O texto extremamente instigante de Chiara Pussetti, intitulado “Nós, pós-humanos: da gênese à liberdade”, abre uma intensa reflexão ética e sociopolítica sobre os caminhos que se multiplicam na atualidade diante do fascínio humano com as biotecnologias, as quais condensam promessas de várias ordens: de (não)fazer nascer assim ou assado, de tratar, preservar ou recuperar a saúde e a vitalidade corporal até a gestão da morte individual ou coletiva.
Decerto, os contornos da leitura e as inquietações surgidas com o texto têm a marca precisa do momento presente neste ano de 2021, em um contexto peculiar, o Brasil. Escrevo sob forte impacto psíquico, físico e afetivo provocado pelas infinitas dores que a pandemia de Covid-19 nos traz em distintos contextos socioculturais, econômicos e políticos. Radicada no Brasil, torna-se impossível não pensar na extrema desigualdade social, racial, étnica, de gênero, geracional que se aprofunda e escancara nossas feridas mais profundas: o colonialismo, o racismo estrutural, a necropolítica que nos abate cotidianamente seja pela violência urbana ou do Estado policial, seja pela ausência de uma política pública séria de enfrentamento da pandemia, provocando o genocídio de um povo multicultural.
Após um ano mergulhada na pandemia, ela se impõe como algo inexorável à nossa reflexão sobre a existência humana, as dimensões do humano e nossas incompletudes, a finitude diante da morte próxima, a impotência ou pequenez do humano diante da biosfera. A recriação ou a reinvenção do humano (pós-humano) precisará refazer os elos entre Ciência, técnica/tecnologia, arte e natureza para recriar/preservar a vida em diferentes espécies11 Tsing AL. O antropoceno mais que humano. Ilha. 2021; 23(1):176-91..
Em momento crítico da saúde global, o cuidado de si e do outro próximo, bem como da coletividade, tomou dimensões avultosas. Viver, respirar, sobreviver em tempos de distanciamento social e isolamento em nossas bolhas, redes sociais mais estreitas, tem sido nosso maior desafio. Assim, o mantra da “vida saudável” ou “mais perfeita”, como um valor moral individual que se impõe na contemporaneidade como responsabilidade do sujeito22 Crawford R. Healthism and the medicalization of everyday life. Int J Health Serv. 1980; 10(3):365-88., engloba múltiplos esforços de aperfeiçoamento (enhancement) ou redesign corporal que incluem desde procedimentos estéticos até os de recuperação da saúde propriamente ditos. Nesse sentido, o título do projeto de investigação coordenado por Chiara Pussetti, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, “Excel. The pursuit of excellence. Biotechnologies, enhancement and body capital in Portugal”, condensa uma genealogia do que compreendemos em cada tempo histórico por “excelência” ou “perfeição” ou “beleza”. Como a autora bem considera em seu texto, forjado no e pelo mercado capitalista, sob a ótica neoliberal, ou seja, sob a égide do empreendimento de si mesmo, fomentado pelas mídias digitais e corporações farmacêuticas, esse “tipo ideal” do humano tem cor, raça, classe social, gênero, idade e sexualidade desejáveis, estabelecendo um padrão normativo que violenta e aniquila os diferentes.
A meu ver, o texto oscila entre duas vertentes, cabendo desenvolver mais a passagem de um argumento a outro, construindo mediações entre eles: a acertada relativização do humano como padrão universal inato e a entusiasta visão sobre a liberdade individual e a capacidade de autodeterminação humana na (re)construção de si.
Coerente com o paradigma pós-humanista, a autora dessacraliza o humano, contextualizando-o em suas configurações históricas, políticas e socioculturais. Aborda os limites e problemas do que conhecemos como “humano” em suas virtudes. O ideal humanista universal é branco, masculino, ocidental, eurocentrado, jovem, heterossexual, cosmopolita, racional, civilizado. Somos sujeitos forjados pela e na cultura, com suas marcas precisas que nos tornam quem somos (e quem queremos ser), mas também somos capazes de nos moldar, alterar, transformar nossa “humanidade” em processos de aprendizados sociais e de cultivo de novas qualidades cognitivas, estéticas, corporais. Nesse sentido, há um imenso potencial nas práticas educativas e artísticas no tocante à abertura de nossos horizontes para a multiplicidade de existências possíveis em vez de reificarem modelos rígidos normativos consagrados. Aceitar a alteridade e fazer dela um exercício de compreensão e valorização do outro diferente, dentre muitos humanos possíveis, seria também um exercício de liberdade.
A complexidade da pandemia de Covid-19 em seus desdobramentos cotidianos realçou as cores dos constrangimentos sociais em nosso livre-arbítrio em prol de um sentido coletivo de convivência comunitária. E não parece que estamos nos saindo bem... Quem define o “ser humano ideal” em tempos de exacerbado individualismo? Como atingi-lo? Quem pode alcançá-lo? Que liberdade dispomos para manejar prescrições sociais introjetadas que reificam um certo padrão de humano, do saudável e de beleza? Se convivemos com um cenário de acentuada estratificação social, matizado pelo racismo, xenofobia, sexismo, homo e transfobia, como falar do “potencial de liberdade e responsabilidade na escolha dos seus futuros possíveis”? Estaríamos sonhando ou transformando nossos desejos em realidade?
Em contextos de muita precarização social e de vulnerabilidades dramáticas como no Brasil, “a possibilidade de ultrapassar os limites da Biologia e redefinir corpos e subjetividades” ao lançar mão de tecnologias médicas para fins terapêuticos e para a realização de um ideal de perfeição parece ainda muito distante a muitas pessoas.
Decerto, a expansão desse processo de biomedicalização da vida tem sido um aspecto impregnante da cultura contemporânea, havendo certa democratização de alguns procedimentos a um conjunto maior de pessoas, mas não chega a ser ao alcance de todos. O exemplo da corrida pelas vacinas anti-Covid-19 ilustra os limites da democratização do acesso às biotecnologias em contextos adversos. A liberdade para redesenhar o corpo ou futuros possíveis esbarra no Brasil, por exemplo, no impedimento do aborto às mulheres que queiram fazê-lo. Ou na violência obstétrica e no desamparo estatal ferindo o direito de parir e criar filhos com dignidade.
No Brasil, há um panorama sui generis no tocante aos fluxos de produção de desejos de mudança individual circulantes entre o setor público de saúde e o setor privado (em suas muitas variantes, desde o popular até o altamente elitizado). Há um trânsito muito grande entre profissionais de saúde, especialistas, usuários/pacientes e procedimentos médicos para tratamentos de saúde, cosméticos ou cirúrgicos entre ambos os setores, evidenciando um lado menos glamouroso e nada subversivo desses processos de inovação tecnológica e/ou medicamentosa para aperfeiçoamento do “humano”. Em geral, a captação de sujeitos para serem contemplados com o acesso a novas tecnologias médicas em determinados serviços de saúde utiliza tal população para treinamento de novos quadros profissionais, teste de novas tecnologias, aperfeiçoamento da técnica em questão em corpos geralmente pobres e negros, destituídos de outro modo do acesso voluntário a tais procedimentos. Esses expedientes quase sempre desvelam pressupostos racistas, classistas, até mesmo de caráter eugênico, embora tais dimensões sejam imiscuídas na dimensão filantrópica ou pública do empreendimento33 Jarrín A. The biopolitics of beauty: cosmetic citizenship and affective capital in Brazil. Oakland: University of California Press; 2017., 44 Sanabria E. Plastic bodies. Sex hormones and menstrual suppression in Brazil. Durham: Duke University Press; 2016..
Embora a autora realce a dimensão subjetiva da incorporação dessas biotecnologias na direção do aprimoramento corporal, conformando assim novas subjetividades, gostaria de ressaltar uma dimensão mais exterior desse mesmo processo, que também forja subjetividades modelares de modo mais dirigido, ou menos voluntário. Em um momento, a autora se pergunta: “Quais são as lógicas, os limites e as ameaças das manipulações corporais?” São muitas. Em nome de uma pseudoescolha voluntária esconde-se coerção, em nome de “acesso à modernidade, à cidadania” subtraem-se direitos. As tecnologias reprodutivas ou contraceptivas55 Roberts DE. Race, gender, and genetic technologies: a new reproductive dystopia? Signs. 2009; 34(4):783-804., 66 Brian JD, Grzanka PR, Mann ES. The age of LARC: making sexual citizens on the frontiers of technoscientific healthism. Health Sociol Rev. 2020; 29(3):312-28., entre outras, como as tecnologias de imagem77 Fonseca C. Crianças, seus cérebros... e além: reflexões em torno de uma ética feminista de pesquisa. Estud Fem. 2019; 27(2):e56169. e as pesquisas clínicas que arregimentam voluntários entre populações consideradas vulneráveis88 Castro R. Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica. São Paulo: Hucitec, ANPOCS; 2020., podem ser aqui exemplos importantes. Está em questão a dimensão ética desses usos (e abusos) e quanto desejos, aspirações e projetos são moldados pelo biocapital.
O terreno do controle e da disciplina corporal é um vasto território para se inculcar um certo ethos de classe que julga moralmente comportamentos, práticas corporais, sexuais, reprodutivas, alimentares, de lazer e de sociabilidade segundo modelos hegemônicos de perfeição, condenando e discriminando aqueles que não “aspiram” ou se distanciam de tais modelos.
Como a autora bem expressa, trata-se “da adoção de ideais liberais de cidadania responsável, autonomia, empoderamento e capacitação. Estamos a falar em valores, aspirações, desejos e atitudes individuais que estão ligados a um modelo de corpo-norma, a consumos e a modos de vida específicos, ligados à imagem utópica do sucesso, do prestígio, da sedução e da mobilidade social”.
Ainda assim, os “regimes de esperança” citados são ainda entre nós ilusórios ou utópicos. As expectativas de se recriar como humano colidem brutalmente com a luta árdua pela sobrevivência em meio à precariedade, a qual lhes destitui a beleza, a saúde e até mesmo a vida.
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Brandão ER. Os limites da liberdade. Interface (Botucatu). 2021; 25: e210156 https://doi.org/10.1590/interface.210156
Referências
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1Tsing AL. O antropoceno mais que humano. Ilha. 2021; 23(1):176-91.
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2Crawford R. Healthism and the medicalization of everyday life. Int J Health Serv. 1980; 10(3):365-88.
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3Jarrín A. The biopolitics of beauty: cosmetic citizenship and affective capital in Brazil. Oakland: University of California Press; 2017.
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4Sanabria E. Plastic bodies. Sex hormones and menstrual suppression in Brazil. Durham: Duke University Press; 2016.
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5Roberts DE. Race, gender, and genetic technologies: a new reproductive dystopia? Signs. 2009; 34(4):783-804.
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6Brian JD, Grzanka PR, Mann ES. The age of LARC: making sexual citizens on the frontiers of technoscientific healthism. Health Sociol Rev. 2020; 29(3):312-28.
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7Fonseca C. Crianças, seus cérebros... e além: reflexões em torno de uma ética feminista de pesquisa. Estud Fem. 2019; 27(2):e56169.
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8Castro R. Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica. São Paulo: Hucitec, ANPOCS; 2020.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Jul 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
01 Mar 2021 -
Aceito
16 Mar 2021