Resumos
As Diretrizes Curriculares do curso de graduação em Medicina de 2014 incluem a Saúde Mental (SM) como uma das áreas obrigatórias do internato. O objetivo deste trabalho é apresentar o internato integrado de SM e de Medicina de Família e Comunidade (MFC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a fundamentação da escolha da Atenção Primária à Saúde (APS) como cenário de formação dos internos. Trata-se do relato da experiência do internato integrado de SM e MFC da UFRJ e da discussão de seus marcos teóricos. A alta prevalência de sofrimento psíquico e transtornos mentais na APS, o fato de ela ser a porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS) e o fato de que a faculdade de Medicina deve formar médicos generalistas fazem deste cenário lócus privilegiado para o treinamento dos internos de Medicina em SM.
Saúde mental; Medicina de família e comunidade; Internato e residência; Atenção primária à saúde; Educação médica
Las Directrices Curriculares del Curso de Graduación en Medicina de Curso de 2014 incluyen la salud mental (SM) como una de las áreas obligatorias del internado. El objetivo de este trabajo es presentar el internado integrado de SM y Medicina de Familia y Comunidad (MFC) de la UFRJ y la fundamentación de la Escuela de Atención Primaria de la Salud (APS) como escenario de formación de los internos. Se trata del relato del internado integrado de SM y MFC de la UFRJ y de la discusión de sus marcos teóricos. La alta prevalencia de sufrimiento psíquico y trastornos mentales en la APS, el hecho de que la APS es la puerta de entrada del sistema único de salud (SUS) y el hecho de que la facultad de medicina debe formar a médicos generalistas, hace que este escenario sea un locus privilegiado para el entrenamiento de los internos de medicina en salud mental.
Salud mental; Medicina de Familia y Comunidad; Internado y Residencia; Atención Primaria de la Salud; Educación Médica
The 2014 Curricular Guidelines of the medical undergraduate courses include Mental Health (MH) as one of the required areas of internship. The objective of this paper is to present the integrated internship for MH and Family and Community Medicine (FCM) of UFRJ, as well as the rationale for choosing Primary Health Care (PHC) as the setting for the internship training. It presents a report of the experience of the integrated internship for MH and FCM of UFRJ and the discussion of its theoretical frameworks. The high prevalence of psychological distress and mental disorders in PHC, the fact that PHC is the gateway to the unified national health system (SUS) and the fact that the medical school must train general practitioners, make PHC a privileged locus for the training of medical interns in mental health.
Mental Health; Family Practice; Internship and Residency; Primary Health Care; Medical Education
4ª semana
Essa semana começa com um caso não muito diferente de outros já vistos. Uma senhora, obesidade grau III, portadora de hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus , ambos mal controlados. Até aí nada muito diferente do nosso dia a dia e do que esperamos atender no consultório. A sobrinha fazia companhia até que as netas entraram na consulta. Bateram, abriram a porta, sem se importar em atrapalhar, entrando e falando como se estivessem em casa, sentando-se onde queriam. A avó pareceu incomodada com a situação e até mesmo descrente pelo fato de estar sendo atendida por alunos, enquanto a médica corria de um lado para o outro tentando resolver as pendências que apareciam. Explicamos que a situação dela era um pouco preocupante, visto que ela não conseguia manter o controle da HAS e da glicemia e a esse ponto era necessário começar insulina. [...] A avó falou que não conseguia fazer dieta e nem diminuir o estresse, pois as netas davam trabalho. Ela queria que as meninas fizessem o BAAR, já solicitado pela doutora, pois elas tossiam há um mês, mas se recusavam a fazer o exame. Além disso, queria um método contraceptivo para as meninas, que pelos comentários dos familiares, passavam o fim de semana em bailes funk , aparecendo com um garoto diferente a cada dia. Em uma das diversas entradas de uma das netas na sala, tentei estabelecer algum contato para perguntar da tosse. [...] essa nem se dignava a olhar para a gente. Tratava, ou melhor, não nos tratava. A sua indiferença para conosco era tanta que me deixou extremamente agoniada e irritada. Porém, como exigir respeito? Como pedir respeito a alguém que não parece nem mesmo se respeitar? Que talvez não tenham nem aprendido o sentido dessa palavra. Eram meninas de 14 e 15 anos exigindo tratamento como mulheres, mas agindo como crianças pirracentas. O meu desconforto era gigante. [...] Bom, se eu estava extremamente preocupada, eu realmente consigo imaginar o nervoso da avó. [...]. À tarde, as meninas voltaram sozinhas porque queriam o resultado dos testes rápidos solicitados e o método contraceptivo, precisando passar pela consulta com a médica. A menina de 15 anos não parecia se importar a mínima com o que falávamos, mas dizia para a de 14 anos dizer toda a verdade, já que a avó não estava mais ali e assim podíamos tratar direito. O meu mal-estar continuou. [...] a menina tossia há um mês e estava emagrecendo. Não sabia se tinha febre, mas estava sempre nos bailes [...] tinha voltado a estudar, mas já tinha tentado agredir a professora [...]. Agredir a professora? [...] Eu realmente fiquei chocada, isso não faz parte da minha realidade. [...] não sei como esses professores tratam os alunos, mas nada justifica tal agressão. [...] A médica deixou claro que a camisinha protegia de [doenças sexualmente transmissíveis] DST, mas não deram a mínima. O que preocupou foi o fato de não estarem protegidas de gravidez no primeiro mês da injeção do contraceptivo. Eu disse a elas que camisinha era um direito delas e que elas podiam exigir do cara ou se recusar. Mas será mesmo? Sei lá, isso soou falso até na minha cabeça. Não acho que o cara de um baile funk vá dizer “tá bom, meu bem, farei o que você está pedindo”. E nem acho que elas quisessem também. [...] queria mesmo era dizer que nenhum sexo bem feito, nenhum cara popular, nenhum aparente status vai valer a juventude delas ou a tristeza de um diagnóstico de DST. Queria era falar no linguajar delas, chocar tanto quanto eu estava chocada. Acho que ia ser ineficaz, fiquei calada mesmo, com um aperto no peito, angustiada com a educação que o nosso país oferece, tanto quanto eu costumo ficar com a impotência diante de um quadro terminal. A terça-feira veio para me aliviar. Eu queria agradecer aos professores pela enriquecedora conversa da tarde. Acho sinceramente que expor as situações que vivenciamos na clínica pode aliviar um pouco. Foram três horas e meia de conversa, reflexão, debate polido. Foi poder respirar em meio a um semestre atribulado. Acho que na faculdade de Medicina não nos são dadas muitas oportunidades de compartilhar e é difícil encontrar pessoas de outras áreas dispostas a escutar ou entender. Estamos muito acostumados a estudar protocolos bem definidos, condutas já elaboradas, diagnósticos já feitos, mas não somos muito incentivados ao ócio produtivo, a refletir, a partilhar. Essas horas se mostraram muito mais produtivas em minha semana do que se tivessem sido passadas no consultório, não querendo desmerecer o atendimento da demanda, mas sentindo que esses momentos que o grupo está reunido também são fundamentais para a formação de um profissional de qualidade. (Diário de campo – aluna do 10o período, no Internato integrado de SM e de MFC da UFRJ)
Introdução
Em 2014 foram publicadas as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) da graduação em Medicina1 , que incluíam a SM como uma das áreas obrigatórias do internato, a ser implementada até 2018.
Ressalta-se que a área a ser incluída é Saúde Mental, e não Psiquiatria. Trata-se de mero jogo de palavras? Um dos discursos das DCN1 é:
O graduado em Medicina terá formação geral, humanista, crítica, reflexiva e ética, com capacidade para atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, nos âmbitos individual e coletivo, com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania, da dignidade humana, da saúde integral do ser humano e tendo como transversalidade em sua prática, sempre, a determinação social do processo de saúde e doença.
A formação médica sempre se deu prioritariamente no campo da Biomedicina e a Psiquiatria é a disciplina que institui o saber médico sobre a loucura, classificando-a em diferentes tipos de doença mental. A formação em SM é estratégica para a ampliação do saber e da prática do médico que deve não apenas reconhecer os transtornos mentais, mas sobretudo perceber que o sofrimento humano dificilmente poderá ser reduzido a uma etiqueta diagnóstica.
Como proporcionar essa formação ao graduando de Medicina?
Na UFRJ há um instituto de Psiquiatria no qual são formados os especialistas nesta área. No entanto, para médicos que seguirão outros campos da Medicina, a formação em um centro especializado, restrita a pacientes mais graves, já diagnosticados e medicados, poderia trazer distorções, como a ideia de que pacientes com transtornos mentais (PTM) deveriam necessariamente se tratar em centros especializados. Além disso, as alarmantes taxas de mortalidade precoce de PTM não poderiam estar relacionadas também à incapacidade dos médicos em lidarem com esses pacientes fora de cenários psiquiátricos2 ? Estudos que revelam que os profissionais de saúde, incluindo os médicos, estão entre aqueles com mais preconceito em relação aos PTM não demonstrariam também que algo na formação desses profissionais deveria mudar3 , 4 ?
A APS é internacionalmente apontada como o cenário a ser priorizado na formação de profissionais da área da saúde, a fim de aumentar o acesso e a resolutividade do cuidado e tratamento para a maioria dos transtornos mentais5 - 7 . Assim, concluímos que a APS8 , incluindo os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf) e serviços comunitários da rede de saúde mental – Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e Consultórios na Rua, em sua articulação com as equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF) – deveriam ser os cenários prioritários para o internato de SM.
A UFRJ em 2006 iniciou seu internato em MFC, com treinamento nas unidades básicas de saúde (UBS) da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) do RJ. Em 2015 foi implementado o internato de SM integrado ao de MFC, ampliando a carga de treinamento na APS de 11 para 22 semanas, com 32 horas semanais. Os internos se inserem nas equipes de ESF e são acompanhados na UBS por um preceptor, médico de família e comunidade, da SMS. Cumprem uma semana padrão, na qual participam de quatro turnos de consultas (um dedicado à prevenção de câncer cervicouterino e de mama, sob supervisão de enfermagem); um turno de visita domiciliar; dois turnos de atividades coletivas (Educação em Saúde, Educação Continuada, sessões clínicas; reuniões da equipe da unidade e matriciamento de SM); e um turno de atuação conjunta dos professores de SM e MFC da UFRJ, com os internos e as equipes da ESF. Os internos são incentivados a realizar as atividades de forma autônoma, sob supervisão. Estamos na sétima turma do internato integrado de 22 semanas. As dificuldades foram e são muitas. Durante a construção do modelo de integração, o principal questionamento veio dos internos que tinham dificuldade de entender por que o internato de SM não seria no instituto especializado, uma vez que os demais internatos se davam desta forma – Pediatria, Obstetrícia, Ginecologia. Outra dificuldade importante é a articulação de tantos atores em tantos cenários – 38 professores, 136 internos, mais de cem preceptores, 19 UBS, cinco Caps e dois Consultórios na Rua. Para essa articulação, contamos com regras bem explicitadas no Manual do Internato, atualizado a cada semestre, e grupos na web para comunicação em tempo real. Mas o principal desafio é o fato de estarmos mergulhados na rede de APS da SMS e, portanto, suscetíveis às mudanças políticas de cada gestão municipal, estadual e federal, bem como às mazelas da nossa cidade. Esse último aspecto é uma dificuldade e uma riqueza, pois os alunos saem do cenário protegido do Hospital Universitário e passam a conviver com a realidade do SUS e da população por eles atendida, fazendo do internato integrado um dos pilares da formação médica da UFRJ.
SM e/ou Psiquiatria
Um primeiro aspecto a levantar nesta discussão da formação do futuro médico no campo da SM é se SM é sinônimo de Psiquiatria ou se são conceitos e práticas complementares. Por que ora falamos SM, ora Psiquiatria e ora ambos (SM e Psiquiatria)?
Nas DCN, o termo é claro – o internato incluirá a área de SM. Em um texto dedicado às novas DCN, professores do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entendem “a Psiquiatria/SM como uma das grandes áreas da medicina e não apenas como uma de suas especialidades”9 (p. 48), lembrando um slogan muito utilizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de que “não há saúde sem saúde mental”. No entanto, em seu texto não há uma separação entre Psiquiatria e SM:
[...] [seu ensino e aprendizagem fazem parte] dos esforços para melhorar o cuidado ao paciente.
[...] [É importante] dar aos alunos uma formação em psiquiatria/saúde mental capaz de proporcionar-lhes habilidades cognitivas e afetivas de comunicação, de avaliação do estado mental e avaliação, reconhecimento e planejamento terapêutico dos transtornos mentais mais prevalentes9 . (p. 49)
Uma opção seria colocarmos sempre os dois termos juntos (Psiquiatria/SM), apontando para uma diferenciação e indicando que um termo não é igual ou substituto do outro, mas que, ao mesmo tempo, pertencem a um campo comum de conhecimento e de práticas. Outra opção seria simplesmente separarmos os dois termos, referindo-se à Psiquiatria como o núcleo de saber que reconhece e trata dos transtornos mentais, enquanto a SM se refere à ausência desses transtornos e à possibilidade de um equilíbrio e de um enfrentamento de novas situações, estando mais voltada para o campo da prevenção e promoção da saúde.
Uma terceira possibilidade seria utilizarmos a noção de campo e núcleo proposta por Campos10:
A SM seria o campo – “espaço de limites imprecisos onde cada disciplina e profissão buscariam em outras apoio para cumprir suas tarefas teóricas e práticas” – e a Psiquiatria um núcleo especializado de saber – “identidade de uma área de saber e de prática profissional”. (p. 220)
Em um texto de 1999 (“O Conceito de Saúde Mental”), Naomar Almeida Filho advoga que “em contraste com o muito que se tem investido no desenvolvimento de modelos teóricos da doença mental, pouco se tem avançado no sentido de construir conceitualmente o objeto ‘saúde mental’”11 (p. 101). Sua reflexão pode nos ser útil em muitos sentidos, mas destaco aqui uma questão que vivenciamos cotidianamente na construção do internato integrado SM-MFC:
Por um lado, o conceito de transtorno mental, com base na psicopatologia biomédica, apresenta um alto grau de estabilidade como modelo explicativo e uma restrita aplicabilidade a contextos coletivos. Por outro lado, a subjetividade radical implícita na noção de enfermidade, [...] remete ao impasse [...] da irredutibilidade da experiência de doença mental, tanto a processos comunicativos característicos do agir social quanto a modelos explicativos sistemáticos possibilitadores de uma tecnologia clínica. [...] Não podemos discordar que reduzir a “carga de doença mental”, diminuindo o volume de morbidade pela via do tratamento e reabilitação de casos, resultará em melhores índices de saúde mental no sentido da salubridade11 . (p. 123)
Portanto, esta é sem dúvida uma parcela fundamental do trabalho a ser desenvolvido com os internos: a capacidade de reconhecer e tratar os transtornos mentais tais como eles são descritos pela Psiquiatria. Mas apareceriam eles no campo da APS da mesma forma que aparecem no campo da especialidade? Por ora, importa concordar com Naomar quando aponta que:
[...] nas sociedades multiculturais que praticamente definem o que se vem chamando de pós-modernidade, o pluralismo étnico, a exclusão social, a brecha geracional, a desigualdade de gênero, e tantos outros processos heteronômicos, indicam a necessidade de aparelhos de cuidado psiquiátrico culturalmente sensíveis, a fim de pelo menos aumentar a resolutividade da sua ação. Nesse sentido [...] não será desejável desenhar e planejar programas de assistência em saúde mental a partir de modelos baseados no conceito restrito de transtorno mental ou em referenciais de enfermidade enquanto dimensão idiossincrática do sujeito. [...] Por outro lado, um conceito ampliado de saúde mental como expressão de saúde social se torna necessariamente objeto de uma perspectiva transdisciplinar e totalizadora, fora do âmbito dos programas de assistência. Objeto-modelo construído por meio de práticas transetoriais, a saúde mental significa um socius saudável; ela implica emprego, satisfação no trabalho, vida cotidiana significativa, participação social, lazer, qualidade das redes sociais, equidade, enfim, qualidade de vida. Por mais que se decrete o fim das utopias e a crise dos valores, não se pode escapar: o conceito de saúde mental vincula-se a uma pauta emancipatória do sujeito, de natureza inapelavelmente política11 . (p. 123)
Este é um questionamento frequente entre os internos: o que eu como médico posso fazer frente a tantos problemas que me ultrapassam?
São tantas tragédias em sucessão que afetam a vida dessa família, que é difícil achar o culpado, a causa, a etiologia. Se eu fiquei confuso para descobrir a etiologia da insuficiência cardíaca congestiva, do câncer, neste caso, então, declaro como causa indeterminada, criptogênica. Tão multifatorial que um único fator se dilui em meio a tantos outros que influem na vida de alguém. Vendo de longe, é claro que a pobreza e a desigualdade social estão na fundação de muitos desses problemas. Vendo de perto, a pobreza assusta mais do que pela televisão. Ela tem cheiro, tem som, tem lágrima. O que não parece ter, pelo menos não num futuro próximo, é solução. (Interno, 12o período)
A SM é, portanto, algo que ultrapassa a Psiquiatria, a engloba, mas não se restringe a ela. Na conceituação de Campos10 , a SM seria o campo e a Psiquiatria o núcleo especializado de saber. O núcleo de saber da Psiquiatria e seus diagnósticos podem e devem ser revistos no cenário da APS.
Classificações em SM na APS
No artigo “Classificações em Saúde Mental na Atenção Primária: mudam as doenças ou mudam os doentes?”12 , Fortes et al. apontam que:
[...] a SM na APS apresenta particularidades inerentes à sua prática, incluindo um perfil de clientela distinto daquela atendida nos serviços especializados. É muito abrangente, incluindo desde aspectos relacionados à construção de um modelo biopsicossocial de saúde e doença até o cuidado a pacientes com transtornos mentais graves. Abrange a abordagem do sofrimento emocional dos usuários e o desenvolvimento de intervenções terapêuticas interdisciplinares comunitárias, entre outros. (p. 191)
O principal argumento dos autores é que, sendo a APS a porta de entrada do sistema, os pacientes que ali aparecem são diferentes dos encontrados nos serviços especializados, com predomínio de queixas somáticas e com os determinantes sociais da saúde muito mais evidentes. Um dos riscos é que o profissional de saúde subestime essas queixas, considerando que são respostas “normais” às condições extremamente difíceis da população atendida ou que, ao contrário, sem saber muito o que fazer, acabe “medicalizando” o mal-estar, uma vez que não tem conhecimento e formação em outras terapêuticas que não a medicalização, além de pouca ou nenhuma integração com a rede intersetorial e de cuidados “informais”.
O usuário da APS busca o atendimento por inúmeros motivos, do pré-natal à gripe. Neste contexto, e como a equipe da ESF, incluindo o médico, conhece e acompanha toda a família, a vulnerabilidade e o mal-estar emocional podem ser percebidos precocemente e receber uma atenção antes mesmo que se cristalize em um diagnóstico psiquiátrico. Por esse motivo a classificação na APS deve contemplar não apenas as doenças em si, mas também os problemas que levam a pessoa a buscar a equipe da ESF. Existem de fato classificações específicas da APS, como a Classificação Internacional para Atenção Primária (Ciap) II e a CID específica de SM na APS.
Essas classificações são mais dimensionais do que categoriais, pois a diferenciação entre as diversas patologias é muito mais sutil, havendo grande prevalência de quadros mistos com sintomas de mais de uma patologia. [...] Quem ou o que pode ser considerado normal? Este dilema é válido tanto para problemas metabólicos [...], quanto para transtornos mentais12 . (p. 193)
Como não reduzir o sofrimento de um senhor que viu seu filho e sua mãe serem atropelados na linha do trem a um diagnóstico de depressão, mas ao mesmo tempo tratar dos sintomas depressivos que de fato ele apresenta? Como oferecer outras possibilidades terapêuticas? Além de ampliar nossos referenciais classificatórios, temos que ampliar nossos repertórios de possibilidades de intervenção na comunidade, sendo que a inserção na APS e sua integração com a SM nos favorecem.
A atenção biopsicossocial e a APS
Teria a atenção biopsicossocial algo a dizer para a APS e vice-versa?
Uma das atividades deste internato é a imersão durante duas semanas em um Caps, preferencialmente no serviço de referência da UBS ligada ao interno. Diários de campo de internos que passaram pelo Caps Magal em Manguinhos, RJ, ilustram como a vivência em espaços de cuidado que funcionem dentro da lógica da atenção biopsicossocial pode ser importante e transformadora na formação médica, bem como essa mesma lógica pode iluminar a APS.
Loucura sim: mas tem seu método.
Na quarta-feira começaria uma semana difícil, diferente, mas acima de tudo especialmente apaixonante: imersão no CAPS Magal. A primeira coisa que reparei ao entrar no CAPS foi que nas paredes estavam 2 citações de Nise da Silveira. Cheguei a rir sozinha parada de frente para as paredes do corredor de entrada tingidas por aquelas palavras às quais não ousaram nos expor no curso de psiquiatria da graduação em momento nenhum. [...] Aquela entrada acendeu uma luzinha de alegria que não se apagou mais durante toda semana: o CAPS ousa nos deixar experimentar. Fomos logo dando bom dia e nos apresentando aos pacientes que estavam sentados assistindo televisão. Conheci primeiro o Seu Edimar, um senhor aposentado com seus sessenta e tantos anos que adora escrever poemas, letras de música e compõe também suas melodias. Estava ele sentado com uma pasta amarela cheia dessas suas criações. Calvo, com uma barba grisalha rala, rugas da idade, uma voz aveludada temperada de uma dificuldade na articulação mecânica das palavras e um olhar bondoso e tranquilo. Foi o K quem fez questão de nos apresentar porque sabe que gosto de tocar violão e também dou meus pulinhos nas composições. Foi um “ match ” certo, quando dei por mim já estava ouvindo um de seus poemas e em seguida uma de suas canções. Fiquei mesmo impressionada com a capacidade de produzir beleza que ele tem. Ele me despertou para o fato de que ali talvez houvesse muitos artistas. Isso é um prato cheio para um Sarau! Foi o que imaginei na hora. (Interna, 11o período)
A desinstitucionalização é política prevista em lei, bem como se prevê respeito e proteção ao usuário de SM, mas posso dizer, com base nessa curta experiência em certas instituições de saúde, como o estigma sobrevive às custas de despreparo, ignorância, intolerância e ódio. Não raramente o adesivo “psiquiátrico” é colado próximo ao leito do usuário em um hospital, como uma espécie de advertência, de instigação à precaução e às vezes, como resultado de profundo desconhecimento sobre SM e psiquiatria. Em um plantão em uma unidade de terapia intensiva de um hospital municipal, evoluí uma série de pessoas com esse assombroso selo estampado em seus leitos. Lembro-me bem de ver uma senhora reproduzindo uma série de delírios de conteúdo persecutório e com algumas alucinações visuais. Em sua transferência para uma enfermaria, a senhora se pôs a clamar por socorro, extremamente assustada e perturbada. Dizia, berrava, estava certa que estavam planejando seu assassinato. Dois profissionais do setor transportariam a usuária de seu leito à maca e em tom extremamente jocoso, confirmavam seus temores, sim, mataremos a senhora. Riam. O olhar atônito da senhora está assustadoramente vivo em mim.
Não há razão de promovermos integração e socialização se não vemos o usuário de SM como ser digno de respeito. A luta contra a institucionalização carrega, sumariamente, uma luta por respeito e reconhecimento do usuário enquanto cidadão digno de pertencer à sociedade. O CAPS rompe aspectos do estigma tão logo adentramos na instituição. Não é um espaço propriamente amplo, mas é vivo, coberto por luz e cor. Os usuários da instituição, os funcionários e os profissionais de saúde usufruem dos mesmos espaços. (Interno, 11operíodo)
Diferente de todas as formas de terapia que conhecia até o presente momento, as oficinas surgem para me surpreender e proporcionar o que de mais valioso obtive no CAPS, até agora: a convivência com os pacientes com transtornos mentais.
Eu já disse, em outras oportunidades, que a prática médica faz, de fato, sentido para mim quando médico e paciente conseguem se reconhecer um no outro, mesmo que de forma sutil. Às vezes, não conseguimos reconhecer nem a humanidade de quem nos busca, sendo que apenas isso já poderia ser suficiente para um cuidado digno. Os espaços das oficinas vieram permitir que eu me reconhecesse naquelas pessoas, notasse semelhanças e compartilhasse dificuldades. O estigma do paciente com transtorno psiquiátrico o desumaniza e faz com que nos enganemos ao pensarmos que somos melhores ou superiores. (Interno,11operíodo)
Ao retornarem para a UBS depois da imersão no Caps, os internos estavam diferentes. Começaram a se questionar sobre os espaços de grupo da unidade, dentro e fora da clínica, de intervenções coletivas, de arte e de geração de renda. Todos esses são dispositivos terapêuticos possíveis e desejáveis na ESF e podem ser tão ou mais terapêuticos que um anti-hipertensivo ou um benzodiazepínico.
Isso é chamado de a lógica da atenção biopsicossocial arejando o trabalho desenvolvido nas UBS, recordando à própria UBS a potencialidade da APS, pois muitos desses princípios se aproximam dos princípios da APS. Por exemplo, a lógica da atenção biopsicossocial preconiza o trabalho em equipe, de forma transdisciplinar, na qual as diversas disciplinas, ao invés de se sucederem em uma lógica de complementaridade ou de sucessividade, interagem, construindo com a participação direta do sujeito um projeto terapêutico ou simplesmente de vida.
A questão do acesso é central, tanto na APS quanto na Atenção Biopsicossocial, pois ambas têm na responsabilização pela clientela de um determinado território o seu pilar. Não importa se o paciente e/ou a família vêm até o serviço: o importante é que o cuidado integral chegue até eles. O mesmo podemos dizer para a longitudinalidade, acompanhar o paciente ao longo da vida. No caso do Caps, esse acompanhamento será para os pacientes com transtornos mentais que necessitem de cuidados intensivos. Na APS, a longitudinalidade é para todos; acompanhar todas as famílias ao longo da vida. A integralidade diz respeito ao reconhecimento das necessidades de cuidado daquele indivíduo e, mesmo que o cuidado necessário não possa ser ofertado naquele nível de atenção à saúde, a viabilização desse cuidado deve ser feita pela APS. A coordenação do cuidado é como o maestro, que conduz a orquestra, mesmo não tocando todos os instrumentos; e exige uma grande parceria entre a APS e os demais níveis de atenção à saúde, incluindo os Caps.
Os aspectos derivativos dos princípios da APS (o fato de ser centrado na família, competência cultural e orientação para a comunidade)13 também são compartilhados pela Atenção Biopsicossocial, mostrando que a inter-relação entre ambas é enorme, assim como a capacidade de potencialização recíproca.
Cabe ressaltar que, não por acaso, os princípios que regem a APS e a SM se aproximam. São efeitos da reorientação da saúde brasileira dos anos 1990, as diretrizes normativas do SUS – universalização, equidade e integralidade –, bem como seus princípios organizativos – regionalização e hierarquização; e descentralização e participação popular.
Integração da SM na APS
Entre muitos outros elementos, uma das razões cruciais para a integração da SM na APS é a enorme lacuna no tratamento dos transtornos mentais. Estima-se que 32,2% dos pacientes esquizofrênicos, 56% dos deprimidos e 77% dos que fazem uso nocivo de álcool não recebem tratamento5 . A OMS aponta sete boas razões para integrar a SM na AP (WHO, 200814 ):
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A carga dos transtornos mentais é grande.
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Os problemas de SM e física estão interligados.
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O déficit de tratamento para transtornos mentais é enorme.
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Os cuidados primários para SM melhoram o acesso.
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Os cuidados primários para SM promovem o respeito pelos direitos humanos.
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Os cuidados primários para a SM são acessíveis em termos de custo e têm uma boa relação custo-benefício.
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Os cuidados primários para a SM geram bons resultados de saúde.
Em várias partes do mundo e no Brasil, a presença de pacientes com transtornos mentais na APS é bastante elevada. Estudo multicêntrico desenvolvido no Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Fortaleza com usuários da APS encontrou taxa de transtornos mentais entre 51,9% e 64,3%15 . Não restam dúvidas de que a formação dos internos em SM na APS tem sua razão de ser.
A complexa questão que permanece é formá-los para reconhecer e tratar transtornos mentais dentro de uma perspectiva do cuidado e/ou da Atenção Biopsicossocial, aproveitando a potencialidade que a APS oferece por estar mergulhada no contexto de vida dos pacientes e suas famílias.
Desafios
O primeiro macrodesafio é a mobilização e a resistência contra a descaracterização do SUS, da Atenção Básica e da política de SM.
O segundo tem relação com as equipes; estudos têm demonstrando alta taxa de burnout e depressão entre os profissionais da APS16 , 17 .
Entretanto, o maior dos desafios do nosso programa de formação médica em SM integrada à MFC nos é colocado quando, após seu término, alguns internos nos perguntam se o internato tem SM. “Onde estão as 11 semanas de SM previstas no internato? Por que não fazemos as 11 semanas de SM no Instituto de Psiquiatria?”
Esta é uma pergunta em aberto, a ser trabalhada. Pelo que apresentamos, parece-nos evidente que o melhor cenário para treinar futuros médicos generalistas em SM é a APS. Mas se essa pergunta nos é feita, então, não é uma evidência para todos. Precisa ser testada e construída.
Agradecimentos
Aos internos da faculdade de medicina da UFRJ André de Almeida, Kelvin Ribeiro, Larissa Jatobá, Pedro Vidinha Mendes, Nathalia Domingues pelo compartilhamento dos diários. Aos parceiros na construção do internato de saúde mental da UFRJ Alicia Navarro, Bruno Netto Reys, Carla de Meis, Clarisse Rinaldi, Erotildes Leal, José Henrique Figueiredo, Julio Verztman, Maria Cristina Amendoeira, Marina Mochcovitch, Mauricio Tostes, Octavio Serpa Jr, Sergio Levcovitz. A Helio Rocha Neto pela revisão do texto.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Set 2019 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
19 Mar 2019 -
Aceito
11 Ago 2019