Open-access Crise, explicações alucinatórias e perspectivas de vivência como doente grave de Covid-19: um relato pessoal

Crisis, hallucinatory explanations and the experiences of a critically ill Covid-19 patient: a personal account

Crisis, explicaciones alucinatorias y perspectivas de vivencia como enfermo grave de Covid-19: un relato personal

Resumos

O presente trabalho constitui uma narrativa das experiências do autor, médico psiquiatra e pesquisador em Saúde Coletiva, referente ao tempo de sua enfermidade de Covid-19, como expressa na própria memória, por meio de recordação, fluxo de consciência, registro de elementos factuais e reflexão crítica. O tempo na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) foi esquecido e passou a ser lembrado segundo a lógica da fabulação, alucinatório-delirante. Os fatos temporais e clínicos são os que constam nos prontuários da UTI, da Enfermaria e da Equipe Domiciliar, de posse do autor. Espera-se oferecer à sociedade uma vivência singular de como a Covid-19 nos obriga a pensar o indivíduo, a coletividade e as políticas de saúde, por ocasião da primeira grande pandemia viral do mundo globalizado, que ainda não chegou ao seu termo.

Palavras clave Covid-19; Relato de caso clínico; Vivências na pandemia; Saúde mental


This work presents a narrative of the author’s experiences as a psychiatrist and public health researcher of his Covid-19 illness, as expressed in memory, through recall, stream of consciousness, recording of factual elements and critical reflection. The time in intensive care was forgotten and came to be remembered according to the logic of hallucinatory-delusional fabulation. The temporal and clinical facts are based on the intensive care unit, ward and homecare team’s medical records in the author’s possession. The author seeks to offer a singular experience of how Covid-19 makes us think about the individual, the collective and health policy in connection with the first great viral pandemic in the globalized world, which has not yet reached its end.

Keywords Covid-19; Clinical case report; Pandemic experiences; Mental health


Este trabajo constituye una narrativa de las experiencias del autor, médico psiquiatra e investigador de salud colectiva, referente al tiempo de su enfermedad de Covid-19, como expresa en la propia memoria, por medio de recursos, flujo de conciencia, registro de elementos factuales y reflexión crítica. El tiempo en la UCI fue olvidado y pasó a recordarse según la lógica de la fabulación, alucinatoria-delirante. Los hechos temporales y clínicos son los que constan en las fichas de la UCI, de la enfermería y del equipo domiciliario, en poder del autor. Se espera ofrecer a la sociedad una vivencia singular de cómo la Covid-19 nos obliga a pensar el individuo, la colectividad y las políticas de salud, por ocasión de la 1ª gran pandemia viral del mundo globalizado, que todavía no ha llegado a su fin.

Palabras-chave Covid-19; Relato de caso clínico; Vivencias en la pandemia; Salud mental


Para o entendimento de minhas reações e sentimentos diante do fato de ter contraído a Covid-19, da Unidade de Terapia Intensiva (UTI), da Enfermaria, dos tratamentos e das sequelas, penso que é melhor começar este depoimento organizando a babel de experiências, expondo minhas recordações. A perspectiva é a da subjetividade de um psiquiatra, pesquisador no campo da Saúde Coletiva, com setenta anos de idade, e escritor, situando-se no espaço da disseminação do novo coronavírus, em seu início, na cidade de Fortaleza, Ceará, Brasil, um dos primeiros epicentros brasileiros da pandemia.

Em 13 de abril, comecei a ter sintomas leves, equivalentes às minhas frequentes gripes ou às rinites alérgicas. Fui a um posto para solicitar teste, daí fiz o teste e nem cheguei a receber o resultado, pois decidi ir à emergência de um hospital, onde fiquei na observação e fui submetido a uma tomografia de pulmão. Voltei para a observação com a finalidade de aguardar o resultado. Embora com pequena sintomatologia de insuficiência respiratória, temperatura pouco elevada e o registro de um desmaio por hipotensão, o resultado do exame foi de grande área pulmonar afetada. Decidiu-se pela minha internação e entrei em silêncio e desmemória entre 20 de abril e 20 de maio, quando emergi no leito da Enfermaria.

Assim, começo relatando minhas táticas de sobrevivência na Enfermaria, por meio dos mitos masculinos, do jeito como sempre teorizei para meus alunos. O que eu teorizava, realizei nesta crise minha, do Brasil e da humanidade. Quais são os mitos? O do Sedutor1, o do Velho Sábio2 e o do Herói Civilizador3.

No caso do Sedutor, cujo paradigma é Casanova-Don Juan, fica claro o uso que fiz, na Enfermaria do hospital, de toda a minha ironia, aguçada, mas respeitosa e engraçada. O pessoal da Enfermagem dizia que trabalhariam pela minha alta, mas sentiriam falta do que denominaram de meu “ziriguidum”. Eu sou um contador de histórias, com uma lógica na qual subjaz meu gosto pelo rigor científico, mas também meu gosto pelo feitiço das metáforas, da música do discurso. Descobria o que poderia agradar e brincava. Procurava construir identificações e uma identidade que gostassem e não esquecessem em meio aos transtornos do hospital em alta pressão de demanda.

Eu explicava que “Leila” era “noite” em árabe, que “Débora” era “abelha” em hebraico, que “Wânnyfer” parecia puro cearencês. Tentava, didaticamente, explicar os significados de minhas resistências ou dificuldades, como resultados da síndrome do olho seco, da histórica tendência à constipação intestinal, das muitas alergias, inclusive em relação ao meu próprio suor, das experiências com jato de água gelada em ambientes policiais na época da ditadura militar, de todas as viroses infantis, da malária, da mononucleose, da dengue, da Zica, de como eu havia ficado, no tempo de UTI, com o peso menor do que meu peso aos 18 anos de idade, do percurso familiar de meus olhos azuis e das boas qualidades acadêmicas da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Esclarecia notícias de TV e falava, a propósito de assuntos internacionais, dos muitos países que porventura eu conhecia. O Sedutor e o Velho Sábio se misturavam.

Para pensar o paradigma do Velho Sábio, é bom lembrar o poema “I Juca Pirama”, de Gonçalves Dias, recitado por minha avó paterna, em minha infância. O ancião da tribo, de noite, ao redor da fogueira, senta-se com os guerreiros e as crianças para lhes narrar os feitos da tribo e concluía: “meninos, eu vi”. Podemos parodiar: “meninos, eu vivi”. O Velho Sábio é o homem em plena maturidade, que depois de lidas e lutas, passa a funcionar como mestre, um guia ou guru para as novas gerações.

Enquanto isso, eu observava o processo de trabalho hospitalar. Como cada dia era diferente na dependência das equipes de plantão, daí ser possível que, organizacionalmente, tivéssemos ali sete hospitais em um. Havia uma luta surda entre as categorias profissionais, sendo a Medicina a de mais poder – o das intervenções principais e das prescrições. A Enfermagem era a proprietária do cotidiano, pelo maior número de profissionais e pela mais complexa hierarquia vertical. As demais profissões ficavam dependentes do carisma do profissional representante em cada plantão.

A competição ficava muito evidente, sobretudo, na hora das altas, com os parâmetros de cada profissão sendo brandidos para a composição da decisão final. Percebi também que havia a construção de alianças, dois a dois, três a três. Tive uma das minhas possibilidades de alta barrada por falta de acordo entre profissões, cada qual com seu protocolo. Os nomes que me lembro da UTI são os daqueles que vieram conversar comigo depois, na Enfermaria. Os nomes que me lembro da enfermaria estão embaralhados, pelo grande número e pela ocorrência de muitos estereótipos: “Boa noite, professor, sou fulana de tal, estou responsável pelo setor tal neste plantão, espero que esteja tudo bem com o senhor, até mais”.

Para os internados conscientes, o pior eram as lentas passagens de plantão, quando a dificuldade de atendimento era grande e surgia uma demanda nova cuja solução não havia prescrição médica: diante do pedido ao posto de Enfermagem, a resposta era que o médico assistente não prescrevera e ele não estava presente naquele momento; e quando insistíamos sobre a necessidade, o posto de Enfermagem encaminhava solicitação aos plantonistas da UTI que, no auge da pandemia da Covid-19, não tinham tempo para acompanhamentos na Enfermaria, entre uma urgência e outra.

O Velho Sábio emerge em diálogo com o Herói Civilizador. Eu sempre desejei envelhecer, pois associava velhice com sabedoria. Misturo essas dimensões na minha prática na gestão acadêmica. Um grande jovem médico, que foi meu orientando em toda a sua carreira acadêmica, associou meu tipo de gestão a uma contribuição brasileira. Segundo ele, além dos tipos de gestor oriundos das escolas anglo-saxãs de Administração, existiria o tipo Líder Guarani4,5, que gerencia pelo exemplo e pela argumentação, nunca pela imposição.

Também o Velho Sábio emerge em diálogo com o Sedutor e o colapso do Herói Civilizador, pelo reconhecimento das minhas limitações, mais do que isso, da concretude da impotência. Em um dia eu conversava com minha mulher, na hora do almoço, degustando um copinho de cerveja espanhola, pensando em voz alta como melhor participar do comitê estadual de combate ao novo coronavírus; dar aulas, orientar e presidir bancas on-line; e preparar a gestão da UECE para o isolamento social e para o processo eleitoral de sucessão do meu mandato de reitor, que findaria em 22 de maio. No outro dia... eu estava sedado, em um hospital, corpo inerte nas mãos de médicos e enfermeiros hábeis, porém atarefadíssimos, submetidos a decisões terapêuticas impossíveis de discussão comigo, se usa ou não usa tal ou qual nova droga polêmica, se realiza invasões tecnológicas tais como entubar ou extubar, faz ou não faz traqueostomia, transfere ou não transfere para a Enfermaria, dá alta ou não dá alta para domicílio.

E eu ali, cortiça boiando no mar em tormenta, bola esvaziada de si na mão dos especialistas. Tinha 72 kg ao entrar no sistema e quando recebi alta tinha 47 kg, grave perda de massa e força muscular, substantiva perda de expansão respiratória, grave anemia, impossibilidade de andar (achei-me, a princípio tetraplégico), cheio de tremores fortes e finos (achei-me, como o meu pai já falecido, parkinsoniano), com alimentação por sonda nasoenteral, aposentando esôfago – com seu pequeno refluxo crônico – e estômago – com sua gastrite crônica – por quase dois meses. Passei a exercitar o máximo da obediência a todas as prescrições, mas rapidamente fui recuperando a capacidade crítica e pude dizer “não” algumas vezes.

Certa feita, na Enfermaria, pois da UTI só estou lembrando agora, comparando minhas alucinações com as narrativas de minha mulher, das enfermeiras que me acompanham em casa e dos médicos, eu teria que receber oxigênio, por cateter nasal ou máscara Venturi, então pedi descrição dos equipamentos e das justificativas para cada alternativa. Ora, a questão para mim era grave, eu estava imobilizado na cama, assustado – na verdade, com muito medo de tudo –, e a máscara de Venturi recuperava meu pânico de lugares fechados, pois, pela imobilidade, eu me saberia incapaz de retirá-la, e a incapacidade seria outra camada de imobilidade; portanto, impotência sobre impotência. Resolvemos pelo cateter nasal de O2, menos opressivo e mais fácil de manipular, com o compromisso de não tirá-lo sem supervisão da Enfermagem.

Outro exemplo: algumas enfermarias haviam sido adaptadas para UTI e todas as enfermarias individuais haviam sido transformadas para receber dois pacientes. O primeiro camarada de destino a partilhar o espaço da Enfermaria comigo ficou pouco tempo e saiu, não tenho ideia para onde fora encaminhado, embora pesasse sobre nós o fantasma do óbito, mas o segundo era jovem, queria luz e TV ligadas o tempo todo, impedindo-me de qualquer cochilo, exigia ar condicionado no frio máximo, o tempo todo, o que ativaria meu temor ao frio e minhas alergias, e de noite roncava como dois trovões. Eu e minhas acompanhantes pessoais, enfermeiras, criamos uma trama de ações que levou, sem traumas, à transferência do camarada para outra Enfermaria.

Talvez o melhor exemplo seja o do banho. Na UTI, que banhos me deram e como eles foram dados eu não tenho memória racional. Mas, na Enfermaria, o primeiro açoite de água gelada foi terrível, logo sobre mim, que preciso de chuveiro elétrico até nas cidades mais quentes, tenho na memória corporal os calafrios da malária e dos jatos de água para dispersar manifestação na época da ditadura militar, e estava sem qualquer proteção adiposa, com menos 25 kg de peso corporal. Eu tanto tremia, como protestava, e como protestava, mostrando a força da indignação e da recuperação pelo menos parcial de meus pulmões. Fiquei em greve de banho, até que um dia surgiu um técnico de Enfermagem que se sentou ao meu lado, disse que recolheria água quente em bacias para temperar a água posta em balde que levaria ao quarto. Ele descreveu o procedimento que seguiria: banhar-me-ia em etapas, cobrindo-me com toalhas a cada etapa cuidada, iniciando pela cabeça a terminando pelos pés inflamados. Assim, ele fez de modo atencioso, acolhedor. A técnica dele virou regra. Nunca o esquecerei. Na circunstância de extrema vulnerabilidade, o pequeno gesto de explicar e cuidar torna-se ação de grandeza ímpar.

Lembro de mais um exemplo. As enfermeiras do posto costumam colocar um curativo preventivo de escaras nas costas e nos pés dos acamados. Não reclamei do que foi posto nas costas, mas, no caso dos pés, eu negociei até retirarem: era quente e parecia um sapato novo muito apertado. Não me explicavam nada e não se dispunham a afrouxar o “sapato”, então recusei. Além do mais, meu pé esquerdo estava edemaciado e dolorido, eu tinha ficado com tendinite, um “pé de bailarina” resultante da posição pronada que, alguém me disse depois, eu ficara na UTI.

Na Enfermaria também fui descobrindo ex-alunos e uma rede de solidariedade entre a família, colegas de trabalho e amigos, no Ceará, no Brasil e no exterior. As enfermeiras acompanhantes pessoais mediavam as informações que minha mulher filtrava, pois fiquei sem condições de trabalhar com o notebook, sequer com o celular. Médico e septuagenário, professor universitário, acometido pela Covid-19 no início da pandemia em Fortaleza, eu penso que isso tudo me garantiu algum status diferenciado, mas percebi que o tratamento não diferia muito do oferecido aos demais acamados que foram meus camaradas. Além do mais, eu ficara despojado de qualquer vaidade.

O Herói Civilizador já sucumbira diante do reconhecimento da vulnerabilidade. Aquele papel que apoiou minha história de vida, nas lutas contra a ditadura militar, pela reforma sanitária, pela reforma psiquiátrica e pelos 27 anos de atividade na UECE, estava desfeito pelas tramas da doença, pelos azares de minha biologia e sem restar futuro, pois, ao tomar consciência de mim mesmo na Enfermaria, somente lembrava a narrativa alucinatório-delirante da UTI que fabulei e somente previa um futuro de tetraplégico. Meu corpo não me respondia, não sustentava a cabeça, não arqueava para o levantamento pélvico, não andava, sequer me sentava na cama, e as fotografias de mim, que me foram mostradas muito depois, eram radiografias de um esqueleto patético ou achado de múmia em sítio arqueológico. Os cabelos brancos que, lentamente haviam chegado à região pubiana, saltaram, nestes poucos dias, em mechas e tufos, para nádegas, coxas e pernas, antes cobertas por discreta penugem castanha.

A formação de graduados, especialistas, mestres e doutores, a publicação de artigos e livros, a criação dos Centros de Atenção Psicossocial de Quixadá e de Sobral, a criação do Mestrado Acadêmico em Saúde Pública, a criação dos cursos de Ciências Biológicas, Medicina e Terapia Ocupacional, os cinco anos como diretor do Centro de Ciências da Saúde, os 11 anos como pró-reitor de Pós-Graduação e Pesquisa e os oito anos como reitor da UECE desapareciam diante do vazio de futuro.

A solução alucinatório-delirante ficou inteira na minha memória e comecei a elaborá-la desde que saí da UTI, tentando sempre distinguir o que era real do que era confusão ou construção na fronteira psicótica. Eu concebi um médico superinteligente do Ceará que havia descoberto uma cura para a Covid-19, superavançada tecnologicamente: um submarino, em forma de disco voador – com o interior idêntico ao de uma UTI –, com quatro leitos, um por baia, e a equipe terapêutica em uma baia central. As camas ficavam quase em pé, talvez em ângulo de 40º, com as pernas dos pacientes seguras por pesos de mais ou menos 10 kg cada um. Na minha percepção alucinatória, meus dois antebraços eram submetidos a um tipo de tortura alternada, cíclica e sistemática de dois torniquetes esmagando e soltando. Eu tentava prever a ocorrência e bradava, em vão, pelo fim do suplício.

O tal submarino navegaria entre os polos Sul e Norte, Antártico e Ártico, e pelo oceano Atlântico, com o interior ocupado por um tipo especial de gás. Houve uma pausa, que eu interpreto como sendo o intervalo de dois dias entre a saída da primeira internação na UTI, de oito dias, sete de entubação; e o retorno para a segunda internação, de 17 dias, dez de entubação. A pausa de UTI corresponde a uma pausa alucinatória, quando teríamos chegado ao Ceará, à foz do rio Jaguaribe, e subido por ele até a nascente, perto da cidade de Tauá, onde meu genro e minha mulher estariam para me resgatar. Ocorre que meu genro sumiu e minha mulher foi cooptada pela equipe do submarino, transformando-se em uma organizadora de documentos e revisora dos relatórios diários dos profissionais. Três vezes o submarino fez o trajeto polo a polo, quatro vezes voltou a fazê-lo e, no fim, quando eu começava a revisitar criticamente o período anterior, soltou os quatro pacientes, todos curados, na antiga praia do Pecém, distante do porto, onde a mídia televisiva e todos os familiares e amigos dos “salvos” esperavam em anfiteatro especialmente montado, com direito a fogos de artifício e divulgação on-line, viralizada por robôs.

Com a recuperação dos movimentos do pescoço, da elevação pélvica e da mobilidade das pernas, fiz a releitura da premonição de tetraplegia. Felizmente, não houve congelamento de nenhuma articulação e os problemas motores eram decorrentes da perda de massa e de força muscular, recuperáveis com alimentação – verdadeira dieta de engorda – e fisioterapia intensiva. A tarefa, para depois da saída do hospital, já em casa, foi reaprender os controles esfincterianos e abandonar o fraldão; reaprender a mastigar e deglutir para abandonar a sonda nasoenteral; reaprender a andar; e melhorar a fala. Não tive problemas de olfato e paladar.

Há um médico que eu admiro muito. Eu o assessorei quando assumiu uma importante secretaria municipal de saúde; por outro lado, fui seu orientador de mestrado. Ele está coordenando meu projeto terapêutico, articulando os inúmeros medicamentos passados pelos especialistas e as ações das várias profissões envolvidas. Ainda na Enfermaria do hospital, antes da alta, ele me disse: “Faça muito repouso vocal, eu já soube que você transformou a enfermaria em sala de aula”.

Gosto de narrar, mais do que de expor sentimentos; porém, sempre os exponho, indiretamente. Coloco no rosto uma máscara de sorriso de Mona Lisa e sigo em frente. O primeiro impacto que tive em minha casa foi o de observar sua transformação em hospital, pois meu quarto foi organizado como enfermaria, revezando-se a presença das duas enfermeiras, além de uma médica acupunturista, de uma médica homeopata e de uma fisioterapeuta para os fins de semana, contratadas pela minha esposa. Contei também com a assistência de fisioterapeuta, fonoaudióloga, nutricionista, psicóloga e médico, da equipe de atenção domiciliar de uma cooperativa médica.

Voltemos ao processo alucinatório-delirante para desconstruir e reconstruir, juntando as peças de meu próprio quebra-cabeça. Entre polo e polo, o submarino emergiu e parou no porto de Rosário, Argentina; no porto de Tauá, Brasil – que não tem porto, sequer rio navegável –; e no porto da Cidade do México, que fica em planalto central, sem acesso por rio, qualquer rio que a ligue com o Caribe ou o Pacífico, muito menos canal com eclusas. Preciso compreender essa geografia onírica. Lembro que eu gritava muito, pedindo para ir para minha casa, lembro de uma longa noite tossindo produtiva e convulsivamente, lembro dos dias inteiros sem dormir com os olhos abertos furando a luz do dia e a escuridão da noite. Penso que essas lembranças reais, do início do tempo de enfermaria, foram superpostas ao tempo de UTI. De fato, passei muito tempo tossindo, uma noite inteira, apenas tomando a medicação prescrita anteriormente, sem nada próprio para tosse, por não haver prescrição médica específica.

De fato, passei duas noites acordado, encarando a parede trêmula pela sombra de galhos e folhas, pois estava aterrorizado de medo: tinha conseguido dormir bem, mas acordei pela ocorrência de dor lancinante no meu braço direito, pois a técnica de laboratório da noite resolvera fazer uma coleta de sangue, para gasometria arterial, sem informar, pedir licença, sequer me acordar. O que lembro ainda, revivendo vividamente, é da laceração súbita, da dor intensa, do acordar desesperado e do terror restante. Na enfermaria vivi assim, entre medos, planos e esperanças frustradas de alta. Em casa, vivo as tentativas de decifrar a experiência alucinatório-delirante, que é a minha memória da UTI, algumas esperanças e os primeiros projetos concretos.

Como entender a metamorfose constante do interior do submarino? As belas pinturas, como as encontradas nas paredes das mansões do Império Romano, mudavam de lugar aleatoriamente e também aleatoriamente deixavam de ser pinturas para serem esculturas; esculturas adquiriam vida e se moviam roçando meus ombros e meus olhos, como bondosos fantasmas etéreos.

Na descida final na praia do Pecém, fui transportado para um prédio de arquitetura padrão Oscar Niemeyer, vigiado por guardas armados. Nesse momento, meus filhos, noras e genro, vindos do Pará, de São Paulo e de Fortaleza, recusavam-se a ir embora sem me ver, e teriam tentado invadir o prédio, apenas para serem violentamente escorraçados. Psicólogas, como se agindo sub-repticiamente, faziam meu contato com a família por meio de videochamada e informavam minha alta para um dia seguinte sempre adiado. Em um dos portos, não consigo identificar qual, vieram a bordo duas moças, tão belas quanto parecidas, então percebi que não era apenas tratar Covid-19 o objetivo daquela invenção futurista: era também realizar cirurgias de modelagem de corpos, e aquelas duas queriam se tornar iguais, altura, cabelos, seios, quadris, cor da pele e dos olhos, sobrancelhas, tudo, e conseguiram. Assisti à alta dada a elas, o astronômico preço do serviço prestado e a beleza visual do amor lésbico, com absoluto rigor identitário.

Dúvidas e metacríticas começam a aparecer. Cenas dramáticas eram as da transformação de meus dentes em borracha derretida, ocluindo minha boca, desimpedida a golpes de língua, às vezes com sucesso, às vezes fracassando, tornando mais opressa a respiração. Na parada em Tauá consegui contato telepático com meu médico pessoal, que disse estar apoiando minha esposa em uma causa jurídica contra a empresa do submarino, devido à prática de preços abusivos e de estelionato. Se houve estelionato, então eu não ficaria curado ao fim do sacrifício?

Hoje, ainda me sinto uma radiografia ambulante. Em dois meses recuperei 10 kg, mas faltam 15 kg. Não suporto o ritmo e o volume da engorda, os suplementos alimentares hipercalóricos e hiperproteicos por deglutir, que, aliados às refeições, representam ingestão de comida quase de duas em duas horas. Estou me sentido entupido, porco sendo cevado para o Ano Novo. Minha mulher e as enfermeiras pessoais só faltam colocar funil em minha boca, segundo minhas fantasias. Por outro lado, sinto-me muito feio e envelhecido, percepções que nunca tive antes. Era magro, mas elegante, não esquelético. Não era particularmente belo, mas era harmônico e eu me sentia atraente. Tinha síndrome do olho seco, mas não este rosto chupado e estes olhos esbugalhados que vejo ao espelho e me dão repulsa.

Primeiro projeto: Preciso superar a síndrome do porco cevado e seguir em frente com a dieta, negociando para evitar abusos com a história de meu corpo, além de equilibrar a fisioterapia com a capacidade muscular adquirida aos poucos. Não precisei ser traqueostomizado ou submetido à hemodiálise. Houve retorno à UTI, mas depois da segunda vez meu quadro estabilizou e sucessos se sucederam. Voltei para casa; controlei esfíncteres e abandonei os fraldões; todos os testes de mastigação e deglutição, inclusive de água, foram positivos e então foi retirada a sonda nasoenteral; dispensei a cama hospitalar; andei com apoio de andador, ganhei algum peso e força muscular – assim, já ando sozinho e subo e desço as escadas da casa para fazer as três refeições principais no térreo –; dispensei a cadeira de rodas; consigo escovar os dentes e fazer minha barba; o banho da noite, mais simples, tipo ducha, eu consegui tomar sozinho, sob o chuveiro, mas o banho matinal, completo, somente agora o faço, dispensando a cadeira de banho. Mas tudo é muito inseguro e com muitas dores musculares.

Segundo projeto: Tomar banho completo e andar agilmente, sem insegurança, sem medo de afogar-me sob o chuveiro e sem dor, tornando-me autônomo.

Desde estudante universitário e por toda a minha vida profissional, exerci minhas atividades em múltiplas dimensões. Como professor, ensinei História da Música em Escola Normal e Ciências Físicas e Biológicas no antigo Ensino Fundamental; e em universidades privadas e públicas, durante a graduação e na pós-graduação. Assim, completei cinquenta anos nesse afazer; realizei pesquisas sobre saúde mental e trabalho antes mesmo de ter doutorado e de lecionar em universidade. Desde a experiência pioneira com trabalhadoras em indústria de quebra de castanha de caju, nos anos 1970, também realizei pesquisas sobre políticas de saúde mental desde o início da militância no Movimento Brasileiro de Reforma Psiquiátrica; e desafiei-me para a gestão que remonta ao início da década de 1980, no Hospital de Saúde Mental de Messejana, em Fortaleza (CE), quando um trabalhador começou a boicotar meus esforços clínicos e organizacionais de reforma pedindo sistematicamente minha ficha de “comunista” na Polícia Federal – depois no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro – e quando perdedores de licitação para terceirizar segurança ligavam para minha casa e insinuavam ameaças de morte.

Sempre achei que ser servidor público é a profissão mais digna em uma democracia e que o setor público é fundamental na ligação entre as grandes ideias, formuladas em princípios e diretrizes, com a execução quotidiana no “chão da fábrica” das políticas públicas. É fascinante isso, e com a redemocratização brasileira tivemos um pouco mais de três décadas para exercitar esse desafio coletivo de Herói Civilizador: doutrinas, princípios e diretrizes em diálogo com as situações concretas, singulares, cheias de carências estruturais e do acumulado de carências históricas.

Eu fico triste, às vezes melancólico, perguntando-me quantos anos de vida útil eu ainda teria se eu não tivesse sido agredido, com tal gravidade, por essa peste global, a primeira pandemia do mundo globalizado. Ao modo português, sinto saudade deste futuro que sinto perdido. No meu poema “Gosto Fundamental”, eu concluo que:

já sei que não serei jamais o grande poeta que minha adolescência alucinou mas a melhor parte de mim é a poesia é esta parte que me nutre de ritmo e de esperança

Portanto, o terceiro projeto é voltar a escrever poesia e o livro sobre o reitorado. Tenho anotações que me garantem essas possibilidades. Para iniciar, produzi um ciclo de seis poemas ao qual denominei de “Ciclo do Distanciamento”, mas não sei se quero especializar minha inspiração poética em torno desta peste.

Daí, então, o quarto projeto, com várias limitações – de voz, de energia, de segurança, de vulnerabilidade imunológica, de como será o nosso trabalho na universidade na pós-pandemia –, é retomar as pesquisas, as orientações e, sobretudo, o que mais me preocupa, o ensino, o uso profissional sistemático da voz, que ainda falha, na graduação e na pós-graduação.

Temo a perspectiva de um vazio, entre o alcance dos projetos e este momento atual, todo programado, de hora da acupunturista, da psiquiatra, do psicólogo, da fonoaudióloga, do fisioterapeuta que vem nos dias úteis, da fisioterapeuta que vem no fim de semana, dos medicamentos em seis horários diários, de cada uma das cinco refeições diárias. Mesmo atualmente, depois de mais de um mês em casa, há um buraco negro entre 18h e 21h, que eu preencho com novelas e filmes, e que expresso em crises de ansiedade, retomando a memória dos desesperos da Enfermaria e das psicoses da UTI, o que torna o sono superficial e sobressaltado.

Muitas vezes me surpreendo falando de meus fracassos como grandes e dos meus sucessos como pequenos – os “meus pequenos milagres”. Será isso mesmo? Meus sucessos, embora “milagres”, são menores que meus fracassos? E os fracassos são de fato fracassos? Parece que não assumo os sucessos, atribuindo-os aos outros ou à conjuntura, embora os considerando como grandes, como verdadeiros “milagres”, sobretudo na minha vivência de psiquiatra clínico: o caso do rapaz com dependência à maconha; o caso do rapaz catatônico; o caso da mulher que tinha feito cinco abortos, etc. Eu os tenho na memória, mas passei batido o registro em artigo, como fiz nos casos da mulher policial com tentativa de suicídio, da tecelã com quadro conversivo e da rezadeira em crise de identidade. Valorizei bem pouco os meus feitos como psiquiatra clínico, apesar de ter gostado de cada momento desta história que durou 25 anos. No que diz respeito aos fracassos, eu os supervalorizo, talvez porque magoaram muito ou por dificuldade de autotratar feridas narcísicas. O fato é que não vejo mais clínica psiquiátrica e cargos públicos no futuro laboral que porventura eu tenha. No campo das políticas de saúde mental, a supervisão clínico-institucional de Centro de Atenção Psicossocial pode ser viável, afinal, ela mistura o Velho Sábio, o Sedutor e o Líder Guarani, mas o atual quadro político brasileiro é o contrário disso.

Impõe-se manter minha vida, limitada por sequelas da Covid-19 e pelos setenta anos, mas íntegra, evitando apartar mundo privado, mundo do trabalho e mundo político. Afinal, aprendi, com os gregos, quatro palavras fundamentais: psiquê, technê, politikós e ethós. Eu preciso gostar, ter um horizonte moral, ser criativo e ser competente para me sentir vivo. E preciso saber, pois saber é o maior prazer. Quantos, por pobres, não tiveram as condições de tratamento que eu tive? Quantos não tiveram as condições assistenciais, biológicas ou psicológicas de sobreviver que eu tive? Sinto-me alegre com minha resiliência, o amor competente de quem cuidou de mim, a operosidade do plano de saúde e a capacidade de oferecer apoio qualificado que o Sistema Único de Saúde pode prover ao nosso povo.

  • Sampaio JJC. Crise, explicações alucinatórias e perspectivas de vivência como doente grave de Covid-19: um relato pessoal. Interface (Botucatu). 2021; 25(Supl. 1): e200671 https://doi.org/10.1590/Interface.200671

Referencias

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    » http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/61/entrevistados/marilena_chaui_1999.htm
  • 5 Clastres P. A sociedade contra o Estado. Frey B, tradutor. Porto: Afrontamentos; 1979.

Editado por

  • Editor
    Antonio Pithon Cyrino
    Editora
    Lilia Blima Schraiber

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2020
  • Aceito
    19 Nov 2020
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