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Saúde Coletiva: (re)afirmações e (re) combinações para seguir na defesa da vida

Collective Health: (re)affirmations and (re)combinations to continue defending life

(Re) afirmaciones y (re) combinaciones de Salud Colectiva para seguir defendiendo la vida

Muitas e muitos perceberam na pandemia oportunidades. O mundo devastado pelo capitalismo que submete o planeta a regras do utilitarismo poderia, enfim, ser colocado em questão e oferecer uma oportunidade para colocar a nós mesmos em análise. Esse é o mote do texto, que nos convida para um diálogo de problematização tomando o Sistema Único de Saúde (SUS), a Saúde Coletiva e a Atenção Básica; e fixa o debate considerando que não há volta para o mundo anterior e, então, insistir em análises e agendas pré-pandêmicas seria o anúncio de (novos) fracassos.

O texto propõe que façamos esse exercício na Saúde Coletiva: chacoalhemos a tudo para nos desinvestirmos de apetrechos que estorvam percepções e borram a visão, para fazer brotar um novo atualizado e revigorado, coerente com as exigências colocadas pela realidade que se reafirma caótica. Li o texto muitas vezes e isso me permitiu ir percebendo que estava diante de um escrito inteligente e instigante, que convoca pensar presente e futuro convidando para que nos livremos de capturas que fazem insistir desejarmos regresso ao estágio pré-pandêmico e às produções que por lá fizemos, agora insuficientes. E como inflexionar também por nossas escolhas e apostas um mundo que venhamos a viver?

A pandemia é um acontecimento condensador do tempo, fazendo parecer ter havido uma contração temporal, como se pudéssemos “pegar esse tempo”, expiá-lo pelas mãos e acessar imagens-sínteses de um percorrido que de forma frenética removeu o chão. A pandemia abre assim uma perspectiva de crisanálise11 Lourau R. A análise institucional. Petrópolis: Vozes; 1995., expõe feridas e convoca à reflexão de toda ordem.

Esse chão desestabilizado atiça a ideia de uma volta, um regresso ao já conhecido habitus. Como se pudéssemos entrar em uma última onda que, enfim, fizesse uma dobra sobre si para nos devolver ao porto seguro. Mas não podemos voltar, isso é fato; todavia, anunciar o desejo da volta como perspectiva de negação da realidade me parece duro demais, pois impõe resignação diante do próprio desejo humano de regresso ao lugar seguro, não porque bom, mas por ser possível viver nele.

Mas o que nos diz esse desejo de querer voltar? A combinação entre a desestabilização exacerbada e a persistência da referência identitária faz com que os vazios de sentido sejam insuportáveis22 Rolnik S. Toxicômanos de identidade. Subjetividade em tempo de globalização. In: Lins D, organizador. Cultura e subjetividade: saberes nômades. Campinas: Papirus; 1997. p. 19-24., e a pandemia nos trouxe essa sensação de esgotamento, o que faz deixar tudo em suspensão e em suspeição. Então não há como afastar essa produção-desejo de acolhida e aconchego de regresso e associá-la ao apreço pela distopia do mundo em crise. Certa vez me disse Regina Benevides: vivemos tal tempo de disrupção que a imagem de um jogo de xadrez no qual não apenas as peças se movem, mas também o tabuleiro, é uma perfeita analogia. Sim, o jogo a ser jogado recebeu variações importantes e, portanto, certas competências já não são tão eficazes.

A Saúde Coletiva (SC) brasileira produziu inflexões no campo da saúde como um todo. O coletivo apreendido como multiplicidade e modo de fazer inclusivo33 Pasche DF, Gerhardt TE. O Bacharelado em Saúde Coletiva: formação de sanitaristas em um campo inovador e em constituição. In: Dias M, organizador. Quando o ensino da saúde percorre territórios: dez anos da Coordenadoria de Saúde. Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2020. p. 105-116. invocou repensar modos de pensar e de fazer em saúde, pautado na exigência ética de reconhecimento de alteridades. (Re)fertilizar esse campo, então, deveria ocorrer pela amplificação e qualificação desse movimento de acoplamento com multiplicidades que circulam em espaços heterogêneos e talvez ainda não conhecidos, atiçando não a repetição, mas a usinagem de novas realidades.

Pensar sobre esse terreno que queremos desestabilizar é uma tarefa por demais complexa. A mim parecia, até ler o texto, que o exercício que vínhamos fazendo coletivamente, juntando pessoas de diversas posições e lugares em conexões antes inimagináveis, e as injunções e (com)posições que fizemos aqui e acolá foram no sentido de rever, revigorar e refazer apostas. Fomos tentando organizar ideias; e recompor e ampliar alianças, pois se compreendeu que a crise não desestabiliza para recompor em outra sociabilidade, senão reafirma lógicas expropriadoras e que os efeitos da Covid-19 obedecem à lógica de uma sociedade de classes, na qual risco equivale ao pertencimento a um de seus extratos (que não se resume à dimensão econômica).

Vou apontar dois elementos que em minha perspectiva deveriam melhor comparecer em nossas reflexões. O primeiro é o cuidado para não se promover a ocultação da natureza classista de nossa sociedade, a mais importante forma de opressão e humilhação social44 Souza J. Como o Brasil inventou o racismo. Rio de Janeiro: Estação Brasil; 2021.. Um mundo outro, imagino, considerando uma miríade de cosmovisões (e “cosmos outros sentidos”), deveria tomar por pressuposto a existência de relações sociais não espoliativas. A ocultação ou a transposição dessa causa primeira para outras, inclusive na denominação interseccional, deslocadas dessa base material pode permitir efeito reverso de despolitização.

Anunciar relações econômicas injustas sustentadas em uma moralidade que considera a maioria das pessoas descartáveis abre caminhos para a construção de (re)composições, que podem acionar forças coletivas de luta pela vida digna. A destruição pandêmica no Brasil tem esse componente em sua genética, amplificada pela ação nefasta de governos que se utilizam do vírus para operar políticas de apreço necrófilo e orientados pelo “darwinismo social”.

A segunda questão aponta para uma inflexão nas formas de exercício do poder do Estado e das elites brasileiras. A crise mundial do capital e o constante desenvolvimento das forças produtivas faz perceber claramente que a crise político-econômica é crônica e agudizada, fazendo com que parcelas crescentes da sociedade sejam absolutamente dispensáveis, tornando o equilíbrio do sistema mais instável55 Menegat M. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe - o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto. Rio de Janeiro: Consequência; 2019.. A crise do capital impõe a introdução de novas tecnologias de gestão da barbárie que são, agora, distintas daquelas adotadas até então. A ampliação da experiência de humilhação social tem amplificado as tensões, desenhando movimentações políticas pela consciência da insuportabilidade de reprodução precária da vida de milhões de pessoas; e o Estado, que já não mais consegue responder nem minimamente às necessidades da maioria, muda de estratégia.

A gestão de conflitos pela política que permitia processar pautas e criar contratualidades está em franco desuso e dá lugar à gestão de conflitos pela violência, então método de governo. A política, espaço de explicitação de diferenças e produção de composições, dá lugar à gestão violenta da barbárie do capital55 Menegat M. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe - o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto. Rio de Janeiro: Consequência; 2019..

Assim estamos diante de um Estado, que difere muito daquele da época em que criamos o SUS. Um Estado que agora amplia feições de Estado Penal55 Menegat M. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe - o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto. Rio de Janeiro: Consequência; 2019. que retira de circulação corpos considerados abjetos, expondo de forma nua e crua a população indesejada à ira do capital. Anderson França66 Mercier D. Polícia insiste em criminalização de vítimas de massacre do Jacarezinho, mas recua sobre 29ª morte [Internet]. El País. 8 Maio 2021; Brasil. 2021 [citado 20 Out 2021]. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-08/mortos-na-chacina-do-jacarezinho-sobem-para-29-e-policia-insiste-na-criminalizacao-de-vitimas-sem-provas.html
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05...
, morador do subúrbio e articulista da Folha de São Paulo, depois da mortal operação policial na Comunidade do Jacarezinho (RJ), em maio de 2021, fez uma análise muito lúcida: “A violência é a forma de governo do Rio. Não é democracia. É violência”.

Necessário então não contornar esses elementos nas análises, pois do contrário faz parecer que a própria SC e a Rede Básica (RB) têm suas produções autonomizadas dessa alteração do jogo no interior do Estado e da catástrofe social amplificada pela pandemia. Também considero importante desviar de posições que, mesmo reconhecendo avanços no campo, deixam em destaque insuficiências, então apontadas como originárias de certas cegueiras e imobilismos, como se tudo estivesse na ordem de governabilidade microgestionária.

Fiquei com a sensação de que o texto aponta que as produções da SC estão, ainda, bastante vinculadas ao mundo pré-pandêmico, apegada às “velhas” análises e práticas. A SC tomada de forma inespecífica, como o texto sugere, abre caminhos para generalizações que tendem a obscurecer germinações, fazendo ver apenas a ordem da repetição. A SC é campo em devir77 Vieira-da-Silva LM. O campo da saúde coletiva: gênese, transformações e articulações com a reforma sanitária. Salvador, Rio de Janeiro: EDUFBA, Editora Fiocruz; 2018. com posições e produções heterogêneas e nessa perspectiva o texto aponta que ela “caminha entre ciência nômade e a ciência de Estado”. As relações Estado-Governo-Sociedade são complexas e paradoxais; e impõem reconhecer que o SUS é síntese dessa convergência, fazendo-se a um só tempo política de Estado (Constituição Federal); política de governo, gerida no interior da máquina de Estado por equipes; e política pública, cujo exercício ocorre no “domínio da pólis”. A dimensão pública, força de insurgência que possibilitou a criação do SUS, foi a que mais perdeu força nessas três décadas e é necessário, como aponta o texto, retomá-la.

Para tanto, imagino necessário entrar em contato e acessar forças múltiplas e heterogêneas capazes de (re)fertilizar a agenda, tornando o próprio campo mais permeável e sujeito a novas criações que afirmam a vida e o cuidado como valores fundamentais. Observando-se a agenda de entidades do campo nesses últimos dois anos, é possível perceber inflexões nos debates decorrentes de aproximações a um conjunto de interlocutores como lideranças de movimentos sociais (povos originários; e movimentos sociais consolidados e emergentes), que no campo da SC têm encontrado espaço de expressão. A SC tem se colocado nesse exercício político na esfera pública produzindo embates que têm confrontado governos e elites vampirescas desprovidas de compromisso com o bem-estar da maioria.

Por fim, uma última observação sobre a RB: ela nos foi roubada, não a perdemos, o que foi possível pela crise institucional e política criada no país. Desde então, a RB sofreu ataques que a desconfiguraram: substituição da Estratéria de Saúde da Família pela estratégia da assistência; recentralização de serviços em Unidades Básicas de Saúde (UBS) turbinadas pela lógica do pronto-atendimento; redução dos Agentes Comunitários de Saúde e ampliação da privatização, inviabilizando o trabalho interprofissional e a ação no território, com as equipes, cada vez mais, sob o julgo de um gerencialismo tacanho. E o Brasil, que poderia ter tido uma das melhores respostas nacionais para a pandemia, a enfrentou propondo uma “desassistência programada”: fechamento de UBS e desencorajamento das pessoas de irem aos serviços, então jogadas ao confronto da epidemia no setting de serviços assistenciais tradicionais. Mesmo assim, a RB, deixada quase sem ar, não pode ser colocada fora das linhas de resistência: apenas a iniciativa da OPAS88 APSREDES. APS Forte no SUS – no combate à pandemia [Internet]. Brasília; 2021 [citado 20 Out 2021]. Disponível em: https://apsredes.org/aps-forte-sus-no-combate-a-pandemia/
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localizou quase 1.500 experiências inovadoras no enfrentamento da pandemia. Espaços de resistência e investimentos desejantes espalhados por todo o país continuam a operar na RB.

O artigo de Emerson, Débora, Mara Lisiane, Nathalia, Helvo e Clarissa promove uma profunda e oportuna discussão, abrindo novos debates na direção da construção de alternativas para a qualificação do SUS como política do cuidado e de defesa da vida.

Referências

  • 1
    Lourau R. A análise institucional. Petrópolis: Vozes; 1995.
  • 2
    Rolnik S. Toxicômanos de identidade. Subjetividade em tempo de globalização. In: Lins D, organizador. Cultura e subjetividade: saberes nômades. Campinas: Papirus; 1997. p. 19-24.
  • 3
    Pasche DF, Gerhardt TE. O Bacharelado em Saúde Coletiva: formação de sanitaristas em um campo inovador e em constituição. In: Dias M, organizador. Quando o ensino da saúde percorre territórios: dez anos da Coordenadoria de Saúde. Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2020. p. 105-116.
  • 4
    Souza J. Como o Brasil inventou o racismo. Rio de Janeiro: Estação Brasil; 2021.
  • 5
    Menegat M. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe - o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto. Rio de Janeiro: Consequência; 2019.
  • 6
    Mercier D. Polícia insiste em criminalização de vítimas de massacre do Jacarezinho, mas recua sobre 29ª morte [Internet]. El País. 8 Maio 2021; Brasil. 2021 [citado 20 Out 2021]. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-08/mortos-na-chacina-do-jacarezinho-sobem-para-29-e-policia-insiste-na-criminalizacao-de-vitimas-sem-provas.html
    » https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-08/mortos-na-chacina-do-jacarezinho-sobem-para-29-e-policia-insiste-na-criminalizacao-de-vitimas-sem-provas.html
  • 7
    Vieira-da-Silva LM. O campo da saúde coletiva: gênese, transformações e articulações com a reforma sanitária. Salvador, Rio de Janeiro: EDUFBA, Editora Fiocruz; 2018.
  • 8
    APSREDES. APS Forte no SUS – no combate à pandemia [Internet]. Brasília; 2021 [citado 20 Out 2021]. Disponível em: https://apsredes.org/aps-forte-sus-no-combate-a-pandemia/
    » https://apsredes.org/aps-forte-sus-no-combate-a-pandemia/

Editado por

Editor
Antonio Pithon Cyrino
Editor associado
Sérgio Resende Carvalho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2021
  • Aceito
    26 Out 2021
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