Resumos
A capacidade tecnológica de transformar a biologia, ligada aos avanços da engenharia genética, da farmacologia, da cibernética e da nanotecnologia, tem gerado uma ampla variedade de dispositivos de manipulação das caraterísticas e das funções humanas, levando a questionamentos fundamentais de ordem ética. Novas (bio)tecnologias criam e modificam os alimentos e os fármacos que ingerimos; os dispositivos que integram e alteram o nosso corpo; e os prostéticos que o aumentam ou melhoram. Se hoje assistimos a uma proliferação e democratização das tecnologias de manipulação corporal, essas intervenções, de formas e intensidades diferentes dependendo dos diversos contextos, estão desde sempre presentes na história da espécie humana. Este ensaio apresenta uma reflexão-repensamento crítica sobre o que nós entendemos hoje como “ser humano” e sobre as dimensões éticas, estéticas e políticas da autodeterminação humana.
Palavras-chave Melhoramento humano; Pós-humanismo; Tecnologia; Intervenções corporais
Our technological capacity to transform biology linked to advances in genetic engineering, pharmacology, cybernetics and nanotechnology has generated a wide variety of devices for manipulating human characteristics and functions, raising key ethical questions. New (bio)technologies create and modify the foods and drugs we consume, the devices implanted within our body, and the prostheses that improve the body. While we are witnessing a proliferation and democratization of body manipulation technologies, these interventions have always been present during human history in different forms and intensities depending on the context. This essay presents a critical rethinking of our current understanding of the ‘human being’ and the ethical, aesthetic and political dimensions of human self-determination.
Keywords Human improvement; Post-humanism; Technology; Bodily interventions
La capacidad tecnológica de transformar la biología, vinculada a los avances de la ingeniería genética, de la farmacología, de la cibernética y de la nanotecnología, han generado una amplia variedad de dispositivos de manipulación de las características y de las funciones humanas, llevando a cuestionamientos fundamentales de orden ético. Nuevas (bio)tecnologías crean y modifican los alimentos y los fármacos que ingerimos, los dispositivos que integran y alteran nuestro cuerpo, los prostéticos que lo aumentan o mejoran. Si actualmente asistimos a una proliferación y democratización de las tecnologías de manipulación corporal, estas intervenciones, de formas e intensidades diferentes dependiendo de los diversos contextos, están desde siempre presentes en la historia de la especie humana. Este ensayo presenta una reflexión re-pensamiento crítica sobre lo que entendemos actualmente como “ser humano” y sobre las dimensiones éticas, estéticas y políticas de la autodeterminación humana.
Palabras clave Mejora humana; Poshumanismo; Tecnología; Intervenciones corporales
I am not my biology. I will be the one to decide what my body grows into1. (p. 7)
A capacidade tecnológica de transformar a biologia, ligada aos avanços da engenharia genética, da farmacologia, da cibernética e da nanotecnologia, tem gerado uma ampla variedade de dispositivos de manipulação das caraterísticas e das funções humanas, levando a questionamentos fundamentais de ordem ética.
O título deste dossiê, no âmbito do projeto de investigação “EXCEL: Em busca de excelência” (PTDC/SOC-ANT/30572/2017), apresenta ao leitor uma das perguntas principais deste debate – humano ou pós-humano? – que requer uma reflexão-repensamento crítica sobre o que nós entendemos hoje como “ser humano”. A categoria de humano traz consigo a força das certezas tranquilizadoras e familiares do senso comum. Do ponto de vista filogenético, a definição taxionômica do ser humano moderno deriva do Homo sapiens, pertencente à espécie Homo, à família hominídea e à ordem dos primatas.
É bastante consensual definir o humano em contraposição às outras formas de vida animal por meio de caraterísticas que, a partir do Iluminismo, criaram a imagem cartesiana da res cogitans: sujeito pensante, racional, autoconsciente, moral, social e capaz de controlar os instintos, de nutrir sentimentos complexos e de dominar a linguagem simbólica.
Observando arqueologicamente o emprego dessa definição, podemos todavia afirmar que a categoria de “humano” não constitui o que os filósofos da ciência chamam “classe natural”, isto é, um conjunto homogêneo de elementos por meio dos quais se podem efetuar generalizações explicativas e preditivas2,3. Pela sua natureza excludente e seletiva, que inclui uma dialética binária entre identidade e alteridade, a categoria de “humano” foi usada na história social e política da Europa para classificar hierarquicamente populações inteiras, justificando ideologias que sustentaram em outros tempos a escravatura ou os genocídios.
Rosi Braidotti4, na sua crítica ao humanismo e aos crimes perpetrados em nome da humanidade, destaca como no conceito de “humano” reside implícita a noção de diferença, entendida no seu sentido pejorativo, negativo e especular. Existem os verdadeiros seres “humanos” – representados pela imagem icônica do Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci – e os “outros”: os seres inferiores, sexualizados, racializados e naturalizados, reduzidos ao estado animal de corpos descartáveis4 (p. 23).
Em uma viagem recente em Havana, Cuba, em ocasião da terceira Conferência da Sociedade de Antropologia Médica da American Anthropological Association, cruzei na rua com os vestígios do que outrora foi o pôster de apresentação de uma exibição da artista afrocubana Harmonia Rosales. Rosales reinterpreta as obras mais celebres do Renascimento substituindo nas suas composições os protagonistas clássicos com mulheres negras, em uma ótica contra-hegemônica e feminista, problematizando o ideal eurocêntrico do Homem Vitruviano (modelo ideal do ser humano, pelas proporções perfeitas, segundo o ideal clássico de beleza, alicerce proporcional para a harmonia de todas as coisas) e o primado da brancura como índice de superioridade moral na arte europeia. Em lugar do Homem do Leonardo da Vinci, medida exemplar e modelo universal, estava no pôster da exposição da Rosales o corpo de uma mulher negra, símbolo potente dos corpos excluídos, sexualizados, racializados e animalizados da história colonial.
Entre o Homem de da Vinci e a Mulher de Rosales existe certamente, como diria Ludwig Wittgenstein, uma semelhança de família. Todavia, as duas imagens, nas suas diferenças, evidenciam como o conceito de “humano” não é nada mais do que uma convenção normativa – hegemônica, hierárquica e eurocêntrica – com elevada capacidade de regulamentação e, portanto, instrumental a práticas de exclusão e discriminação dos “outros” não conformes ao ideal. O modelo normativo e eurocêntrico postulado na base de um ideal humanista universal, representante último de uma espécie que se delineia como hierárquica e hegemônica, é criticado na obra de Rosales pela sua parcialidade. O Homem Vitruviano continua porém a definir um ideal que exclui todos os “outros” antropomorfos – semelhantes, mas não normativos nas suas funções, não jovens, não homens, não heterossexuais, não urbanos, não brancos –, relegando-os à categoria de subalternos, inferiores, desviantes, patológicos, animais ou ainda seres monstruosos. E é na base desse modelo ideal que o ser humano ainda hoje se constrói, em busca de uma perfeição imaginada, por meio de contínuas negociações com as normas e os modelos dominantes.
A natureza humana: um, nenhum ou cem mil?
À base de cada processo de construção do self existe um discurso ou uma imagem antropológica de referência. Os modelos ideais, que inspiram e definem as possíveis “formas de humanidade”5, são obviamente produtos culturais, cujo componente ideológico é evidente. Uma rápida viagem em contextos distantes do ponto de vista geográfico ou histórico evidencia que cada modelo de humanidade é uma construção fundamentalmente ideológica, particular e não universalizável, ligada à epistemologia própria de um panorama cultural específico. As formas de humanidade não são definidas por um demiurgo, atribuídos pelo destino ou ainda sorteados em uma loteria genética universal. São antes inerentemente projetos em devir, invenções, convenções, criações ou ainda intervenções cosméticas (da etimologia grega kosmein, “criar uma ordem, organizar, produzir, desenhar”) ou técnicas (da palavra grega techne, “arte”, ligada ao conceito de poiesis). Não existe portanto uma única forma de humanidade, projeto divino ou domínio do fado, “ilha da verdade”, segundo Immanuel Kant6 (p. 264), ou ainda “rocha sólida e estável” à qual temos que desembarcar para não naufragar estre as ondas dos costumes, como diria René Descartes7 (p. 152). Existem somente formas particulares, modelos ideais que determinam projetos distintos, às vezes semelhantes, outras vezes divergentes, opostos e em certos casos até incompatíveis, como a História, com os seus “furores antropo-poiéticos”8 (p. 152) violentos e destrutivos, bem esta evidencia. Furores que reproduzem formas de poder e de opressão, padrões hegemônicos severamente exclusivos, que violentam, patologizam e inferiorizam outras possibilidades de estar no mundo. As teorias feministastlid-translation9-11, antirracistas12,13 e anticapacitistas14,15 ofereceram uma leitura das alterações corporais, assim como dos padrões ideais que as inspiram em termos de relações de poder e discursos normativos, deslocando assim o foco do indivíduo para a dinâmica social em que estão enredados. Os modelos ideais, que condicionam os objetivos e determinam as técnicas com as quais a construção dos seres humanos se articulam, promovem um corpo-norma com elevada capacidade de regulamentação e, portanto, instrumental para práticas de discriminação e marginalização dos “outros corpos” não conformes ao ideal. O ideal define o ser humano nos termos das características distintivas e particulares de uma determinada classe, idade, raça, identidade e orientação sexual. A diversidade dos “outros corpos” – não brancos, não jovens, não magros, não normativos nas suas funções – torna-se um “defeito” que é preciso corrigir. A análise das condições históricas e socioculturais da construção desses padrões normativos; as dimensões biopolíticas, afetivas e viscerais associadas à valorização de determinadas caraterísticas fisiológicas e comportamentais; e as consequências sociais da distinção entre o que é ou não desejável impõem um repensamento crítico que pode dar conta das relações políticas e econômicas envolvidas; dos fluxos transnacionais de valores e desejos; e das diferentes tonalidades e léxicos na base dos quais os sujeitos incorporam padrões discriminatórios e racializantes.
Em outros trabalhos, desenvolvi o conceito de anthropo-poiesis (do grego “poiein”, criar, construir, fazer), proposto pelo antropólogo cultural italiano Francesco Remotti8, que sustenta que “a humanidade não é dada, mas é constantemente construída e moldada”16 (p. 111) em relação à construção cultural da identidade de gênero, das emoções, da corporeidade ideal e das manipulações químicas, farmacológicas e estéticas do self17-22. Por meio da recolha e análise de diversos exemplos etnográficos, nesses trabalhos tentei evidenciar a relatividade e a natureza política e social do nosso saber mais indubitável, até da nossa biologia, dos sentidos, das percepções, sensações e emoções.
Estamos constantemente envolvidos em processos de “criação” de nós próprios, e este poiein é antes de mais nada um plassein (modelar, forjar) na base de valores e modelos ideais. A dimensão do plassein, do moldar a matéria biológica, remete para uma visão dos seres humanos como inerentemente plásticos: os processos antropo-poiéticos são portanto inerentemente antropo-plásticos enquanto contemplam diversas intervenções transformativas, desde as práticas subtis, íntimas, silenciosas, implícitas e muitas vezes inconscientes da socialização primaria até os projetos voluntários, intencionais, diretos a realizar uma forma ideal de humanidade.
No primeiro caso, trata-se de uma construção implícita ligada à imitação, incorporação e reprodução de gestos, práticas e comportamentos próprios de uma particular sociedade a partir dos primeiros anos de vida. Uma intervenção que comporta bricolagem e que contém ideias, valores, formas e objetivos que podem ser hegemônicos, não hegemônicos ou contra-hegemônicos; ambivalentes; e heterogéneos. Na socialização primária de fato estamos em um estado de fluxo constante e de mudança potencial e adquirimos informações de forma pragmática, por meio da repetição de ações quotidianas incompletas, fragmentárias, às vezes discordantes, incoerentes e inconciliáveis. Se a criação comporta escolhas e decisões, na nossa constituição dos nossos modelos ideais entram também as exclusões, as contradições, as possibilidades não realizadas, as escolhas alternativas, negativas e provisórias. Os cultural models tornam-se human motives23 em um processo de negociação constante entre as diversas possibilidades e potencialidades disponíveis, constituídas pelos discursos múltiplos e discordantes que coexistem em cada contexto social.
No segundo caso, entramos na dimensão da intencionalidade e da educação formal: um programa antropo-poiético específico que contém normas, valores e modelos ideais de humanidade. Esse programa comporta objetivos claros, um plano específico, responsabilidades individuais e juízos de valor que estabelecem o que será ou não considerado “normal”, “certo”, “adequado”, “aceitável” e “justo”. Aqui, abre-se uma dimensão que tem claras implicações políticas: compreender quem define e cria esses modelos, quem tem o poder de os divulgar e impor como hegemônicos e como estes se transformam em desejos e aspirações individuais torna-se uma questão muito séria. Quantas formas de humanidade existem, quais as caraterísticas desejadas, quais as intervenções para forjar o corpo na direção de modelos locais de humanidade? Quais são os padrões de beleza, excelência e sucesso considerados ideais no nível global? Que dinâmicas, tensões e (des)equilíbrios de poder essas hegemonias refletem? Quais aspirações sustentam a transformação da própria biologia por meio de tecnologias de melhoramento? O que pretendemos transformar, e até que ponto estamos dispostos a levar esses processos? Quais são as lógicas, os limites e as ameaças das manipulações corporais? Quais as discrepâncias entre o plano do imaginado, da ideação e o da realidade, isto é, entre o corpo como “desejado” e o corpo como “limite biológico”? Se identificamos os modelos ideais, quais as possibilidades de contestação, oposição, resistência ou inversão? É nessas questões ligadas a formas conscientes e voluntárias de manipulação corporal que se insere o projeto “EXCEL. The Pursuit of Excellence. Biotechnologies, enhancement and body capital in Portugal”.
O projeto EXCEL explora as dimensões intencionais da construção de um ser humano ideal, interpretando os processos de manipulação biológica como forma de bioinvestimento, em uma contemporaneidade cada vez mais caracterizada por um acréscimo da competitividade e da responsabilização individual. Se hoje assistimos a uma proliferação e democratização das tecnologias de manipulação corporal (pelos avanços da tecnologia e pela redução dos custos a esta associada), essas intervenções, de formas e intensidades diferentes dependendo dos diversos contextos, estão desde sempre presentes na história da espécie humana.
Francesco Remotti, que, em seu livro “Fare Umanitá. I Drammi dell’Antropo-poiesi” analisa os ideais de ser humano em diferentes ângulos do mundo, identifica e elenca bem 23 tipos de intervenções corpóreas8 (2013: 85). A sua tipologia compreende:
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Objetos externos
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Toilette
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Perfumes
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Cosmética, coloração e pinturas corporais
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Modelagem dos anexos da pele (como pelos, unhas e cabelos)
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Modelagem da estrutura muscular
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Modelagem da estrutura óssea do esqueleto
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Modelagem do comportamento e da postura
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Modelagem da voz
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Tatuagens
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Escarificações
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Queimaduras e marcações da pele
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Perfurações e inserções de objetos externos
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Biselamento dos dentes
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Amputações
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Cirurgia genital
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Cirurgia estética moderna
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Alimentação e dietas
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Intervenções químicas e hormonais
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Intervenções em preparação da morte
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Tratamento do cadáver
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Produção e tratamento dos restos humanos
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Dissolução
Remotti evidencia, na sua ampla análise comparativa, como o ser humano em qualquer latitude e momento histórico sempre distinguiu-se dos outros animais pela sua tensão criativa ascendente e pelo desejo de alterar e transformar constantemente a sua biologia por meio de artifícios técnicos. A grande diferença entre os seres humanos e os outros animais não está, portanto, na capacidade de fabricar e usar ferramentas (outros animais fazem e usam ferramentas), mas antes no efeito que essas tecnologias têm no processo do nosso devir. Nunca fomos somente um produto da evolução, mas antes agentes ativos da nossa evolução e dos projetos do nosso devir como espécie (plano filogenético) e como indivíduos (plano ontogenético). Os projetos do nosso devir nunca foram definidos de forma aleatória, mas sempre em relação às exigências e expectativas culturais determinadas pela posição particular que ocupamos no quadro social e pelas dinâmicas de poder que estas envolvem.
Mais do que qualquer outro animal, os seres humanos evoluíram criando objetos (de pedra, madeira, cerâmica e até de metais, ligas, vidro, papel, cimento, plásticos e silicone) e técnicas, por meio dos quais se construíram, definiram e reinventaram constantemente. A interpretação da natureza humana como um “continuum de inter-relações humano-prostéticas sinérgicas, coevolutivas e incorporadas’24 (p. 374) – proposta entre outros pelos autores da pós-fenomenologia que defendem a assim chamada Teoria do Engajamento Material24-29 – substituiu progressivamente as oposições binárias da tradição filosófica ocidental: natureza-cultura, corpo-mente, inato-construído, sujeito-objecto, material-ideal.
Pondo de lado as tradicionais visões dualísticas, nessa teoria que reprende em parte a teoria lamarckiana, a evolução biológica dos seres humanos é intimamente entrelaçada com a evolução social e cultural (e, portanto, tecnológica). Como o realizador Stanley Kubrick bem representa na primeira cena do filme de “2001: A Space Odyssey”, o homem sempre utilizou objetos e construiu ferramentas de forma intencional e deliberada e, dessa forma, alterou o ecossistema e o seu ambiente social. As próprias ferramentas que ele criou, por sua vez, transformaram a sua biologia. No curso do desenvolvimento da espécie, transmitimos por outras palavras aos nossos descendentes não somente os nossos genes, mas também nossas invenções, alimentos, ideias e transformações ecológicas que introduzimos. Desde sempre alteramos o mundo à nossa volta e este de consequência nos transforma intimamente. Nesse sentido, o ser humano sempre foi pós-humano: desde os primórdios alteramos a nossa biologia por meio da ingestão de plantas, alimentação, exercício, objetos e, hoje, por meio de produtos e tecnologias médicas, para fins terapêuticos e para a realização de um ideal de perfeição.
São ontologicamente humanas a tendência a desafiar e ultrapassar os limites impostos pela natureza e a modelar a realidade biológica na direção de uma imagem ideal; a habilidade de se adaptar a condições climáticas e socioambientais diferentes e até extremas; a capacidade de imaginar e de evoluir de forma tecno-mediata e tecno-poiética teleologicamente orientada e não geneticamente predeterminada; a liberdade de criar além das determinações genéticas, assim como o condicionamento dessas criações pelas determinantes sociais.
A evolução humana nessa interpretação é portanto não baseada em, e determinada por, um conjunto de instintos e equipamentos inatos, mas fruto de uma intenção artística (do grego téchne poetiké), que define o ser humano como demiurgo de si mesmo, homo faber sui, homo creator, homo technicus.
Essa perspectiva é ligada à teoria do homem como ser imperfeito ou ainda incompleto que precisa, no decurso da sua vida, aperfeiçoar-se à cultura, isto é, de aprender capacidades e conhecimentos que não são fornecidos pelo seu aparelho instintivo. Em outros trabalhos, evidenciei como, até do ponto de vista das neurociências, contrariamente aos outros animais, que são geneticamente fornecidos dos instintos necessários à sua sobrevivência e à sua adaptação, o ser humano, nos primeiros meses ou anos de vida, é um organismo prematuro; aberto; disponível; maleável; incompleto física e psicologicamente; e indefeso17,20. Justamente em virtude dessa sua indeterminação, após o nascimento, o horizonte do bebê é imenso, aberto a qualquer solicitação e todas as condições humanas estão virtualmente à sua frente. Será então a educação, suprindo a falta de orientações genéticas precisas, a desbastar esse imenso campo de possibilidades em favor de uma relação particular com o mundo que ele tornará próprio de uma maneira completamente pessoal.
Podemos encontrar as premissas dessa longa tradição do pensamento ocidental no mito de Prometeu, na afirmação de que a arte, imitando a natureza, permitiu ao ser humano preencher as suas lacunas originárias. É por causa dessa carência ontológica de instintos geneticamente determinados (segundo a mitologia grega, por esquecimento do titã Epimeteu que dotou todos os animas – com exceção do homem – de uma bagagem de qualidades necessárias à sobrevivência) que o titã Prometeu roubou dos deuses olímpicos Atenas e Hefesto, respectivamente, a habilidade técnica de criar e o fogo (a tecnologia), para que pudesse transformar a sua desvantagem originária físico-instintual em recurso.
A imagem do homem como ser desprovido de qualidades e características inatas é também retomada durante o Renascimento pelo filósofo Giovanni Pico della Mirandola30 em “De hominis dignitate oratio”, que explicitou a ligação entre a indeterminação da condição humana e o seu potencial de liberdade e responsabilidade na escolha dos seus futuros possíveis. Segundo Pico, a indefinição do projeto humano não resulta de um esquecimento, mas de uma falta de arquétipos nas mãos de Deus: “não havia nada nos arquétipos dos quais Ele pudesse moldar um novo rebento”30 (p. 4). No entanto, é dessa falta original que surge a divina capacidade autopoiética dos seres humanos:
Eu te coloquei no centro do mundo... Nem celeste nem terrestre, nem mortal nem imortal. Nós te fizemos. Tu, como um juiz indicado por ser honrado, és o modelador e fazedor de ti mesmo, podes esculpir-te a ti mesmo na forma que preferires. Podes descer até às naturezas inferiores que são brutas. Podes ainda ascender a partir do entendimento da alma até às mais elevadas naturezas que são divinas... É dado ao homem obter aquilo que escolhe e ser o que deseja30. (p. 5)
Em Pico, portanto, a ausência de determinações funcionais animais e de leis prefixadas gera a liberdade de os seres humanos se autodefinirem e de se adaptarem às mais diversas possibilidades. É em virtude dessa incompletude e imperfeição originária que o ser humano pode ser escultor de si mesmo e definir a sua forma e o seu destino – alcançando uma perfeição divina ou se degradando ao nível das bestas selvagens.
A natureza prometeica do ser humano constitui um tema constante da filosofia ocidental, desde Platão à Friedrich Nietzsche, passando por Giovanni Pico della Mirandola, Michel de Montaigne, Blaise Pascal, Giambattista Vico, Johann Gottfried Herder, Arnold Gehlen, Jean-Paul Sartre, Francis Bacon, Rainer Rilke, Helmuth Plessner e Martin Heidegger. Porquanto com nuances diferentes, segundo esses autores, a condição humana é definida pela possibilidade ilimitada de se construir, por meio de uma téchne que é imaginação, técnica, tecnologia, educação, projeto e exercício. É a téchne que afasta o ser humano do seu centro gravitacional genético, incrementando a sua capacidade imaginativa de se transformar, permear-se e se hibridar com a alteridade.
Por um lado, essa interconexão ontológica indica que não existe um “núcleo duro” ou uma essência autêntica que deve ser preservada, mas apenas um processo de devir contínuo no qual a humanidade é constantemente remodelada, alterada, aprimorada ou estendida por intervenções tecnológicas.
Por outro lado, seguindo a sugestão de Roberto Marchesini31, implica que a téchne não se limita a compensar ou a colmatar a indeterminação e incompletude da condição humana, mas antes é instrumento de emancipação das possibilidades e necessidades humanas. A incompletude não é um vazio a preencher, mas um potencial a ser explorado, de forma dinâmica e inovadora. Téchne na acepção positiva proposta por Remotti e Marchesini fala-nos do fantástico, do imaginado, da maravilha, do inusual, do promíscuo, do disforme e do disruptivo. Téchne é hybris prometeica, libido scendi, intencionalidade, desejo, artifício, máquina, prodígio, fabricação, invenção. É a possibilidade de ultrapassar os limites da Biologia e redefinir corpos e subjetividades. Os modelos ideais que criamos e que nos criam, que imaginamos e que nos inspiram são todavia produtos culturais e portanto emprenhados de normas e valores definidos por quem tem o poder de os impor. Quando falamos do poder nas práticas de autoconstrução, não falamos das suas dimensões restritivas, mas das construtivas, que se expressam por meio de narrativas disciplinares subtis e imperceptíveis, em modelos sociais de reconhecimento coletivo, sonhos e desejos. A autopoiesis implica em negociações complexas e constantes com as normas e valores dominantes que são produtos históricos e sociais particulares.
Admitir que esses modelos são frutos de imaginários ligados a panoramas históricos e culturais específicos e transeuntes significa todavia enfraquecer drasticamente a sua força e eficácia motivacional e transformativa. Torna-se portanto imperativo ocultar a abertura dos horizontes de criação, realização e liberdade, “mascarar a liberdade para limitar a angustia da falta de certezas”32 (p. 534) e esconder a invenção por meio da criação de uma ilusão ulterior. A ilusão da existência de um núcleo duro – originário, comum, universal, permanente, estável e sólido – edificado em uma rocha segura por baixo das areias móveis da cultura e dos costumes, segundo uma conceção estratigráfica do ser humano postulada, entre outros, por Descartes. Parafraseando Luigi Pirandello34, “um” artifício, para não pensar que não temos “nenhum” núcleo duro que nos sustenta, mas somente “cem mil” formas de humanidade e ainda mais destinos possíveis para inventar.
Homo plasticus, ou do sempre fomos pós-humanos
I’m a Barbie girl in a Barbie world
Life in plastic, it’s fantastic
You can brush my hair, undress me everywhere
Imagination, life is your creation(b)
Se é verdade que o homem é - e sempre foi - uma criatura biotecnológica em devir, é também verdade que a aceleração dos progressos tecnológicos dos últimos cinquenta anos transformou radicalmente a forma com a qual alterar a nossa biologia. Os objetivos passíveis de serem alcançados, os desejos de consumo e até o próprio horizonte de possibilidades do humano expandiram-se exponencialmente. O nosso universo ecológico, tecnológico e cultural está a ampliar-se. Temos cada dia mais produtos e procedimentos destinados ao melhoramento humano, muito acessíveis, baratos e menos invasivos. Torna-se normal ocupar a pausa do almoço com tratamentos de rejuvenescimento corporal e facial, tomar suplementos e efetuar procedimentos destinados a remodelar a silhueta, eliminar definitivamente pelos cutâneos, estrias, acne e qualquer outra marca epidérmica indesejada, assim como efetuar implantes capilares ou outras intervenções pouco invasivas e economicamente acessíveis.
Tornam-se ao mesmo tempo parte do imaginário comum as interações homem-máquina; as bioimpressoras; os prostéticos mioelétricos multifunção com retorno sensorial; as práticas genômicas, nanotécnicas, informáticas e robóticas; as inteligências artificiais; os organismos geneticamente modificados; os implantes ciborgânicos; os embriões crispados; os clones; ou ainda as crianças geneticamente modificadas.
Se sempre efetuamos alterações em nossa biologia de forma voluntária, programática e consciente, como vimos antes na ampla tipologia compilada por Francesco Remotti, é verdade que hoje a ampla democratização e acessibilidade dos produtos e das intervenções destinadas às modificações somáticas (por razões terapêuticas ou de aperfeiçoamento) nutrem a esperança de poder reparar os desgastes do envelhecimento; limitar as patologias; melhorar aspecto e comportamento; potenciar faculdades naturais; e até gerar capacidades inéditas.
As promessas do progresso estão associadas a um conjunto de imaginários utópicos, de expectativas sobre futuros sociotécnicos e a novos regimes de esperança relacionados com o melhoramento do individuo e da espécie humana, por meio da manipulação do genoma. A loteria cromossômica torna-se parte de um passado obsoleto para dar espaço à liberdade e à responsabilidade da autodeterminação identitária. É hoje possível alterar processos e condições que até há pouco tempo considerávamos imutáveis: caraterísticas somáticas, marcadores “raciais”, órgãos genitais e caracteres sexuais secundários, e até as formas de procriar e de morrer. Em um futuro próximo será possível programar um ser humano com as características escolhidas, evitando assim estarmos nas mãos de Fortuna, a deusa romana do acaso e do destino, cega distribuidora de uma genética aleatória.
O corpo redefinido, reconceptualizado e ressignificado torna-se não somente lugar semântico que condensa relações sociais e de poder, mas também teatro de novos imaginários e desejos.
O corpo sempre foi espaço flexível e plástico; veículo de comunicação simbólica; espelho de contradições e paradoxos sociais; hegemonias; lutas emancipatórias e tendências repressivas; lugar de reprodução de valores, mas também arena privilegiada para batalhas identitárias, campo de resistência e transformação de significados impostos. Desde sempre, ornamentos, alterações e tecnologias do corpo foram usadas para reproduzir normas e representar variáveis sociais, como classe, gênero, grupo de pertença, etnia, idade, estado civil, profissão e credo religioso. Se em outros contextos culturais e períodos históricos a função informadora do corpo estava vinculada ao posicionamento social na hierarquia das classes, hoje em dia, no âmbito discursivo euramericano, o corpo fala principalmente da individualidade do sujeito: trata-se de uma questão de moralidade, autovalorização, responsabilidade e controle. Temos o corpo que merecemos, e se este se afasta dos modelos hegemônicos de perfeição é porque somos negligentes, desleixados e preguiçosos. Disciplina e controle corporal portanto extrapolam as imposições do posicionamento social, e o espaço e o tempo litúrgico do ritual (com os seus constrangimentos exteriores sobre o corpo, suas normas, obrigações e interdições) para entrar no âmbito da esfera individual, feita de valores, aspirações, desejos, expectativas, anseios, imaginários e consumos.
As novas disciplinas corporais assumem portanto forma voluntária: são responsabilidades e escolhas individuais; assistidas pelas tecnologias médicas; e incentivadas e legitimadas pelo discurso mediático. Os discursos são:
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Médico – cuidado da pele, medidas ideais; índices de gordura corporal; saúde dos cabelos; retenção hídrica; envelhecimento; práticas de higiene; prevenção de patologias e de condutas de risco; e evitamento de excessos.
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Moral – autoestima, valorização pessoal, responsabilidade, força de vontade, sucesso e empenho.
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Mediático – globalização de imagens virtuais de beleza e de sucesso; e tutoriais e fóruns de troca de experiências.
Tais discursos garantem a eficácia desses novos modelos de dominação dos corpos, enquanto menos explícitos e declarados. Já não se trata de práticas destinadas a disciplinar corpos e comportamentos, mas da adoção de ideais liberais de cidadania responsável, autonomia, empoderamento e capacitação. Estamos a falar em valores, aspirações, desejos e atitudes individuais que estão ligados a um modelo de corpo-norma, a consumos e a modos de vida específicos, ligados à imagem utópica do sucesso, do prestígio, da sedução e da mobilidade social.
O corpo-norma é um ideal fabricado, mercantilizado, individualizado e prescritivo nos comportamentos e nas suas práticas, que se constrói com a força da repetibilidade e replicabilidade ao infinito da imagem democratizada e divulgada on-line, definindo tensões dinâmicas entre satisfação/desejo e insatisfação/alteração (correção) de elementos dissonantes com os padrões dominantes (defeitos) que conduzem o consumidor consciente entre as diferentes opções do mercado segmentário do aperfeiçoamento. É o corpo produzido pelas novas tecnologias médicas (endocrinologia, engenharia genética, cirurgia, dermatologia cosmética) e da representação (internet, televisão, imagem digital com as suas ferramentas de edição sempre mais sofisticadas). A especificidade dessas novas tecnologias que o Preciado define de fármaco-pornográficas é a de tomar a forma do corpo que controlam, de se transformar em corpo, até se tornarem subjetividades34 (p. 71).
Herdeiro da nova indústria do design corporal (com as suas biotecnologias minimally invasive, low-cost, lunchtime, do-it-yourself) e reflexo da cultura visual mediática e comercial do Instagram, o nosso novo protagonista é o homo plasticus.
O homo plasticus não é um objeto imóvel, fixado por determinantes genéticas, mas sim um sujeito que se assume como inerentemente em processo de transformação, projeção e transição. A sua “plastificação” é um ato consciente de autodeterminação mediática. O tlid-translationhomo plasticustlid-translation é um “tlid-translationtransformertlid-translation”, um fenômeno em progresso, mutante e em constante adaptação às expectativas e exigências do público, que circula em um espaço ambivalente entre a imagem ideal impossível e o corpo concreto; o sintético e o somático, a ilusão e a realidade, a fantasia e o desejo, o objeto de consumo e o sujeito consumidor, o virtual e o real, o público e o privado.
Se, como diria Guy Debord, “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”35 (p. 14). O nosso homo plasticus é o protagonista desse espetáculo de imaginários, ao mesmo tempo sujeito consumidor e objeto consumível. O seu palco é o espaço virtual da mercantilização, objetificação e “pornificação” dos corpos. O espetáculo é o da exposição ao olhar voraz dos seguidores, da validação e da recompensa dos likes, exemplificado pelo Instagram, emblema das “pornotopias” das quais nos fala Preciado36 e de seus processos relacionais. O homo plasticus é uma fiction somatopolítica produzida por um conjunto de tecnologias de domesticação do corpo, ou melhor, de um “conjunto de técnicas farmacológicas e audiovisuais que fixam e delimitam as nossas potencialidades somáticas e funcionam como próteses de subjectificação”34 (p. 105).
Em primeiro lugar, a relação ativa entre procura e oferta no mercado das imagens. Como atrair atenção e ganhar seguidores? Qual a relação entre exposição de corpos e estilos de vida e benefícios econômicos? Em segundo lugar, a criação de uma mise en scène, que comporta a exposição da intimidade e a criação de novas formas de relacionamento social. De quais maneiras as imagens que circulam em ambientes virtuais agenciam relações? De que relações estamos a falar? Em terceiro lugar, a construção da imagem. Qual a mensagem veiculada, a seleção do enquadramento, o recurso aos filtros e às outras ferramentas de edição digital para a melhoria da imagem, as #hashtags escolhidas? Que tipo de subjetividade mediática é produzida nessa performance?
O homo plasticus persegue um ideal de perfeição, que espelha os elevados padrões de desempenho, saúde e beleza exigidos pela sociedade contemporânea, usando e promovendo produtos, serviços e tecnologias de design corporal que já não atuam apenas no nível superficial do corpo, mas consentem a sua correção penetrando as fronteiras da pele. O corpo abre-se à alteração cosmética – no seu significado etimológico de criação de ordem, harmonia, beleza e organização do caos em um desenho definido. O homo plasticus mediático e mercantilizado conjuga a exibição do corpo com a manipulação corporal superficial (cosmética da pele, maquiagem, decorações efêmeras, perfumação, depilação, penteados e coloração dos cabelos, joalheira, vestuário) e a intervenção corporal profunda (cirurgias plásticas mais ou menos invasivas; fillers; lasers; peelings; implantes; prostéticos; materiais sintéticos; substâncias endócrinas; e recursos dietéticos, químicos e hormonais que intervêm nos processos biológicos). Corpo prostético e sintético construído por produtos energéticos; alimentos hiperproteicos e superalimentos; low-carb e low-cal; químicos para a alteração dos ritmos circadianos, dos níveis de energia, concentração, memória, atenção, criatividade, da qualidade e do prolongamento do desempenho sexual e do equilíbrio emocional; branqueadores de dentes e pele; lasers; peelings; toxinas; preenchimentos e infiltrações subcutâneas; terapias hormonais substitutivas, implantes capilares ou de estrogênio, progesterona, estradiol e testosterona para afinar a silhueta, melhorar a pele, reduzir a retenção de líquidos, rejuvenescer e tonificar o corpo; órteses e próteses farmacológicas, naturais ou em biomateriais; e biotecnologias celulares, moleculares, plásticas e líquidas de produção de narco-subjetividades-plásticas-high-tech.
Representação emblemática do homo plasticus e da ética da (auto)determinação e do (auto)controle sobre o corpo, a ação, a subjetividade, é a tecno-Barbie, protótipo do corpo plástico e sintético que condensa gênero, tecnocultura da exibição mediática, consumo, glamour, estilo e tecnologia. Pelas palavras de Preciado:
[...] eternamente jovem e supersexualizada, quase totalmente estéril e sem ciclo menstrual mas pronta para a inseminação artificial, acompanhada por um supermacho estéril cujas ereções são produzidas tecnicamente graças a uma combinação de Viagra e códigos áudio-visivos pornográficos transmitidos por via informática.34 (p. 193)
Corpo rígido e ao mesmo tempo potencialmente em transformação; emblema da metamorfose exibida que circula constantemente no espaço ambivalente do virtual; objeto de consumo; mercadoria manipulável e comercializada; e símbolo do sujeito consumidor das tecnologias da eterna juventude e da perfeição corporal; o da Barbie é um designer body, corpo-imagem símbolo da vaidade necessária à satisfação das exigências da contemporaneidade. A Barbie promove os padrões hegemônicos euroamericanos de corpo plástico, transformável e fluido. É magra, alta, jovem, branca, loira, heterossexual, sem pelos, sem marcas, as suas pernas extremamente longas, tonificada, perfeitamente lisas e brilhantes, a cintura extraordinariamente fina, o peito cheio e escultural, o cabelo platinado, a maquilhagem perene, sexy, porém, anatomicamente incompleta, pela ausência de genitais. Um corpo capital, manipulável e mutante na sua forma e significados, que transgride barreiras, cria novas possibilidades, fusões inéditas de materiais. Um corpo em um “estado-de-ser-trans”, como diria Jean Baudrillard37: ao mesmo tempo valioso capital social (integração social), capital simbólico (estatuto) e capital econômico (melhores trabalhos, salários, mobilidade profissional). Um corpo real que imita a flexibilidade e realiza as possibilidades da matéria plástica, ao mesmo tempo que a incorpora em forma de prostéticos, implantes, tecnologias líquidas injetáveis que se fundem e imitam a consistência da carne. Um corpo que, na sua idealização da perfeição, reduz a diversidade dos “outros corpos” – não brancos, não jovens, não magros, não cisgêneros, não normativos nas suas funções – a “defeitos” que é preciso corrigir. A análise das condições históricas e socioculturais da construção desses padrões normativos; as dimensões biopolíticas, afetivas e viscerais associadas à valorização de determinadas caraterísticas fisiológicas e comportamentais; e as consequências sociais da distinção entre o que é ou não desejável impõem um repensamento crítico que possa dar conta das relações políticas e econômicas envolvidas; dos fluxos transnacionais de valores e desejos; e das diferentes tonalidades e léxicos na base dos quais os sujeitos incorporam padrões discriminatórios e racializantes.
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Pussetti C. Nós, pós-humanos: da gênese à liberdade. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200306 https://doi.org/10.1590/interface.200306
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Financiamento
Este artigo é custeado pelo projeto “EXCEL: The Pursuit of Excellence. Biotechnologies, enhancement and body capital in Portugal”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), coordenado pela doutora Chiara Pussetti (Grant Agreement: PTDC/SOC-ANT/30572/2017).
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Jun 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
29 Maio 2020 -
Aceito
21 Nov 2020