Resumo
Este artigo tem por objetivo discutir como a temática do liberalismo na América Latina do século XIX foi abordada nos âmbitos da história e das ciências sociais, evidenciando aproximações e distanciamentos entre as historiografias brasileira e hispano-americana, com ênfase no caso mexicano. Assim como no Brasil, em que o liberalismo foi muitas vezes definido, como na célebre assertiva de Roberto Schwarz, como uma “ideia fora do lugar”, nos demais países da região, a percepção da existência de uma dissonância entre as “ideias liberais” e as “realidades locais” se constituiu também como um tópico recorrente. Por outro lado, em diversos espaços nacionais essa interpretação conviveu, como no caso do México, com a exaltação do liberalismo como uma espécie de “mito fundador” da nação. Nesse sentido, este trabalho demonstra as ambiguidades na abordagem do liberalismo latino-americano do século XIX, entendido, por um lado, como incompatível com a realidade social da América Latina, e, por outro, como elemento estruturador do Estado e da nação na região.
Palavras-chave: liberalismo; historiografia; América Latina; Brasil; México
Abstract
This article aims to discuss how the theme of liberalism in Latin America in the 19th century was approached in the fields of History and Social Sciences, highlighting similarities and differences between Brazilian and Hispanic American historiographies, with emphasis on the Mexican case. Just as in Brazil, where liberalism was often defined, as in Roberto Schwarz’s famous assertion, as an “misplaced idea,” in other countries in the region, the perception of the existence of a dissonance between “liberal ideas” and “local realities” was also a recurring topic. On the other hand, in several national spaces, this interpretation coexisted, as in the case of Mexico, with the exaltation of liberalism as a kind of “founding myth” of the nation. In this sense, this work demonstrates the ambiguities in the approach of 19th-century Latin American liberalism, understood, on the one hand, as incompatible with the social reality of Latin America, and, on the other, as a structuring element of the State and the nation in the region.
Keywords: Liberalism; hitoriography; Latin America; Brazil; México
...porque los liberales se entienden mejor, al fin y al cabo, con las musas que con los índios. Eduardo Galeano, “Juárez” (1984).
Há poucos anos, estava na moda se declarar liberal no Brasil. O liberalismo, especialmente em seu viés econômico, foi apresentado por diversos setores das elites nacionais e por inúmeros formadores de opinião como solução para conter o agudo quadro de crise que se instaurou no país após 2013. No entanto, a despeito dessa invocação quase que permanente de princípios e medidas liberais, não seria absurdo afirmar que, a um observador atento e conhecedor da história contemporânea, os autoproclamados “liberais”, em sua defesa do “Estado mínimo”, da “austeridade nos gastos públicos”, do “empreendedorismo” e da “meritocracia”, pareciam conhecer e dialogar apenas superficialmente com os múltiplos significados históricos da doutrina que buscavam alçar a um lugar de protagonista. O casamento recente, mas nada surpreendente, entre a extrema direita política e um liberalismo econômico radical, expoente de uma das faces mais evidentes do neoliberalismo em voga, complexifica ainda mais o quadro.
No âmbito acadêmico, chama a atenção o fato de que, apesar de ter se constituído como ideologia fundadora do Estado nacional brasileiro e de estar presente, muitas vezes em condição de protagonismo, em diversos momentos da história política do Brasil desde o período imperial, os significados históricos do liberalismo ainda não foram plenamente dissecados pelos historiadores em particular e pelos cientistas sociais de maneira geral. Ao mesmo tempo, especificamente no que se refere ao século XIX, quando pensado nos âmbitos da experiência de um país escravista, o liberalismo foi, muitas vezes, interpretado como em dissonância com a manutenção do cativeiro, como “postiço”, “falso” ou “imitativo” em relação às suas “matrizes” europeias. Na célebre e polêmica assertiva de Roberto Schwarz, como uma “ideia fora do lugar” (Schwarz, 2000).
Embora, nas últimas décadas, trabalhos relevantes tenham se debruçado sobre a temática, pode-se dizer que ainda há muito por se explorar nessa seara (Needell, 2011, p. 245-247). As relações históricas e historiográficas, bem como as aproximações e distanciamentos entre a história e a historiografia do liberalismo no Brasil e nos demais países das Américas parecem se apresentar, por exemplo, como uma das possibilidades mais instigantes nesse sentido.
Como destaca Maria Ligia Prado (2005, p. 11-33), o Brasil possui historicamente uma relação ambígua com os demais países da América Latina, se incorporando ou não à região de acordo com condições e períodos específicos. Mais preocupados com os eventos e condicionantes europeus e norte-americanos, os brasileiros durante muito tempo não olharam com a atenção devida para seus vizinhos de colonização espanhola, deixando que se passassem despercebidos os diversos paralelos existentes entre as muitas histórias nacionais do continente. Para além das circulações e intercâmbios, se a comparação entre o Brasil e os outros países latino-americanos não deveria ser descartada no âmbito da história, também poderia ser instigante nas discussões sobre a historiografia.
No caso dos estudos sobre o liberalismo no século XIX, a comparação entre o que se produziu sobre a temática no Brasil e nos diversos países da América Hispânica parece essencial para elucidar e desvelar algumas questões que podem ficar eclipsadas quando pensadas dentro de uma perspectiva exclusivamente nacional, ou mesmo quando analisadas apenas em relação aos quadros europeu e norte-americano. Quando analisada no âmbito da historiografia latino-americana, a produção brasileira apresenta, logo de início, uma diferença e uma semelhança evidentes em relação à temática do liberalismo. Por um lado, essa doutrina parece ocupar, em diversos países hispano-americanos, uma posição mais central na historiografia sobre o século XIX, como no caso paradigmático do México. Por outro, assim como no Brasil, um dos debates mais recorrentes envolvendo a temática entre os nossos vizinhos é a afirmação da incompatibilidade entre as ideias liberais e as diversas realidades nacionais latino-americanas.
Nas linhas que se seguem, pretendo evidenciar algumas dessas aproximações e distanciamentos entre as historiografias brasileira e hispano-americana, com ênfase especial no caso mexicano. O liberalismo, ao contrário do que ocorre no Brasil, tem sido o tema central dos estudos relativos ao século XIX no México, constituindo-se, inclusive, como têm demonstrado diversos autores nas últimas décadas, uma espécie de “mito fundador” da nacionalidade naquele país (Hale, 1997 a , p. 821-837; Aguilar Rivera, 2010; Aguilar Rivera, 2011). Entretanto, antes de discutir mais detidamente alguns aspectos do liberalismo no Brasil e no México, parece importante que se façam algumas considerações acerca das definições (e indefinições) desse conceito, em particular em algumas de suas facetas referentes ao século XIX.
Liberalismo: definições e indefinições
Embora tentativas de síntese e definições mais precisas se constituam como fundamentais para o desenvolvimento das pesquisas acadêmicas, é ponto pacífico entre os historiadores que, ao serem historicizados, os conceitos e processos políticos, sociais e intelectuais se apresentam por meio de tramas que complexificam o trabalho de apreensão teórica. Em nosso caso específico, a análise se torna ainda mais intrincada, pois, como afirmam Pierre Dardot e Christian Laval no instigante A nova razão do mundo, “o liberalismo é um mundo de tensões” (Dardot; Laval, 2016, p. 37).
Dentre as muitas divergências a respeito dos significados do liberalismo há, ao menos, um consenso entre seus intérpretes e estudiosos: a dificuldade em circunscrevê-lo e em defini-lo, já que este conceito incorporou, em tempos e espaços distintos, uma série de feições diversas. Apenas para ficar em um exemplo contemporâneo, um “liberal” nos Estados Unidos hoje ocupa uma posição na centro-esquerda do espectro político daquele país, o que o diferencia de seus congêneres latino-americanos e europeus, frequentemente enquadrados ideologicamente mais à direita e à centro-direita (Merchior, 2016).
Mesmo que seja consensual que o liberalismo se gesta e se desenvolve historicamente de maneira polissêmica, diversos autores se aventuraram em identificar uma base comum sobre a qual este conceito tenha se articulado. Na síntese de um historiador da lavra do inglês Eric Hobsbawm, o “liberalismo clássico burguês” poderia ser definido, por exemplo, como uma doutrina elaborada entre os séculos XVII e XVIII, resultante do triunfo do Iluminismo, crente no progresso da humanidade, rigorosamente racionalista e secular, tendente ao materialismo e ao empirismo em termos filosóficos e essencialmente individualista em sua visão de mundo (Hobsbawm, 2012, p. 326-327).
Por sua vez, na perspectiva do intelectual italiano Norberto Bobbio, a doutrina liberal, em sua vertente mais clássica, estaria estruturada principalmente em torno do jusnaturalismo (a teoria dos direitos naturais), do contratualismo e do individualismo. Nessa concepção, mesmo que isso se dê, como destaca o próprio autor, apenas no âmbito teórico, a sociedade seria concebida como o resultado de um pacto de indivíduos originalmente livres, dotados de uma série de direitos naturais e dispostos a se organizar pacífica e ordenadamente de forma coletiva. Sobre tais bases, deveriam ser estruturados as leis e os Estados a elas subordinados. Nesse modelo, diferentemente de uma concepção de sociedades organicistas em que o coletivo teria primazia sobre o individual, no liberalismo ocorreria o contrário: o individual precederia o coletivo (Bobbio, 2000).
Já na concepção do intelectual liberal brasileiro José Guilherme Merchior (2016), três seriam os pilares do chamado “liberalismo clássico”: a teoria dos direitos humanos, o contratualismo e a economia política clássica. Como destaca esse autor, não há como se pensar o liberalismo apenas em seu âmbito político, sendo fundamental compreendê-lo em sua dimensão econômica. No século XVIII, autores como Adam Smith e David Ricardo lançaram as bases para uma série de concepções - muitas das quais são abraçadas ainda hoje pelos arautos do liberalismo -, como o laissez-faire, a liberdade dos mercados em relação à esfera política e a defesa da divisão do trabalho como fator da prosperidade moderna (Merchior, 2016).
A despeito dessas tentativas de apreensão, quando vivenciado no mundo social e político, o liberalismo se apresenta como muito mais complexo e repleto de nuances. Algumas questões levantadas pelos já citados Dardot e Laval podem contribuir como pontos de partida interessantes para a reflexão. Embora o objetivo central desses autores seja compreender a constituição do neoliberalismo como um sistema normativo e como a racionalidade hegemônica nas últimas décadas, sua análise lança luz sobre diversos aspectos do liberalismo, especialmente para se contrapor à tese bastante difundida, segundo a qual o neoliberalismo marcaria um retorno, restauração ou ressurgimento do liberalismo após décadas de descrédito, notadamente entre o período entreguerras e a década de 1970 (Dardot; Laval, 2016).
Para Dardot e Laval, a essa concepção estaria subjacente um entendimento de que o liberalismo teria sido um todo homogêneo e reinado soberano durante todo o século XIX até sua decadência nos anos que seguiram à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e, principalmente, após a Crise de 1929 e a Grande Depressão da década de 1930. Ainda que considerem elementos como o direito natural, a liberdade de comércio, a propriedade privada e as virtudes do equilíbrio do mercado alguns dos eixos, mesmo que tênues, sobre os quais haveria algum consenso entre os liberais, durante todo o século XIX, muitos foram os seus críticos, não somente entre os saudosos do Antigo Regime, mas também entre positivistas e socialistas, apenas para mencionar duas das correntes mais relevantes no período (Dardot; Laval, 2016).
Entretanto, para além dessas oposições que poderiam ser chamadas de “externas”, os autores ainda ressaltam a existência, durante todo o século XIX, de uma fratura interna, incapaz de fazer do liberalismo uma unidade tanto em seus princípios quanto em sua prática política e econômica. Ao longo de todo esse período, conviveram e disputaram espaço dentro das fileiras liberais, em suas múltiplas nuances, desde correntes reformistas sociais, defensoras de um ideal de bem comum, até os partidários da liberdade individual como um fim em si. Como é possível perceber a partir das obras de autores como Alexis de Tocqueville ou John Stuart Mill, em meados do Oitocentos, mesmo alguns valores caros a um liberalismo mais ortodoxo, como o laissez-faire e o direito à propriedade privada, não eram considerados, por muitos liberais, como valores absolutos, já que deveriam ser relativizados na medida em que poderiam ferir o interesse público (Dardot; Laval, 2016).
Da mesma forma, o caráter essencialmente secular do liberalismo se apresenta como outro aspecto que vem sendo colocado em questão pela historiografia mais recente. O historiador britânico Stuart Jones, contrapondo-se à afirmação de Hobsbawm (2012) acerca de uma laicidade supostamente intrínseca ao liberalismo, evidencia a importância dos discursos e concepções religiosas para a fundamentação dessa doutrina política desde o século XVII. No caso da França, por exemplo, embora a justificação do liberalismo, em seu diálogo com a religião, viesse mais frequentemente de protestantes como Benjamin Constant ou François Guizot, podia ser encontrada também em católicos, como no caso de Edouard Laboulaye (Jones, 2011, p. 44-45).
De acordo com Jones (2011), para aquele que se propõe a compreender a variedade de significados do liberalismo no século XIX, é essencial, como princípio metodológico, considerar as particularidades de cada contexto nacional ou regional, já que algumas questões que se colocam como essenciais em alguns espaços não se apresentam como fundamentais em outros. Ao tratar de forma comparativa a situação da França e da Inglaterra, o autor ressalta, por exemplo, que as relações entre liberalismo e democracia, entendida aqui sob a ótica do avanço da participação popular na política, se dá de maneira diferente em cada um dos países.
Enquanto na França os liberais enfrentaram, em especial a partir dos levantes de 1848, uma forte oposição à sua esquerda de grupos republicanos com tendências fortemente democratizantes, isso não teria ocorrido até a parte final do Oitocentos na Inglaterra. Ou seja, o que para os liberais franceses se colocou como um debate desde muito cedo, para seus congêneres britânicos, esse ponto teria se constituído como um problema somente algumas décadas depois (Jones, 2011, p. 44-45).
Além dessas dificuldades de definição, um outro nó que tem se apresentado para aqueles que se propõem a compreender a temática do liberalismo é sua complexa convivência, não necessariamente pacífica, com o republicanismo ao longo dos séculos XVIII e XIX. De acordo com Phillip Pettit, a divergência mais marcante entre republicanismo e liberalismo estaria na concepção de “liberdade” em cada uma das correntes políticas: para os primeiros estaria relacionada a uma ideia de “não-dominação”; para estes últimos, a uma perspectiva de “não-intervenção”. Na perspectiva dos liberais, seriam fundamentais noções como os direitos naturais, o individualismo, o racionalismo, a defesa da propriedade privada ou a liberdade dos mercados. Já para os republicanos, se constituiriam como valores caros a prevalência do “império da lei” em relação ao “império dos homens”, a preferência por constituições mistas com pesos e contrapesos e a defesa de governos caracterizados pela “virtude cívica” (Pettit, 1999, p. 38-39).
Autores hoje clássicos como Bernard Bailyn (2003) e John Pocock (2002) relativizaram a importância do liberalismo e ressaltaram a profunda relevância do discurso republicano nas Revoluções Inglesas do século XVII e na Independência Norte-Americana em fins do século seguinte. Contrapondo-se a uma historiografia, em particular anglo-saxã, que afirmava o reinado absoluto das balizas liberais na Inglaterra desde fins do século XVII e nos Estados Unidos nos anos que cercaram a Independência, esses historiadores deslocavam a obra de um autor paradigmático como John Locke do centro para a periferia do debate (Aguilar Rivera; Rojas, 2002; Florenzano, 2006).
De acordo com Bailyn (2003) em As origens ideológicas da Revolução Americana, publicado originalmente em 1969, não teriam sido os princípios liberais que alicerçaram o discurso dos colonos americanos contra a autoridade da metrópole, mas o republicanismo egresso das Revoluções Inglesas do século XVII.
Já Pocock (2002), no monumental O momento maquiaveliano (1975), inspirado, entre outros, pela obra de Bailyn, reconstitui a trajetória atlântica do chamado “humanismo cívico florentino” e das apropriações do pensamento de Nicolau Maquiavel durante a Época Moderna, projetando uma rota de continuidade entre as concepções de República nas cidades renascentistas italianas, nas Revoluções Inglesas do Setecentos e na Revolução de Independência dos Estados Unidos em fins do século XVIII. A emancipação das Treze Colônias continentais britânicas em 1776 deveria ser interpretada, portanto, nas palavras da historiadora Joyce Appleby, “menos como o primeiro ato político do Iluminismo revolucionário e mais como o ‘último grande ato do Renascimento’” (Appleby, 1992, p. 323). Essa guinada na historiografia anglo-saxã teria sido responsável, entre outras coisas, pela relativização da importância do liberalismo na constituição dos Estados contemporâneos na Europa e nas Américas.
Em meio a essas diversas questões, há ainda uma outra que passa pelas especificidades históricas do liberalismo dentro de uma perspectiva que poderíamos chamar aqui, grosso modo, de “ibero-americana”. Durante muito tempo as historiografias não somente na América Latina mas também na península ibérica se caracterizaram por uma abordagem nacionalista da história do século XIX, provocando uma cisão entre fenômenos que ocorriam de forma não somente concomitante mas também interligada em cada um dos lados do Atlântico. Como demonstram François-Xavier Guerra (2000), para o caso da Espanha e da América Hispânica, e João Paulo Pimenta (2008), para Portugal e Brasil, enquanto os países ibéricos escreviam suas histórias nacionais em torno da ascensão do liberalismo a partir, respectivamente, das Revoluções de Cádiz em 1812 e do Porto em 1820, nas Américas se produziam as histórias das independências e da formação de cada um dos Estados nacionais.
Assim como Guerra e Pimenta, autores como Márcia Berbel (2008) e Roberto Breña (2011) têm destacado, mais recentemente, que não há como se pensar as revoluções liberais ibéricas e as emancipações na América Latina como fenômenos isolados, restritos a experiências nacionais. Ao contrário, constituem-se como eventos intrinsecamente articulados a uma história global e, mais precisamente, a uma história atlântica. Tomando como ponto de partida as reflexões de Guerra (2000), mas considerando-as válidas também para os casos de Portugal e do Brasil, a invasão da Península Ibérica pelos exércitos de Napoleão Bonaparte em 1807 se apresenta como um acontecimento central para compreender o liberalismo no século XIX no espaço ibero-americano. Mesmo com o cuidado de guardar as especificidades inerentes a cada história nacional ou regional, não há como se desconsiderar as conexões, articulações e circulações existentes nas experiências constitucionais ibero-americanas, nas disputas políticas entre liberais e absolutistas na Península Ibérica e na formação dos Estados nacionais na América Hispânica e no Brasil.
Em meio a esse jogo marcado pela convergência entre as histórias da Península Ibérica e da América Latina no século XIX, e obviamente por sua articulação com uma história mais ampla das circulações, intercâmbios e conexões globais e atlânticas, é preciso deixar marcadas, não obstante, as peculiaridades do Brasil, tanto em termos históricos quanto historiográficos. A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808 e a independência que se construiu em torno de um herdeiro da Casa de Bragança, D. Pedro I, fizeram do Império brasileiro, monárquico e escravista, uma experiência particular na história das Américas. Essas peculiaridades não devem ser descartadas quando da análise da historiografia brasileira sobre a temática do liberalismo.
O liberalismo e “as ideias fora do lugar”
No âmbito da história política, a despeito das ideias liberais terem ocupado um espaço fundamental no processo de Independência e no contexto de formação do Estado nacional, ainda há muito a se discutir a respeito da temática do liberalismo na historiografia brasileira sobre o século XIX (Lynch, 2007; Needell, 2011). Comparativamente, é compreensível que esse tópico tenha um peso muito menor na produção acadêmica que os diversos aspectos - econômico, político, intelectual, social e cultural - da escravidão, por exemplo.
O mesmo pode ser dito sobre aquele que teoricamente seria seu representante institucional: o Partido Liberal. Embora obviamente não haja uma coincidência necessária entre o liberalismo, entendido enquanto uma doutrina política, econômica e social, e a existência de partidos autointitulados como “liberais”, não há como desconsiderar que os estudos acerca das agremiações políticas e de seus atores nos ajudam a iluminar aspectos importantes em relação a essa temática. Nesse sentido, ainda é bastante comum, mesmo com os avanços mais recentes nos estudos sobre o século XIX no Brasil, em especial no campo da história política, que ainda resista no senso comum, e mesmo nas abordagens predominantes no ensino básico, uma imagem consolidada de indiferenciação entre os partidos Liberal e Conservador, que, muitas vezes, admitem como verdadeiro o lugar-comum tão difundido nos tempos do Segundo Reinado (1840-1889): “nada tão parecido com um saquarema (conservador) como um luzia (liberal) no poder”.1
Contrapondo-se a essa imagem consolidada, os estudos mais recentes acerca da história brasileira do século XIX têm evidenciado, entretanto, a complexidade da participação dos diversos atores políticos na vida imperial. Há, nessa historiografia, certa relativização do papel do governo central do Rio de Janeiro sobre os demais poderes e jurisdições, bem como a ênfase na existência de autonomias e arranjos regionais. Mais que a imposição de um projeto conservador stricto sensu, a Monarquia teria se sustentado a partir das difíceis negociações e costuras entre os diversos estratos sociais e, em especial, entre os vários setores das elites imperiais, muitos dos quais em profundo diálogo com as balizas conceituais do liberalismo.2
Não obstante o debate no campo da história política ter produzido trabalhos relevantes e fundamentais para se compreender a construção do Estado Imperial no século XIX, pode-se dizer que a grande contenda envolvendo a temática do liberalismo no Brasil se deu de forma mais intensa em um campo fronteiriço que envolveu, para além da história, diversas áreas das humanidades, em especial a sociologia histórica e a crítica literária, em meio à chamada polêmica das “ideias fora do lugar”. A discussão se colocava nessa seara, por um lado, em relação à natureza e aos significados do liberalismo e, por outro, em sua compatibilidade ou não com a realidade brasileira. Embora essa querela tenha se expressado com todas as letras na década de 1970, em especial nos debates envolvendo o crítico literário Roberto Schwarz (1987) e a socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco (1976), a questão é bastante antiga entre os intelectuais brasileiros.
Dentre os muitos exemplos que poderiam ser apresentados acerca da recorrência dessa temática já em fins do século XIX, está um ataque voraz do crítico literário Sílvio Romero a Machado de Assis, no qual o autor sergipano destacava a incompatibilidade entre o que se produzia no Brasil no âmbito da política e da cultura e a realidade do país. Nas palavras de Romero, “uma pequena elite intelectual […] atirou-se a copiar na política e nas letras quanta coisa foi encontrando no Velho Mundo, e chegamos hoje ao ponto de termos uma literatura e uma política exóticas, que vivem e procriam em uma estufa, sem relações com o ambiente e a temperatura exterior” (Romero, 1897, p. 122).
Nesse mesmo sentido, ao longo século XX diversos intelectuais brasileiros, pertencentes aos mais variados espectros políticos, como Oliveira Vianna, Raymundo Faoro e Wanderley Guilherme dos Santos, entre outros, contribuíram para reforçar essa tendência interpretativa. Dentre as diversas formulações que concebiam uma discrepância entre as ideias liberais e a realidade nacional, não há como se esquecer da célebre assertiva de Sérgio Buarque de Holanda no clássico Raízes do Brasil(1936):
Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto se ajustam às condições da vida brasileira e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe imporiam. Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. (Holanda, 1995, p. 160).
Cultivada durante décadas entre grande parte da intelectualidade brasileira, essa discussão ganhou status de polêmica na década de 1970. Seu grande disparador foi Roberto Schwarz, um dos principais críticos literários e culturais do país à época. Dialogando com uma série de referências, entre as quais podem ser mencionadas a teoria da dependência, o método crítico de análise literária de Antônio Cândido e uma obra então recém-publicada pela socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco (2002), Homens livres na ordem escravocrata (1969), Schwarz produziu um dos textos mais debatidos nos anos seguintes no âmbito acadêmico nacional, intitulado exatamente como “As ideias fora do lugar” (1973).
Embora buscasse conceber uma chave interpretativa renovada para a leitura da obra do grande escritor brasileiro do século XIX Machado de Assis, o ensaio provocou sensação nos meios intelectuais por propor, para além de uma análise especificamente literária, uma certa teoria sobre como se dariam as relações entre as ideias e as realidades locais, em especial nas relações entre os “centros” e as “periferias” do sistema capitalista.
Em linhas gerais, enquanto nos “centros”, as “ideias”, particularmente o liberalismo, serviam para encobrir as realidades que de fato lhe diziam respeito; nas “periferias”, como o Brasil e os demais países da América Latina, as “ideias” seriam mobilizadas e articuladas de forma “deslocada”, não possuindo, nem em termos ideológicos, vinculação com esses ambientes sociais específicos.
No caso brasileiro, Schwarz apontava para um “desconforto” das elites do país em constatar uma clivagem entre um certo ideal liberal de matriz europeia e ocidental e uma sociedade estruturada sobre o escravismo e as relações de dependência entre as classes dominantes e os livres despossuídos. Em outras palavras, se evidenciaria no Brasil, de acordo com essa tese, uma tensão em que as “ideias”, de teor capitalista e liberal, no Império escravista, estariam “fora do lugar”. Essa aparente incongruência que se explicitaria na vida social, política e intelectual brasileira de diversas maneiras teria encontrado sua forma mais bem acabada, segundo ele, exatamente nas obras literárias - contos e romances - de Machado de Assis (Schwarz, 2000, p. 11-31).
Muitas foram as respostas ao célebre e polêmico artigo de Schwarz, uma delas da própria Maria Sylvia de Carvalho Franco em uma entrevista para o Caderno de Debates em 1976, intitulada, não por coincidência, como “As ideias estão no lugar”.
De acordo com Carvalho Franco, não se poderia falar em “ideias fora do lugar”, já que o capitalismo, a modernidade e o liberalismo não eram incompatíveis com a estruturação da economia escravista brasileira: ao contrário, o caso brasileiro se constituiria como uma forma particular de desenvolvimento inerente ao sistema capitalista. Em sua argumentação, o lucro, uma de suas balizas, resultante e alicerçado no cativeiro e na exportação de produtos primários, poderia ser apontado como um dos nexos que estruturaria as relações sociais no Brasil. A condição de não-escravizados, partilhada entre senhores e homens livres pobres, mesmo que mediada pelas relações de “favor”, poderia reforçar, por exemplo, um discurso que afirmasse a existência no país de um dos pilares do liberalismo: a igualdade formal, ao menos entre aqueles que não estivessem na condição de cativos (Franco, 1976, p. 61-64).
Como ressaltou, em outro célebre artigo em resposta a Schwarz, o também crítico literário Alfredo Bosi, a retórica liberal foi mobilizada também como justificativa para a própria escravidão, já que se assentava em princípios caros ao liberalismo, como a defesa do livre comércio e do direito à propriedade privada (Bosi, 1992, p. 194-245).
É interessante perceber, entretanto, que as interpretações de Schwarz, Carvalho Franco e Bosi, a despeito de se posicionarem como opostas e contraditórias, não eram necessariamente excludentes no âmbito historiográfico. Em um artigo publicado originalmente na década de 1980, embora afirmasse discordar da tese das “ideias fora do lugar”, Emília Viotti da Costa, uma das mais importantes historiadoras brasileiras da segunda metade do século XX, parecia chegar a algumas conclusões similares as desse polêmico ensaio.
Se, por um lado, assim como Bosi, a autora afirmava a que “as ideias liberais eram armas ideológicas com que pretendiam alcançar metas políticas e econômicas específicas” (Costa, 1999, p. 134), não deixava de destacar que, se na Europa o liberalismo funcionaria, de fato, como uma ideologia capaz de mascarar relações sociais e econômicas inerentes às realidades locais, no Brasil, tais concepções funcionavam como “utopias” que não davam conta de responder às complexidades políticas, econômicas e sociais de um país alicerçado sobre a ética da patronagem e da escravidão.
As conclusões de Emília Viotti, mesmo que recusassem que as ideias no Brasil estivessem “fora do lugar”, acabavam por não diferir de maneira significativa das teses defendidas por Schwarz:
Enquanto o liberalismo continuava a ser uma utopia para as elites, para a grande maioria da população brasileira enredada num sistema de patronagem e clientelismo, o liberalismo não era senão retórica vazia. Por isso o liberalismo no Brasil não chegou a ter o efeito mascarador que chegou a ter em outros países. Não se tornou hegemônico. Essa função foi desempenhada pela ética da patronagem. Estabelecendo relações verticais definidas em termos de favores recíprocos entre indivíduos das classes dominantes e os das classes subalternas, a patronagem ocultou tensões entre raças e entre classes (com exceção, evidentemente, das relações entre senhores e escravos). (Costa, 1999, p. 167).
De lá para cá muitas linhas já foram escritas sobre a temática no Brasil, inclusive em algumas defesas do próprio Schwarz (1987; 2012). Dito isso, não é o objetivo deste texto se aprofundar no debate e em tudo que já se publicou sobre essa questão. Cabe aqui, entretanto, ressaltar que o tópico das “ideias fora lugar”, ou seja, a compreensão ou a percepção de que as instituições liberais, democráticas e modernas são inadequadas à realidade brasileira, se constitui como um dos grandes eixos sobre o qual se articularam algumas das principais reflexões intelectuais no país. Em especial no debate acerca da presença ou não do liberalismo na vida política nacional desde o século XIX.
É preciso ressaltar que tais concepções a respeito da dissonância entre as “ideias liberais” e as “realidades locais” não deixam de evidenciar as ambiguidades do conceito de liberalismo e de suas apropriações no Brasil. Da mesma forma, explicita também como o historiador deve estar atento ao fato de que as aparentes imprecisões e incoerências do liberalismo brasileiro não devem ser compreendidas como equívocos ou distorções em relação a princípios e práticas europeus. Devem ser concebidas, em outro sentido, considerando-se as especificidades históricas da formação do Estado nacional no século XIX em suas dimensões políticas, econômicas, sociais e intelectuais. Essas peculiaridades devem ser levadas em conta não somente quando se discute a problemática do liberalismo no Brasil, mas também quando se analisa em um escopo mais amplo o quadro latino-americano.
A perfeição de inadequados estatutos: o liberalismo na América Hispânica do século XIX
Embora no caso brasileiro a questão da escravidão tenha se apresentado como fundamental para o debate, em especial sobre se sua existência seria compatível ou não com as instituições liberais, a afirmação de um suposto “desajuste” entre “ideias importadas” e “realidade local” não deixou de povoar também a retórica de políticos e intelectuais nos demais países latino-americanos. Como destacam, em momentos históricos distintos, os latino-americanistas Charles Hale (1972) e Antonio Annino (2010), a questão liberal nas décadas seguintes à Independência foi responsável por despertar paixões em muitos países da região, permanecendo viva ainda em meados do século XX e nas primeiras décadas do novo milênio. Nas palavras de Annino,
No caso do liberalismo [na América Latina], as polêmicas seguem girando em torno de um dilema colocado precisamente nos anos da emancipação, o mesmo que ainda “apaixona” o imaginário coletivo, e que tem a ver com a incompatibilidade entre o liberalismo e as peculiares condições históricas do subcontinente.3 (Annino, 2010, p. 47-48).
Nos diversos países hispano-americanos, assim como no Brasil, a discussão acerca da incompatibilidade entre legislações e projetos políticos, frequentemente de inspiração liberal, e a realidade social sobre a qual buscavam se impor se expressou de diversas maneiras ao longo dos últimos pouco mais de 200 anos.
No início do século XX, autores como o peruano Francisco García Calderón ou o venezuelano Laureano Valenilla Lanz, apenas para ficar em dois exemplos evidentes, denunciavam o caráter “imitativo” e “exógeno” das cartas constitucionais construídas no período posterior às independências, que nada tinham a ver, em sua concepção, com a situação local. Para García Calderón, em La creación de un continente (1913),
Os homens de Estado, improvisados na guerra libertadora, imitaram sem reserva, se entregaram à vertigem das criações artificiais. Parlamentos, federação à maneira norte-americana, presidência de quadriênios, apressada importação de ideias e instituições, deram aos primeiros anos da república um aspecto confuso. Em nações semibárbaras, a perfeição de inadequados estatutos.4 (García Calderón, 1979, p. 290).
Na mesma linha de García Calderón, o escritor e periodista venezuelano Laureano Vallenilla Lanz, em sua obra Cesarismo democrático (1919), afirmava: “Nossos constitucionalistas foram em todas as épocas apenas copistas com mais ou menos talento, e que carecendo de sentido prático e de sentido histórico, fizeram na Venezuela como em toda a América, desde o México até a Argentina, apenas o papel do Alienista”5 (Vallenilla Lanz, 1991, p. 111).
Em ambos os casos, tanto para García Calderón quanto para Vallenilla Lanz, a crítica às constituições e à aplicação de uma legislação de teor liberal no século XIX fazia questão de evidenciar o caráter “imitativo” e “copista” de grande parte das elites políticas latino-americanas das décadas posteriores às independências, incapazes de perceber as verdadeiras necessidades e realidades locais. Na mesma linha, apontavam também para a necessidade de governos fortes e centralistas como solução para um suposto estado de anarquia e caos vivenciado na região. É importante constatar que, na retórica de ambos os autores, esse tópico - que posteriormente viria a ser identificado nas “ideias fora do lugar” - era francamente mobilizado a partir de uma perspectiva antiliberal e claramente antidemocrática (Jaksic; Posada Carbó, 2011, p. 21; Santos Junior, 2016).
Em termos historiográficos, como destacou o estudioso argentino Elias José Paltí (2007) - um leitor bastante atento, embora crítico, das obras de Roberto Schwarz e, em particular, de “As ideias fora do lugar” -, essa perspectiva, em sua visão, inerente à chamada “história das ideias”, teria resultado em uma análise da política latino-americana das décadas posteriores às independências baseada na identificação de “modelos” e “desvios”. Em outras palavras, na compreensão de que na Europa se constituíram “paradigmas ideais” de valor universal que quando transpostos para a América Latina, um terreno supostamente hostil ou avesso a tais concepções, ganhavam “cores locais” e se particularizavam, exatamente em razão de seu caráter “deslocado” na região. Essa concepção estaria presente, como demonstra Paltí, tanto em obras de uma “história das ideias” em sua concepção mais tradicional, cujo exemplo mais evidente seria o intelectual mexicano Leopoldo Zea, quanto em autores frequentemente classificados como “revisionistas”, entre os quais o autor mais destacado seria o historiador norte-americano Charles Hale (Palti, 2007).
A respeito dessa crítica, levada à cabo mais recentemente por Paltí, é preciso mencionar que essa questão já vem sendo discutida há bastante tempo entre os historiadores brasileiros que se dedicam à história política e intelectual latino-americana do século XIX, em especial pelos trabalhos de Maria Ligia Prado (2004).
Assim como no Brasil, a historiografia de diversos países hispano-americanos tem encontrado também novas caminhos e abordagens para a compreensão das ideias, linguagens e práticas políticas no século XIX. Em diálogo com aportes teórico-metodológicos diversos, como a Escola de Cambridge britânica, a História dos Conceitos alemã e a Nova História Política e Cultural francesa, entre outros, distintos historiadores da região têm buscado reavaliar o legado dos anos posteriores à Independência, não somente por meio de novos paradigmas interpretativos, mas também pela aproximação, comparação e pelos estudos das conexões e articulações entre os seus diversos países e deles com a história global e com as dinâmicas do mundo atlântico.
O liberalismo e a construção dos Estados nas Américas têm deixado de ser vistos nesse novo quadro como fenômenos estritamente nacionais e têm passado a ser compreendidos de forma mais ampla, dentro de um quadro mais global (Jaksic; Posada Carbó , 2011; Palti, 2010; Ávila, 2007). Autores, não necessariamente partidários das mesmas correntes intelectuais, como Elias José Paltí (2007), José António Aguilar Rivera (2012), Rafael Rojas (2014) e Hilda Sábato (2018), apenas para ficar em alguns exemplos, têm buscado novas possibilidades de análise para os fenômenos da política no subcontinente ao longo do século XIX.
Nessas abordagens, é preciso destacar que a constatação de similaridades e elementos comparáveis entre os diversos países da região não significa concebê-los como um todo homogêneo, mas sim estabelecer um escopo analítico capaz de identificar conexões, aproximações e distanciamentos, bem como de escapar das armadilhas das abordagens legadas por uma história de viés estritamente nacionalista ou particularista. Da mesma forma, a despeito da adoção neste artigo de uma perspectiva subcontinental como escala preferencial de análise, também é necessário considerar a existência de diferentes dinâmicas e de particularidades locais, regionais e nacionais na América Latina, sem esquecer também de suas articulações com as dimensões globais e atlânticas do liberalismo no século XIX.
Entre os distintos casos específicos que merecem a atenção dos historiadores, valeria a pena daqui em diante se deter um pouco mais sobre o México. Guardando aproximações e distanciamentos com os processos ocorridos em outras partes da América Latina, o liberalismo se constituiu naquele país frequentemente como o fator explicativo fundamental para se compreender a sua história ao longo do século XIX, desde a independência à Revolução de 1910. Para além de se estabelecer como a ideologia que alicerçou a fundação do Estado, foi entronizado, já no século XIX, como “mito fundador” da nação.
O liberalismo mexicano: entre a máscara e o mito
Em texto publicado em fins dos anos 1990, o historiador norte-americano Charles A. Hale afirmava que o liberalismo não somente vinha ocupando um lugar central na historiografia mexicana, como cumpriria, assim como a Revolução Mexicana, um papel de “mito político unificador” da nacionalidade naquele país. Na perspectiva de Hale, ambos “foram equiparados com o emergente destino da própria nação. Foram os blocos construtores do nacionalismo mexicano”6 (Hale, 1997a, p. 821). Mais recentemente, o historiador mexicano José Antonio Aguilar Rivera, seguindo uma linha bastante similar, ressaltava que “em muitos países latino-americanos, particularmente no México, o liberalismo é mito fundador: se encontra lastrado pela história pátria”7 (Aguilar Rivera, 2010, p. 11).
Por se constituir como um elemento essencial na formação do Estado e como uma espécie de “mito fundador” da nação, a historiografia sobre o liberalismo no México é bastante vasta. Alguns balanços recentes são capazes de dar bons panoramas acerca do já que se escreveu sobre a temática (Ávila, 2007; Aguilar Rivera, 2010; Pani, 2015; Breña, 2021). Nessa multiplicidade de textos, seria possível identificar, de acordo com o historiador Roberto Breña (2021, p. 493), uma tensão de fundo entre aqueles que se dedicaram à questão: alguns historiadores, cientistas sociais e intelectuais de diversos campos destacaram a onipresença e a continuidade do liberalismo ao longo da história mexicana; outros ressaltaram suas deficiências, limitações e, inclusive, a impossibilidade de sua aplicação no país.
De acordo com Charles Hale, a construção do liberalismo como uma mitologia de fundação de nação mexicana teria começado a se desenhar como um dos desdobramentos da vitória dos liberais sobre os conservadores no contexto da Intervenção Francesa e do governo monárquico do austríaco Maximiliano de Habsburgo em 1867. Entretanto, tal narrativa teria se consolidado, segundo o historiador norte-americano, apenas em meio a um momento de relativo consenso ideológico representado pelos anos do Porfiriato (1876-1910). Empenhadas em promover a conciliação entre as diversas facções vitoriosas e mesmo entre antigos servidores do Império, as elites políticas e intelectuais do período teriam sido responsáveis pela formulação de uma narrativa que associava os anos da Reforma e de guerra contra conservadores e franceses (1855-1867) não somente com a imposição definitiva da república, mas com a emergência da própria nacionalidade (Hale, 1997a).
Essa interpretação teria sido cristalizada, segundo Hale, pela pena de um dos principais intelectuais porfiristas, o científico Justo Sierra. Em texto publicado em 1900 na coletânea México: su evolución social, o autor afirmava que, enquanto a independência teria representado a emancipação política em relação à Espanha, a era da Reforma liberal teria significado o fim definitivo do regime colonial. A narrativa de Sierra estabelecia, nesse sentido, uma continuidade e uma percepção de linearidade entre ambos os processos, bem como uma concepção de história teleológica, cujo ponto de chegada seriam os anos de “ordem e progresso” do regime do Porfírio Díaz:
O México teve apenas duas revoluções […] A primeira foi a Independência, a emancipação da metrópole, nascida da convicção que o grupo criollo havia chegado da impotência da Espanha para governá-lo e de sua capacidade para governar-se […]. A segunda revolução foi a Reforma, foi a necessidade profunda de fazer estabelecer uma constituição política, ou seja, um regime de liberdade, baseado em uma transformação social, na supressão das classes privilegiadas, na distribuição equitativa da riqueza pública, em sua maior parte, imobilizada, na regeneração do trabalho, na criação plena da consciência nacional por meio da educação popular […]. No fundo da história, ambas as revoluções são apenas manifestação de um mesmo trabalho social: emancipar-se da Espanha foi o primeiro; o segundo foi emancipar-se do regime colonial; duas etapas de uma mesma obra de criação de uma pessoa nacional dona de si mesma.8 (Sierra, 1977, p. 181).
É interessante perceber como essa interpretação de Justo Sierra sobreviveu à Revolução Mexicana e continuou encontrando eco ao longo do século XX, mesmo em concepções, em grande medida, divergentes, como as que produziram, por exemplo, na década de 1950, intelectuais como Daniel Cosío Villegas e Jesus Reyes Heroles.
Por um lado, Cosío Villegas, apresentando certo desencanto em relação aos caminhos da Revolução, voltava-se, em sua Historia moderna de México (1955), para a experiência liberal do século XIX e exaltava o legado da Constituição de 1857, buscando, de certa forma, fazer a crítica de seu presente e encontrar, no passado, modelos para o futuro da nação (Cosío Villegas, 1955).
Já Reyes Heroles, autor bastante alinhado ao então hegemônico Partido Revolucionário Institucional (PRI), nos três volumes de sua obra magna El liberalismo mexicano, publicada entre 1957 e 1961, considerava a existência de uma continuidade expressa e teleológica entre o liberalismo na Independência, na Reforma, na Revolução e no regime por ela instituído, a despeito do interregno antiliberal que atribuía aos anos do Porfiriato (Reyes Heroles, 1957-1961). Embora suas perspectivas fossem distintas, ambos os autores não deixavam de idealizar os anos da Reforma, seja para fazer a crítica ao momento em que estavam vivendo, como no caso de Cosío Villegas, seja para legitimá-lo, como no caso de Reyes Heroles (Hale, 1997 a ; Aguilar Rivera, 2010).
Essas interpretações foram alvos da crítica, nos anos seguintes, de autores chamados, de maneira um tanto generalizante, de “revisionistas”, dentre os quais se destaca o já citado Charles A. Hale. Embora sua obra de maior fôlego sobre o tema, El liberalismo mexicano en la época de Mora, tenha sido publicada apenas em 1968, vale a pena mencionar um excerto da resenha crítica que o historiador norte-americano direcionou a El liberalismo mexicano, de Reyes Heroles, publicada na revista História Mexicana em 1963:
O liberalismo foi identificado a tal ponto com a pátria, com o desenvolvimento dos ideais nacionais, que poucos se preocuparam em estudar desapaixonadamente o pensamento liberal. A primeira parte do [século] XIX foi considerada com tanta frequência como uma grande luta entre o progresso e a reação, entre liberais e conservadores, que a distância entre os campos foi artificialmente ampliada. É possível que investigações posteriores sobre a sociologia do liberalismo do século XIX mostrarão que houve uma concordância maior do que se supõe sobre soluções sociais básicas.9 (Hale, 1963, p. 457-463).
Além da crítica ao caráter teleológico que identifica o liberalismo à modernidade e à nação no México, Hale já evidenciava nessa resenha uma das tônicas de seu projeto de revisão historiográfica: a oposição à perspectiva que advogava a discrepância insolúvel entre liberais e conservadores no século XIX. Ao contrário, Hale buscava explicitar as aproximações entre os dois grupos políticos e defendia que ambos possuíam mais semelhanças que diferenças. Da mesma forma, encontrava diversas convergências também entre as concepções dos ideólogos mais frequentemente identificados com cada um dos dois partidos, respectivamente o liberal José Maria Luís Mora e o conservador Lucas Alamán (Hale, 1972). Na mesma linha interpretativa, seguiram nos anos seguintes trabalhos importantes da historiadora Josefina Zoraida Vázquez (1997).
Subjazia à tese de Hale uma espécie de inversão do binômio “tradição hispânica”/“liberalismo mexicano” que predominou entre os autores anteriores, de Sierra a Reyes Heroles, em que o papel dos liberais seria o de alcançar a superação do passado colonial espanhol e promover a verdadeira nacionalidade e a modernização do país. Em oposição, o destaque da obra de Hale recaiu sobre as permanências centralizadoras da tradição hispânica, presente tanto nos liberais como nos conservadores. A despeito da importante contribuição de Hale para a abordagem do tema, tal interpretação não deixou de recair, mesmo que de maneira sútil, como destaca Elías José Paltí, na retórica tantas vezes repetida da incompatibilidade das “ideias liberais” com a realidade do Novo Mundo, ou seja, na reiteração dos “modelos” e “desvios”, bem como na manutenção do binarismo “modernidade”/“tradição”, mesmo que em chave invertida (Palti, 2007).
Nas próprias palavras de Hale, em outro texto sobre as ideias políticas e sociais na América Latina entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX, essa percepção se faz evidente:
A experiencia distintiva do liberalismo na América Latina é derivada da aplicação das ideias liberais em países que estavam muito estratificados, social e racialmente, e subdesenvolvidos no terreno económico, e nos quais estava muito arraigada a tradição de uma autoridade estatal centralizada. Em resumo, se aplicaram em um entorno que oferecia resistência, era hostil e que, em alguns casos, engendrou uma forte e oposta ideologia do conservadorismo.10 (Hale, 1997 b , p. 1-2).
As teses da permanência das “tradições hispânicas” e do “território avesso ao liberalismo” tiveram desdobramentos importantes na historiografia mexicana, em especial nos trabalhos de Enrique Montalvo Ortega (1995) e, principalmente, Fernando Escalante Gonzalbo (1992). Em vez de advogarem a existência de um liberalismo intrínseco à nacionalidade, como ocorria na abordagem de Reyes Heroles, por exemplo, tais autores afirmavam, em contraposição, a sua inexistência e impossibilidade no México. O nó dessa análise está, entretanto, mais uma vez, no estabelecimento prévio de modelos ideais, frequentemente europeus e norte-americanos, e na percepção de que estes não se encaixariam na realidade local. Tal interpretação dialogava de maneira bastante íntima com a historiografia de diversos países latino-americanos, que, na segunda metade do século XX, em meio a Ditaduras Militares e expressões autoritárias, como foi no caso mexicano o Massacre de Tlatelolco, de 1968, afirmavam não mais a “continuidade do liberalismo”, mas destacavam, pelo contrário, “a continuidade do autoritarismo” (Mallon, 1989, p. 47-96, Ávila, 2007, p. 119).
É curioso perceber, entretanto, que interpretações como as de Montalvo Ortega e Escalante conviveram, mais ou menos nos mesmos anos, com análises que poderiam ser definidas como diametralmente opostas. Dialogando principalmente com a Nova História Cultural e a Nova História Política, então em voga na década de 1980 e 1990, autores como Alan Knight, Florencia Mallon e Alicia Hernandez Chavez afirmavam a existência de uma espécie de “liberalismo popular”, presente nas classes menos abastadas e, em particular, nas comunidades indígenas. Diferentemente do liberalismo das elites e das classes dirigentes, o “liberalismo popular” estaria mais preocupado com o autogoverno dos povos originários e das populações camponesas e teria se explicitado nos diversos processos políticos da história mexicana do século XIX, da emancipação à Reforma (Knight, 1985, p. 59-91; Hernandez Chavez, 1993; Mallon, 1995).
Assim como os que afirmavam a inexistência do liberalismo no México, os defensores dessa perspectiva também receberam diversas críticas. Autores como Roberto Breña, por exemplo, afirmam que essa interpretação talvez padeça do problema oposto ao das análises que defendem a impossibilidade das ideias liberais no México, exatamente por enxergá-lo em todos os lugares e em todos os setores sociais (Breña, 2021). Nesse mesmo sentido, na concepção de Alfredo Ávila, ambas as abordagens teriam como principal limitação uma concepção essencialista e a-histórica da temática: os primeiros por se apegaram à existência de um modelo pré-definido incompatível com a realidade hispano-americana, e estes últimos por localizarem na participação cívica, nos diálogos com as constituições nacionais e nas alianças com os dirigentes liberais a presença intrínseca do liberalismo entre esses grupos (Ávila, 2007, p. 128-129).
Nas décadas recentes, os estudos acerca do liberalismo no século XIX têm encontrado abordagens renovadas, tanto nos estudos vinculados às culturas políticas, quanto em relação às chamadas Nova História Intelectual e Nova História Política. No que se refere aos setores populares e às comunidades indígenas, pesquisas das últimas décadas, como as de Antonio Annino para o período das independências, por exemplo, têm destacado a convivência e a rearticulação entre, de um lado, permanências de modos de organização corporativos, e, de outro, novas formas de participação política e social que não passaram ao largo dos debates sobre o liberalismo e o constitucionalismo oitocentista (Annino, 1995, p, 177-226). Os estudos mais recentes sobre as várias colorações políticas e partidárias durante a Reforma e a Intervenção Francesa também têm servido para complexificar o quadro do liberalismo no México no âmbito das disputas políticas, como nos casos dos trabalhos de Silvestre Villegas Revueltas (1997), sobre os liberais moderados, e de Erika Pani (2001), sobre os conservadores.
No âmbito da história intelectual, autores como Elias José Paltí e José Antonio Aguilar Rivera, a partir de abordagens diversas, também têm apresentado trabalhos importantes para a compreensão do liberalismo mexicano. Em La política del disenso, por exemplo, Paltí apontou não somente para a presença do liberalismo na retórica e nos projetos dos políticos e ideólogos conservadores, mas também para a forma com que estes foram capazes de evidenciar as aporias nas linguagens liberais (Palti, 1998). Já Aguilar Rivera, em inúmeros trabalhos bastante instigantes, têm procurado evidenciar como os debates mexicanos a respeito da temática do liberalismo e do constitucionalismo se posicionavam dentro dos quadros do pensamento ocidental (Aguilar Rivera, 2000; 2010; 2012).
Apesar da contribuição que ambos os autores têm dado à historiografia político-intelectual recente, seus trabalhos também merecem alguns reparos. Paltí, defensor de uma história das “linguagens políticas”, inspirada pelos trabalhos de Quentin Skinner e John Pocock, talvez exagere em sua cruzada contra a “história das ideias”, considerada por ele como incapaz fugir da linha analítica dos “modelos” e “desvios”. Na ânsia de justificar sua abordagem, o historiador argentino acaba, muitas vezes, por desmerecer e invalidar outros trabalhos que possam apresentar resultados relevantes, mas que, entretanto, estejam alicerçados sobre outras premissas teórico-metodológicas (Palti, 2007).
Já Aguilar Rivera, um defensor da “história das ideias”, por vezes recai, como já destacou Alfredo Ávila, em certo essencialismo em suas perspectivas, como, por exemplo, ao afirmar que os latino-americanos, e mexicanos em particular, não souberam ler Montesquieu (Ávila, 2007, p. 130), mesmo tipo de concepção que pode ser encontrada em seu ensaio sobre as recepções de Tocqueville no México (Aguilar Rivera, 2012). Seria possível dizer ainda que algumas assertivas de Aguilar Rivera não deixam de manter uma visão alicerçada sobre o binômio dos “modelos” e “desvios”, deixando subjacentes em suas interpretações a discrepância entre as constituições e a legislação e medidas que fossem de fato mais condizentes com as realidades locais:
À distância, podemos dizer que a necessidade de centrar a atenção na escrita das constituições empobreceu de uma maneira singular a tradição liberal latino-americana. Deixou em segundo plano - ou fez desaparecer de todo - outras preocupações de índole filosófica e económica. Fez que o liberalismo adotasse um caráter excessivamente legalista e formal. A tradição liberal latino-americana é rica em constituições e pobre de ideias.11 (Aguilar Rivera, 2010, p. 12).
Como se pode perceber, a discussão sobre a temática do liberalismo no século XIX se apresenta como um tópico central para a historiografia mexicana. Consolidada como uma mitologia da nação nas últimas décadas do século XIX, continuou a ser idealizada por intelectuais importantes de meados do século XX. Na encruzilhada entre os que advogam sua incompatibilidade com o país e os que o localizam em toda parte, novas abordagens têm sido buscadas, em especial nos campos da história política e intelectual. Como no caso brasileiro, o debate acerca da compatibilidade ou não das “ideias liberais” com a “realidade local” também esteve presente entre os historiadores, intelectuais e cientistas sociais mexicanos.
À guisa de conclusão: entendendo-se com as musas
Cada uma das novas nações teve, no dia seguinte da Independência, uma constituição mais ou menos (quase sempre menos que mais) liberal e democrática. Na Europa e nos Estados Unidos essas leis correspondiam a uma realidade histórica: eram a expressão da ascenso da burguesia, a consequência da revolução industrial e da destruição do antigo regime. Na América Hispânica, só serviam para vestir de modernas as sobrevivências do sistema colonial. A ideologia liberal e democrática, longe de expressar nossa situação histórica concreta, a ocultava. A mentira política se instalou em nossos povos quase constitucionalmente.12 (Paz, 2004, p. 134).
O excerto acima, saído da pena do ensaísta mexicano Octávio Paz em El laberinto de la soledad (1950), é capaz de sintetizar a percepção de grande parte dos intelectuais latino-americanos do século XX sobre o papel do liberalismo na região ao longo do século XIX: seu caráter superficial e falso que só serviam para “vestir à moderna” sociedades ainda fortemente marcadas pela herança colonial.
Em outros termos, a mesma percepção pode ser encontrada na epígrafe deste artigo, na afirmação do literato uruguaio Eduardo Galeano, em um texto sobre Benito Juárez, no segundo volume de Memórias del fuego (1984), que defendia que os liberais se entendiam melhor com as “musas” que com os “índios”, ou seja, possuíam uma proximidade maior com as elucubrações intelectuais que com os aspectos mais relevantes as realidades locais (Galeano, 2016, p. 244).
No Brasil essa percepção esteve também em formulações como a da democracia como “mal-entendido” em Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, e no ensaio “As ideias fora do lugar” (1973), de Roberto Schwarz. Mesmo uma historiadora relevante como Emília Viotti da Costa não deixou de afirmar que o liberalismo não servia sequer como “máscara” para encobrir os verdadeiros nexos sociais de seu país.
Tanto no Brasil como no México, diversos intelectuais, ensaístas e historiadores de maneira geral evidenciaram, em suas interpretações sobre o liberalismo, noções como “deslocamento”, “superficialidade” ou “ficcionalidade” de “ideias” incompatíveis com seu entorno. No México, entretanto, a complexidade da questão ganhou outros contornos, já que foi em torno dos “liberais”, hegemônicos a partir de 1867 que se articulou a organização e modernização do país na segunda metade do século XIX.
A reforma liberal foi entronizada então como um dos “mitos fundadores” da nacionalidade mexicana e mobilizada política e intelectualmente de diversas formas pelo Porfiriato e pela Revolução e seus herdeiros. Benito Juárez, sua figura de maior vulto, está ainda hoje presente por onde quer que se ande no México, dando nome a avenidas, ruas, estações de metrô, bairros, praças, escolas, etc. Isso não é necessariamente contraditório, pois a ficcionalidade e a onipresença não deixam de ser características dos “mitos”. Essas tensões, entretanto, como não poderia ser diferente, não deixaram de se expressar na historiografia mexicana.
No caso do Brasil, o liberalismo, embora formativo do Estado nacional e das relações entre as novas elites do país entre si e delas com o mercado internacional, nunca alcançou esse status de “mito fundador” da nacionalidade. A monarquia, embora estabelecida sob a égide liberal, buscou explicitar, em especial no Segundo Reinado, signos de outra natureza, como a continuidade, a estabilidade e a ordem. A escravidão, inteiramente compatível com o liberalismo das elites nacionais, foi, mais que este, na historiografia, o tópico definidor do país durante o Império. Mesmo com a Proclamação da República em 1889, o liberalismo não reinou soberano no país, disputando espaços com outros projetos de nação, como o positivismo dos militares, o jacobinismo de setores que defendiam reformas mais radicais na sociedade e as múltiplas manifestações populares de diversos matizes que defendiam outras formas de viver e se organizar (Carvalho, 1995).
A despeito de seu diálogo com musas, máscaras e mitos, compreender o liberalismo no século XIX pode contribuir para uma reflexão mais aprofundada acerca da construção do Estado e da nação no Brasil e nos demais países da América Latina. Compreender sua percepção como “ideia fora do lugar” pode revelar muitas de suas contradições, aporias e limites.
Da mesma forma, perceber as várias expressões do liberalismo em países como o Brasil e o México pode explicitar também as ambivalências do século XIX latino-americano em suas múltiplas possibilidades de organização diante da dissolução do Antigo Regime e do Antigo Sistema Colonial. Por fim, cotejar as historiografias do Brasil e dos diversos países da América Hispânica de forma comparada não deixa de apresentar, ao mesmo tempo, a existência de uma série de problemas e desenvolvimentos comuns, bem como de uma série de peculiaridades pautadas pelas particularidades das histórias locais.
No caso de ambos os países, analisar os significados do liberalismo em perspectiva histórica pode também nos dar algumas pistas sobre por que determinados conceitos têm sido mobilizados no presente, bem como sobre quais são suas implicações nos âmbitos do debate político e dos projetos de futuro em disputa.
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“Luzias” e “Saquaremas” eram os nomes pelos quais liberais e conservadores foram conhecidos durante boa parte do Segundo Reinado (1840-1889). Os liberais começaram a ser chamados de “Luzias” pejorativamente em referência à derrota militar que sofreram na cidade de Santa Luzia, em Minas Gerais, no contexto da Revolta Liberal de 1842. Já os conservadores foram alcunhados de “Saquaremas”, em referência ao município de Saquarema, no Rio de Janeiro, onde políticos conservadores como José Joaquim Rodrigues de Torres e Paulino José Soares de Sousa eram proprietários de terras e escravos e exerciam forte influência na localidade, impedindo que seus parentes e protegidos fossem perseguidos durante períodos de domínio liberal, como nas eleições de 1845, por exemplo. Ver Mattos (1987).
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No original: “En el caso del liberalismo [na América Latina], las polémicas siguen girando alrededor de un dilema planteado precisamente en los años de la emancipación, el mesmo que todavía ‘apasiona’ el imaginario colectivo, y que tiene que ver con la compatibilidad entre el liberalismo y las peculiares condiciones históricas del subcontinente”.
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No original: “Los hombres de estado, improvisados en la guerra libertadora, imitaron sin reserva, se entregaron al vértigo de las creaciones artificiosas. Parlamentos, federación a la manera norteamericana, presidencia de cuatrienios, apresurada importación de ideas e instituciones, dieron a los primeros años de la república abigarrado aspecto. En naciones semibarbaras, la perfección de inadecuados estatutos”.
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No original: “Nuestros constitucionalistas no han sido en todas las épocas sino copistas con más o menos talento, y quienes careciendo de sentido práctico y de sentido histórico, no han hecho en Venezuela como en toda la América, desde México hasta la Argentina, sino el papel del Loquero”.
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No original: “han sido equiparados con el emergente destino de la nación misma. Han sido los bloques constructores del nacionalismo mexicano”.
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No original: “en muchos países latinoamericanos, particularmente en México, el liberalismo es un mito fundador: se encuentra lastrado por la historia patria”.
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No original: “México no ha tenido más que dos revoluciones [...] La primera fue la Independencia, la emancipación de la metrópoli, nacida de la convicción, a que el grupo criollo había llegado, de la impotencia de España para gobernarlo y de su capacidad para gobernarse [...]. La segunda revolución fue la Reforma, fue la necesidad profunda de hacer establecer una constitución política, es decir, un régimen de libertad, basándolo sobre una transformación social, sobre la supresión de las clases privilegiadas, sobre la distribución equitativa de la riqueza pública, en su mayor parte inmovilizada, sobre la regeneración del trabajo, sobre la creación plena de la conciencia nacional por medio de la educación popular [...]. En el fondo de la historia ambas revoluciones no son sino dos manifestaciones de un mismo trabajo social: emanciparse de España fue lo primero; fue lo segundo emanciparse del régimen colonial; dos etapas de una misma obra de creación en una persona nacional dueña de sí misma”
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No original: “El liberalismo ha sido identificado hasta tal punto con la patria, con el desarrollo de los ideales nacionales, que pocos se acercan a estudiar desapasionadamente el pensamiento liberal. La primera parte del XIX ha sido considerada con tanta frecuencia como una gran lucha entre el progreso y la reacción, entre liberales y conservadores, que la distancia entre los dos campos ha sido artificialmente ampliada. Es posible que investigaciones posteriores sobre la sociología del liberalismo del siglo XIX mostrarán que hubo una concordancia mayor de lo que se supone sobre las soluciones sociales básicas”.
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No original: “La experiencia distintiva del liberalismo en América Latina se derivó de la aplicación de las ideas liberales a países que estaban muy estratificados, social y racialmente, y subdesarrollados en el terreno económico, y en los cuales tenía mucho arraigo la tradición de una autoridad estatal centralizada. En resumen, se aplicaron en un entorno que ofrecía resistencia y era hostil y que, en algunos casos, engendró una fuerte y opuesta ideología de conservadorismo”.
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No original: “A la distancia podemos decir que la necesidad de centrar la atención en la escritura de constituciones empobreció de una manera singular la tradición liberal latinoamericana. Puso en segundo lugar - o desapareció de todo - otras preocupaciones de índole filosófica y económica. Hizo que el liberalismo adoptara un carácter excesivamente legalista y formal. La tradición liberal latinoamericana es rica en constituciones y pobre de ideas”.
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No original: “Cada una de las nuevas naciones tuvo, al otro día de la Independencia, una constitución más o menos (casi siempre menos que más) liberal y democrática. En Europa y en los Estados Unidos esas leyes correspondían a una realidad histórica: eran la expresión del ascenso de la burguesía, la consecuencia de la revolución industrial y de la destrucción del antiguo régimen. En Hispanoamérica sólo servían para vestir a la moderna las supervivencias del sistema colonial. La ideología liberal y democrática, lejos de expresar nuestra situación histórica concreta, la ocultaba. La mentira política se instaló en nuestros pueblos casi constitucionalmente”.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
20 Set 2023 -
Aceito
05 Jan 2024