Open-access Devir Margarida: narrativas de si em experienciafetos *

Resumos

Neste ensaio rizomático, evocamos cenas, imagens e afetos acionados com a participação das mulheres trabalhadoras rurais da V Marcha das Margaridas. A experiência e a narração articulam ferramentas potentes na transmissão de histórias em sua singularidade, diferença e multiplicidade. A escrita demarca um registro possível, uma abertura para estar junto na produção de uma escuta implicada e sensível dos efeitos da experiência de um “devir Margarida”. O caminho percorrido irrompe entre fragmentos, recortes descontínuos, impregnado por experienciafetos em sua dimensão ética, estética e política. Com alegria e colorido, as mulheres vêm à público performatizar um ato-manifesto na luta contra os retrocessos e pela garantia de direitos. Em marcha, as margaridas protagonizam ações políticas em prol do bem viver de suas comunidades e questionam os estereótipos tradicionais de gênero.

Mulheres trabalhadoras rurais; Ação política; Movimento social; Experiência; Narração


In this rhizomatic essay, we evoke scenes, images and affections triggered by our participation, with rural women workers, in the 5 th Marcha das Margaridas . Experience and narrative are powerful tools in the transmission of stories, in their uniqueness, difference and multiplicity. Writing demarcates a possible record, an aperture to be together in the production of an implicated and sensitive hearing of the effects produced by the experience of “becoming Margarida ”. The traveled path bursts among fragments, discontinuous cuts, marked by experienceaffections in their ethical, aesthetical and political dimensions. With joy and multiple colors, women perform, in public, an act-manifesto in the fight against retrocessions and for the guarantee of rights. In their march, the Margaridas play a leading role in political actions for their communities’ welfare and question traditional gender stereotypes.

Rural women workers; Political action; Social movement; Experience; Narrative


En este ensayo rizomático evocamos escenas, imágenes y afectos accionados con la participación junto a mujeres trabajadoras rurales de la V Marcha das Margaridas . La experiencia y la narración constituyen herramientas potentes en la transmisión de historias en su singularidad, diferencia y multiplicidad. La escritura demarca un registro posible, una apertura para estar juntos en la producción de una escucha implicada y sensible de los efectos de la experiencia de un “devenir Margarida ”. El camino recorrido irrumpe entre fragmentos, recortes discontinuos, impregnado por experienciafectos en su dimensión ética, estética y política. Con alegría y colorido, las mujeres vienen a público a performatizar un acto-manifiesto en la lucha contra retrocesos y por la garantía de derechos. En marcha, las margaridas protagonizan acciones políticas para el bien vivir de sus comunidades y cuestionan los estereotipos tradicionales de género.

Mujeres trabajadoras rurales; Acción política; Movimiento social; Experiencia; Narración



Agosto de 2015. Ônibus. Viagem. Rasgar as estradas, percorrer mais de trinta e seis horas de viagem do ponto de partida – a cidade de Três de Maio – até o ponto de destino: Brasília. O que poderia parecer uma viagem cansativa, pela quantidade gigantesca de horas, durante um dia e uma noite, nem um pouco pesou na minha decisão [...]. Não tive dúvidas em aceitar um lugar no ônibus, e na mesma hora, confirmei minha presença na viagem em direção à V Marcha das Margaridas 1 . (p. 147)

Neste ensaio rizomático, evocamos cenas, imagens c e afetos acionados com a participação junto com as trabalhadoras rurais, da delegação da região noroeste do Rio Grande do Sul, na V Marcha das Margaridas, em Brasília, Distrito Federal. Este estudo é parte de um projeto maior que resultou na tese de doutorado intitulada “Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do Sul do Brasil” 1 e no registro audiovisual “Margaridas, luta e pé na estrada” 2 . Ao evocarmos o território produzido pela Marcha das Margaridas (2015), contamos com a experiência e a narração como ferramentas potentes “na transmissão de histórias, em sua singularidade, diferença e multiplicidade” 1 (p. 22).


Experiência e narração como modos outros de falar, escutar, compartilhar e fazer reverberar os saberes periféricos, negligenciados pela história oficial. Existências minoritárias, presentes em uma oralidade cotidiana que, ao deixarem de ser contadas, passam a ser esquecidas. Experiência e narração tomam contornos políticos ao encarnarem os fragmentos de uma história que se-faz-sendo, não linear, mas recortada e (re)inventada na arte de narrar e dela fazer arte(sanato) 1 .


O testemunho das narrativas das mulheres trabalhadoras rurais produz uma marcha-encontro-acontecimento d . Em seus 19 anos de existência, a Marcha das Margaridas se consolidou como uma ampla estratégia de luta que agrega milhares de mulheres do campo, das águas e da floresta de todo o país. Com alegria e colorido, as mulheres vêm à público performatizar 4 um ato-manifesto que reúne pautas, de norte a sul do país, na luta contra retrocessos e pela garantia de direitos. A força política de mobilização da Marcha rasga com os estereótipos de previsibilidade, calmaria, resignação e silêncio, muitas vezes destinados às mulheres no imaginário social.

No processo de elaboração e socialização desse registro muitos foram os desafios, entre eles como e quais as condições para se transmitir uma experiência 5 . Desde aqui, afirmamos como estratégia nossa disponibilidade em acompanhar, estar junto e nos colocar em movimento, abrindo espaços para uma escuta implicada e sensível dos efeitos das narrativas da experiência de um “devir Margarida” constituinte do processo de subjetivação dessas mulheres.

Olha Brasília está florida / Estão chegando as decididas / Olha Brasília está florida / É o querer, é o querer das Margaridas / Somos de todos os novelos / De todo tipo de cabelo / Grandes, miúdas, bem erguidas / Somos nós as Margaridas / Nós que vem sempre suando / Este país alimentando / Tamos aqui para relembrar / Este país tem que mudar! e .


A articulação de uma escrita-experiência-narração imprimiu a necessidade de uma contação coletiva. A escrita, como lâmina afiada para o corte e recorte da realidade, traz à tona não uma verdade, mas perspectivas singulares de uma história.


“A escrita emerge como um rasgo, em (com)posição, não dissociada da vida em seus mais variados atravessamentos” 1 . (p. 42)

Escrita-experiência-narração impregnada de afeto, como inspiração poética-política distante dos manuais prescritivos. O caminho percorrido irrompe entre fragmentos, recortes descontínuos, impregnado por experienciafetos em sua dimensão ética, estética e política. Experienciafetos conectados a inscrições múltiplas, desejantes, políticas, históricas, econômicas e institucionais 1 , 6 . Experienciafetos como efeitos de um processo de produção de subjetividade atravessado por uma inteligência e afetividades coletivas 1 , 7 .

Escrita como experiência, ou da experiência da escrita, numa perspectiva foucaultiana, [...] leva em conta o respeito à alteridade de um devir-com, na ideia de que ser um é tornar-se com muitos, numa tentativa de desaprender quem se é, num rompimento com o autocentramento na escuta de diferentes histórias. Escrita como encontro-acontecimento, estratégia de resistência e criação, ruptura com o instituído. Escrita-experiência-narração da qual saímos transformados. Escrita-corpo, engendrada à construção de um plano coletivo da pesquisa, irradiador de experiências múltiplas de nós 1 . (p. 28-9)


Flor Margarida aprende que da semente / Nasceu o pão de cada dia na vida de sua gente / Mas a semente necessita ser plantada / E sem terra sua gente será sempre escravizada / Queremos terra, pois a terra é nossa vida [...] / Na fileira do seu povo ela foi plantar bandeira / O opressor ria dela sem temer / Quem já viu mulher sem nome enfrentar nosso poder / Um belo dia teve uma assombração / Margarida era mil, era mil, era um milhão [...] / Com sangue vivo ela assinou seu nome / Preferiu morrer na luta a ter que morrer de fome f .


Comemorar neste momento mais do que tudo essa força e unidade das mulheres que ousam construir essa marcha, é com muita ousadia que desde os nossos sindicatos nas nossas organizações, eu tenho certeza que muitas tiveram que travar um embate também para dentro para dizer que era possível que a gente iria chegar aqui com essa quantidade de mulheres 2 .


Dizer aqui para todas vocês por terem aceito esse desafio que é estarem aqui, unidas, firmes na Marcha das Margaridas que não vai terminar amanhã quando terminar a nossa marcha e nós enrolarmos a nossa bandeira e dizer chegou ao final a quinta marcha. Não! Nós continuaremos a marchar até que todos tenham saúde, até que todos tenham educação, até que todos tenham um pedacinho de chão para produzir. Esse é o desejo das nossas mulheres trabalhadoras rurais do Rio Grande do Sul, do Paraná e de Santa Catarina e com certeza de todo o Brasil! 2


A ação política [...] como potencialidade de agir e relacionar-se com o outro, como parte da vida. A ação política passa a ser entendida como posição intersubjetiva, diz das condições de apropriação e constituição de modos de vida em diferentes territórios (campo, florestas, sertão, deserto, cidade, familiares, amigos/as, companheiras/os de luta) 1 (p. 27)

Foi muito emocionante, nós não imaginávamos que seria assim, nós não esperávamos isso… a emoção é muito grande… dá um negócio na gente e nos mostra que a nossa luta não é em vão, que vale a pena nós lutarmos porque o povo está unido e está lutando pelo que quer! 2



A gente quer que tudo que a gente já conquistou nesse tempo não tenha o retrocesso. Como até a própria aposentadoria que eles tão querendo mudar, a gente não quer isso! Porque uma coisa que com tanta luta e caminhada a gente conseguiu, que não pare e tenha um retrocesso… 2



[...] toda ação passa a ser considerada política, instaurada numa posição intersubjetiva (si-já-sendo-com-outro), ou seja, a prática do cuidado de si que leva em conta a relação com o outro e aciona processos de subjetivação política, constitutiva de um éthos, práticas perpassadas pela multiplicidade, diferença e singularidade. Modos de se relacionar consigo e com outro, pautado pelo desassossego e dissenso, e mesmo assim, na possibilidade de constituição de um lugar-comum, espaço de reconhecimento da alteridade 1 . (p. 27-8)



Agosto de 2019, Brasília recebeu a VI Marcha das Margaridas que teve como lema “Margaridas na luta por um Brasil com soberania popular, democracia, justiça, igualdade e livre da violência”. Em um cenário político e econômico nacional permeado por dúvidas, incertezas e ameaças de retrocesso de direitos conquistados, retomamos a mensagem-convite para mobilização de Nair: “Minha mensagem: eu quero convidar... participa que vale a pena participar do movimento das mulheres trabalhadoras rurais e é através dessas que nós vamos conquistar nosso espaço! É só lutar e pé na estrada!” 2


Agradecimentos

Agradecemos às mulheres que participaram da V Marcha das Margaridas e seguem em luta na VI Marcha das Margaridas (2019). A Têmis Nicolaidis e a Jefferson Pinheiro, pela parceria na edição do vídeo “Margaridas, luta e pé na estrada”. A Marcelo Gobatto, pela colaboração na edição das imagens.

Referências

  • 1 Maciazeki-Gomes RC . Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do sul do Brasil [ tese ]. Porto, Florianópolis : Universidade do Porto, Universidade Federal de Santa Catarina ; 2017 .
  • 2 Maciazeki-Gomes RC . Margaridas, luta e pé na estrada [ Internet ]. Youtube ; 2017 [ citado 17 Abr 2019 ]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8hhV0
    » https://www.youtube.com/watch?v=4JeBub8hhV0
  • 3 Foucault M . Ditos e escritos IV: estratégia, saber e poder . Rio de Janeiro : Forense Universitária ; 2012 . p. 328 - 44 .
  • 4 Butler J . Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade . Rio de Janeiro : Civilização Brasileira ; 2015 .
  • 5 Benjamin W . Obras Escolhidas 1 - Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura história e cultura . São Paulo : Brasiliense ; 1994 . p. 114 - 9 .
  • 6 Fernández AM . Las lógicas colectivas: imaginários, cuerpos y multiplicidades . Buenos Aires : Biblos ; 2007 .
  • 7 Fernández AM . Política y subjetividad: asambleas barriales y fábricas recuperadas . Buenos Aires : Biblos ; 2008 .
  • c
    Créditos das imagens: as imagens foram produzidas pela primeira autora, Rita de Cássia Maciazeki-Gomes, na V Marcha das Margaridas, em 2015.
  • d
    Encontro-acontecimento, em uma inspiração foucaultina de acontecimentalizar como movimento analítico, em uma perspectiva genealógica, historicizar.
  • e
    Música: O canto das Margaridas. Loucas de Pedra Lilás. Grupo Teatral de Mulheres de Recife, PE.
  • f
    Música Ciranda para Margarida, Cida de Caiana dos Crioulos, Severina Luzia da Silva.
  • *
    O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2019
  • Aceito
    11 Ago 2019
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