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Reflexões sobre agendas de cuidado e população negra brasileira

Reflections on care agendas and the black population in Brazil

Reflexiones sobre agendas de cuidado y población negra brasileña

Resumos

A partir do tema central “gênero, cuidado e periferia”, o artigo foi desenvolvido em quatro eixos, sendo eles: a ausência/dificuldade de acesso a direitos vivenciada pela população negra, em especial o que tange ao direito à educação, com centralidade na raça; os efeitos da Covid-19 e a racialização; os efeitos da Covid-19 na população negra, com ênfase nas mulheres negras; e reflexões sobre o cuidado a partir de perspectivas/experiências da população negra. O texto foi estruturado na perspectiva de diálogo mais direto, partindo de reflexões construídas em textos de minha autoria/coautoria publicados anteriormente. Ao dialogar com autoras que estão no campo das escrevivências e da educação antirracista, o texto centraliza gênero e raça e aponta as dificuldades e possíveis saídas para que a população negra esteja na zona do ser, principalmente para mulheres negras.

Palavras-chave
Gênero; Agendas de cuidado; Racismo; Estratégias da população negra


Centered around the core theme “gender, care and the periphery”, this article is structured into four main areas: lack/difficulty of access to rights experienced by the black population, especially the right to education, focusing on race; the effects of Covid-19 and racialization; the effects of Covid-19 on the black population, with emphasis on black women; and reflections on care from the perspective/experiences of the black population. The text uses more direct dialogue, drawing on reflections constructed in texts written or co-authored by the author. By dialoguing with authors from the field of writing and anti-racist education, the text centralizes “gender and race” and points out the difficulties and possible ways out so that the black population, especially black women, can be in the zone of being.

Keywords
Gender; Care Agendas; Racism; Strategies of the black population


A partir del tema central “Género, cuidado y periferia”, el artículo se desarrolló en cuatro ejes, a saber: la ausencia/dificultad de acceso a derechos vivida por la población negra, en especial en lo que se refiere al derecho a la educación, con centralidad en la raza; los efectos de la Covid-19 y la racialización; los efectos de la Covid-19 en la población negra, con énfasis en las mujeres negras; y reflexiones sobre el cuidado a partir de perspectivas/experiencias de la población negra. El texto se estructuró desde la perspectiva del diálogo más directo, partiendo de reflexiones construidas en textos de los que soy autora/coautora publicados anteriormente. Al dialogar con autoras que están en el campo de las escrituras y vivencias y de la educación antirracista, el texto centraliza “genero y raza” y señala las dificultades y posibles salidas para que la población negra esté en la zona del ser, principalmente para mujeres negras.

Palabras clave
Género; Agendas de cuidado; Racismo; Estrategias de la población negra


A gente combinamos de não morrer. Deve haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida menos cruel. [...] Eu sei que não morrer, nem sempre é viver. Deve haver outros caminhos, saídas mais amenas.

(Conceição Evaristo)

O artigo que será apresentado a seguir é resultado de diálogos realizados a partir da mesa “Gênero, cuidado e periferia”, no âmbito do evento “Reconfigurações nas agendas de cuidado em tempos pandêmicos: reflexões sobre o Brasil e a Argentina”. Agradeço às organizadoras do evento – Prof.ª Rosamaria Carneiro(b (b) A partir dos diálogos estabelecidos no evento, a Prof.ª Rosamaria Carneiro apresentou como possibilidade para novas reflexões discussões sobre raça, saúde e colonialidade, em especial, no contexto comparado. Agradeço a indicação! ), Prof.ª Danielle Ferreira Medeiro da Silva de Araújo e Prof.ª Valeria Llobet –, pelo convite para estabelecer o diálogo sobre as agendas de cuidado e população negra.

É necessário deixar delimitado desde o início o meu lugar de fala. Sou uma mulher negra, realizo minhas leituras e pesquisas a partir das minhas experiências e do diálogo do Direito com outras áreas do conhecimento. O meu diálogo é construído a partir da ecologia dos saberes, do encontro de saberes ou do saber localizado/corpo-política. É um movimento diário de pensar, escrever, sentir e ser a partir do Sul(c (c) O Sul faz referência ao conjunto de países que foram alijados do acesso aos benefícios do processo de desenvolvimento, que tiveram os seus conhecimentos segregados e definidos como não-ciência. Antes da pandemia por Covid-19 esta população morria em altos números em decorrência da ausência de acesso a tratamentos existentes, mas que eram/são negados pelos governos do norte. Não é uma definição geográfica, posto que, não inclui por exemplo, Nova Zelandia e Australia, por se alinharem as práticas dos países do norte. Portanto, pensar a partir do Sul é pensar a partir das epistemologias que compõem a resistência dos povos do Sul. ); da minha ancestralidade; das minhas vivências familiares; e a partir da vida e da obra de intelectuais negras, das histórias de vida e da obra de intelectuais indígenas e de outras populações subalternizadas.

Se eu estou no Sul, para pensar as reconfigurações nas agendas de cuidado em tempos pandêmicos e realizar reflexões sobre o Brasil e a Argentina, é o Sul também que mostrará os caminhos para um futuro mais fraterno, com menos ódio e mais cuidado/afetividade. Para refletir com vocês, a nossa conversa foi pensada a partir dos itens a seguir: (I) ausência/dificuldade de acesso a direitos, em especial, direito à educação, com centralidade na raça; (II) Covid-19 e racialização; (III) efeitos da Covid-19 na população negra, com ênfase nas mulheres negras; e (IV) reflexões sobre o cuidado a partir de perspectivas/experiências da população negra.

Ademais, o texto foi estruturado a partir das escrevivências(d (d) Uma escrita realizada a partir das escrevivências não busca ser neutra, mas sim pautada nas vivências, dores, lutas e conquistas que o corpo que fala vivenciou e vivencia, assim como no resgate do caminho percorrido por nossas ancestrais. É uma virada epistêmica em que corpos negros falam e incomodam as estruturas hegemônicas, posto que a intenção com a nossa escrita não é niná-los em seus sonhos injustos. Para mais informações, ver Evaristo1. ), conceito cunhado por Conceição Evaristo11 Evaristo C. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: Anais do XI Seminário Nacional Mulher e Literatura; 2 a 5 de agosto de 2005; Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ; 2005. como ferramenta metodológica, com poucas citações, mantendo a perspectiva de diálogo mais direto, com reflexões que tomam como ponto de partida artigos de minha autoria/coautoria publicados anteriormente e os textos que sustentam as afirmações foram apresentados na bibliografia.

A tentativa aqui, dialogando com Conceição Evaristo, é pensar em como garantir uma vida menos cruel, em caminhos e saídas mais amenas para a população negra, em que esta população esteja na zona do ser22 Frantz F. Pele Negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora; 2012.,33 Pires T. Racializando o debate sobre direitos humanos. Rev Int Direitos Humanos. 2018; 15(28):65-75. e do respeito à sua humanidade.

Diálogo sobre acesso a direitos com centralidade na raça

Lélia Gonzalez, em seus textos, escreveu que estão sempre tentando nos colocar no que as elites consideram o nosso lugar, ou seja, nas favelas, nas periferias, no subemprego e na desumanização. Nas palavras da intelectual negra:

[...] Por que vivem dizendo para a gente se pôr no lugar da gente? Que lugar é esse? Por que será que o racismo brasileiro tem vergonha de si mesmo? Por que será que se tem “o preconceito de não ter preconceito” e ao mesmo tempo se acha natural que o lugar do negro seja nas favelas, cortiços e alagados?44 Gonzalez L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Silva LAM. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. São Paulo: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais; 1983. p. 223-44. (p. 238)

Apesar das garantias legais, a população brasileira não acessa de forma igualitária o direito à educação, e os efeitos do pouco ou nenhum acesso – ou ainda, o acesso de baixa qualidade e criticidade – durante a infância e a adolescência resulta nas desigualdades de acesso a cargos de poder e a altos salários na vida adulta, ou seja, há a permanência das desigualdades.

Com um processo de abolição inacabado, executado para favorecer as elites, a superação das desigualdades entre negra(o)s e branca(o)s na sociedade brasileira ainda não é uma realidade. Para superá-las, é preciso refletir a respeito ao direito não só à educação; mas também a uma educação voltada para o combate ao racismo e à superação das desigualdades; ou seja, é necessário que seja implementada uma educação antirracista que garanta autonomia.

Embora a inferiorização da população pobre, indígena e negra, associada à dúvida quanto a sua condição de educabilidade, estivesse presente desde início da colonização, essa representação se consolida por época da organização do Estado-nação. A partir da década de 1910, desenvolveram-se os movimentos nacionalistas, nos quais os debates de políticos e intelectuais trouxeram a questão da mestiçagem como “problema recorrente”, utilizado para criminalizar a população negra. Alguns intelectuais clamavam pela formação da raça brasileira, a ser conduzida pela escola55 Veiga CG. Discriminação social e desigualdade escolar na história política da educação brasileira (1822-2016): alguns apontamentos. Hist Educ. 2017; 21(53):158-81. doi: 10.1590/2236-3459/73607.
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, e a diversidade foi associada à ameaça e à desordem, sendo desqualificada a humanidade da população negra.

Portanto, o ambiente escolar foi local de legitimação das violências coloniais, do sistema panóptico de controle dos corpos e mentes de negras e negros, seja no discurso, seja no conteúdo das aulas e dos livros. O que hoje é vendido como meritocracia busca esconder as diversas desigualdades que estruturam a sociedade brasileira: enquanto os filhos das elites “alcançam o sucesso por mérito”, a população negra e as demais populações subalternizadas são estigmatizadas com o fracasso. A partir da meritocracia, realiza-se a comparação de dois mundos antagônicos em que os filhos das elites acessam os capitais simbólicos, sociais, econômicos, culturais e religiosos, em detrimento dos filhos da população negra.

O Estado brasileiro executou várias ações desde o período colonial e imperial que impediam o acesso da população negra aos espaços educacionais, inclusive com a elaboração de impedimentos legais, restringindo o acesso aos escravizados e não vacinados, por exemplo66 Araújo DFMS, Campos LL, Santos WCS. Educação da população negra no Brasil: desigualdades educacionais e políticas de ações afirmativas. In: Araújo DFMS, Carvalho J, Campos LL, Santos WCS, organizadores. Relações étnico raciais e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Pembroke Collins; 2020. p. 227-45.. Mesmo após a Constituição de 1988 e a universalização formal do acesso à educação, o histórico de exclusão continua se refletindo no acesso desigual e na qualidade da educação disponibilizada a essa população. Exemplo de nossa reflexão foi a continuidade do ano escolar em período pandêmico, em que a população branca sofreu menor impacto, assim como na realização das provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), em que a participação da população negra foi impactada negativamente77 Duran P, Puente B. Com pandemia, participação de negros no ENEM cai 7,5 pontos percentuais [Internet]. CNN Brasil, 20 Nov 2021 [citado 30 Nov 2022]. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/com-pandemia-participacao-de-negros-no-enem-cai-75-pontos-percentuais
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Covid e racialização

O mundo vem atravessando, desde o início do ano de 2020, uma crise de saúde pública causada pela Covid-19. Em março do mesmo ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) caracterizou a Covid-19 como pandemia, ou seja, a doença alcançou a população mundial. A crise na saúde trouxe efeitos multidimensionais, porém, afetou de forma mais grave as minorias, ou, nas palavras de Richard Santos, a maioria minorizada88 Santos R. Maioria minorizada: um dispositivo analítico de racialidade. Rio de Janeiro: Editora Telha; 2021.. De acordo com Boaventura de Souza Santos, a pandemia ganha caráter global quando atinge países do Norte, posto que outras doenças que também mataram muitas pessoas no Sul e nas periferias globais não resultaram na decretação de estado de pandemia, ou seja, “os corpos racializados e sexualizados são sempre os mais vulneráveis perante um surto pandémico”99 Santos BS. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Edições Almendina; 2020. (p. 26).

Os dados de 2021 apontavam que a contaminação e o número de mortos estavam concentrados em países periféricos, do Sul. Dados divulgados pelo Butantan em 2022 informam que a proporção de mortes não relatadas em relação às relatadas é muito mais elevada na África Subsaariana (14,2 vezes maior) e no sul da Ásia (9,5 vezes maior) do que em outras regiões. As diferenças podem ser explicadas pela falta de testes de diagnóstico e problemas com a notificação de mortes por Covid-191010 Instituto Butantan. Número de mortes globais por Covid-19 pode ser três vezes maior do que os registros oficiais, indica estudo americano [Internet]. São Paulo: Instituto Butantan; 2022 [citado 30 Nov 2022]. Disponível em: https://butantan.gov.br/noticias/numero-de-mortes-globais-por-covid-19-pode-ser-tres-vezes-maior-do-que-os-registros-oficiais-indica-estudo-americano
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A riqueza dos países do Sul garantiu a prosperidade dos países do Norte, fenômeno ilustrado, por exemplo, na miserabilidade do Haiti e na riqueza da França, resultando no processo secular de “estratificação da injustiça”1111 Mantelli GAS, Mascaro LDM. Direitos humanos em múltiplas miradas. São Paulo: ESA OAB SP Publicações; 2021., que fica ainda mais evidente em período de pandemia, no qual as desigualdades preexistentes contribuíram para distribuição desigual de testes, remédios, materiais de proteção, vacinas, atraso nas doses de vacinas e escassez de seringas, citando apenas algumas dificuldades no combate à pandemia decorrentes das desigualdades.

Escutamos muito a frase “a pandemia atinge todas as classes e raças”. Porém, será que atinge de forma igualitária? Outra questão que o estado pandêmico evidenciou foi a dimensão biopolítica estatal, que Boaventura de Souza Santos denominou de “pedagogia do vírus”99 Santos BS. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Edições Almendina; 2020., que aponta para a seguinte questão: quais pessoas merecem viver e quais merecem morrer?(e (e) Nas palavras de Achille Mbembe12, o “[...] racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, ‘aquele velho direito soberano de morte’. Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado” (p. 128). ) As pessoas experienciaram a pandemia de forma diferenciada – em especial, as mulheres, que, por serem maioria na economia do cuidado e na área de Saúde, ficaram na linha de frente no combate à Covid-19. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), 70% da força laboral na Saúde é composta por mulheres, que também são responsáveis pelos cuidados das filhas, dos filhos e das pessoas idosas.

Além disso, “as mulheres que trabalham no setor de saúde e cuidados ganham quase 25% menos do que os homens. A diferença salarial, destacada no novo relatório publicado por agências da ONU, é maior que em outros setores econômicos”1313 Organização das Nações Unidas. Mulheres são maioria na saúde e cuidados, mas ganham 24% menos que homens [Internet]. Genebra: ONU; 2022 [citado 30 Set 2022]. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/07/1795492
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. Essa diferença salarial atinge violentamente as mulheres negras, que são a base da pirâmide, recebendo menos do que o homem branco, a mulher branca e o homem negro1414 Organização das Nações Unidas. Mulheres negras e Covid-19 [Internet]. Genebra: ONU; 2020 [citado 30 Set 2022]. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/12/COVID19_2020_informe2.pdf
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A população negra sofre também com o racismo ambiental ou a divisão racial do espaço1313 Organização das Nações Unidas. Mulheres são maioria na saúde e cuidados, mas ganham 24% menos que homens [Internet]. Genebra: ONU; 2022 [citado 30 Set 2022]. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/07/1795492
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, que se caracteriza por injustiças sociais que recaem sobre o meio ambiente em sentido amplo; coletividades; e raças e etnias socialmente vulneráveis. O racismo ambiental se efetiva por meio de práticas decisórias e diretrizes que resultam em danos ambientais e efeitos nocivos que afetam as populações e os grupos socialmente vulneráveis, recortados pelos marcadores sociais interseccionais de raça, etnia, gênero e classe. Ou seja, no caso em discussão, as elites ficam com o bônus e a população negra com o ônus do chamado “desenvolvimento econômico”(f (f) Conforme dados coletados pela organização social TETO Brasil nas favelas de São Paulo, em 2016, 70% dos moradores de favelas eram negros. A pobreza tem cor e uma das ameaças que atingem os negros que vivem nessa situação de vulnerabilidade em favelas é o genocídio da juventude negra. (A pobreza brasileira tem cor e é preta. Teto Brasil, 21 nov. 2021. Disponível em: https://teto.org.br/a-pobreza-brasileira-tem-cor-e-e-preta/. citado 30 Set 2022.) ).

Como exemplo dos ônus que recaem sobre as populações vulnerabilizadas, no início do século XX, ocorreu no Rio de Janeiro a Revolta da Vacina, durante um período de grandes surtos de doenças virais1515 Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Secretaria Especial de Comunicação Social. 1904: Revolta da Vacina: a maior batalha do Rio. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; 2006. (Cadernos da Comunicação. Série Memória). . Assim como a varíola do século XX, a Covid-19 tem como alvo uma população muito específica: a população negra, que há séculos é marcada pela ausência de garantias legais, acesso a direitos, serviços básicos e igualdade substancial.

Na construção do plano de combate a doenças, ainda há pouca participação popular. Retomando o contexto da Revolta da Vacina, um ponto importante é a ausência de participação da população na construção do plano de combate à epidemia, pois, de cima para baixo, foi imposto pela elite o que deveria ser feito para combatê-la. Os modos de vida, as epistemologias e as cosmologias dos povos negros não foram levadas em consideração, posto que tais povos originários do continente africano e da diáspora tinham outra forma de se tratar e de se relacionar com a doença.

Para a população negra – em especial, para os participantes do culto aos orixás, voduns e inkices –, havia outra forma de combate, que deveria ser posta em prática a partir dos rituais religiosos direcionados a Omolu, Obaluaiê, Nsumbu, Kavungu e outras divindades que são relacionadas à terra e à cura, conduzidos por pessoas aptas a realizá-los1616 Braga A, Izaú VR. Da revolta da vacina ao povo sem vacina contra a Covid-19: reflexões sobre pandemia, raça e exclusão social. Rev Aurora. 2021; 14(2):73-90. doi: 10.36311/10.36311/1982-8004.2021.v14.n2.p73-90.
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Ou seja, a Revolta da Vacina é uma insurgência popular contra as várias violências impostas pelo estado de exceção em 1904 e as violências anteriores, podendo também ser considerada, inclusive, como uma luta pela liberdade religiosa. Atualmente, a partir de várias demandas do movimento negro, está em vigor a Política Nacional da Saúde Integral da População Negra, que reivindica que, além da medicação e da vacinação para o combate às doenças, o Estado deve observar as práticas de cura ancestrais, tais como chás, benzimentos e rezas. Contudo, essa política pública ainda encontra grande resistência para sua implementação, sendo vários os casos de sacerdotes e sacerdotisas de religiões afro-brasileiras impedidos de realizar suas práticas de cura em ambientes hospitalares1717 Torres L. Mãe de santo relata que foi impedida de entrar no Hospital Carlos Chagas para ato religioso em paciente [Internet]. Rio de Janeiro: g1 RJ, 3 Nov 2022 [citado 10 Nov 2022]. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/11/03/mae-de-santo-relata-que-foi-impedida-de-entrar-no-hospital-carlos-chagas-para-ato-religioso-em-paciente.ghtml
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e prisionais.

Os efeitos da Covid-19 na população negra (com ênfase nas mulheres negras)

As mulheres negras, em toda a diáspora africana, tiveram um papel – social, religioso, cultural, político e emocional – fundamental na construção de locais de vida; na sobrevivência, na luta por direitos e por reconhecimento da humanidade de pessoas negras; e nos atos de contestação à violência estrutural e contínua. Os pensamentos, as reflexões, os escritos, as práticas e a participação dessas mulheres no clamor por justiça e nas estratégias políticas de garantia de suas próprias vidas, da vida de seus familiares e de suas comunidades são importantes e potentes até quando a morte tenta interrompê-las.

Em que pese as mulheres negras serem responsáveis por diversas agências e possuírem identidades múltiplas, são muitas vezes representadas como aquelas que estão para servir, disponíveis, estando, ainda no tempo presente, associadas no ideário da sociedade brasileira ao trabalhado doméstico, à mãe preta e à mucama permitida.

Desde os primeiros anos da colonização/das violências coloniais, o trabalho, dentro e fora dos lares, foi conduzido, em regra, por corpos negros, mas seus frutos foram apropriados pelo branco. As mulheres negras tiveram seus corpos associados à ocupação dos trabalhos com as famílias brancas, muitas vezes tendo que deixar de alimentar seu filho recém-nascido para alimentar o filho da mulher branca. De acordo com Araújo et al.:

[...] não existe um espaço de igualdade entre as experiências de mulheres negras e brancas, nem ontem, nem hoje. As mulheres brancas tiveram sua história marcada pela restrição ao ambiente doméstico e pela circunscrição às relações familiares. As mulheres negras, ao contrário, estiveram posicionadas em outro lugar social, que é de luta pela sobrevivência ou, no limite de sua existência, da luta pela vida1818 Araújo DFMS, Santos WCS. Raça como elemento central da política de morte no Brasil: visitando os ensinamentos de Roberto Esposito e Achille Mbembe. Rev Direito Prax. 2019; 10(4):3024-55. doi: 10.1590/2179-8966/2019/45695.
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. (p. 115)

Essa realidade atravessa o tempo, e ainda hoje as mulheres negras são trabalhadoras fundamentais para a garantia da qualidade de vida de outras famílias. Seu trabalho no cuidado alheio, entretanto, não lhes proporciona condições de vida digna, não lhes garante os recursos materiais, culturais e simbólicos que permitiriam a si e aos seus filhos/sua família o acesso à educação, à moradia ou à saúde de qualidade e a bens e serviços. A intelectual negra Lélia Gonzalez refletiu que:

A primeira coisa que a gente percebe nesse papo de racismo é que todo mundo acha que é natural. Que negro tem mais é que viver na miséria. Por quê? Ora, porque ele tem umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual, criancice, etc. e tal. [...]. Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto, têm mais é que ser favelados. Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. [...] Seguindo por aí, a gente também pode apontar pro lugar da mulher negra nesse processo de formação cultural, assim como os diferentes modos de rejeição/integração de seu papel44 Gonzalez L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Silva LAM. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. São Paulo: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais; 1983. p. 223-44.. (p. 225-6)

Os dados demonstram a divisão sexual e racial do trabalho. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), as mulheres “representam 92% das pessoas ocupadas no trabalho doméstico no Brasil, das quais 65% são negras”1919 DIEESE. Trabalho doméstico no Brasil [Internet]. São Paulo: DIEESE; 2021 [citado 23 Out 2022]. Disponível em: https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2021/trabalhoDomestico.html
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. Estando em constante atividade de cuidado com o outro, quem cuidará dos seus filhos, da sua família? A dor da mãe negra é permanente em um universo de instabilidades sociais para si e para seus familiares. Assim, elas são atingidas por múltiplas formas de opressão, tocadas pela dor que é preta, causada pelo abandono afetivo, pelo silenciamento, pelo racismo e pela morte1818 Araújo DFMS, Santos WCS. Raça como elemento central da política de morte no Brasil: visitando os ensinamentos de Roberto Esposito e Achille Mbembe. Rev Direito Prax. 2019; 10(4):3024-55. doi: 10.1590/2179-8966/2019/45695.
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,2020 Simon CR. Dororidade, de Vilma Piedade. Rev Latino Am Geo Genero. 2021; 12(1):246-50. doi: 10.5212/Rlagg.v.12.i1.0010.
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A mãe negra das periferias depende de serviços públicos, muitas vezes, insuficientes ou inexistentes. O futuro que se descortina para seus filhos desde cedo é marcado pela desigualdade, em muitos casos, atravessado pela precariedade; pelo trabalho infantil; pela gravidez precoce; pelo envolvimento com o tráfico de drogas; pela violência policial; pela “bala achada”; pela realidade marcada pela vivência do racismo na escola e em outros ambientes; pela falta de qualidade da educação pública; pela insuficiência de recursos para suprir as necessidades básicas; e pela falta de oportunidades. Ademais, esses caminhos são marcados pela naturalização do lugar da(o) negra(o) na sociedade.

A diferenciação racial como distintiva na forma como as relações sociais se organizam na sociedade confere um lugar também distinto para a mulher e mãe negra, que, além de vivenciar o racismo e as difíceis condições de trabalho, também vive a insegurança de não contar com o mesmo aparato de proteção que as políticas de segurança pública oferecem para a população branca, uma vez que o jovem negro é o alvo da repressão, ou o inimigo da ordem social2121 Curiel O. Construindo metodologias feministas desde o feminismo decolonial. In: Melo PB, Coelho J, Ferreira L, Silva DET, organizadoras. Descolonizar o feminismo. Brasília: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília; 2019. p. 32-51.. De acordo com o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência, o risco de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é 2,7 vezes maior do que de um jovem branco2222 Brasil. Presidência da República. Secretaria de Governo. Índice de vulnerabilidade juvenil à violência 2017: desigualdade racial, municípios com mais de 100 mil habitantes [Internet]. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2017 [citado 23 Out 2022]. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/fbsp-vulnerabilidade-juveni-violencia-desigualdade-racial-2017-relatorio.pdf
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Em tempos pandêmicos, apesar do discurso de universalidade e igualdade, a pandemia não é a mesma para todos: negros (pretos e pardos) morreram e morrem mais do que brancos em decorrência da Covid-19 no Brasil. Relatório apresentado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em novembro de 2021, indica que os negros têm 1,5 vez mais chance de morrer por Covid-19 no Brasil em comparação aos brancos. No Rio de Janeiro, a primeira vítima fatal da doença foi Cleonice Gonçalves, de 63 anos. Ela contraiu o vírus de sua empregadora, que voltava da Itália para o Rio de Janeiro. Cleonice Gonçalves era mulher, negra, hipertensa, diabética e empregada doméstica2323 Evangelista AP. Negros são os que mais morrem por Covid-19 e os que menos recebem vacinas no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: EPSJV; [s.d.] [citado 23 Out 2022]. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/podcast/negros-sao-os-que-mais-morrem-por-covid-19-e-os-que-menos-recebem-vacinas-no-brasil
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Durante os primeiros anos da pandemia emergiram vários casos de cárcere privado, em que empregadoras impediam que trabalhadoras domésticas voltassem para suas casas/famílias. Além disso, o fechamento das creches e os novos arranjos de cuidado resultaram na necessidade de trabalhadoras domésticas levarem seus filhos e suas filhas para o ambiente de trabalho. As situações geraram dor nas mulheres negras, e aqui destacaremos duas.

Em junho de 2020, a ex-trabalhadora doméstica e estudante de direito Mirtes Santana encontrou o corpo do seu filho Miguel sem vida quando voltava da caminhada com a cadela de sua ex-empregadora. Miguel havia ficado sob o “cuidado” da ex-empregadora, Sari Corte Real, que o abandonou no elevador em busca da mãe. Apesar de ser uma criança, Miguel não foi percebido enquanto um ser merecedor de cuidado devido ao racismo que estrutura a nossa sociedade, em que crianças negras não são alvo de cuidado, mas sim de violências e da bala2424 g1 PE, TV Globo. Caso Miguel: ‘eu não enxergava o racismo’, diz mãe do menino que morreu ao cair de prédio de luxo [Internet]. Recife: g1 PE; 14 Jun 2022 [citado 23 Out 2022]. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2022/06/14/caso-miguel-eu-nao-enxergava-o-racismo-diz-mae-do-menino-que-morreu-apos-cair-de-predio-no-recife.ghtml
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A segunda situação que destacamos ocorreu em agosto de 2021, quando Raiana Ribeiro acusou a ex-empregadora de agressões e cárcere privado depois de se jogar do terceiro andar do prédio onde ela trabalhava. Após a repercussão do caso, outras ex-trabalhadoras domésticas também alegaram sofrer maus-tratos2525 g1 BA. Babá pula do 3° andar de prédio em Salvador; polícia investiga cárcere privado cometido pela patroa [Internet]. Salvador: g1 BA, 25 Ago 2021 [citado 23 Out 2022]. Disponível em: https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2021/08/25/baba-se-joga-de-3-andar-de-predio-em-salvador-policia-investiga-carcere-privado-cometido-pela-patroa.ghtml
https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/20...
. Ou seja, Raiana Ribeiro, em ato de desespero, tentou fugir do ambiente de trabalho transformado em cárcere pela ex-empregadora Melina Esteves França.

De acordo com dirigentes da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), as denúncias aumentaram até 60% em tempos pandêmicos, que perpassavam por questões como cárcere privado e falta de pagamentos, em que “patrões não têm vergonha de não pagar salário e mandá-las procurar governo, se quiserem receber”(g (g) Acrescenta-se que a “pandemia do novo coronavírus (Covid-19) revelou um lado ainda mais obscuro e vergonhoso de parte da população brasileira que trata suas trabalhadoras domésticas como seres descartáveis, que estão em suas residências apenas para servir. Este é o triste retrato da situação de boa parte das 7,2 milhões de trabalhadoras domésticas, em sua maioria negra, com filhos para criar e baixa escolaridade. É a terceira maior categoria de trabalhadores do Brasil, e mais de 73% vivem na informalidade. [...] A reclamação mais comum é a dispensa dessas trabalhadoras sem o devido recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), da contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e de outras verbas rescisórias. Mas há denúncias até de cárcere privado”. Disponível em: https://www.cut.org.br/noticias/de-carcere-privado-a-falta-de-pagamentos-o-drama-das-domesticas-na-pandemia-d6a5. citado 23 Out 2022. ).

Diante dos dados apresentados, é possível afirmar que, historicamente, a população negra luta contra o Estado, suas violências e seu processo de higienização social racista. É fundamental refletir sobre esses desequilíbrios e essas desigualdades de forma a pensar em novas estratégias de cuidado e autocuidado que respeitem as redes de sociabilidade, cuidado, afetividade e religiosidades negras. Tentaremos indicar alguns caminhos a seguir.

Reflexões sobre o cuidado a partir de perspectivas/experiências da população negra

Pensar ações a partir de novas estratégias que incluam as perspectivas da população negra requer a utilização de outras lentes interpretativas que não a hegemônica; de outros saberes – como saberes tradicionais, sem hierarquização –; e cuidado com a criança, com os idosos, com a comunidade, com a natureza e com nós mesmos. Significa debater o racismo, o sexismo e outras formas de violências que atingem corpos vulnerabilizados e marginalizados todos os dias, que são também corpos negros desumanizados, empurrados pela sociedade e pelo Estado para a zona do não ser. Requer também que a mulher negra possa trabalhar e voltar para casa tranquila, na certeza de que seu corpo estará vivo; de que não será alvo de violência física, sexual e psicológica; e de que não sofrerá abusos nos espaços públicos e privados – como no metrô, com os “encoxamentos” ou nos ambientes de trabalho, com os assédios, a partir da visão machista e racista de que as mulheres negras estariam disponíveis para atos sexuais, resultando em vários casos de estupro e outras violências.

É necessária a execução de ações que possibilitem que sua família seja bem cuidada na creche, nas escolas, no posto de saúde, no departamento de polícia; ou seja, é necessário combater o racismo institucional e estrutural. Ademais, é importante que a mulher negra tenha um local para morar, mas não em uma moradia sem estrutura. É necessária uma moradia que seja digna, saudável e não estruturada a partir do racismo ambiental e da seleção dos espaços, na qual as favelas são vistas como locais naturais para os corpos negros e as moradias saudáveis, locais naturais para pessoas brancas.

Garantir uma agenda de cuidado e autocuidado para a mulher negra passa pela possibilidade de cuidado com sua família e com seus filhos, posto que, os jovens negros que são alvos preferenciais da bala, do Estado de moer gente. Portanto, ao dialogarmos sobre uma agenda de cuidado, no caso específico da mulher negra, é necessário pensar em como garantir que os corpos dos seus filhos e de seus familiares não sejam estendidos no chão.

Outro ponto de destaque para reflexão sobre a questão de cuidado e de autocuidado da população negra é a garantia de acesso aos capitais simbólicos, econômicos, sociais, educacionais, religiosos e culturais; e aos direitos que lhes são negados. A educação precisa ser uma senha para o sucesso para populações subalternizadas e um dos caminhos para superação das desigualdades raciais, com mais ingresso, por exemplo, de pessoas negras nos espaços de poder e nos espaços de decisão política.

Por fim, mas sem esgotar as possibilidades de diálogo, é necessário voltar o olhar para as práticas de cuidado seculares desenvolvidas pela população negra, muitas delas ligadas à religiosidade desse povo. A recriação das famílias a partir das redes de sociabilidades e religiosidades apresentou arranjos que foram essenciais para o cuidado com o corpo físico; com a saúde mental e espiritual a partir dos pais, das mães e das famílias de santo; com as crianças realizado por tios e tias afetivos, consolidando os sistemas de compadrios/fraternidade/irmandades que possibilitaram e possibilitam o sustento das famílias a partir do trabalho de mulheres negras; com as trocas de gêneros alimentares, vestimentas, serviços; e, em tempo mais recente, dos livros, entre os filhos de idades próximas (em tempos mais recentes); a garantia da alimentação dentro dos locais de culto das religiões afro-brasileiras; os adjutórios; as irmandades negras religiosas; e as ajudas financeiras mútuas.

As religiões são, desde o período do Brasil Colônia, uma das possibilidades de religação com as afetividades e práticas de cuidado e possibilitaram a permanência e a memória dos valores fundantes dos povos africanos. Se hoje são necessárias legislações para proteger, por exemplo, o idoso, dentro das práticas religiosas afro-brasileiras, a proteção de toda vida é fundamental, e o respeito, o cuidado e a reverência aos mais velhos é um dos pilares das religiões.

Os chás, os banhos, as rezas e os benzimentos auxiliaram negros e negras a sobreviverem em um mundo hostil, que lhes negava proteção à saúde física, psíquica, sexual e espiritual. Várias foram e são as estratégias desenvolvidas pela população negra em busca de sua sobrevivência, de resistência e de luta pelo reconhecimento da sua humanidade.

Mesmo sem espaço para aprofundar sobre a importância das irmandades negras religiosas nas agendas de cuidado da população negra, é necessário deixar registrado suas práticas por garantia da humanidade na compra de cartas de alforria; na reivindicação por melhores condições de vida; na articulação de revoltas; na articulação política e cultural; na prestação de serviço hospitalar; e na reconstrução da memória e dos laços de sociabilidades e religiosidades.

Além disso, ainda no âmbito das religiosidades, é necessário efetivar a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, com a participação efetiva de sacerdotes e sacerdotisas de religiões afro-brasileiras, benzedeiras, raizeiras, mestres e mestras de saberes tradicionais, que cuidam da saúde e do corpo a partir de outro olhar, que não é contemplado pela medicina tradicional, fato que muitas vezes resulta no abandono do tratamento de doenças, na negligência e na ausência de acesso a serviços essenciais na área da Saúde.

Como exemplos de tratamentos desiguais, temos a dificuldade de acesso de sacerdotes e sacerdotisas de religiões afro-brasileiras aos espaços hospitalares e aos presídios para oferecer conforto/cuidado/cura aos filhos e às filhas de axé/orixá. Ademais, durante a história do Brasil, em diversos momentos de propagação de doenças, a população negra reivindicou o tratamento de tais doenças a partir da sua cosmologia, da sua matriz religiosa e dos seus saberes, o que foi negado pelo Estado. Temos como exemplo disso a Revolta da Vacina, em que a população negra tinha como tratamento de cuidado e cura o pedido de intercessão de Omolu, Obaluaiê, Nsumbu, Kavungu e outras divindades da terra e da cura, porém, a prefeitura do Rio de Janeiro escolheu, para a cura da varíola, a vacinação compulsória.

Assim, pensar e efetivar uma agenda de cuidado e autocuidado da população negra perpassa, também, por dialogar sobre uma nova concepção de direitos humanos, que tenha por base uma perspectiva crítica, transdisciplinar, geolocalizada, racializada, em pretuguês(h (h) O pretuguês é afirmação de que nossa identidade, apesar de todas as tentativas de epistemicídio, é a presença da matriz africana em nossa língua e cultura, que foi passada pela mãe preta aos infans ao exercerem funções maternas. ) e que garanta a humanidade de corpos negros44 Gonzalez L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Silva LAM. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. São Paulo: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais; 1983. p. 223-44.,88 Santos R. Maioria minorizada: um dispositivo analítico de racialidade. Rio de Janeiro: Editora Telha; 2021.,2626 Araujo DFMS, Santos WCS. Controle das práticas periféricas: entre normas legais e pluralidades. Rev Latino Am Estud Cult Soc. 2021; 7(4). doi: 10.23899/relacult.v7i4.2080.
https://doi.org/10.23899/relacult.v7i4.2...
.

Nas palavras de Lélia Gonzalez:

É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é “framengo”. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse “r” no lugar do “l” nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o “l” inexiste. Afinal, quem que é o ignorante? Ao mesmo tempo, acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa “você” em “cê”, o “está” em “tá” e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês44 Gonzalez L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Silva LAM. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. São Paulo: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais; 1983. p. 223-44.. (p. 238)

Desejo que a costura do diálogo apresentado favoreça novas reflexões e novos caminhos para a efetivação do cuidado e do autocuidado para a população negra; e garanta, conforme indicamos no início do texto, pensando a partir das escrivivências negras, uma vida menos cruel, em caminhos e saídas mais amenas para a população negra e que essa população esteja na zona do ser!

  • (b)
    A partir dos diálogos estabelecidos no evento, a Prof.ª Rosamaria Carneiro apresentou como possibilidade para novas reflexões discussões sobre raça, saúde e colonialidade, em especial, no contexto comparado. Agradeço a indicação!
  • (c)
    O Sul faz referência ao conjunto de países que foram alijados do acesso aos benefícios do processo de desenvolvimento, que tiveram os seus conhecimentos segregados e definidos como não-ciência. Antes da pandemia por Covid-19 esta população morria em altos números em decorrência da ausência de acesso a tratamentos existentes, mas que eram/são negados pelos governos do norte. Não é uma definição geográfica, posto que, não inclui por exemplo, Nova Zelandia e Australia, por se alinharem as práticas dos países do norte. Portanto, pensar a partir do Sul é pensar a partir das epistemologias que compõem a resistência dos povos do Sul.
  • (d)
    Uma escrita realizada a partir das escrevivências não busca ser neutra, mas sim pautada nas vivências, dores, lutas e conquistas que o corpo que fala vivenciou e vivencia, assim como no resgate do caminho percorrido por nossas ancestrais. É uma virada epistêmica em que corpos negros falam e incomodam as estruturas hegemônicas, posto que a intenção com a nossa escrita não é niná-los em seus sonhos injustos. Para mais informações, ver Evaristo11 Evaristo C. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: Anais do XI Seminário Nacional Mulher e Literatura; 2 a 5 de agosto de 2005; Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ; 2005..
  • (e)
    Nas palavras de Achille Mbembe1212 Mbembe A. Necropolítica. Arte Ensaios. 2016; (32):122-51. doi: 10.60001/ae.n32.p122%20-%20151.
    https://doi.org/10.60001/ae.n32.p122%20-...
    , o “[...] racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, ‘aquele velho direito soberano de morte’. Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado” (p. 128).
  • (f)
    Conforme dados coletados pela organização social TETO Brasil nas favelas de São Paulo, em 2016, 70% dos moradores de favelas eram negros. A pobreza tem cor e uma das ameaças que atingem os negros que vivem nessa situação de vulnerabilidade em favelas é o genocídio da juventude negra. (A pobreza brasileira tem cor e é preta. Teto Brasil, 21 nov. 2021. Disponível em: https://teto.org.br/a-pobreza-brasileira-tem-cor-e-e-preta/. citado 30 Set 2022.)
  • (g)
    Acrescenta-se que a “pandemia do novo coronavírus (Covid-19) revelou um lado ainda mais obscuro e vergonhoso de parte da população brasileira que trata suas trabalhadoras domésticas como seres descartáveis, que estão em suas residências apenas para servir. Este é o triste retrato da situação de boa parte das 7,2 milhões de trabalhadoras domésticas, em sua maioria negra, com filhos para criar e baixa escolaridade. É a terceira maior categoria de trabalhadores do Brasil, e mais de 73% vivem na informalidade. [...] A reclamação mais comum é a dispensa dessas trabalhadoras sem o devido recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), da contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e de outras verbas rescisórias. Mas há denúncias até de cárcere privado”. Disponível em: https://www.cut.org.br/noticias/de-carcere-privado-a-falta-de-pagamentos-o-drama-das-domesticas-na-pandemia-d6a5. citado 23 Out 2022.
  • (h)
    O pretuguês é afirmação de que nossa identidade, apesar de todas as tentativas de epistemicídio, é a presença da matriz africana em nossa língua e cultura, que foi passada pela mãe preta aos infans ao exercerem funções maternas.

Referências

Editado por

Editora
Rosamaria Giatti Carneiro
Editora associada
Danielle Medeiros

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2023
  • Aceito
    12 Set 2023
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