LIVROS
João Leite Ferreira Neto
Programa de Pósgraduação em Psicologia, Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Av. Itaú, 525, Bairro Dom Cabral, Belo Horizonte, MG, Brasil. 30.535-012. jleite.bhe@terra.com.br
PASSOS, I.C.F. Reforma psiquiátrica: as experiências francesa e italiana. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009.
Fruto de uma pesquisa realizada há dez anos, agora publicada como livro, este importante trabalho conserva um frescor de atualidade. Afinal, o bem-sucedido percurso da reforma psiquiátrica no Brasil mantém laços assumidos com a psiquiatria democrática italiana. Contudo, o estudo comparativo realizado pela autora indica que nossa identidade com a experiência italiana não é tão forte como supomos, e que nossa distância da experiência francesa não é tão grande como gostaríamos. Permitir um olhar sobre nossa reforma psiquiátrica a partir dessas experiências internacionais é uma das razões da importância dessa publicação em nosso País: apontar que não somos exatamente o que imaginamos ser. Contudo, podemos vir a ser, como experiência de reforma psiquiátrica, de outras maneiras ainda a se inventar, tal como preconiza o adágio de Rotelli: negar, desconstruir e inventar. Como não possuímos, em língua portuguesa, muitos estudos feitos, com tal detalhamento, das experiências europeias de reforma psiquiátrica, a leitura deste livro e sua disseminação mostra-se como algo importante.
Escrito em linguagem clara e agradável, o livro combina pesquisa histórica, teórica e empírica, com base em visitas técnicas ao setor francês e estágios voluntários em La Borde e em Trieste, feitos pela autora e analiticamente narrados com a tonalidade própria da etnografia. Exemplo acabado disso é o capítulo sobre La Borde - a meu ver o mais belo do livro -, intitulado com uma pergunta: "acolhimento da diferença ou prática extemporânea?" Nele a autora narra, em primeira pessoa: sua chegada à estação de trem em Cour-Cheverny, sua acolhida pelo automóvel da clínica, dirigido por um paciente-interno, as percepções afetivas produzidas por um ambiente onde há um clima de liberdade, suas conversas com internos e trabalhadores, a descrição das rotinas, dos processos de vida e de trabalho, com suas riquezas e paradoxos... e constroi uma análise histórico-teórica da defesa que essa clínica faz do asilo como "abrigo", dentro da tradição da psicoterapia institucional.
Mergulhada no clima de mistura e liberdade entre internos e não-internos, entre as variações de tarefas e funções envolvendo ambos, a cogestão coletiva da clínica e definição das atividades, a autora reconhece: "não é possível passar imune por La Borde". Oury, proprietário da clínica, defende o ponto de vista de que ninguém trata de ninguém e que o cuidado é sempre uma via de mão dupla. Não há técnico de referência, a psicoterapia é secundária e o eixo principal do tratamento é a própria convivência coletiva.
Contudo, não deixa de avaliar que a experiência superestimada pelos estagiários, impressionados com a ausência de rigidez e normas, tem outras facetas que devem ser vistas. Como no comentário de um monitor: "Que liberdade? De ficar drogado? Aqui todo mundo vive entupido de remédio...". Ou na não-participação dos médicos da vida comunitária da clínica. Ou, ainda, na permanência de pacientes crônicos com mais de quarenta anos de residência lá. E o mais complicado da experiência: a tradição da psicoterapia institucional na qual a clínica La Borde se insere, em sua defesa do bom asilo. A autora nos apresenta uma revisão histórica da Psicoterapia Institucional, desde Tosquelles, com seu objetivo de estabelecer uma "proteção do exterior" e criar "zonas de liberdade"; e indica os limites sociopolíticos dessa prática. Isso tudo leva-me, como leitor, a perguntar: como Guattari, que lá residiu e trabalhou até o fim de sua vida, grande conhecedor da experiência italiana, se contentou com uma prática transversalizada intramuros?
A Psiquiatria de Setor Francesa foi experiência de planificação nacional e racionalização administrativa. Por conseguinte, não teve um caráter de ruptura ou contestação do manicômio. Ao contrário, era uma proposta de modernização dos hospitais psiquiátricos, chegando a estimular a abertura de novos hospitais (ainda que conseguisse certa diminuição das internações). Não havia uma politização da ação profissional, e nos dizeres de Castel (p.66), "os profissionais franceses eram alérgicos à contestação político-social".
Outra característica da psiquiatria francesa era a supervalorização da clínica em detrimento da dimensão política dessa prática. A influência da psicanálise lacaniana apenas fortaleceu esse viés, sem nunca assumir um embate contra as dimensões institucionais do poder psiquiátrico. Na medida em que a discussão técnica privilegiava o debate teórico-clínico, nada foi feito para conter o avanço da lógica de mercado e a privatização da prática psiquiátrica. Cabe ressaltar que, na época, a psiquiatria francesa era essencialmente pública, com pouco espaço para o exercício profissional privado. Somente com a implantação do Setor é que haverá um súbito crescimento da psiquiatria privada. Enfim, na medida em que o núcleo da Psiquiatria de Setor era a racionalidade administrativa, sua ação foi pouco criadora de alternativas à psiquiatria fármacoclínica tradicional.
Na Itália também temos um contexto de supremacia da psiquiatria pública, ao contrário do Brasil, onde sempre tivemos um forte segmento psiquiátrico privado, e fortemente financiado pelo Estado. A Psiquiatria Democrática Italiana - PDI - sempre teve como foco o embate político. Seu foco era o combate ao manicômio e pela revisão do estatuto jurídico do doente mental, por entender que esses dois aspectos estão intimamente relacionados.
Ao contrário da França e do Brasil, a reforma italiana surge de bases municipais, para depois produzir impactos no nível nacional. Após uma experiência abortada em Gorizia, Basaglia e sua equipe conduzem o experimento mais importante e conhecido de reforma psiquiátrica na cidade de Trieste. Foge ao escopo desta resenha detalhar esse processo, mas vale salientar dois aspectos.
O primeiro é a organização do trabalho por meio de uma lógica que atenda às necessidades da população, e não por intermédio do critério administrativo da territorialização dos serviços que "não cumpre mais que uma função assistencialista, escondendo mal uma ideologia de controle" (Basaglia, p.144). A autonomia municipal italiana permitiu-lhes ter, como ponto de partida, experiências locais exitosas, ao contrário da França e do Brasil, que partem de um planejamento e organização nacional dos serviços, ainda que, em nosso caso, a gestão seja municipalizada.
O segundo aspecto é o alto investimento em recursos humanos. Em 1995, havia duzentos e sessenta mil habitantes e 23 psiquiatras, cento e oitenta enfermeiros, nove assistentes sociais e nove psicólogos (em regime de horário integral), além de cinquenta operadores de uma cooperativa social que geriam residências e duas dezenas de voluntários (muitos funcionam como ATs). Na Itália, a desinstitucionalização se deu de modo cabal nas cidades mais ricas ao norte, e de forma precária nas cidades mais pobres no sul. Num comparativo local, o Distrito Centro-Sul do município de Belo Horizonte, considerado como um dos mais bem-sucedidos programas municipais de saúde mental do País, com população atual igual à de Trieste em 1995, possui seis psiquiatras e vinte técnicos superiores de saúde, além de contar com o apoio de um CAPS de outro Distrito anexo. Sem dúvida, desafortunadamente, nosso Sistema Único de Saúde é subfinanciado.
Evidentemente, não significa que a reforma tenha seu norte principal no investimento financeiro. Em Milão, uma das mais abastadas cidades da Itália, a reforma é represada por razões profissionais, teóricas e ideológicas. Contudo, é inegável que o investimento público faz diferença na qualidade dos serviços oferecidos.
A autora encerra seu livro resgatando o sempre presente impasse entre política e clínica. Nesse aspecto teria algumas ponderações a fazer sobre quanto ainda dependemos de um modelo de clínica psicanaliticamente inspirado e nos falta outra alternativa para problematizarmos as práticas clínicas, especialmente no âmbito de sua gestão coletiva, como é realizado em La Borde, por exemplo. Mas esta é uma conversa para outra ocasião.
Recebido em 30/05/10.
Aprovado em 10/06/10.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Fev 2011 -
Data do Fascículo
Dez 2010