é a publicação dos Annaes de eugenia, livro que reunia palestras, discursos e conferências realizadas pela Sociedade Eugênica de São Paulo. Assim como os eugenistas desse período, Lobato também concebia a eugenia em estreita associação com as práticas médicas e sanitaristas. A regeneração do Jeca Tatu pela medicina expressava justamente essa convicção: “sanear era eugenizar”, conforme médicos e eugenistas passaram a proclamar.

Contudo, o resultado da relação de Lobato com a eugenia e a questão racial apontava novos contornos com a publicação de O presidente negro, escrito anos depois. Ao invés da defesa de uma eugenia preventiva, que prometia recuperar o Jeca Tatu, o que aparece nessa obra é uma apologia ao radicalismo eugênico. O livro foi inicialmente publicado nas páginas do jornal carioca A Manhã, periódico que tratou a obra de Lobato como um “hino de louvor à eugenia”, um romance que “vem agitar os mais sérios problemas da espécie humana” (Habib, 2003HABIB, Paula Arantes Botelho Briglia. Eis o mundo encantado que Monteiro Lobato criou: raça, eugenia e nação. 2003. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de Campinas, Campinas, 2003.. p. 65 e 95). O livro teria sido escrito em 20 dias, entre junho e julho de 1926, poucos meses antes de Lobato assumir a função de adido comercial do Brasil em Nova York, cargo que entusiasmara o autor brasileiro por oferecer a possibilidade de expandir suas atividades como escritor e editor (Lajolo, 2000LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida. São Paulo: Moderna, 2000.). Com essa obra, conforme confessara em carta ao amigo Godofredo Rangel, tinha intenção de se apresentar aos editores e ao público norte-americano (Lobato, 1961LOBATO, Monteiro. Cartas escolhidas (vol. 1). São Paulo: Brasiliense, 1961., p. 293-304).4 4 Ao mudar-se para Nova York, Lobato tinha como projeto publicar O presidente negro nos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, investir no mercado editorial de lá. Conforme aparece em suas correspondências pessoais, seu plano era criar uma editora, a Tupi Publishing Company, e conquistar o mercado norte-americano com livros que prometiam causar escândalos. Contudo, tanto o plano de publicação do livro quanto a criação de uma editora se tornaram projetos fracassados. Nem mesmo a ideia de “enxertar” o livro com mais “matéria de exasperação”, incluindo nele “a guerra donde resultou a conquista pelo Estados Unidos do México e toda essa infecção spanish da América Central”, surtiu efeito (Lobato, 1964, p. 217-218).

Embora o nome de Lobato não estivesse diretamente filiado ao Modernismo, e para muitos ele era mesmo um conservador antimodernista,5 5 As primeiras obras de Monteiro Lobato são normalmente caracterizadas como pré-modernistas, especialmente pela publicação de Urupês, livro no qual retratou o cotidiano, a linguagem e os modos de vida do caipira sertanejo, ao mesmo tempo em que fez da literatura sua principal arma contra as mazelas da Primeira República (Passiani, 2002). Contudo, suas ácidas críticas contra a exposição da jovem Anita Malfatti, conforme artigo publicado em 1917 no jornal O Estado de São Paulo, iria gerar uma série de embates entre Lobato e os modernistas aliados de Anita, entre eles Mario de Andrade e Oswald de Andrade, grupo inclusive que se tornou hegemônico no Modernismo brasileiro. Embora esse episódio não tenha produzido um rompimento radical entre Lobato e esses modernistas, pode-se dizer que a história da literatura produziu uma memória de Lobato como um escritor conservador e até mesmo um anti-modernista (Lajolo, 2008). Apesar disso, o próprio Mario de Andrade, anos mais tarde, em seu famoso texto “O movimento modernista”, incluiria o nome de Monteiro Lobato entre os paulistas que ajudaram a revolucionar a literatura brasileira e a promover o movimento modernista (Andrade, 1974, p. 235). O presidente negro pode ser visto como uma obra com características modernistas, seja pela dimensão estética e o emprego de uma linguagem simples e direta, pela ironia e irreverência do autor, seja pelo enredo fortemente ideológico e comprometido com a crítica social e a reflexão sobre o nacional. Ao mesmo tempo, sua noção de modernidade incorpora uma leitura utópica do futuro, cuja transformação do mundo se realizaria por meio da ciência e das forças tecnológicas, industriais e urbanas, com seus avançados sistemas de comunicação, automóveis velozes e futuristas, edifícios modernos e uma cultura vibrante, tal como projetavam os modernistas desde o século XIX. Não é por acaso que seu romance é ambientado nos Estados Unidos, país que Lobato exaltava por sua pujança material e civilizatória, por sua modernidade urbana e industrial, convertendo-se ele próprio num americanista convicto (Felgueiras, 2001FELGUEIRAS, Carmen Lucia Tavares. Os arquitetos do futuro: os Estados Unidos segundo Monteiro Lobato e Eduardo Prado. Estudos Históricos, v. 27, p. 141-165, 2001.). Neste sentido, o Modernismo de Lobato se aproxima daquilo que poderíamos definir como um Modernismo difuso, que se confunde com a própria noção de modernidade e suas expectativas sobre a construção de um novo tempo (Berman, 1986BERMAN, Marshall. Modernidade - ontem, hoje e amanhã. In: BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: as aventuras da modernidade. São Paulo: Editora Schwarcz, 1986. p. 15-35.; Griffin, 2010GRIFFIN, Roger. Series Preface. In: TURDA, Marius. Modernism and eugenics. New York: Palgrave Macmillan, 2010. p. IX-XIV.).

De outro lado, a maneira com que Lobato celebrava a eugenia e a empregava para projetar um novo homem e uma outra nacionalidade, capaz de superar o atraso civilizacional e expurgar a suposta inferioridade racial brasileira, é sintomático do modelo de Modernismo que adotava. Ao publicar O presidente negro, Lobato se colocava como vanguardista político, assumindo uma consciência histórica do futuro e uma vontade de estar à frente do seu tempo, apontando novos rumos para o futuro do Brasil, para a formação de uma “nova raça” e nova nação. Neste contexto, o Modernismo de Lobato também pode ser definido como um Modernismo autoritário, que, diante da ameaça da suposta degeneração humana e da decadência da modernidade, incômodo comum aos modernistas do período, promove um impulso ordenador a partir da utopia da regeneração nacional, quase sempre pensada em termos biológicos. Não é por acaso, conforme explica Roger Griffin (2007GRIFFIN, Roger. Modernism and Fascism: The sense of a beginning under Mussolini and Hitler. Londres: Palgrave Macmillan, 2007.), que o mito de uma nação forte e regenerada é tipicamente um mito modernista construído a partir de projetos políticos radicais. Assim, esse Modernismo autoritário de Lobato também nos ajuda a compreender com mais precisão as ideias extremas e nefastas presentes nas páginas de O presidente negro.

Em seu romance futurista, Lobato narra a história das eleições presidências nos Estados Unidos no distante século XXIII. A história é narrada a partir do personagem Ayrton Lobo, um vendedor de seguros que sofre um acidente no interior do Rio de Janeiro e é socorrido pelo professor Benson, um “misterioso” cientista que havia criado o porviroscópio, aparelho que permitia observar o futuro. É com miss Jane, filha do Professor Benson, que Ayrton assiste as eleições americanas de 2228, da qual participam três candidatos: Jim Roy, que representava a população negra, o candidato Kerlog, que concorria à reeleição e representava o partido dos homens brancos, e a feminista Evelyn Astor, candidata do partido feminista. Com a divisão do eleitorado branco, a população negra torna-se maioria e elege Jim Roy, o primeiro negro a ocupar a Casa Branca. Inconformados com o resultado, Kerlog e outros líderes brancos articulam um golpe contra Jim Roy e o eleitorado negro. A trama consistia numa medida eugênica radical, aplicada a partir da invenção de um produto que emitia “raios ômegas” cujas “propriedades miraculosas” alisavam os cabelos africanos e os tornavam finos e sedosos “como o cabelo do mais apurado tipo branco” (Lobato, 1956 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. São Paulo: Brasiliense, 1956 [1926].[1926], p. 297). O produto foi amplamente consumido pela população negra, inclusive por Jim Roy. O golpe articulado por Kerlog estava consumado, uma vez que a função secreta dos raios ômegas consistia em esterilizar a população negra. O “problema racial” americano, de acordo com Lobato, fora definitivamente resolvido.

Além de projetar a eliminação da população negra americana, em várias passagens do romance Lobato faz referências elogiosos às duras políticas eugênicas que os Estados Unidos implantavam para controlar a reprodução dos indesejáveis. Os americanos do futuro teriam criado inclusive o Ministério da Seleção Artificial, responsável por selecionar os mais aptos e eliminar as imperfeições físicas da população. A lei espartana era tão rígida que até “crianças defeituosas” eram eliminadas no nascedouro (Lobato, 1956 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. São Paulo: Brasiliense, 1956 [1926].[1926], p. 211). Ainda mais eficiente foi a criação da Lei Owen, aprovada por volta do ano 2100, que foi “um verdadeiro modelador da raça branca na América” (Lobato, 1956 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. São Paulo: Brasiliense, 1956 [1926].[1926], p. 212). Essas leis teriam inclusive proibido os matrimônios entre branco e negros, o que impediu a mistura racial e manteve os negros segregados. Nesse ponto, Lobato não deixa de lembrar que o “ódio racial criou na América a glória do eugenismo humano” (Lobato, 1956 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. São Paulo: Brasiliense, 1956 [1926].[1926], p. 207).

As violentas políticas eugênicas apresentadas por Lobato, incluindo o extermínio da população negra, tinha inspiração no próprio movimento eugênico norte-americano, que desde 1907 defendia medidas radicais como a esterilização eugênica. Nancy Stepan aponta que no final dos anos 1920 mais de 24 estados americanos haviam aprovado leis que previam a esterilização involuntária, aplicados especialmente na população pobre, negra e em indivíduos internados em hospitais psiquiátricos (Stepan, 2005STEPAN, Nancy. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. , p. 38). O romance de Lobato foi escrito inclusive no mesmo período em que a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou o caso Buck versus Bell, evento que mobilizou a opinião pública e legitimou a esterilização eugênica no país. Na decisão, conforme explica Daniel Kevles (1985KEVLES, Daniel. In the name of eugenics: genetics and the uses of human heredity. Los Angeles: University of California Press, 1985.), a Suprema Corte declarou, por 8 votos a 1, que a esterilização por motivos eugênicos não violava a Constituição americana e não constituía punição cruel ou incomum. Ao mesmo tempo, os anos 1920 foram marcados nos Estados Unidos pela expansão das ideologias de supremacia branca e fortalecimento de políticas de segregação racial. Este cenário não apenas colocou em evidência o movimento eugênico como institucionalizou leis e discursos de seleção racial e controle eugênico da reprodução humana (Kevles, 1985KEVLES, Daniel. In the name of eugenics: genetics and the uses of human heredity. Los Angeles: University of California Press, 1985.; Stern, 2005STERN, Alexandra. Eugenic nation: faults and frontier of better breeding in modern America. California: University of California Press, 2005.).

Como Lobato era um admirador da cultura e da vida intelectual e científica norte-americana, é possível imaginar que ele acompanhasse de perto as discussões eugênicas promovidas nos Estados Unidos, o que teria dado subsídios para sua imaginação literária. Além disso, a proximidade com o movimento eugênico brasileiro, sobretudo da figura de Renato Kehl, também é um dado relevante que ajuda a entender os caminhos que Lobato trilhou no processo de escrita de seu romance. Contudo, as proposições de Lobato sobre a esterilização eugênica parecem ter antecipado a defesa que outros eugenistas brasileiros fariam da eugenia negativa, sobretudo nos anos 1930. O próprio Renato Kehl só radicalizaria suas ideias a partir do final dos anos 1920, quando caminhou em direção à eugenia alemã (Souza, 2019SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras. Guarapuava: Editora Unicentro, 2019. ). Embora não haja comentários de Kehl sobre o livro de Lobato, é provável que O presidente negro tenha aproximando-os de forma ainda mais estreita. Meses após o lançamento do livro, Lobato escreveu a Renato Kehl desculpando-se por não ter dedicado o seu “choque de raças” a ele, a quem considerava “o pai da eugenia no Brasil”. E encerrava a carta reafirmando seu radicalismo eugênico: “Precisamos lançar, vulgarizar estas ideias. A humanidade precisa de uma coisa só: poda. É como a vinha” (Lobato, 1927LOBATO, Monteiro. Carta de Monteiro Lobato a Renato Kehl. Fundo Pessoal Renato Kehl, Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz (DAD-COC), . 1927 ).

A proposição que Lobato fazia sobre o extermínio da população negra não deve ser lida, portanto, como fruto de uma livre utopia ficcional ou de um simples interesse pelo sucesso no mercado literário. Ela tem fundamentos sólidos em sua relação com a questão racial, com a eugenia, com as expectativas políticas e com as ideias racistas do seu tempo. Não é por acaso que a linguagem eugênica estava presente inclusive na literatura infantil que Lobato produziu. Embora não haja menções diretas à eugenia em suas histórias infantis, há várias referências àquilo que os eugenistas pregavam, como a crença no aperfeiçoamento racial humano, na existência de hierarquias raciais e na ideia de que a mestiçagem é fator de degeneração dos povos (Habib, 2003HABIB, Paula Arantes Botelho Briglia. Eis o mundo encantado que Monteiro Lobato criou: raça, eugenia e nação. 2003. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de Campinas, Campinas, 2003.). Mas é na correspondência privada de Lobato que as ideias racistas se expressavam de maneira mais evidente, conectando-se ao violento enredo de O presidente negro. Em suas cartas com autores e amigos, entre eles Godofredo Rangel, Renato Kehl e Arthur Neiva, estão presentes diálogos que não apenas atestam seus interesses pela eugenia como reforçam suas convicções racistas. Em sua correspondência com Arthur Neiva chegamos a encontrar um Lobato defensor da Ku Klux Klan, movimento supremacista norte-americano conhecido pelos atos de violência e assassinatos contra a população negra daquele país. Insatisfeito pelas críticas que recebia de parte da imprensa carioca, inclusive pela publicação de O presidente negro, Lobato escreve a Neiva vociferando preconceitos violentos:

Diversos amigos me dizem: Porque não escreve suas impressões? E eu respondo: porque é inútil e seria cair no ridículo. Escrever é aparecer no tablado de um circo muito mambembe, chamado imprensa, e exibir-se diante de uma assistência de moleques feeble-minded e despidos da menor noção de seriedade. Mulatada, em suma. País de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Klux-Klan, é pais perdido para altos destinos. André Siegfried resume numa frase as duas atitudes. “Nós defendemos o front da raça branca - diz o Sul - e é graças a nós que os Estados Unidos não se tornaram um segundo Brasil”. Um dia se fará justiça ao Klux Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantem o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca - mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva. (Lobato, 1928LOBATO, Monteiro. Carta de Monteiro Lobato a Arthur Neiva. Fundo Arthur Neiva - CPDOC/FGV, 10 abr. 1928.).

A correspondência de Lobato não apenas reafirma sua visão racista como reforça a percepção de que seu romance sobre o extermínio da população negra norte-americana tem mais relação com suas visões sobre o Brasil do que os Estados Unidos. Não é por acaso que a ficção futurista de Lobato faz seguidas comparações entre as realidades raciais de ambos os países, especialmente para tratar dos caminhos distintos em que se pensou a mestiçagem. Enquanto os Estados Unidos recorreram a uma dura segregação, vista por Lobato como uma solução eugênica que impediu a mistura racial, o Brasil praticou a livre mestiçagem, responsável pela “perturbação” do processo evolutivo (Lobato, 1956 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. São Paulo: Brasiliense, 1956 [1926].[1926], p. 206). Não é possível afirmar que Lobato desejasse o extermínio da população negra brasileira, nem mesmo que sonhasse de fato com uma Klux Klan tupiniquim, embora sua correspondência e seu romance indicassem isso com clareza. Contudo, há elementos suficientes para dizer que o escritor modernista apostava nas duras medidas da eugenia negativa para realizar a utopia de uma sociedade racialmente perfeita e moderna, o que, nos termos de Lobato, significava colocar negros e mestiços “no seu devido lugar”.

Apesar do radicalismo de suas proposições, no final dos anos 1920 as ideias de Monteiro Lobato cada vez mais encontravam eco no interior do movimento eugênico. Medidas extremas como as políticas de seleção imigratória e de esterilização eugênica cada vez mais ganhavam espaços em livros e publicações especializadas, como o Boletim de Eugenia e os Archivos Brasileiros de Higiene Mental, ou mesmo em eventos como o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Esses debates chegaram inclusive a ganhar força nos meios políticos, sobretudo na Constituinte de 1933, que aprovou uma dura legislação de seleção eugênica dos imigrantes (Souza, 2022SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Eugenia, racismo científico e antirracismo no Brasil: debates sobre ciência, raça e imigração no movimento eugênico brasileiro (1920-1930). Revista Brasileira de História, v. 42, n. 89, p. 93-115, jan-abr, 2022.). Neste mesmo período, as discussões sobre a esterilização eugênica implantada na Alemanha em 1933, sob a batuta do Tribunal Racial Nazista, foram bem recebidas entre médicos e eugenistas brasileiros, conforme noticiava o inquérito realizado em janeiro de 1934 pelo jornal O Globo, matéria que durante seis dias ocupou a primeira página do periódico. Entre os entrevistados, a maioria eugenistas, demonstraram-se entusiasmos com a “Lei Alemã de Esterilização”, entre eles Renato Kehl, Pacheco e Silva, Leonídio Ribeiro e Oscar Fontenelle (O Globo, 1934O GLOBO. Devem ser esterilizados os enfermos incuráveis? O Globo. Rio de Janeiro, jan. 1934. ). O assunto também ocuparia as páginas de periódicos científicos como os Archivos Brasileiros de Higiene Mental, que ainda em 1934 publicou na íntegra o texto do governo nazista sobre a lei de esterilização. De acordo com o editorial da revista, era de “maior oportunidade” fazer traduzir “a nova lei alemã de esterilização dos degenerados”, lembrando que o mundo todo voltava suas atenções para a eugenia (Archivos..., 1934ARCHIVOS.... A lei alemã de esterilização dos doentes transmissores de taras. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 54-55, 1934., p. 54-55).

No campo literário, esse radicalismo da eugenia não foi enredo exclusivo de O presidente negro. Outra obra modernista que projetou o extermínio de humanos em nome de uma sociedade eugênica foi o romance de ficção científica A sua excia.: a presidente da República no ano 2500, publicado em 1929 pela escritora Adalzira Bittencourt. Com forte inspiração no romance futurista de Lobato, o livro também imaginava um futuro utópico modelado por ideias extremas como a esterilização eugênica, a seleção matrimonial ou mesmo a eutanásia, responsável por eliminar os indivíduos vistos como indesejáveis ou defeituosos. Nascida no interior paulista e formada pela Faculdade de Direito de São Paulo, Adalzira Bittencourt se destacou menos pela literatura do que por seu ativismo social, sobretudo como educadora, feminista e defensora dos direitos das crianças. Além de fundar a “Liga Infantil Pró-Paz”, considerada a primeira organização pacifista brasileira, também foi responsável pela criação do “Lar da Criança”, fundado no Rio de Janeiro com objetivo de recolher menores abandonados. Durante o Governo Vargas, participou de comissões governamentais relacionadas à infância, exames pré-nupciais, esterilização eugênica e aborto (Quinlan; Sharpe, 1996QUINLAN, Susan; SHARPE, Peggy. Duas modernistas esquecidas. In: QUINLAN, Susan; SHARPE, Peggy. (org.). Visões do passado, previsões do futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/UFG, 1996. p. 13-40., p. 18-19).

Como escritora, sua obra inclui a publicação de contos, poemas, romances e novelas, além de colaborações em colunas de jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro. Seus escritos refletem especialmente o interesse pela militância feminista, conforme é possível perceber em publicações como Mulher e livros (1948), A mulher paulista na história (1954), além do próprio romance A sua excia.: a presidente da República no ano 2500 (1929). De acordo com Susan Quinlan e Peggy Sharpe (1996QUINLAN, Susan; SHARPE, Peggy. Duas modernistas esquecidas. In: QUINLAN, Susan; SHARPE, Peggy. (org.). Visões do passado, previsões do futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/UFG, 1996. p. 13-40.), Adalzira Bittencourt fez parte da primeira geração de feministas que surgiu anos 1920 e 1930, cujos contornos estavam alinhados com as agendas conservadoras e supranacionalistas que consideravam as mulheres como esposas, mães e educadoras responsáveis pelas futuras gerações, atribuindo à maternidade um papel essencial na formação do Brasil e no processo civilizatório. Esse feminismo conservador conectava-se perfeitamente bem com as expectativas produzidas pelo movimento eugênico, que via a mulher, a mãe reprodutora e educadora, como aliada de primeira hora na construção de uma sociedade eugênica. Ao mesmo tempo, explica Maria Bernadete Ramos (2002RAMOS, Maria Bernadete. Ao Brasil dos meus sonhos: feminismo e modernismo na utopia de Adalzira Bittencourt. Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 11-37, 2002., p. 22-23), o feminismo de Adalzira também tinha relações direta com uma vertente conservadora do Modernismo brasileiro, que projetava a identidade nacional a partir de uma forte vinculação com as ideias raciais, o nacionalismo autoritário e a crença no governo técnico-científico para formar o novo homem brasileiro.

Em seu romance A sua excia.: a presidente da República no ano 2500, Adalzira Bittencourt narra a utopia nacional do século XXV, quando o sonho do Brasil moderno havia alcançado plena realização. Corria o ano de 2500, quando o Brasil era descrito como o “país mais belo, mais forte e mais rico” que poderia haver, desbancando inclusive a Inglaterra e os Estados Unidos. Na narrativa de Bittencourt, o Brasil tinha o exército “mais assombroso do mundo” e o comércio e a indústria forneciam produtos para todos os recantos do planeta. As grandes cidades brasileiras eram modernas, luxuosas e tecnológicas, e mesmo no “sertão de Goiás ou da Amazônia”, que até o século XX era mata virgem cheia de “bugres antropófagos”, transformaram-se em lugares de “progresso e civilização”, com prédios de pura engenharia, teatros, bibliotecas, magazines, cinemas, restaurantes de luxo, além da existência de carros aéreos e estradas eletrificadas. Do ponto de vista físico, moral e intelectual, o brasileiro era um típico eugênico perfeito, cuja longevidade chegava a 180 anos. Não havia analfabetos e raramente alguém ficava doente. Não é por acaso que, no Brasil dos sonhos de Adalzira, “viviam os maiores cientistas; os inventores das coisas que assombravam o mundo; os financistas, os artistas, os literatos, os oradores, os jornalistas, os estadistas, os industriais de fama mundial” (Bittencourt, 1929BITTENCOURT, Adalzira. Sua Excia. a presidente da República no ano de 2.500. São Paulo: Schmidt, 1929., p. 160-161).

Em relação à questão racial, Adalzira escreve que o processo de seleção eugênica foi tão eficiente que o Brasil era visto em 2500 como um país que havia se livrado da herança africana e dos mestiços, de modo que só havia entre os brasileiros “criaturas claras e formosas”. A inexistência de negros e mestiços devia-se a política de repatriação dos descendentes de africanos, inclusive dos descendentes já brancos, para o seu continente de origem: “devolvemos todos para a África. Foi um empréstimo que pagamos com juros altos. Recebemos selvagens e mandamos para lá pretos que eram poetas, jornalistas, militares, aviadores, professores, oradores, médicos (...)” (Bittencourt, 1929BITTENCOURT, Adalzira. Sua Excia. a presidente da República no ano de 2.500. São Paulo: Schmidt, 1929., p. 194). De acordo com Adalzira, “a questão da formação da raça” empolgava te tal maneira que o brasileiro “já se distinguia entre os naturais de todo os outros recantos da terra, já pela sua beleza, já pela sua destreza, já pela sua saúde, vivacidade e inteligência” (Bittencourt, 1929BITTENCOURT, Adalzira. Sua Excia. a presidente da República no ano de 2.500. São Paulo: Schmidt, 1929., p. 203).

O romance futurista de Adalzira narra a transformação do Brasil em nação eugênica e moderna a partir do momento que as mulheres começaram a participar mais efetivamente da política, criando leis, projetos e medidas radicais de melhoramento da raça. Como feminista, a escritora projetava um papel central das mulheres na organização desse novo Brasil, seja nos assuntos da política, das finanças e da ciência, seja como “esteio forte da família e do lar” (Bittencourt, 1929BITTENCOURT, Adalzira. Sua Excia. a presidente da República no ano de 2.500. São Paulo: Schmidt, 1929., p. 176). Teriam sido longas décadas de evolução até o ápice desse movimento, que ocorreria justamente no ano de 2500, quando os brasileiros elegem como presidente da república a “Doutora” Mariângela de Albuquerque, a primeira mulher a governar o Brasil. Formada em medicina e direito, Mariângela é descrita por Adalzira Bittencourt como uma jovem perfeitamente eugênica: “Esbelta. Olhos de veludo. Boca pequena e lindos dentes. Pele de cetim. Talento de escol. Cultura polimorfa. Boa. Sensata. Meiga. Tipo de beleza. Mulher perfeita” (Bittencourt, 1929BITTENCOURT, Adalzira. Sua Excia. a presidente da República no ano de 2.500. São Paulo: Schmidt, 1929., p. 162). Seu governo deu sequência aos projetos e conquistas femininas que fizeram do Brasil o país mais respeitado do mundo. Além disso, durante seu mandato foram construídos mais “Centros de Saúde e Higiene”, responsáveis pela educação eugênica, pelos estudos científicos da eugenia e pela elaboração de projetos de seleção racial (Bittencourt, 1929BITTENCOURT, Adalzira. Sua Excia. a presidente da República no ano de 2.500. São Paulo: Schmidt, 1929., p. 166-168).

Esse Brasil da utopia futurista de 2500 é contrastado por Adalzira Bittencourt pelo passado brasileiro a que escritora pertencia, a década de 1920. Neste período, conforme narra o romance, o país vivia em permanente crise política, social e financeira, marcado pela corrupção e incapacidade das lideranças nacionais. O Brasil “era um atraso em tudo”, um horror (Bittencourt, 1929BITTENCOURT, Adalzira. Sua Excia. a presidente da República no ano de 2.500. São Paulo: Schmidt, 1929., p. 163). O povo carregava os estigmas das raças inferiores, homens “mirrados, neurastênicos, pequenos, trigueiros, doentes, feios, pobres, analfabetos, malcriados e estúpidos”. Eram “homens de barbinha rala e fala fina, quase sempre tendo nas veias um pouco do sangue negro e por isso mesmo, preguiçosos, indolentes... Cheios de taras e doenças”. De outro lado, as mulheres eram descritas como “raquíticas ou de excessiva gordura balofa, estéreis, sardentas, espinhentas, incultas, pretensiosas, cabotinas e feias” (Bittencourt, 1929BITTENCOURT, Adalzira. Sua Excia. a presidente da República no ano de 2.500. São Paulo: Schmidt, 1929., p. 163).

Essas representações dos brasileiros feitas por Bittencourt em muito se assemelhavam às descrições dos eugenistas, médicos e intelectuais das primeiras décadas do século XX, que viam na mestiçagem, na indolência e nos aspectos físicos os estigmas da degenerescência. Embora não se possa afirmar que a escritora modernista tenha efetivamente participado do movimento eugênico, não há dúvida que tinha amplo conhecimento dos debates que mobilizavam os eugenistas no mundo todo. Ao longo das páginas de A sua excia.: a presidente da República no ano 2500 a escritora discute a implantação de medidas que estavam na agenda internacional dos movimentos eugênicos, como a esterilização eugênica, a aplicação de conselhos e exames pré-matrimoniais, a educação sexual e cuidados maternos e infantis. Até mesmo o aborto e a eutanásia são tratados no romance, temas que desde o início do século XX vinham suscitando debates em países do norte da Europa e nos Estados Unidos. Alguns desses temas, sobretudo a educação sexual e o controle reprodutivo, eram vistos pelas feministas que participavam do movimento eugênico como fundamentais na conquista de direitos sobre o corpo das mulheres. Adalzira possivelmente conhecia a obra e a militância que a sexóloga e ativista Margaret Sanger movia nos Estados Unidos em defesa do aborto e do controle reprodutivo, o que ligava as agendas feministas à eugenia (Kevles, 1985KEVLES, Daniel. In the name of eugenics: genetics and the uses of human heredity. Los Angeles: University of California Press, 1985., p. 90).

Assim como Margaret Sanger e outras feministas do período, Adalzira Bittencourt também via a eugenia como aliada na construção dos direitos das mulheres. No Brasil de 2500 a defesa radical da eugenia vinha justamente do empenho das grandes lideranças femininas. A lei sobre a obrigatoriedade dos exames pré-nupciais, que estava destinada “a morrer asfixiada na gaveta dos arquivos, porque era boa, útil, necessária, mereceu de uma mulher um estudo especial”, sendo implantada e respeitada. Adalzira explica que a lei determinava que todos os casais não poderiam contrair matrimônio sem um exame minucioso de médicos especializados. O exame de sangue merecia maiores atenções: “sangue puro para os casais de puro-sangue”. Os reprovados poderiam contrair casamento desde que passassem pela “operação da esterilização” (Bittencourt, 1929, p. 169). Além disso, a noiva que quisesse contrair matrimônio deveria possuir um diploma da “Escola das Mães”, curso que ensinava lições de puericultura, eugenia, eufrenia, higiene, elementos de terapêutica e direito da família (Bittencourt, 1929BITTENCOURT, Adalzira. Sua Excia. a presidente da República no ano de 2.500. São Paulo: Schmidt, 1929., p. 174). Outra iniciativa “ousada de mulheres inteligentes e superiores”, descreve Adalzira em seu romance, foi a criação do “Palácio das Princesas do Brasil”, instituição mantida pelo governo com o objetivo selecionar, educar e cuidar de jovens saudáveis, belas e com índices superiores de “perfeição física”. Essas “princesas” tinham como função gerar filhos com rapazes também eugenicamente selecionados e estes ficariam disponíveis para serem adotados por casais estéreis ou que passaram por cirurgias esterilizadoras (Bittencourt, 1929BITTENCOURT, Adalzira. Sua Excia. a presidente da República no ano de 2.500. São Paulo: Schmidt, 1929., p. 202-204).

Adalzira Bittencourt também celebra com naturalidade os avanços de projetos, leis e medidas extremas implementadas “para o bem do Brasil e da raça”. A lei da eutanásia, por exemplo, criada para “exterminar sumariamente todas as pessoas atacadas do mal de Hansen” (também conhecida na época como lepra), é vista em seu romance como uma dádiva civilizatória, uma vez que em menos de 50 anos “não existia um único doente desse mal” (Bittencourt, 1929BITTENCOURT, Adalzira. Sua Excia. a presidente da República no ano de 2.500. São Paulo: Schmidt, 1929., p. 163). Nesse Brasil da utopia eugênica até mesmo projetos de lei foram criados para estudar, corrigir e selecionar todas as crianças recém-nascidas no país, prevendo inclusive a eliminação dos indesejáveis:

Art. 6º - O médico chamado para examinar um recém-nascido deverá primeiramente constatar ser o mesmo fisicamente perfeito. Em seguida deverá pesá-lo, fotografá-lo e medi-lo.

§ 1º - Se for fisicamente perfeito poderá entregá-lo aos cuidados dos pais.

§ 2º - No caso de encontrar defeito físico incorrigível com os moderníssimos aparelhos ortopédicos, deverá levá-lo imediatamente para o “Centro de Saúde e Higiene” a fim de ser objeto de estudo, e dentro de 3 dias deverá ser exterminado. (...)

Art. 12º - A mãe que ocultar um filho aleijado a fim de não ser legalmente exterminado, em benefício da eugenia da raça, ao ser descoberta será decapitada juntamente com o filho [sem grifo no original]. (Bittencourt, 1929BITTENCOURT, Adalzira. Sua Excia. a presidente da República no ano de 2.500. São Paulo: Schmidt, 1929., p. 167).

Como é possível perceber, a escritora modernista trata com naturalidade a proposta de extermínio de crianças com “defeitos incorrigíveis”, bem como a “decapitação” das mães que descumprirem tais medidas. Nesse sentido, Adalzira está mais uma vez em perfeita sintonia com as propostas extremas de Monteiro Lobato, que também antecipava, em nome das utopias eugênicas, a eliminação de grupos humanos considerados indesejados. Aliás, o Brasil dos sonhos de Adalzira Bittencourt tem forte inspiração na literatura de Lobato, e pode ser visto como um diálogo direto com O presidente negro ou o choque de raças. A semelhança entre as obras é evidente tanto no enredo futurista de ficção científica quanto no papel que concebiam à eugenia no processo de seleção e aperfeiçoamento racial. Não é por acaso que Lobato recepcionou o romance da escritora modernista com entusiasmo, conforme escreveu em carta dirigida à Adalzira:

Li de um trago o seu livro, tão original e animador. Animador, porque nos dá, a nós homens que construímos este Brasil tão desengonçado, a esperança de que isto vire um Éden quando a mulher tomar conta do leme. Que maravilha não será, a avaliar o quadro rápido que você pinta! Que delícia viver nesse ano de 2500! Mas quanta audácia, menina! Onde descobriu você tais reservas de coragem para arrotar todos os preconceitos atuais e propugnar medidas maravilhosas como a eliminação dos estropiados e morféticos, e até a pena de morte para as mães que sobreponham aos interesses nacionais supremos o outro e o egoístico amor à cria? (Lobato, 1934LOBATO, Monteiro. Carta de Monteiro Lobato a Adalzira Bittencourt. In: Sua Excelência a Presidente da República. Jornal do Brasil, 27 nov. 1934.).

As palavras de Lobato, escritas oito anos após a publicação do seu romance americano, não apenas destacam a atualidade da obra de Adalzira como reafirmam as próprias posições do escritor paulista sobre os usos da eugenia negativa e o extermínio dos indesejáveis. A carta remete ao contexto em que o nazismo já havia chegado ao poder sob o comando de Adolf Hitler, inclusive no mesmo ano em que viriam à tona as discussões sobre o lançamento da lei alemã de esterilização dos degenerados, promovidas pelo tribunal eugênico daquele país. Vale lembrar que as propostas de extermínio de populações feitas por Lobato e Adalzira, projetados com detalhes e sob a batuta da ciência eugênica, deixaram de ser tema de ficção científica para ganhar realidade sob o comando do governo nazista a partir do final dos anos 1930. Não se trata de dizer que os escritores brasileiros anteciparam ideias e medidas largamente empregada pelos nazistas, nem de comparar eventos ficcionais com a violência vivida pelos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Trata-se de demonstrar como o tema do extermínio humano em nome da eugenia estava na ordem do dia no período entreguerras, visto inclusive como projeto moderno e racional. Conforme explicou o sociólogo Zigmunt Bauman, os casos mais extremos de “engenharia social”, como foi a eugenia nazista e o Holocausto, não eram alheios à nova ordem racional do ocidente. “Ao contrário, foram produto legítimo do espírito moderno, daquela ânsia de auxiliar e apressar o progresso da humanidade rumo à perfeição que foi por toda parte a mais eminente marca da era moderna.” (Bauman, 1999BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999., p. 38).

Considerações finais

Como procurei ressaltar neste artigo, alguns autores modernistas empregaram a eugenia a partir de distintas perspectivas e em diferentes direções, mas alinhados com as utopias raciais que alimentavam as ideias de construção de uma nação moderna. Enquanto os chamados pensadores sociais, como Paulo Prado e Alfredo Ellis Junior, incorporaram as ideias eugênicas para refletir sobre a miscigenação racial e a formação da “raça paulista” e suas distinções em relação à identidade nacional, a literatura modernista de Monteiro Lobato e Adalzira Bittencourt encontraram na ciência eugênica inspiração para imaginar futuros nacionais utópicos baseados na eliminação dos indesejáveis e no aperfeiçoamento racial humano, tal como projetava o nacionalismo autoritário dos modernistas alinhados ao radicalismo eugênico.

Como consequência, pode-se dizer que os pensadores sociais se apropriaram da linguagem eugênica como perspectiva de análise e interpretação do histórico processo de caracterização regional e nacional, dos limites e possibilidades impostos pelo caldeamento racial. Os diagnósticos e interpretações produzidas por Paulo Prado e Alfredo Ellis Junior, sobretudo quando pensamos o contexto dos anos 1930 e os debates sobre a especificidade racial paulista, alimentaram inclusive projetos políticos, narrativas e discursos sobre a suposta branquitude, a modernidade e a superioridade regional de São Paulo (Weinstein, 2015WEINSTEIN, Barbara. The color of modernity: São Paulo and the making of race and nation in Brazil. Durham: Duke University Press, 2015.). Os romances literários, por sua vez, dialogaram mais com as discussões sobre as utopias nacionais futuras, articulando um estreito diálogo com o que propunha o movimento eugênico em termos de uma modernidade radical. Aproveitando-se de enredos ficcionais futuristas, esses romances projetaram práticas extremas de intervenções eugênicas, cujas medidas se conectavam com os radicalismos autoritários que mobilizavam parte dos eugenistas. O que parecia politicamente indefensável em países racialmente tão miscigenados como o Brasil, tornava-se possível na ficção literária.

Em comum entre esses escritores havia dois aspectos em especial: a crença no papel da eugenia como instrumento de aperfeiçoamento biológico humano, que foi lugar comum no início do século XX, e a preservação de mitologias nacionais e preconceitos sobre a questão racial brasileira. De maneira geral, os escritores modernistas aqui analisados compartilhavam da compreensão de que a eugenia era um símbolo importante da modernidade, uma ciência que sintetizava os avanços do conhecimento humano e da civilização ocidental. No caso do Brasil, a eugenia corporificava as expectativas dos intelectuais sobre o papel que a ciência poderia desempenhar na regeneração do “povo” brasileiro, o que significava aprimorar a raça e preparar os brasileiros para o progresso e a modernidade. Nessa perspectiva, a eugenia calibrava as antigas utopias nacionais sobre o processo de higienização e branqueamento da nação, permitindo visualizar com mais rapidez a eliminação do sangue africano e de suas “impurezas” raciais. Para alguns, como aparece em Paulo Prado e Alfredo Ellis Junior, esse processo já estava em curso, seja pela crença na força biológica dos europeus, que cada dia mais contribuiriam para o branqueamento racial, seja pela suposta fraqueza constitucional de negros e mestiços, responsável pela sua própria extinção. Para outros, como Lobato e Adalzira, a eugenia prometia resolver o “problema da raça” no futuro, eliminando radicalmente os indesejáveis, os doentes, os anormais e os inferiores.

Se é verdade que o Modernismo produziu reflexões inovadoras a partir da valorização da diversidade cultural brasileira, como podemos encontrar em Mario de Andrade e Oswald de Andrade, também é verdade que o Modernismo alimentou visões pessimistas e estereotipadas sobre o Brasil e os brasileiros (Beriel, 2013BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.; Weinstein, 2006WEINSTEIN, Barbara. Racializando as diferenças regionais: São Paulo x Brasil, 1932. Revista Esboços, v. 13, n. 16, p. 281-303, 2006.; 2015WEINSTEIN, Barbara. The color of modernity: São Paulo and the making of race and nation in Brazil. Durham: Duke University Press, 2015.). O Modernismo verde-amarelo, como já destacamos, se projetou a partir de um nacionalismo ufanista, conservador e autoritário, em alguns casos inclusive com orientação fascista, o que gerou interpretações racialmente negativas sobre a identidade mestiça brasileira. Mesmo quando procuravam pintar o país como resultado do encontro das três raças formadoras, muitos modernistas apenas repetiam mitologias antigas sobre a superioridade europeia e o branqueamento do Brasil. Não é por acaso que esse Modernismo encontrou na eugenia inspiração para suas interpretações, uma vez que compartilhavam com os eugenistas projetos de modernidade baseados num nacionalismo autoritário e excludente. É por esse motivo que eugenia e Modernismo fazem parte de um mesmo processo de reflexão e intervenção sobre a modernidade, alimentados pela vontade em comum de produzir um novo tempo e um novo homem (Griffin, 2010GRIFFIN, Roger. Series Preface. In: TURDA, Marius. Modernism and eugenics. New York: Palgrave Macmillan, 2010. p. IX-XIV.).

Neste sentido, este artigo buscou demonstrar que os usos que esse Modernismo fez da linguagem eugênica ajuda-nos a compreender como a eugenia se confundia com a modernidade. Sua difusão respondia às expectativas existentes no imaginário social moderno sobre a criação utópica de uma sociedade perfeita, de uma ciência que realizaria no futuro o sonho do pleno progresso biológico e social. Escritores modernistas como Berilo Neves, que fez bastante sucesso nos anos 1920 e 1930 com seus livros de ficção científica, chegaram a imaginar que no século XXI haveria “Oficinas de Concertos Biológicos”, capazes de corrigir artificialmente o corpo humano (Neves, 1934NEVES, Berilo. Século XXI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1934.). Em seus livros de contos sobre invenções científicas futuras, como A costela de Adão (1930) e Século XXI (1934), projetou o “Palácio das Ciências”, responsável por criar “mulheres sintéticas” preparadas para serem boas esposas e mães perfeitas, mulheres lindas, magras, de saúde eugênica, inteligentes e de “comportamento controlado”. Seus contos tratam ainda de criação de “chocadeiras humanas”, invenções capazes de substituir a função reprodutiva do “ventre materno com inúmeras vantagens”, gerando seres humanos eugenicamente perfeitos e capazes de viver mais de 200 anos (Neves, 1930NEVES, Berilo. A costela de Adão. Rio de Janeiro: Typog. Jornal do Commercio, 1930.; 1934NEVES, Berilo. Século XXI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1934.).

Não é exagero dizer que esses modernistas contribuíram para a legitimação e popularização da eugenia também no terreno da cultura, sobretudo se considerarmos a força que as leituras e interpretações modernistas tiveram na formação intelectual e no imaginário nacional. Vale destacar que, conforme explicam Herschmann e Pereira (1994HERSCHMANN, Micael M.; PEREIRA, Carlos Alberto M. O imaginário moderno no Brasil. In: HERSCHMANN, Micael M.; PEREIRA, Carlos Alberto M. (org.). A invenção do Brasil moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 9-42., p. 18), “os retratos do Brasil que ainda hoje nos orientam (...) foram produzidos e se consolidaram no contexto da hegemonia das questões e perspectivas privilegiadas pelo debate modernista”. Ao defender medidas eugênicas como soluções modernas para os “problemas nacionais”, escritores modernistas como Monteiro Lobato, Adalzira Bittencourt e Berilo Neves naturalizavam a linguagem e os usos violentos da eugenia, camuflando os sentidos reais dessa mensagem sob o pretexto de ser “apenas” fruto da imaginação ficcional.

Ainda precisamos avançar mais sobre a análise de outros escritores modernistas, outras literaturas e outras formas de difusão cultural da eugenia, mas não há dúvida que a escrita literária e o pensamento social ajudaram a difundir preceitos, ideias e padrões eugênicos violentos e duradouros na cultura brasileira. Aliás, é possível dizer que essa literatura de inspiração eugênica ajudou a criar padrões culturais que ainda hoje alimentam nossas representações sobre a modernidade, sobre raça, hereditariedade e identidade nacional, sobre os corpos perfeitos, a saúde e a vitalidade física, sobre a sexualidade, os matrimônios desejáveis, o papel da maternidade, o controle reprodutivo e da natalidade. Como consequência, essa literatura reforçou o imaginário e os preconceitos das elites sobre as populações pobres, mestiças, africanas e indígenas, historicamente associadas no Brasil como indesejáveis e responsáveis pelo atraso brasileiro. Num país acostumado a renegar a diversidade racial e exaltar a branquitude, esse diálogo entre Modernismo e eugenia acabou legitimando crenças antigas sobre as desigualdades entre brancos e negros, entre europeus e latinos, entre ricos e pobres, o que sustentou o racismo e o desejo de exclusão ou eliminação dos diferentes, vistos pelos eugenistas como caminho necessário para a construção de uma nação moderna.

Agradecimentos

Agradeço aos comentários de Robert Wegner, Leonardo Dallacqua de Carvalho e Paulo Rodrigo Andrade Haiduke, que gentilmente leram a versão preliminar deste artigo. As sugestões e críticas destes colegas foram fundamentais para o aprimoramento do texto.

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Notas

  • 1
    Exceções podem ser encontradas em trabalhos como a dissertação de mestrado de Paula Habib (2003HABIB, Paula Arantes Botelho Briglia. Eis o mundo encantado que Monteiro Lobato criou: raça, eugenia e nação. 2003. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de Campinas, Campinas, 2003.) sobre as relações entre eugenia e raça na literatura de Monteiro Lobato; a tese de doutorado de Edgar Indalecio Smaniotto (2012SMANIOTTO, Edgar Indalecio. Eugenia e literatura no Brasil: apropriação da ciência e do pensamento social dos eugenistas pelos escritores brasileiros de ficção científica (1922-1949). 2012. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual Paulista, Marilia, 2012.), que explorou a relação entre eugenia e literatura no Brasil entre 1922 a 1944; a dissertação de mestrado de Leonardo Dallacqua de Carvalho (2014CARVALHO, Leonardo Dallacqua de. A eugenia no humor da revista ilustrada Careta: raça e cor no Governo Provisório (1930-1934). 2014. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2014.), que analisou a eugenia no humor da revista ilustrada Careta, entre 1930-1934; o artigo de Gilson Leandro Queluz (2006QUELUZ, Gilson Leandro. Eugenias modernistas: O presidente negro de Monteiro Lobato e a República 3000 de Menotti del Picchia. Revista Tecnologia e Sociedade, v. 1, n. 2, p. 241-258, 2006.) sobre a eugenia nos romances futuristas de Monteiro Lobato e Menotti del Picchia.
  • 2
    Já é bastante conhecido na historiografia o modo como a eugenia aparece na obra de Gilberto Freyre, sobretudo em Casa-grande e senzala (Araújo, 1994ARAÚJO, Ricado Benzaquen de. Guerra e paz: Casa-grande e senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.; Teixeira, 1997; TEIXEIRA, Luiz Antonio. Da raça à doença em Casa-grande e senzala. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 4, n. 2, p. 231-243, jul-out. 1997. Pallares-Burke, 2005PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo: Editora da Unesp, 2005.). Ancorado ao evolucionismo neolamarckista, teoria que postulava a herança dos caracteres adquiridos do meio, Freyre retoma o argumento amplamente difundidos entre os eugenistas brasileiros sobre a relação entre raça e meio, segundo o qual a degeneração ou a perfectibilidade das raças dependeriam das condições de higiene, saneamento, alimentação e saúde. Neste sentido, Freyre entende que a “disgenia” brasileira não está relacionada à mestiçagem, mas as questões alimentares, a disseminação de doenças como a sífilis e as verminoses, além dos vícios sociais como o alcoolismo (Freyre, 1983 FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1983 (1933).[1933]).
  • 3
    Durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado em 1929, Alfredo Ellis Junior teve participação destacada com a apresentação de dois trabalhos, um deles intitulado A eugenia paulista nos séculos I, II e III, e outro intitulado Typos raciais brasileiros. Além disso, publicou uma série de artigos sobre eugenia na imprensa paulista, especialmente no jornal Correio Paulistano, inclusive com campanhas sobre raça e seleção eugênica dos imigrantes (El-Dine, 2016EL-DINE, Lorenna Ribeiro Zem. Eugenia e seleção imigratória: notas sobre o debate entre Alfredo Ellis Junior, Oliveira Vianna e Menotti Del Picchia, 1926. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 23, suppl, p. 243-252, dez. 2016.; 2017EL-DINE, Lorenna Ribeiro Zem. A alma e a forma do Brasil: o modernismo paulista em verde-amarelo (anos 1920). Tese (Doutorado em História das Ciências) - Casa de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 2017.).
  • 4
    Ao mudar-se para Nova York, Lobato tinha como projeto publicar O presidente negro nos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, investir no mercado editorial de lá. Conforme aparece em suas correspondências pessoais, seu plano era criar uma editora, a Tupi Publishing Company, e conquistar o mercado norte-americano com livros que prometiam causar escândalos. Contudo, tanto o plano de publicação do livro quanto a criação de uma editora se tornaram projetos fracassados. Nem mesmo a ideia de “enxertar” o livro com mais “matéria de exasperação”, incluindo nele “a guerra donde resultou a conquista pelo Estados Unidos do México e toda essa infecção spanish da América Central”, surtiu efeito (Lobato, 1964LOBATO, Monteiro. O problema vital. São Paulo: Brasiliense, 1964 [1918]., p. 217-218).
  • 5
    As primeiras obras de Monteiro Lobato são normalmente caracterizadas como pré-modernistas, especialmente pela publicação de Urupês, livro no qual retratou o cotidiano, a linguagem e os modos de vida do caipira sertanejo, ao mesmo tempo em que fez da literatura sua principal arma contra as mazelas da Primeira República (Passiani, 2002PASSIANI, Enio. Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato, o público leitor e a formação do campo literário no Brasil. Sociologias, ano 4, n. 7, p. 254-270, jan/jun 2002.). Contudo, suas ácidas críticas contra a exposição da jovem Anita Malfatti, conforme artigo publicado em 1917 no jornal O Estado de São Paulo, iria gerar uma série de embates entre Lobato e os modernistas aliados de Anita, entre eles Mario de Andrade e Oswald de Andrade, grupo inclusive que se tornou hegemônico no Modernismo brasileiro. Embora esse episódio não tenha produzido um rompimento radical entre Lobato e esses modernistas, pode-se dizer que a história da literatura produziu uma memória de Lobato como um escritor conservador e até mesmo um anti-modernista (Lajolo, 2008LAJOLO, Marisa. Mário de Andrade e Monteiro Lobato: um diálogo modernista em três tempos. Teresa, n. 8-9, p. 141-160, 2008.). Apesar disso, o próprio Mario de Andrade, anos mais tarde, em seu famoso texto “O movimento modernista”, incluiria o nome de Monteiro Lobato entre os paulistas que ajudaram a revolucionar a literatura brasileira e a promover o movimento modernista (Andrade, 1974ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In: ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. 5. ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974. p. 231-255., p. 235).

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e Eduardo Romero de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Fev 2023
  • Aceito
    04 Set 2023
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