Resumos
A partir de uma série de experiências de trabalho em situações de desastre, notadamente na região serrana do Rio de Janeiro, Brasil, no início de 2011, este artigo pretende contribuir com a reflexão a respeito da atuação do psicólogo em um contexto de desastres. Inicia-se por uma breve retomada histórico-institucional da questão no Brasil, para, então, apresentar algumas reflexões conceituais e práticas da saúde mental a esse respeito; e, por fim, discutir princípios e diretrizes de intervenção em situações de desastre, tendo como pano de fundo o cenário fluminense de janeiro de 2011. Pretende-se, com isso, argumentar que a intervenção do psicólogo num contexto de desastres deve ser articulada com outras instâncias, contextualizada e descolada da noção de traumatismo como principal operador da clínica.
Desastres; Emergências; Saúde Mental; Ação humanitária; Cuidado em Saúde
From a series of work experiences in disaster situations, especially in the mountainous region of the state of Rio de Janeiro, Brazil, in early 2011, this paper aims to present some reflections regarding the actions of psychologists in the context of disasters. It begins with a brief historical-institutional summary of this issue in Brazil and then presents some conceptual and practical reflections on mental health in this regard. Lastly, it discusses the principles and guidelines for interventions in disaster situations, with the backdrop of the scenario in the state of Rio de Janeiro in January 2011. The aim is to argue that interventions by psychologists in the context of disasters need to be linked with interventions of other types, contextualized and detached from the notion of trauma as the main operator in the clinical approach.
Disasters; Emergencies; Mental health; Humanitarian action; Health Care
A partir de una serie de experiencias de trabajo en situaciones de desastres, especialmente en la región de la sierra de Río de Janeiro, Brasil, a principios de 2011, este artículo intenta contribuir para la reflexión sobre la actuación de psicólogo en un contexto de desastres. Comienza con una breve reanudación histórico-institucional de la cuestión en Brasil para después presentar algunas reflexiones conceptuales y prácticas de la salud mental en ese sentido y, finalmente, discutir principios y directrices de intervención en situaciones de desastre, teniendo como telón de fondo el escenario en Río de Janeiro en el mes de enero de 2011. Se pretende, de esa forma, argumentar que la intervención del psicólogo en un contexto de desastres debe articularse con otras instancias, contextualizarse y separarse de la noción de traumatismo como principal operador de la clínica.
Desastres; Emergencias; Salud mental; Acción humanitaria; Cuidado en salud
Introdução
Este artigo busca refletir sobre a atuação do psicólogo em situações de desastre. Para tanto, percorre uma breve recapitulação das publicações e análises sobre desastres nos últimos anos, tanto no Brasil quanto no exterior, bem como sobre o papel da saúde mental nesses contextos. Em seguida, apresenta um relato de uma intervenção realizada na Região Serrana do estado do Rio de Janeiro, em janeiro de 2011, como exemplo para um breve debate sobre eixos fundamentais do trabalho dos profissionais de saúde mental – notadamente o psicólogo – neste tipo de situação. Ao fazer esse percurso, este artigo visa contribuir de maneira crítica com o crescente campo de reflexão e prática sobre os diversos momentos que envolvem a atuação em situações de desastre no Brasil, em particular, no campo da saúde mental.
Conforme Blanchot1, o desastre é um fenômeno que – do ponto de vista individual e coletivo – nos atravessa, nos arrebata, nos excede: não nos permite alcançá-lo totalmente, dá-se como um algo para além do que é possível pensar e representar naquele momento, exigindo um tempo e uma distância para ser, talvez, compreendido e elaborado. Nomeia-se como desastre aquele tipo de acontecimento trágico que é, por definição, coletivo, que envolve uma comunidade e/ou uma localidade. O que o termo ‘desastre’ circunscreve? Pode-se percorrer essa definição a partir, por exemplo, do histórico jurídico-institucional sobre o tema no Brasil.
A preocupação com os chamados socorros públicos a situações de calamidade pode ser encontrada no país desde a sua primeira carta constitucional, de 1824, ainda no período do império2. Essa preocupação irá se repetir em todas as cartas constitucionais subsequentes, porém foi apenas na década de 1940, em meio à Segunda Guerra Mundial e vendo-se tomando partido no conflito, que o governo brasileiro criou um órgão responsável pela proteção civil e pela atuação em situações de emergência e calamidade pública.
Desativada ao final da guerra, a Defesa Civil foi reestabelecida institucionalmente em meados de 1960, em decorrência de diversos episódios graves de seca na região nordeste do país e seguidos episódios de enchentes, sobretudo no então estado da Guanabara. Foi na década de 1970 que a Defesa Civil começou a constituir-se como órgão perene, não apenas vinculado a respostas assistenciais a desastres internos. Desde então, envolta em crescente debate nacional e internacional sobre o tema dos desastres, a Defesa Civil no Brasil veio se constituindo nos âmbitos federal, estadual e municipal2.
Atualmente vinculada ao Ministério da Integração Nacional, a Defesa Civil é pensada como um sistema que envolve órgãos e entidades: da administração pública federal, dos estados, do Distrito Federal, dos municípios e entidades públicas e privadas de atuação significativa na área de proteção e defesa civil, sob a coordenação da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, órgão do Ministério da Integração Nacional3,4. Pretende-se propor um conjunto de ações de prevenção, resposta e recuperação cujo objetivo é evitar e minimizar desastres, socorrendo a população e retomando a normalidade2.
Da perspectiva internacional, ainda na década de 1990, passou-se a valorizar a dinâmica da comunidade no sentido de minimizar os desastres e recuperar as perdas e danos, atentando-se para aspectos de vulnerabilidade econômica e social. Investiu-se, por exemplo, em estratégias de ação para a redução das vulnerabilidades, por meio da educação das comunidades. A Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu os anos de 1990 a 1999 como a Década Internacional de Redução dos Desastres5.
Na sequência, a conferência de Hyogo, em 2005, consolidou e promoveu estratégias de redução dos riscos e de desastres no âmbito internacional6. Essas estratégias buscam salientar a importância de perceber e atuar em todo o ciclo que envolve o desastre: a prevenção, a mitigação, a preparação, a resposta e a recuperação. Há, então, uma tentativa de refletir sobre os riscos, atuais e futuros, e sobre o papel das instituições e da sociedade em evitar novos desastres, trabalhando articulada e participativamente com as comunidades mais vulneráveis.
Tanto as mudanças internas na concepção e institucionalização da Defesa Civil no Brasil quanto os debates internacionais são marcados pela constatação de que, apesar de os desastres não serem novos para a humanidade, é notória a crescente compreensão de que muitos elementos contribuem para a existência de desastres, entre eles, as mudanças climáticas globais e a crescente vulnerabilidade das comunidades, provocada pela urbanização sem planejamento, pelo aumento da população global, das zonas de risco e das epidemias, além da crescente degradação do meio ambiente7. A modernidade é, então, equiparada ao aumento dos desastres, já que está intrinsecamente relacionada com a produção de riscos8,9. Conforme o órgão específico para desastres nas Nações Unidas, nas últimas duas décadas, mais de 200 milhões de pessoas foram afetadas por desastres, entre eles: enchentes, ciclones, furacões, tufões e deslizamentos de terra10. No caso do Brasil, pode-se observar que, nas últimas duas décadas, houve um aumento da ocorrência de desastres, de 8.671, nos anos 1990, para 23.238, na década seguinte, segundo dados governamentais11.
A fim de categorizar um fenômeno por “desastre”, a proposta atual da Defesa Civil é relacionar indicadores, dimensões e magnitude desse fenômeno, para possibilitar a elaboração de planos e estratégias compatíveis com a demanda real. Assim, a nomenclatura ‘desastre’ relaciona-se com a magnitude do impacto e com a capacidade existente no local para lidar com ele2. Valencio et al.12 (p. 5) sintetizam esse conceito: “[...] é, antes de tudo, um fenômeno de constatação pública, de uma vulnerabilidade na relação do estado com a sociedade diante o impacto de um fator de ameaça que não se conseguiu, a contento, impedir ou minorar os danos e prejuízos”.
Em outro trabalho, Valencio, Siena e Marchezini8 salientam que o significante ‘desastre’ precisa ser enunciado como crise, como ocorrendo em um tempo e em um contexto social, levando em conta, não menos do que os elementos quantitativos, o ponto de vista dos afetados pelo acontecimento.
Já Quarantelli13 afirma que o desastre não é apenas um ‘acidente mais grave’ do que usualmente acontecia em uma dada região: ele é caracterizado por quatro elementos importantes, tanto do ponto de vista individual como social:
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numa situação de desastre, mais instituições e grupos sociais são envolvidos no seu manejo, de maneira rápida, se comparado à situação de normalidade;
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durante um desastre, a comunidade atingida deve lidar com a perda relativa de sua autonomia e de sua liberdade de ação, ficando sujeita a normas excepcionais no que diz respeito, por exemplo, ao ir e vir e à sua rotina diária;
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a resposta a desastres costuma ser medida por indicadores diferentes dos da normalidade, por exemplo, no que diz respeito ao atendimento em saúde, aos prazos dados para a gestão de benefícios sociais e para a concessão de recursos para obras públicas;
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um desastre redefine as linhas divisórias entre o público e o privado: o desastre torna público o privado; é preciso, muitas vezes, intensificar e salientar a magnitude do sofrimento privado para legitimar a nomenclatura do evento público enquanto desastre13,14.
A saúde mental enquanto parte integrante da atuação em gestão de riscos e de desastres
Apesar do investimento de diversos países nas áreas de monitoramento e acompanhamento de possíveis desastres, é somente no final do século XX, com o amadurecimento da percepção do processo saúde/doença, que equipes internacionais de intervenção emergencial passam a incorporar, em seus trabalhos, o eixo da saúde mental14. No Brasil, sobretudo na última década, começou-se a considerar a saúde mental como ação crucial nas respostas a desastres8. A psicologia brasileira tem reunido esforços para refletir sobre o tema, como, por exemplo: com a realização do 1º e 2o Seminários Nacionais de Psicologia das Emergências e dos Desastres em 2006 e 2012; a criação da Associação Brasileira de Psicologia de Emergências e Desastres (ABRAPED) em 2012, e diferentes encontros organizados pelo sistema Conselhos de Psicologia desde 201015 .
De maneira mais ampla, a atuação em emergências e desastres insere-se na lógica da ajuda humanitária14,16. Por mais que não seja o objetivo deste artigo realizar uma genealogia deste campo de forças, é importante, para a compreensão e atuação do profissional de saúde mental em uma situação como essa, conhecer esse contexto.
A ajuda humanitária forma-se como campo de intervenção a partir da criação de organismos e legislações internacionais, sobretudo: o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, as Conferências de Genebra e, mais recentemente, as grandes entidades humanitárias, como a Médicos Sem Fronteiras e a Médicos do Mundo16,17. Essa lógica de intervenção tem como princípios, ao menos em sua base, a atuação imparcial, independente e neutra; no entanto, na prática, observa-se como esses princípios são dificilmente objetivados, até porque é cada vez mais comum o uso desse mesmo discurso humanitário por parte dos interessados nas situações de calamidade e conflito, como, por exemplo, os exércitos e os governos.
Para alguns autores, as ações de ajuda humanitária podem ser descritas por meio da existência de contradições inerentes ao seu discurso, tais como: a desigualdade (entre aquele que ajuda e aquele que é ajudado), a compaixão (que, além de servir de pretexto, serve, também, como mecanismo de controle e estratégia de poder a partir da moralidade inerente a ele), e os diferentes valores atribuídos a vidas diferentes16,18.
No campo da saúde mental, é o conceito de ‘traumatismo’ que aparece como operador fundamental do cenário de cuidado produzido em desastres, dentro deste contexto humanitário. Constatamos a existência de duas correntes de pensamento e intervenção que valorizam a ideia do traumatismo como principal resultado do desastre, e, assim, direcionam sua intervenção para lidar com ele de maneira individual ou em grupo, excluindo, por consequência, a intervenção nos fatores mais sociais e comunitários19. Encontramos, por outro lado, outras correntes que buscam valorizar justamente estes dois fatores, reservando a noção de ‘trauma’ para situações mais específicas, dadas sua menor incidência, e também – não menos importante – o risco de ele tornar-se a única forma de reação válida, no nível individual e social, para uma situação de desastre14,18,20. É nesta segunda forma de pensar (valorizando o contexto mais amplo) que se inserem as autoras do presente artigo.
A partir daí, como pensar a atuação do psicólogo em uma situação de desastre? Concordamos com Bezerra Júnior21, que afirma que há cada vez menos espaço em nossa cultura para significar o sofrimento. Dessa forma, a atuação do psicólogo nestas situações transita a tênue linha divisória entre a normalidade da reação de dor à perda e à crise, e a patologia, frequentemente usada como único mecanismo de legitimação da experiência do desastre.
Além disso, como chamaram a atenção Valencio et al.8, esta atuação deve levar em conta não apenas o sofrimento singular da pessoa afetada, mas, também, as políticas públicas que norteiam as ações de todo o ciclo de gestão de riscos e de desastres, procurando, assim, escapar de um olhar individualizante que deixe de lado o contexto sócio-histórico-político em que o ‘traumatismo’ pode se dar. Na medida em que estes pontos elencados acima são considerados, se faz importante ponderar ainda que a saúde mental precisa ser pensada como algo indelegável a um sujeito único, mas pensado de forma múltipla, analisando-se os distintos significados atribuídos de forma singular e coletiva ao evento experienciado.
As situações de emergências e desastres, na medida em que geram, muitas vezes, grandes deslocamentos populacionais, também tocam o campo de debates da psiquiatria cultural e da etnopsiquiatria, sobretudo no contexto internacional. Tal corrente de pensamento, representada por autores como Frantz Fanon, Georges Devereux, Tobie Nathan e Marie-Rose Moro, entre outros22, apesar das diferentes nuances que apresenta, procura basear sua compreensão do sofrimento do ‘estrangeiro’ (do ‘desconhecido’) em seus próprios modos de vida e explicações culturais, religiosas e morais.
Esta vertente da saúde mental, que tomou força com o final da colonização de vários países africanos no século XX, e do consequente aumento do volume de estrangeiros que buscam nova vida nas metrópoles europeias, tem sido importante para a reflexão sobre a atuação do psicólogo em emergências e desastres: esta ação também precisa se fundamentar nas experiências, nos modos de vida, nos modelos de cura e de elaboração das pessoas a quem ocorre viver uma emergência, e não, simplesmente, de modelos ocidentais previamente impostos ou delimitados internacionalmente.
Este debate – que não se restringe, no campo da saúde mental, à área das emergências – sem dúvida mostra-se fundamental quando se pensa que boa parte dos grupos que atuam no momento em emergências de grande porte é constituída por profissionais externos ao local do desastre. Stolkiner23 também apresenta alguns indicadores de saúde mental que podem auxiliar a pensar estratégias de atuação em desastres, tais como: a preocupação em analisar o nível de participação social e de estruturas organizadas para possibilitar essa efetiva participação, a adequada percepção do sentido de ser protagonista na produção do próprio cuidado, bem como a inserção em redes de solidariedade comunitárias.
Foi observando o cenário nacional concernente aos desastres, bem como a necessidade de ampliação dos diálogos e estudos que permeiam esta temática, e fomentado por algumas das produções das autoras20 em diversos âmbitos e instituições em diferentes países, que pensou-se em apresentar uma situação prática de intervenção realizada por duas das autoras (Silva e Vicente) do presente artigo, entre outros profissionais, como dispositivo de análise sobre intervenções em saúde mental em situações de desastre. Para este fim, relatamos, a seguir, uma experiência de intervenção na Região Serrana do Rio de Janeiro.
Contexto da intervenção
O acontecimento tratado aqui pode ser explicado por uma conjunção de fatores, como a combinação de chuvas intensas e intermitentes com as características geológicas de um solo instável, as condições precárias de moradia, a falta de planejamento urbano e de prevenção a desastres. Observou-se, na Região Serrana do Rio de Janeiro, no início de 2011, um deslizamento de centenas de milhares de toneladas de terra após fortes chuvas na região, causando, ao menos, 912 óbitos, e deixando mais de 45 mil pessoas desabrigadas e desalojadas11.
As áreas mais afetadas se concentraram nas cidades de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, e, embora situação similar já tivesse ocorrido nos anos 1980, quando centenas de deslizamentos ocasionaram a morte de vinte pessoas nas proximidades de Teresópolis, este foi considerado o pior desastre já registrado em território nacional até o momento11.
No âmbito de uma organização de ajuda médico-humanitária internacional existente há quatro décadas, presente no Brasil desde 1991 (que se propõe a agir de forma independente, imparcial e neutra), as autoras atuaram na frente de saúde mental como parte de uma equipe que era composta por: uma coordenadora de Saúde Mental, um coordenador médico, um coordenador logístico, duas psicólogas, dois médicos, uma enfermeira e um logístico.
Destacamos, abaixo, no relato desta situação prática de intervenção, os principais eixos norteadores usados para a produção do cuidado de saúde mental na cidade de Nova Friburgo, realizado em parceria com: a Coordenação de Saúde Mental da Secretaria de Saúde de Nova Friburgo, Universidade Estácio de Sá, Conselho Regional de Psicologia e voluntários municipais, especificamente nos bairros de Alto da Floresta, Amparo, Campo Coelho, Centro, Chácara do Paraíso, Córrego Dantas, Jd. Califórnia, Olaria, Ruy Sanglard, São Geraldo, Stucky e Village:
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Tomada de conhecimento do Plano de Contingência Municipal de Saúde e do Plano de Contingência Nacional para Desastres por meio da identificação e diálogo com representantes da Coordenação de Saúde Mental de Nova Fribugo nas primeiras 72h após o desastre e, posteriormente, por meio do contato com o Comitê Operativo de Emergência em Saúde do Ministério da Saúde (COE). Os planos destacavam a medida de direcionamento do “atendimento às pessoas vítimas de trauma e estresse”, porém não se remetiam à preparação das equipes locais para o atendimento de saúde mental em situação de desastre;
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A primeira avaliação realizada pela equipe de nossa organização externa que chegou no território e constatou a magnitude do desastre e as demandas de atendimento à saúde correlatas;
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Esta equipe também realizou um diagnóstico e avaliação da estrutura existente para resposta ao desastre, levando em conta: organização do sistema de saúde local que havia antes e durante o desastre, estrutura da gestão local, estadual e federal, profissionais disponíveis (voluntários e/ou contratados), qualificação dos profissionais, estrutura física e funcional dos serviços, política pública implantada, acesso da população aos serviços, planejamento geral de resposta no território;
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Com base nisso, nossa equipe estabeleceu o modelo da intervenção, com ênfase: 1) Na população (cuidado na perspectiva pragmática e não intrusiva, considerando o nível de participação social e estruturas organizadas, como associações de moradores e instituições religiosas); 2) Nos gestores (auxílio na estruturação da estratégia intersetorial junto ao coordenador de saúde mental do município, adaptada de acordo com resultados do diagnóstico e demais percepções do gestor); 3) Nos trabalhadores (suporte técnico às equipes da rede SUS, voluntários e/ou demais cuidadores, por meio de treinamentos e discussão de casos); 4) Na qualificação dos atores de saúde (formação em ato); 5) Na sensibilização à população (informação em saúde mental com uso de panfletos e contato com líderes locais).
Partindo do princípio de que a coordenação de uma intervenção em situação de desastre deve ser única e articulada com todos os órgãos, instituições e pessoas que dele fazem parte2, grande parte da intervenção foi baseada no fomento à articulação em torno do Comitê Operativo de Emergência (organizado pela Defesa Civil) e de uma estratégia de saúde mental adaptada às necessidades da população e compatível com a execução pelos atores regionais e nacionais disponíveis. Participamos e articulamos reuniões com os psicólogos locais e regionais, entre outros integrantes de universidades federais e privadas, somados aos trabalhadores do SUS dos municípios afetados e a outros voluntários que se apresentaram na região.
Para estabelecer um alinhamento entre conhecimentos técnicos e visão estratégica do projeto, com o intuito de disponibilizar novas ferramentas para operar o trabalho em saúde mental, fomentamos encontros de formação e trocas de experiências entre os psicólogos que já haviam iniciado os atendimentos aos afetados, além de simulações de possíveis cenários para as semanas que se seguiriam. Esses encontros tiveram como principal objetivo refletir sobre princípios básicos acerca de como trabalhar em uma situação de emergência e desastre, e foram nomeados como ‘treinamentos’.
Para se compreenderem as demandas oriundas do sofrimento psíquico e as possibilidades de cuidado efetivo, num caráter coletivo, comunitário, familiar e individual, a estratégia proposta e acordada em conjunto com os psicólogos locais foi realizada, no território, por meio da busca ativa conduzida por um grupo de psicólogos voluntários, que tinham, como papel principal, a articulação com atores sociais, dentre eles Agentes Comunitários de Saúde, líderes espirituais e líderes comunitários.
Em contato com a Defesa Civil local, Secretaria Municipal de Saúde e tendo participado previamente de um treinamento para um primeiro acolhimento psicológico em situações de desastres, que contribuiu para a adoção de uma escuta diferenciada, esse grupo pôde informar às comunidades sobre o fenômeno do desastre, realizar grupos de escuta e informar sobre os pontos de atendimento em saúde mental da rede SUS.
Essa estratégia também funcionou como um dispositivo para se compreenderem: as demandas emergenciais da população local, os meios já disponíveis na cidade, a qualificação técnica dos profissionais e voluntários que ali se encontravam, a rede de saúde pública disponível e operante no terreno, além da compreensão dos instrumentos e mecanismos de enfrentamento utilizados pela população local. Tendo em vista a presença das três instâncias federadas de governo durante a intervenção, essa atividade se deu por meio de encontros sistemáticos com as três esferas, a fim de se compreenderem as linhas de cuidado a serem desenvolvidas para a resposta ao desastre.
Como forma de apoiar a intervenção dos atores locais, optou-se por acompanhar os psicólogos do SUS e voluntários durante essas primeiras aproximações pós-desastre com as comunidades, em locais como igrejas e abrigos nos bairros citados. Essa foi uma das maneiras encontradas para apoiar o trabalho das equipes locais.
Durante as visitas e nas discussões com os profissionais locais foram utilizadas, na abordagem direta com a população afetada pelo desastre, informações escritas sobre o fenômeno, por exemplo: o que é um deslizamento, como ocorreu, reações físicas e psíquicas esperadas, orientações sobre como se preparar emocionalmente para enfrentar as dificuldades vivenciadas naquele momento e nas semanas que se seguiriam, entre outros conteúdos, sempre em companhia dos profissionais locais e direcionando a população afetada às estruturas comunitárias e municipais existentes.
Nossa intervenção durou, no total, cerca de trinta dias; findo este prazo, optou-se por delinear uma estratégia de saída da organização do município afetado, ao ser constatado que: (1) já havia um número suficiente de atores responsáveis pelo cuidado em saúde mental atuantes na região, (2) os atores envolvidos no processo participaram da construção da estratégia de atendimento em saúde mental para a cidade de Nova Friburgo, e conheciam as reações esperadas após um desastre, além, é claro, de já serem profissionais qualificados para atuarem na área, (3) já haviam iniciado os trabalhos de maneira articulada junto às comunidades, e, por fim, (4) os atendimentos dos serviços de saúde mental da rede do Sistema Único de Saúde já haviam sido reestabelecidos dentro da rotina padrão do município.
O acompanhamento técnico virtual (por e-mails) e telefônico (para gestores e/ou voluntários) foi mantido por quatro semanas por nossa equipe após a saída da região. Como atividade de encerramento da estratégia, realizou-se uma apresentação da intervenção desenvolvida para os gestores do Ministério da Saúde e Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, para que os responsáveis pela coordenação geral deste processo de cuidado estivessem cientes do que foi feito.
Considerações gerais sobre a intervenção
Sobre essa intervenção, quatro pontos específicos merecem maior atenção: o objetivo da intervenção, o tempo de duração, a relevância e o impacto.
O objetivo da intervenção citada como exemplo foi apoiar o restabelecimento das redes comunitárias e públicas de saúde mental, atuando com os profissionais e com a gestão da intervenção, mais do que intervindo diretamente com as comunidades afetadas. Avaliou-se, no momento do diagnóstico, que era uma região que contava não só com redes de cuidado em saúde estabelecidas, como com profissionais qualificados e com comunidades relativamente organizadas em seus modos de solidariedade e apoio psicossocial.
Quanto ao tempo de intervenção, de cerca de trinta dias, iniciado logo após o acontecimento trágico, considerou-se que, dado o contexto local e o volume de entidades governamentais e não governamentais presentes, o prazo de trinta dias tornava-se adequado para cumprir com o objetivo principal da intervenção. Desenvolver um cuidado a médio e longo prazo poderia se constituir em uma fragilização das estruturas locais; visto que poderia ser criado um ambiente de ‘competição’ pela clientela e, ainda mais, causar uma falsa percepção de ausência de problemas de saúde mental nos municípios, já que atividades realizadas por outras instâncias não passariam por instrumentos de registro e avaliação específicos do sistema de saúde local. Entendeu-se, também, que uma intervenção longa e apenas baseada no ‘atendimento às vítimas’ poderia estimular a dependência de auxilio externo e constituir um desestímulo às equipes locais.
De acordo com as considerações das equipes locais sobre a relevância da intervenção, esta foi de importante apoio para os primeiros atendimentos aos afetados, visto que parte dessas equipes locais encontrava-se com dificuldades de compreender as demandas prioritárias das comunidades atingidas nas primeiras 72 horas pós-desastre.
Assim, o impacto da intervenção que realizamos pode ser analisado em duas vertentes: a individual e a comunitária. Do ponto de vista do sujeito individual, o impacto de uma estratégia terapêutica pode ser analisado dentro de parâmetros físicos, mentais ou emocionais. Partindo do princípio de que um desastre causa rupturas e/ou perdas abruptas das redes socioafetivas, destruição de bens materiais, adoecimentos, entre outras significações pessoais, espera-se que muitas reações, interpretadas, em situações rotineiras, como bizarras e/ou graves, sejam desencadeadas num curto período após o marco zero do desastre, potencializando, mas não necessariamente acarretando, possíveis transtornos e/ou reações exacerbadas e surpreendentes. As manifestações psicológicas podem se apresentar de forma multifacetada, como, por exemplo, episódios de desorganização psíquica e ansiedade com duração e temporalidade variável. Situações de grandes mudanças inesperadas e abruptas, como as vividas em desastres, em geral, excedem a capacidade de respostas das pessoas e as confrontam com uma grande sensação de angústia, desamparo e desconhecimento18. De acordo com os relatos dos profissionais locais, reações como essas foram encontradas durante a presente intervenção. Frente a situações decorrentes de perdas repentinas de referências, as equipes locais do Sistema Único de Saúde, em colaboração com outros voluntários, foram estimuladas a elaborarem dispositivos de atenção e cuidado para auxiliar no enfrentamento dos desafios de reconstrução da vida física, pessoal, familiar, social e comunitária dos afetados.
Neste sentido, os impactos comunitários, assim como os impactos individuais, podem ser significados de distintas formas, a depender do histórico sociocultural, bem como das estruturas que impactam na resiliência de seus integrantes. A perda de muitos membros de uma comunidade, de seus símbolos e referências materiais, acarreta impactos que podem dificultar na reconstrução a curto e médio prazo, mas que, também, podem potencializar a capacidade de fortalecimento social, criando novas oportunidades de fortalecimento de laços sociais que despertem o sentimento de pertença e cuidado coletivo. Percebeu-se como fundamental a participação da comunidade no processo de reflexão sobre a reconstrução local, tanto do ponto de vista da garantia de seus direitos quanto como maneira de elaborar suas perdas e necessidades de reorganização emocional naquele coletivo.
Considerações finais
Por meio dessa estratégia de intervenção e cuidado, procurou-se salientar a importância de se estruturar uma intervenção de forma contextualizada e articulada com os mecanismos locais (públicos, essencialmente, mas, também, de organizações privadas) de manejo da crise. As sugestões e considerações feitas aqui são baseadas nessa experiência e em outras realizadas pelas autoras, como possibilidade de servir de base para outras intervenções, porém, é claro, de maneira adaptada e contextualizada com cada situação a ser enfrentada.
A ação do psicólogo, independentemente de onde ela parta (se profissional do Sistema Único de Saúde; se voluntário; se membro de alguma universidade ou outra instituição de ensino; se como membro de alguma organização não governamental), deve estar articulada de forma integral a uma estratégia que envolva diferentes atores na resposta ao desastre. Em outros termos, é de suma relevância que o/a profissional não aja sozinho, tampouco desconheça a estratégia a priori determinada nos níveis social, de saúde e educação, para mitigar e/ou responder à demanda gerada pelos desastres.
Em situações de emergência, as necessidades básicas das pessoas – comida, água, abrigo, um mínimo de conforto físico e emocional – devem estar supridas em primeira instância, assim como não se deve perder de vista o horizonte da garantia de direitos sociais básicos. Essas são, também, ações de saúde mental, ainda que não desempenhadas exclusivamente por psicólogos.
A intervenção deve ter, como um de seus pilares fundamentais, propostas de elaboração dos sofrimentos gerados pelo desastre (realizada pelos vários atores, e não só pelo psicólogo) e, também, a construção da autonomia e dos laços sociais (das comunidades, grupos de pessoas e autoridades envolvidos). O papel do profissional da saúde mental é composto por: escutar as demandas, conhecer o local para conhecer a oferta de serviços, articular e pensar formas de sustentabilidade destas ações, levando sempre em consideração os fatores já mencionados da presença – lógica e esperada – do desespero, da tristeza, da dor e do luto.
Grande parte da população atingida padecerá de sofrimento intenso, mas encontrará conforto e apoio em suas estratégias comunitárias e cotidianas. Em seguida, haverá casos que poderão ser beneficiados com uma escuta especializada, onde poderá estar o psicólogo, e, em muito menor volume, haverá casos que necessitarão, até mesmo, de uma intervenção médico-farmacológica específica em saúde mental.
Vale ressaltar, como mostram Fassin e Rechtman14, que, frequentemente, são aqueles já mais vulneráveis – como os pacientes psiquiátricos, os moradores de rua, os desassistidos antes da catástrofe – que mais sofrem e que são menos percebidos pelas ações humanitárias.
A falta de segurança e o medo provocados pela situação emergencial podem ocasionar conflitos de várias espécies: sociais, grupais, familiares. Porém, não cabe ao psicólogo externo o papel de substituto do serviço de saúde existente, e sim o de articulador – especialmente, levando-se em conta os psicólogos voluntários e/ou membros de organizações não governamentais que se apresentam a agir nestas situações –, pois esta ação termina apenas por ‘beneficiar’ ao psicólogo ele próprio, e não à comunidade atingida, uma vez que, ao término da intervenção deste voluntário, a comunidade perderá com o não-fortalecimento de uma rede de apoio local.
O psicólogo pode e deve colaborar com as ações de prevenção e avaliação da atuação das entidades (governos, ONGs, grupos) em situações de emergência. A emergência exige rapidez de atuação e de resposta, e, por isso, o processo de ensino e aprendizagem precisa ser desencadeado, preferencialmente, antes da existência de um desastre, visando a preparação e a reflexão sobre a saúde mental e seus mecanismos de intervenção.
Nesse sentido, cabe a advertência fundamental de Valencio24: a intervenção do profissional de saúde mental irá depender de sua concepção e compreensão dos diversos discursos que envolvem a conceituação de uma situação como um “desastre”. Dessa forma, é imprescindível atentar para o risco de estigmatização e culpabilização da população afetada pela sua própria condição de “vulnerável”, apostando, ao contrário, em uma abordagem socioparticipativa e de garantia de direitos, a fim de minorar, efetivamente, a existência dos riscos de desastres.
Ao considerar o cuidado direto da saúde mental para com a população afetada, o psicólogo conta com uma gama extensa de propostas terapêuticas nas mais diversas linhas teóricas e ideológicas, sobretudo a partir do uso e abuso da noção de traumatismo. A presente intervenção pretendeu estar de acordo com uma perspectiva crítica a esse respeito, buscando se afastar da perspectiva de sujeito “traumatizado” e restrito a um coletivo de sintomas.
É fundamental reforçar a posição da importância de se considerarem: o sujeito, o contexto, o drama, a história, as relações, o entorno, as condições e estratégias comunitárias e sanitárias do local. A recuperação das referências, a reorganização social, a colaboração com as equipes, com as estratégias as mais diversas de suporte às instâncias da vida cotidiana, são fatores essenciais para a (re)produção das identidades dos afetados nessas situações e, por conta disso, a ação do psicólogo precisa se inserir nessas estratégias de articulação.
Um marco do debate sobre a ação humanitária, em geral, e a ação em emergências, mais especificamente, é o seu caráter multidisciplinar. Quase como um ‘sinal dos tempos’, a discussão sobre a atuação nestas situações não deve se furtar à transversalidade dos saberes, olhares, pontos de vista: deve ir além das disciplinas clássicas e saber ‘ler’ e ‘integrar’ outras formas de pensar. Não é justamente este um dos pontos que se demanda àquele que sofreu uma crise (inesperada, não avisada, violenta, súbita)? Que (re)construa seu olhar sobre o mundo articulando (e não negando, apagando, subtraindo) estas outras vivências? Tem sido este o caminho da construção e desconstrução de vários operadores da ação em emergências, e é fundamental observar a amplitude dos campos de pensamento sobre o assunto para poder promover, enquanto profissional de saúde mental, a elaboração e a construção de uma nova vida para além da crise.
Referências
- 1 Blanchot M. La escritura del desastre. Caracas: Monte Ávila Latinoamericana; 1987.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Fev 2015 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2015
Histórico
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Recebido
29 Jul 2014 -
Aceito
10 Set 2014