Acessibilidade / Reportar erro

Do bufão ao palhaço de hospital: trajetórias do ridículo em uma sociedade de espetáculo

Del bufón al payaso del hospital: trayectorias del ridículo en una sociedad del espectáculo

Resumos

São apresentadas reflexões sobre a relevância histórica dos bufões por meio de uma análise sobre a visão artística e social do bufão ao palhaço de hospital. É discutida em quatro tópicos: A máscara, o ator e a plateia; O bufão e a expressão do ridículo; O espetáculo e a indicação do ridículo; e O riso na sociedade do espetáculo. O palhaço de hospital favorece reflexões semelhantes às do bufão, mas é necessário que a interação com o público apresente um espetáculo de comicidade com postura ética. Tem a capacidade de rir de si mesmo perante as adversidades e enfermidades, sempre com o devido respeito ao doente. E não somente isso: o palhaço de hospital consegue, através de posturas muitas vezes caricatas, inverter e questionar a lógica do poder do ambiente de saúde, fazendo disso um profissionalismo e protagonismo dele nesse espaço.

Palavras-chave
Bufão; Palhaço de hospital; Riso, sociedade do espetáculo


Se presentan reflexiones sobre la relevancia histórica de los bufones, por medio de un análisis sobre la visión artística y social del bufón al payaso de hospital. Se discute en 4 tópicos: la máscara, el actor y el público; El Bufón y la expresión del ridículo; El espectáculo y la indicación del ridículo y La risa en la sociedad del espectáculo. El payaso de hospital favorece reflexiones semejantes a las del Bufón, pero es necesario que la interacción con el público presente un espectáculo de comicidad con postura ética. Es posible reírse de uno mismo ante las adversidades; del cuerpo enfermo, pero con respeto al enfermo; de las posturas de superioridad profesional ante la asistencia, como una forma de invertir la lógica del poder y sin poner en tela de juicio su profesionalismo, con el mismo grado de protagonismo.

Palabras clave
Bufón; Payaso de hospital; Risa, sociedad del espectáculo


The study presents reflections on the historical relevance of buffoons through an analysis of the artistic and social view from the buffoon to the hospital clown. The subject is discussed in four topics: The mask, the actor, and the audience; The buffoon and the expression of ridicule; The spectacle and the indication of ridicule; and Laughter in the society of the spectacle. The hospital clown promotes a reflection that is similar to that of the buffoon, but the interaction with the audience must present a spectacle of comicality with an ethical stance. It is possible to laugh at oneself in the face of adversity, at the sick body, but respecting the patient, and at postures of professional superiority concerning care, as a way of reversing the logic of power without questioning one’s professionalism, with an equal degree of protagonism.

Keywords
Buffoon; Hospital clown; Laughter, society of the spectacle


Introdução

Personagens populares em ambientes de realeza e servidores dessas altas autoridades sociais, os bufões eram “funcionários do riso”; artistas que para entreter se valiam de cômicos e sarcásticos jogos teatrais para cumprir com suas funções nas cortes. Esse trabalho é observado desde o surgimento das antigas civilizações, como nas teocracias dos faraós egípcios, persistindo em figuras como as dos balatros nos antigos romanos, os ameríndios bobos das cortes astecas, muito conhecidos a partir do século 1411 Braga B, Tonezzi J. O bufão e suas artes: artesania, disfunção e soberania. Jundiaí: Paco; 2017..

Vale destacar que esse bufão teve como seu principal representante o bufo da Idade Média, quando as monarquias da época tinham seus momentos de diversão e descontração realizados por esse ator. Tal personagem passeava entre o riso e o sarcasmo crítico, garantindo para si a possibilidade única de questionar estruturas e situações sociais sob a máscara ilusória de ingênuo ou “bobo”, como afirma Braga e Tonezzi11 Braga B, Tonezzi J. O bufão e suas artes: artesania, disfunção e soberania. Jundiaí: Paco; 2017..

Posteriormente, os bufões ganharam outras nuances e ambientes de trabalho, como o caso dos papéis cômicos de Branco e Augusto, pertencentes ao teatro Commedia dell’Arte, os quais inspiraram e também contribuíram para o desenvolvimento dos palhaços de rua a partir do século 1622 Thebas C. O livro do palhaço. São Paulo: Companhia das Letras; 2009., bem como da palhaçaria contemporânea que se presencia nos variados circos populares33 Sato M, Ramos A, Silva CC, Gameiro GR, Scatena CMC. Palhaços: uma revisão acerca do uso dessa máscara no ambiente hospitalar. Interface (Botucatu). 2016; 20(56):123-34. doi: 10.1590/1807-57622015.0178.
https://doi.org/10.1590/1807-57622015.01...
.

Seguindo esse legado e o caminhar histórico, na década de 1990 do século 20, entra no cenário hospitalar um palhaço trajado de jaleco, solicitando “exames” e realizando “consultas”, acreditando ser médico. Uma ação pioneira no Brasil, promovida pelos Doutores da Alegria, foi responsável por levar atores profissionais para ambientes hospitalares a fim de contribuir com o cuidado por meio do fortalecimento das relações afetivas nesse cenário44 Masetti M. Doutores da ética da alegria. Interface (Botucatu). 2015; 9(17):453-8. doi: 10.1590/S1414-32832005000200026.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200500...
.Os anos passaram e as intervenções dos palhaços de hospital se espalharam pelo país, entrando também em outros serviços de saúde, e sendo desenvolvidas por uma diversidade de grupos, seja de profissionais de organizações não governamentais (ONGs) seja de voluntários vinculados, por exemplo, à extensão universitária ou à religião. Mas como o palhaço migra dos picadeiros do circo para os hospitais? O que traz o palhaço aos palcos da Saúde e torna esse espetáculo tão aclamado?

Há produções científicas sobre a atuação do palhaço na Saúde. Em sua maioria, discutem a chamada “terapia do riso”. A influência emocional e fisiológica do riso na evolução clínica dos pacientes e a função do palhaço são relacionadas com as Práticas Integrativas Complementares (PICs), aderidas ao tratamento convencional em saúde.

Os estudos que avaliaram os benefícios do riso e do humor em contexto pediátrico referem melhor acolhimento, maior adesão da criança ao tratamento, maior economia nos gastos hospitalares devido à redução do uso de analgésicos e uma alta hospitalar mais precoce, decorrente da recuperação mais rápida do paciente55 Bennett M, Lengacher C. Humor and laughter may influence health. I. History and background. Evid Based Complement Alternat Med. 2006; 3(1):61-3.

6 Berk L, Felten D, Tan S, Bittman B, Westengard J. Modulation of neuroimmune parameters during the eustress of humor-associated mirthful laughter. Altern Ther Health Med. 2001; 7(2):62-72.
-77 Brito CMD, Joaquim RHVT, Silveira R, Mendonça DB. O humor e o riso na promoção de saúde: Uma experiência de inserção do palhaço na estratégia de saúde da família. Cienc Saude Colet. 2015; 21(2):553-62.. A abreviação das internações por meio de uma técnica que, geralmente, não envolve custos por serem profissionais voluntários ou os próprios funcionários que realizam as atividades, e até mesmo o trabalho de palhaços profissionais que em sua maioria é financiado por Organizações Não Governamentais (ONGs) no Brasil, provoca uma grande adesão à proposta33 Sato M, Ramos A, Silva CC, Gameiro GR, Scatena CMC. Palhaços: uma revisão acerca do uso dessa máscara no ambiente hospitalar. Interface (Botucatu). 2016; 20(56):123-34. doi: 10.1590/1807-57622015.0178.
https://doi.org/10.1590/1807-57622015.01...
,88 Ferreira DC, França TS, Aragão TBS, Freitas FF, Peres RM, Pinho CRP, et al. A Terapia do Riso como uma estratégia auxiliar na atenção farmacêutica humanizada em unidade hospitalar. Rev UNIABEU. 2014; 7(16):127-41.. Há benefícios fisiológicos, psicológicos e financeiros na inclusão dessa arte no tratamento hospitalar.

Pensando nas diversas atividades lúdicas e recreativas que provocam o riso e facilmente poderiam ser introduzidas na rotina hospitalar, questiona-se: Por que justamente o palhaço ganhou espaço de atuação nesse cenário? Será que sua presença na saúde se justifica apenas pela importância do riso, como afirmado por estudos fisiológicos que favorecem liberação de endorfina, serotonina, células matadoras naturais entre outros benefícios?

Para responder a essas reflexões, deve-se considerar a figura do bufão e suas manifestações e relações com o atual palhaço de hospital, introduzido nesse espaço para exercer sua função de ser e existir. Ele é um questionaDOR, que dialoga com a ciência e o senso comum ao longo de sua formação e história, ampliando a visão da assistência ao questionar a postura da maior autoridade hospitalar – o médico –, representando uma paródia à sua figura, daí o termo “palhaço doutor” ou “doutor palhaço”, atitude que muito traduz uma atualização da arte da bufonaria. A sua intervenção oportuniza reflexões não apenas ao médico, mas a todos os profissionais sobre suas condutas e seus comportamentos ao prestarem assistência ao “corpo” do paciente.

Metodologia

Este trabalho busca fazer uma análise reflexiva sobre a visão artística e social do bufão ao palhaço de hospital, tendo como referência teórica o texto “A Separação consolidada “, escrito por Guy Debord na obra Sociedade do espetáculo99 Debord G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto; 2003. (p. 8-20). O artigo discute a função dos bufões, com suas posturas críticas diante dos comportamentos humanos, suas influências na construção do palhaço ao longo da história e como a postura crítica do palhaço se ressignifica na contemporaneidade, em especial no campo da saúde. Para discussão da temática são apresentados quatro tópicos: (I) A máscara, o ator e a plateia, (II) O Bufão e a expressão do ridículo; (III) O espetáculo e a indicação do ridículo e (IV) O riso na sociedade de espetáculo.

A máscara, o ator e a plateia

No objetivo de entender a bufonaria e suas manifestações atuais como a do palhaço de hospital, vale destacar aspectos e conceitos teatrais básicos. Nesse âmbito cênico, a atuação consiste em uma maneira de convencer a plateia de algo que o ator não é na realidade. É, portanto, uma forma de enganar o público para que ele acredite em sua personagem e na verdade que o ator está propondo ali no palco, onde desempenha sua cena. É o que se denomina como pacto de verossimilhança: a capacidade e a necessidade do ator de convencer sua plateia acerca da sua personagem1010 Pereira CL. Verossimilhança no teatro contemporâneo [dissertação]. Brasília: Instituto de Arte, Universidade de Brasília; 2016..

Para tanto, o ator utiliza-se de diversas estratégias, sendo uma delas a mascarada. Sobre isso, Stanislavski1111 Stanislavski C. A construção da personagem. 10a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2001. entende e descreve o uso da máscara como consequência de um minucioso estudo da personagem que se está desempenhando, como em buscar maneiras de incorporar aquela personagem e vivenciá-la no momento em que o ator entra no palco. Tortsov, o diretor relatado em um dos livros do teatrólogo, ensina aos alunos essa importância da máscara como construção e caracterização da personagem:

[...] Assim, a caracterização é a máscara que esconde o indivíduo-ator. Protegido por ela, pode despir a alma até o último, o mais íntimo detalhe1111 Stanislavski C. A construção da personagem. 10a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2001.. (p. 60)

Na mesma obra1111 Stanislavski C. A construção da personagem. 10a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2001., ele continua mencionando a importância desse processo de caracterização e colocação da máscara, acrescentando quanto diversos atores falham no seu trabalho pelo fato de se prenderem a padrões mecânicos e escandalosos de encenação, lugares-comuns que verdadeiramente não convencem, dos quais se deve fugir.

[...] o ator é chamado a criar uma imagem quando está em cena e não simplesmente a se pavonear perante o público, ela vem a ser uma necessidade para todos nós1111 Stanislavski C. A construção da personagem. 10a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2001.. (p. 61)

O que se discute, portanto, é a ação cênica baseada na máscara como uma garantia de qualidade e essencialidade na atuação do profissional, tendo em vista que a plateia não será convencida por aquele que se exibe exageradamente no palco, mas sim por aquele que a convence da personagem que almeja vivenciar e se transformar na cena.

Contudo, vale enfatizar que a vestimenta da máscara carece de um estudo trabalhado por trás dessa decisão. Afinal, Stanislavski1212 Stanislavski C. A preparação do ator. 24a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2008., por meio da figura do diretor Tortsov, em sua outra obra, critica as chamadas máscaras inanimadas, as quais não servem para nada além de tornar mecânico o desempenho do ator.

Tais técnicas ineficientes giram em torno da reprodução de padrões e clichês de atuação, como o chorar histérico e copioso para demonstrar tristeza, ou ainda a expressão do amor apaixonado pelo ato de levar a mão ao peito, suspirando. A verdade por trás dessas ações está em um ator que pouco buscou estudar como representá-las, não esculpiu uma máscara convincente e, portanto, não marcará a plateia que o assiste. Assim, “servindo-se de caretas, de artifícios vocais e de gestos, tais atores não oferecem ao público mais que uma máscara inanimada, vazia dos sentimentos que não existem neles”1212 Stanislavski C. A preparação do ator. 24a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2008. (p. 198).

Ao contrário disso, uma boa máscara exige treino, pesquisa, fundamentação e inspiração em verdadeiras intenções por trás de cada gesto e expressão escolhidos. A máscara, nessa perspectiva, deve ser aquela que carregue consigo uma intencionalidade implícita e acessível à plateia, eliminando os caracteres desnecessários e garantindo que permaneça a essência da personagem na máscara eleita.

[...] É preciso que se lembrem de uma coisa que eu já repeti muitas vezes: representar, nenhum gesto deve ser feito apenas em função do próprio gesto. Seus movimentos devem ter sempre um propósito e estar sempre relacionados com o conteúdo de seu papel1111 Stanislavski C. A construção da personagem. 10a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2001.. (p. 79)

Além disso, vale destacar que a máscara é o objeto de controle que o ator possui quando ele está atuando e no momento em que ele deve cessar sua ação cênica. É uma maneira de encarar a personagem como um corpo, uma expressão, uma vida a ser vivida ali no palco; não significa, contudo, que o ator possui aquela realidade de vivência em seu cotidiano. Nesse sentido, o ato de colocar a máscara auxilia o ator a desempenhar seu papel de forma convincente e excelente, mesmo sendo algo que ele não vivencie em sua realidade cotidiana.

A máscara, em suma, é a chance para o ator ser quem ele não é no contexto que carece dessa representação. Tal potencial, de acordo com Braga e Tonezzi11 Braga B, Tonezzi J. O bufão e suas artes: artesania, disfunção e soberania. Jundiaí: Paco; 2017., foi utilizado de maneira extensa ao longo de diversos momentos na história do teatro.

Desse modo, várias escolas e contextos cênicos se utilizaram das máscaras para a efetividade de suas atuações. Os bufões, na Idade Média, se utilizavam da máscara sarcástica e risonha para equilibrar o riso com a crítica, no intuito de divertir e, por trás, revelar à plateia o objeto da diversão: convenções e contextos sociais aos quais eles consideravam passíveis de crítica e escárnio11 Braga B, Tonezzi J. O bufão e suas artes: artesania, disfunção e soberania. Jundiaí: Paco; 2017..

Semelhantemente, no século 15, a modalidade de commedia dell’Arte se utilizava de diferentes máscaras para que os atores representassem diferentes personagens, retratando à plateia determinados padrões sociais com os quais o público poderia ou não se identificar. Aqui estava o poder contido na máscara, do qual o ator usufrui constantemente: vestir-se ou mascarar-se da personagem garante ao profissional a capacidade de revelar verdades cuja verossimilhança não está relacionada ao ator, mas sim à plateia. O ator, pela máscara, alcança seu público, agindo nele e fazendo-o se identificar com aquilo que está sendo encenado1313 Hunzicker FM. Os elementos essenciais da Commedia Dell’arte no século XVI e na contemporaneidade. Cad Pesq CDHIS. 2020; 33(2):443-67..

O bufão e a expressão do ridículo

Encetando uma breve viagem pela história, os bufões são herdeiros do tradicional bobo da corte romano, os balastros, os quais tinham como principal característica o trabalho com o riso. Tradicionalmente, entretinha a elite para a qual trabalhavam11 Braga B, Tonezzi J. O bufão e suas artes: artesania, disfunção e soberania. Jundiaí: Paco; 2017..

Contudo, diferentemente dos típicos e inocentes balastros, verificamos que os bufões não limitavam suas ações às tradicionais palhaçadas: introduziram uma perspectiva inédita e, podemos afirmar, vanguardista da crítica por trás do riso. Eram pessoas tidas como “anormais”: aleijados, bêbados, loucos, e por isso eram motivo de chacota, de zombaria. O que as pessoas não percebiam era que, do mesmo modo que elas ridicularizavam os “bufões”, eles também riam e ridicularizavam as pessoas. Por serem considerados loucos e não terem nada a perder (já que haviam perdido a sua própria dignidade), os bufões zombavam até mesmo de pessoas de grande poder, como os reis22 Thebas C. O livro do palhaço. São Paulo: Companhia das Letras; 2009.,1414 Bastos R. O clown terapêutico. 2a ed. Juiz de Fora: Bartlebee; 2018..

Aos reis, os bufões expressavam tudo o que a sociedade gostaria de dizer, mas não tinha coragem. Para surpresa de todos, os reis viam essa zombaria com bons olhos e de modo bem-humorado, trazendo a realidade que as bajulações camuflavam. Aos poucos ganharam notoriedade, tendo o riso como sua forma de sustento, originando os bobos da Corte22 Thebas C. O livro do palhaço. São Paulo: Companhia das Letras; 2009.,1515 Gazeau A. Los bufones. Barcelona: Biblioteca de Maravilhas; 1885..

Eram artistas que, gradativamente, formaram bandos, se popularizaram no âmbito sociocultural daquela época, inclusive por dentro dos castelos, sendo muitas vezes contratados pela elite para o trabalho “inocente” do riso. Eles, dessa forma, espalharam-se por dentro das vigas e estruturas feudais de diferentes cortes e locais, garantindo seu palco e sua plateia. Sua atuação consistia na colocação da máscara do riso e do escárnio humorista, convencendo indiretamente seu público acerca das críticas, mesmo sem reconhecer que o próprio público era o alvo criticado desses atores11 Braga B, Tonezzi J. O bufão e suas artes: artesania, disfunção e soberania. Jundiaí: Paco; 2017..

E vem o questionamento: Mas como podem essas pessoas, tidas “excluídas da sociedade” pelo simples fato de gerarem riso por suas mazelas, se tornarem membros da realeza no posto do bobo? Entender o bufão e sua trajetória até tornar-se bobo da Corte é fundamental para compreender a lógica do riso do palhaço no cenário hospitalar. Muitos pensam que o bobo da Corte surge para mero divertimento da realeza, mas o que elevou o bufão a tal patamar não foi o riso que ele provocava ao permitir o deboche de suas próprias mazelas, mas o fato de debochar e rir do outro sem o medo que o povo oprimido da Idade Média tinha de expor as fragilidades alheias.

Desse modo, o bufão ganha notoriedade, porque, por mais afrontoso que possa parecer, quando há a exposição do ridículo do espectador por meio da sua máscara colocada, independentemente do papel social que exerça, ele possibilita a reflexão. A sua plateia, dessa forma, passa a enxergar uma encenação muito mais relacionada e parecida com a realidade do que ela esperava. Possibilita, ainda, que o espectador visite esse lugar de reflexão proposto pelo bufão e sua máscara em meio à leveza gerada pelo riso, possibilitando uma quebra da hierarquia por alguns segundos. Mas deve ser usado com cautela e conhecimento porque o riso pode ser perigoso, sedutor, poderoso e disputado. Bergson1616 Bergson H. O riso: ensaio sobre a significado do cômico. São Paulo: Edipro; 2018. questiona: “O que significa o riso? O que há no fundo do risível? O que haverá de comum entre uma careta de palhaço, um jogo de palavras, um quiproquó de Vaudeville, uma cena de fina comédia?” (p. 99). A compreensão do riso, para ele, passa pela compreensão da sociedade e das relações humanas, exercendo uma função social.

Segundo o filósofo Aristóteles1717 Aristóteles. Política. Lisboa: Vega; 1998. em seu relato de apologia ao riso, humor e virtudes, “o homem é o único animal que ri”. Nesse contexto, o riso tem um valor terapêutico na medida em que ao menos coloca em evidência a patologia pela qual o homem é acometido. É um contraponto. Há uma intencionalidade ao proporcionar o riso diante de situações ridículas e esdrúxulas hierarquizadas que se tornam risíveis perante a sociedade.

O bufão não apenas divertia os poderosos, mas aconselhava e advertia, sendo-lhe, por vezes, dado o poder de prever o futuro. Na Alemanha, alguns eram chamados de “conselheiros divertidos”, porque em suas brincadeiras e gracejos sempre havia um conselho, uma sábia advertência1515 Gazeau A. Los bufones. Barcelona: Biblioteca de Maravilhas; 1885..

Há também relatos do riso como sinônimo de inteligência e, por isso, nem todos compreendem uma piada. É preciso exercer conexões afetivas com o interlocutor que favorece uma reflexão sobre determinado assunto e promove o entendimento de modo mais leve e compreensível. Sorrir diante das adversidades não implica a resolução do problema, mas sim a maturidade ao adquirir esse nível de relaxamento diante das dificuldades, em que é possível repensar as demandas para solucioná-las. As pessoas mais inteligentes conseguem dominar a situação com sua simpatia, riso e entretenimento. O riso é uma porta aberta para o novo, por expressar receptividade e empatia.

Uma piada de qualidade não implica agredir a imagem do outro com jargão preconceituoso e reproduzindo posturas homofóbicas, machistas, racistas entre outras, porque esse tipo de riso é fácil, são histórias repetidas como “verdadeiras” ao longo dos tempos, em que há uma zombaria de grupos vulneráveis na sociedade. O riso de qualidade exige inteligência para fazer críticas construtivas às situações opressoras que de tão esdrúxulas se tornam risíveis.

O que há em comum entre o bufão, o bobo da corte e o palhaço é proporcionar um olhar crítico e reflexivo por meio do riso. Segundo o dicionário Aurélio1818 Aurélio. Minidicionário da língua portuguesa. 8a ed. São Paulo: Saraiva; 2010., ridículo é aquilo que é digno de riso, zombeteiro, escárnio e tem como sinônimo a palavra “risível”. O palhaço expõe suas mazelas, suas vulnerabilidades, seus defeitos de forma jocosa. Permite-se rir de si mesmo e convida o outro a rir com ele de suas fragilidades. O riso provocado pelo palhaço é um riso de similaridade: eu rio daquilo que é familiar; é permitir modificar o olhar para determinados fatos e características que habitam em mim, em meus familiares, em minha sociedade1414 Bastos R. O clown terapêutico. 2a ed. Juiz de Fora: Bartlebee; 2018.. O riso torna-se uma reação da plateia que se identifica, que é convencida por aquelas atuações do palhaço. Essa construção do riso do palhaço ocorre na subjetividade que permeia a construção desse encontro, permitindo que o palhaço possa rir do ridículo que há no outro, partindo de si, o que distancia o riso de uma afronta ou uma agressão.

Existem diversas teorias sobre o riso e seu significado. Por exemplo, para Bergson1616 Bergson H. O riso: ensaio sobre a significado do cômico. São Paulo: Edipro; 2018., o riso é um mecanismo de crítica, ou seja, o conceito de que o humano só ri daquilo que conhece, só ri quando se reconhece, e, portanto, nesse momento, ativa canais críticos e reflexivos baseados na expressão latina castigat ridendo mores: é rindo que se corrigem os costumes.

Correlaciona o riso ao trabalho do comediante, como um roteiro, uma ideia formulada com início, meio e fim, muito bem conduzida, nuances de voz, pequenas adaptações baseadas na leitura do espectador, e tudo provoca o riso.

Em contraponto, o palhaço trabalha o real. Vive o agora, com percepção aguçada, escuta e usa diálogo consistente. O palhaço não interpreta um personagem, ele é o personagem! Dos humoristas, nós rimos das piadas; dos palhaços, nós rimos deles. Rimos também de como eles, dentro de toda sua atrapalhação, revelam como todos nós também somos, fomos ou seremos1919 Dunker C, Thebas C. O palhaço e o psicanalista: como escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo: Planeta do Brasil; 2019.. O palhaço é, nesse sentido, a própria máscara, vestida por aquele que a desempenha diante de sua plateia.

Assim, desde seu surgimento em meados do final do século 20 no Brasil, os palhaços hospitalares cumprem com a materialização do que antes se via nas cortes com a figura do bufão, estabelecendo-se em ambientes de saúde, até então sob diversas formas: começando por meio de iniciativas de grupos profissionais, como os Doutores da Alegria44 Masetti M. Doutores da ética da alegria. Interface (Botucatu). 2015; 9(17):453-8. doi: 10.1590/S1414-32832005000200026.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200500...
, atuantes desde 1991, atingindo outras esferas da sociedade, até o caso de projetos de extensão em várias universidades do país.

A extensão universitária, por sua vez, possui esse caráter inclusivo da população no entorno da universidade; afinal, garante que conhecimentos, discussões e práticas cheguem à sociedade de maneira comunitária, voluntária e compromissada2020 Cruz DD. A inserção do palhaço no ambiente hospitalar: experiências de um projeto de extensão. Rev Em Extensão. 2016; 15(1):133-40.. Muitos projetos, espalhados pelas regiões brasileiras, dialogam com o ideal de palhaçaria e seu uso no âmbito da saúde, o que evidencia a necessidade de estudos que quantifiquem e reúnam informações dos mais variados grupos extensionistas. Dentre os diversos existentes, pode-se citar os pioneiros nessa discussão como “Enfermaria do Riso” da Unirio2121 Achcar A, Souza F. Dez anos do Programa Enfermaria do Riso. Rio de Janeiro: Unirio, Proex; 2009. e “Clowns Visitadores” da Unicamp2222 Wuo AE. O clown visitador: comicidade, arte e lazer para crianças hospitalizadas. Uberlândia: EDUFU; 2011..

Ao questionar o que permitiu a entrada do palhaço nos contextos de saúde, é necessário compreender a sua funcionalidade. Muitos justificam a entrada do palhaço na saúde com a alegria, a descontração e o riso. Como exposto no texto, essa não é a principal justificativa; afinal, existem diversos profissionais que geram riso (como atores e comediantes, por exemplo), e, se o motivo é o riso, qualquer profissional que faça rir pode ocupar esse espaço. Pode-se dizer que o palhaço só adentrou à saúde porque é o artista do riso que trabalha o real, vive o agora e resgata alegria em um contexto de dor e vulnerabilidade. O palhaço transita pelo sofrimento, pelo adoecimento e muitas vezes pela morte, observando os processos, questionando essas situações, partilhando as vivências e, sempre que possível, trazendo luz e alegria a espaços e momentos onde somente haveria pesar.

No que se refere a isso, um dos integrantes do grupo alagoano de palhaços de hospital, projeto extensionista universitário Sorriso de Plantão2323 Sorriso de Plantão. Sorriso de Plantão [Internet]. Trapiche: UFAL; 2023 [citado 21 Nov 2023]. Disponível em: https://sorrisodeplantao.com.br/
https://sorrisodeplantao.com.br/...
, relatou uma experiência em que a personagem estava em contato com uma criança, divertindo-a e interagindo com ela, enquanto uma profissional estava se preparando para realizar um procedimento com a paciente. No momento de realização, ao notar que a paciente, chorando, não estava à vontade com a maneira pela qual estava sendo tratada pela profissional, o extensionista utilizou a máscara do palhaço para criticar a atitude e a postura presenciada por meio de uma cômica observação de que a “brincadeira” realizada pela profissional em questão não era boa, seus “brinquedos” não eram legais e ele iria contar para a sua mãe (maneira carinhosa que os integrantes nomeiam a professora coordenadora). No instante, ela reconheceu o equívoco e parou, enquanto outras mães e terceiros, presentes na sala, riam da maneira caricata com a qual o palhaço falou.

O espetáculo e a indicação do ridículo

Segundo Debord99 Debord G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto; 2003., a sociedade atual não superou a lógica moderna de produção e, portanto, apresenta-se como um acúmulo de espetáculos onde a representação substitui o viver. Ser em uma sociedade de espetáculo é viver o não vivo; é construir as próprias mentiras que constroem um falso viver; é performar um falso “Eu” como próprio ser. O que sustenta a sociedade atual é uma recíproca alienação em que a realidade produz o espetáculo, ao passo que o espetáculo produz a realidade99 Debord G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto; 2003..

O palhaço seria o ser cru, nu, irrefletido, o mais próximo do natural, do real. Ele é o rebelde e contestador das ordens de supremacia dentro do EU2424 Fellini F. Fellini por Fellini. Porto Alegre: LPM; 1983.. A recalcitrância constrói novos conceitos e destrói os velhos2525 Tsallis AC. Entre terapeutas e palhaços: a recalcitrância em ação [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2005.. Novos olhares sobre antigos conceitos estéticos e tais incorporações auxiliam na formação de um ser humano com uma identidade própria, liberto de preconceitos e aberto à criatividade1414 Bastos R. O clown terapêutico. 2a ed. Juiz de Fora: Bartlebee; 2018.. Em uma sociedade de espetáculo, o palhaço é então o avesso do avesso, visto que a verdade é tão irreal quanto a mentira.

Em sua tese de número 9, Debord99 Debord G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto; 2003. expressa, em uma única frase, o entrelace entre realidade e mentira: “No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento falso”77 Brito CMD, Joaquim RHVT, Silveira R, Mendonça DB. O humor e o riso na promoção de saúde: Uma experiência de inserção do palhaço na estratégia de saúde da família. Cienc Saude Colet. 2015; 21(2):553-62. (p. 11). Seria então o palhaço uma aproximação da realidade em meio a tantos espetáculos? Ao resgatar a história do palhaço, é observado que ele é um subversivo, que ganha espaço à medida que ironiza e critica as lógicas de poder da sociedade. As vestes do bobo da Corte, por exemplo, são uma paródia das vestes reais.

[...] Sem reinado, estúpido e tonto. Seu chapéu lembrava uma coroa disforme, de cabeça para baixo. O verde e o amarelo [e às vezes o vermelho] de suas roupas em nada lembravam o poder de um verdadeiro imperador [...]22 Thebas C. O livro do palhaço. São Paulo: Companhia das Letras; 2009.. (p. 28-9)

Entender a origem do palhaço, tendo o bufão como uma das referências, é compreender sua importância social: um ser excluído, marginalizado, mas que ascende socialmente ao expor o ridículo presente nas lógicas de poder. Assim como na Idade Média o bobo da corte satirizava os reis, na Idade Moderna o palhaço ganha os picadeiros do circo ao satirizar as relações sociais nas representações do Branco e Augusto. Sendo máscaras conhecidas da modalidade de commedia del’Arte, o palhaço Branco é pomposo, inteligente, sagaz e busca, de alguma forma, tirar proveito de seu companheiro de cena, o Augusto, um palhaço ingênuo, tonto, desajeitado22 Thebas C. O livro do palhaço. São Paulo: Companhia das Letras; 2009.,1313 Hunzicker FM. Os elementos essenciais da Commedia Dell’arte no século XVI e na contemporaneidade. Cad Pesq CDHIS. 2020; 33(2):443-67..

Para o teatro de commedia dell’Arte, as personagens eram representações caricatas de papéis sociais visualizados no cotidiano da plateia, tais como o indivíduo astuto e galanteador, o qual tira proveito das situações alheias; o trágico e amargurado traído, com seus devaneios; a inteligente e manipuladora pessoa que se veste de inocência e fragilidade. Aos poucos, personagens como as listadas acima, respectivamente, Arlecchino, Pierrot e Colombina, os quais pareciam apenas arrancar o riso de sua plateia, escancararam para todos as realidades inúmeras que cada ser humano ali vivenciava1313 Hunzicker FM. Os elementos essenciais da Commedia Dell’arte no século XVI e na contemporaneidade. Cad Pesq CDHIS. 2020; 33(2):443-67..

O Branco, mergulhado em seu status social e total segurança de superioridade sobre o Augusto, não percebe que o ludibriado da história é ele mesmo, e é nesse jogo – em que o enganador é enganado – que se faz o riso. O riso de uma sociedade que conseguia se reconhecer no Augusto, no bobo, no ingênuo e exaltava de alegria ao vê-lo triunfar. Ainda há no espectador a percepção da crítica, da ironia, sendo o riso um agente potencializador, subversivo.

Ainda na modernidade podemos resgatar Charles Chaplin2424 Fellini F. Fellini por Fellini. Porto Alegre: LPM; 1983. (1889-1977) e seu palhaço Carlitos que, no cinema mudo, criticava a sociedade industrial, o modo de produção fabril, a busca por acúmulo de capital. Diferentemente da sociedade no início da modernidade, em que a irônica relação entre o Branco e o Augusto afirmavam a potência dos explorados pelo riso, no cinema a crítica perde força de reverberação. Se na sociedade do espetáculo “o que aparece é bom. E o que é bom aparece”99 Debord G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto; 2003. (p. 24), o que seria uma crítica à sociedade capitalista e produtivista tornou-se um reforçador, um potencializador da sociedade industrial.

O espectador que não é; que não vive sua essência; que é meramente um acumulador de padrões; um reprodutor de arquétipos, consegue apenas apreender o que é familiar, aquilo que ele reproduz, consome e “vive”. A sátira, a ironia, o deboche não são potentes o suficiente para modificar o Ser, para despertá-lo da inércia sob inúmeras camadas de um grosso cobertor de espetáculos. A representação é apenas mais uma camada, mais um elemento conquistado, pertencido e não sentido. Não há afetação à arte, há apropriação superficial do Ter.

Ao pensarmos que o palhaço em essência é um agente subversor, nada mais natural, portanto, que ele continue ocupando os espaços de domínio e poder; “galgando” dos palácios aos picadeiros de circo, dos picadeiros ao cinema e do cinema à saúde. Bem como o bobo da corte imita o rei, em seus trejeitos, postura e vestes, o palhaço, ao adentrar o campo da saúde, satiriza o médico, que é, até os dias atuais, a representação do poder na saúde, ainda centrada nesse profissional até os dias atuais. Nesse contexto, o jaleco, os estetoscópios, a solicitação de exames, a realização de consultas, representam a paródia de um setor onde a Medicina expropria a saúde2626 Illich I. Limits to medicine. Medical nemesis: the expropriation of health. London: Penguin Books; 1977..

O palhaço de hospital é a materialização caricaturada do ego médico, pomposo, repleto de firulas para expressar sua soberba, sua inteligência e superioridade. Abaixo, segue a representação de uma interação de um palhaço “Branco” e uma criança hospitalizada, em cena:

- Um bom dia a todos, como devem saber sou o Doutor Esteto Cópius. Trago os exames do paciente, mas acredito que o paciente deve ter recebido alta, porque esse rapaz que se apresenta prostrado na cama está bonito, corado, feliz, alegre, contente e totalmente saudável!!! Acho que minha secretária trocou os papéis... Ou será que o paciente está escondido pelo quarto?

A fala acima representa o Branco pomposo entrando no palco da saúde para expor o ridículo médico. Mas se há o Branco, quem será o Augusto?

O paciente de 9 anos de idade internado após realizar uma cirurgia ortopédica devido a uma fratura no antebraço, cai na gargalhada enquanto o palhaço procura em armários, embaixo da cama, no banheiro do quarto pelo paciente.

Augusto é o próprio paciente, que na relação médico-paciente tem seu protagonismo anulado. O médico é representativo da autoridade, do poder, e o paciente, como o próprio nome diz, representa a passividade, a submissão. O palhaço em cena possibilita uma nova configuração, um jogo lúdico onde médico e paciente dialogam e constroem a cena como protagonistas, em uma lógica horizontal de relação, de troca, de partilha.

Foi esse processo complexo de crítica às lógicas de poder e dominação que muitos autores denominaram Terapia do Riso33 Sato M, Ramos A, Silva CC, Gameiro GR, Scatena CMC. Palhaços: uma revisão acerca do uso dessa máscara no ambiente hospitalar. Interface (Botucatu). 2016; 20(56):123-34. doi: 10.1590/1807-57622015.0178.
https://doi.org/10.1590/1807-57622015.01...
,88 Ferreira DC, França TS, Aragão TBS, Freitas FF, Peres RM, Pinho CRP, et al. A Terapia do Riso como uma estratégia auxiliar na atenção farmacêutica humanizada em unidade hospitalar. Rev UNIABEU. 2014; 7(16):127-41.. O riso é terapêutico, não porque é engraçado, alegre e produz serotonina. O riso é terapêutico porque fortalece a existência do paciente como Ser, como atuante no processo terapêutico, distanciado da lógica de reificação desse indivíduo que só é considerado em detrimento da existência da ação médica. Em uma saúde que trabalha a doença, a ausência do doente impossibilita a ação e tê-lo é afirmar a existência médica.

O riso na sociedade de espetáculo

Onde o mundo real se converte em simples imagens, essas simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes típicas de um comportamento hipnótico [...], onde há representação independente, o espetáculo reconstitui-se99 Debord G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto; 2003.. (p. 13-4)

Em uma sociedade de reproduções espontâneas e independentes, o papel do artista palhaço na sociedade contemporânea é de performar uma realidade irreal. É o jogo hipnótico da sociedade de espetáculo em cena: a reprodução da reprodução, a falsa representação de uma falsa realidade. E o riso, o que é?

O riso que o palhaço provocava em sua origem é de identificação, de afirmação das mazelas, de reconhecimento da humanidade em si e no outro. Um riso potente, capaz de construir uma autocrítica sutil, refinada. Em uma sociedade de espetáculo, de uma realidade irreal, performática e imagética, o riso provocado pelo palhaço é de torpor, um espasmo da prostração e indolência da sociedade. Um riso involuntário de um corpo insensível, inerte, entorpecido nos acúmulos de um falso ser, submerso em camadas e camadas de representações.

Não se trata de questionar a legitimidade do riso do paciente, talvez por acreditar que o seu lugar no contexto do cuidado em saúde e o lugar que lhe é permitido estar em cena tornam esse riso legítimo e, talvez por isso, tenham ação terapêutica. Questiona-se aqui o riso do espectador (os acompanhantes, a equipe de saúde) e a ilegitimidade desse riso. Quem ri do palhaço, ri de si. Ri de suas mazelas, do seu ridículo. O ridículo que o palhaço apresenta no palco da saúde é o papel de opressor, controlador e subjugador do setor, considerado que o riso do palhaço é um riso de afetação ao ridículo representado. Será o riso dos espectadores reflexo da ação do palhaço como agente de reflexão?

É considerado que o palhaço de hospital hoje ocupa um papel não no cuidado à saúde, mas como objeto, como ferramenta de um sistema de mercado2626 Illich I. Limits to medicine. Medical nemesis: the expropriation of health. London: Penguin Books; 1977.. O próprio conceito de Terapia do Riso coloca o palhaço como mero recurso que justifica sua existência no campo da saúde. A saúde reifica o palhaço para apropriar-se, para TER, e o riso é mero produto de um serviço que se faz legítimo à sociedade de espetáculo99 Debord G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto; 2003..

Assim como Debord afirma, ao final da apresentação da Sociedade de Espetáculo: “É preciso ler este livro considerando que ele foi deliberadamente escrito na intenção de se opor à sociedade espetacular. Nunca é demais dizê-lo”99 Debord G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto; 2003. (p. 9), reforçando que esse texto deve ser lido considerando que foi deliberadamente escrito na intenção de se opor ao uso do palhaço como mero provocador de risos irrefletidos. Afirmar que a potência do palhaço está no poder terapêutico do riso é mero engodo.

Considerações finais

Em uma sociedade de espetáculo, o palhaço é a caricatura de uma sociedade irreal, performática e reprodutora de estereótipos. O palhaço de hospital, tendo conhecimento da sua função social, ao entrar no cenário da saúde pode promover críticas à lógica mercantilista, centralizadora, à verticalização do cuidado e à ausência de protagonismo do paciente. Ao passo que se as críticas não são percebidas, há a reificação da ferramenta palhaço, como objeto do riso, um objeto a ser capturado, apropriado e consumido, como um medicamento capaz de trazer conforto e cura.

O riso provocado pelo palhaço é de identificação das relações de controle, domínio e opressão e, portanto, uma potente ferramenta para ressignificar as relações sociais de poder e de trabalho. No cenário do hospital é percebido um desconforto, uma dissociação de uma realidade de torpor. Há necessidade de resgatar o arquétipo da máscara do palhaço para compor as muitas camadas de espetáculo existentes no hospital, de forma crítica, forte e resistente.

O palhaço no cenário hospitalar apresenta características críticas e reflexivas semelhantes ao bufão. No entanto, é necessário produzir o riso com qualidade ao favorecer rir de si mesmo diante das adversidades, não diante dos preconceitos com piadas racistas, sexistas, homofóbicas e transfóbicas. O palhaço ri do corpo doente, mas com respeito ao doente, ri das posturas de superioridade profissional diante da assistência prestada, como uma forma de inverter a lógica do poder e da subordinação. O palhaço pode rir de “tudo”, desde que a interação com o público apresente um espetáculo de comicidade com postura ética, respeitosa e acolhedora.

Assim, é ressaltado que não se pretende enquadrar a ação do palhaço em uma lógica maniqueísta, polarizada entre bem e mal; afinal, o palhaço não está dissociado das lógicas de poder. A proposta apresentada é de reflexão das ações do palhaço, de suas potencialidades e do uso dessa ferramenta tão provocadora e reflexiva.

  • Financiamento

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • Silva MR, Marques MCC, Caires S, Guedes MM, Neto VPM. Do bufão ao palhaço de hospital: trajetórias do ridículo em uma sociedade de espetáculo. Interface (Botucatu). 2025; 29: e230617 https://doi.org/10.1590/interface.230617

Referências

  • 1
    Braga B, Tonezzi J. O bufão e suas artes: artesania, disfunção e soberania. Jundiaí: Paco; 2017.
  • 2
    Thebas C. O livro do palhaço. São Paulo: Companhia das Letras; 2009.
  • 3
    Sato M, Ramos A, Silva CC, Gameiro GR, Scatena CMC. Palhaços: uma revisão acerca do uso dessa máscara no ambiente hospitalar. Interface (Botucatu). 2016; 20(56):123-34. doi: 10.1590/1807-57622015.0178.
    » https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0178
  • 4
    Masetti M. Doutores da ética da alegria. Interface (Botucatu). 2015; 9(17):453-8. doi: 10.1590/S1414-32832005000200026.
    » https://doi.org/10.1590/S1414-32832005000200026
  • 5
    Bennett M, Lengacher C. Humor and laughter may influence health. I. History and background. Evid Based Complement Alternat Med. 2006; 3(1):61-3.
  • 6
    Berk L, Felten D, Tan S, Bittman B, Westengard J. Modulation of neuroimmune parameters during the eustress of humor-associated mirthful laughter. Altern Ther Health Med. 2001; 7(2):62-72.
  • 7
    Brito CMD, Joaquim RHVT, Silveira R, Mendonça DB. O humor e o riso na promoção de saúde: Uma experiência de inserção do palhaço na estratégia de saúde da família. Cienc Saude Colet. 2015; 21(2):553-62.
  • 8
    Ferreira DC, França TS, Aragão TBS, Freitas FF, Peres RM, Pinho CRP, et al. A Terapia do Riso como uma estratégia auxiliar na atenção farmacêutica humanizada em unidade hospitalar. Rev UNIABEU. 2014; 7(16):127-41.
  • 9
    Debord G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto; 2003.
  • 10
    Pereira CL. Verossimilhança no teatro contemporâneo [dissertação]. Brasília: Instituto de Arte, Universidade de Brasília; 2016.
  • 11
    Stanislavski C. A construção da personagem. 10a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2001.
  • 12
    Stanislavski C. A preparação do ator. 24a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2008.
  • 13
    Hunzicker FM. Os elementos essenciais da Commedia Dell’arte no século XVI e na contemporaneidade. Cad Pesq CDHIS. 2020; 33(2):443-67.
  • 14
    Bastos R. O clown terapêutico. 2a ed. Juiz de Fora: Bartlebee; 2018.
  • 15
    Gazeau A. Los bufones. Barcelona: Biblioteca de Maravilhas; 1885.
  • 16
    Bergson H. O riso: ensaio sobre a significado do cômico. São Paulo: Edipro; 2018.
  • 17
    Aristóteles. Política. Lisboa: Vega; 1998.
  • 18
    Aurélio. Minidicionário da língua portuguesa. 8a ed. São Paulo: Saraiva; 2010.
  • 19
    Dunker C, Thebas C. O palhaço e o psicanalista: como escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo: Planeta do Brasil; 2019.
  • 20
    Cruz DD. A inserção do palhaço no ambiente hospitalar: experiências de um projeto de extensão. Rev Em Extensão. 2016; 15(1):133-40.
  • 21
    Achcar A, Souza F. Dez anos do Programa Enfermaria do Riso. Rio de Janeiro: Unirio, Proex; 2009.
  • 22
    Wuo AE. O clown visitador: comicidade, arte e lazer para crianças hospitalizadas. Uberlândia: EDUFU; 2011.
  • 23
    Sorriso de Plantão. Sorriso de Plantão [Internet]. Trapiche: UFAL; 2023 [citado 21 Nov 2023]. Disponível em: https://sorrisodeplantao.com.br/
    » https://sorrisodeplantao.com.br/
  • 24
    Fellini F. Fellini por Fellini. Porto Alegre: LPM; 1983.
  • 25
    Tsallis AC. Entre terapeutas e palhaços: a recalcitrância em ação [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2005.
  • 26
    Illich I. Limits to medicine. Medical nemesis: the expropriation of health. London: Penguin Books; 1977.

Editado por

Editora

Elizabeth Maria Freire de Araujo Lima

Editora associada

Flavia Liberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2023
  • Aceito
    19 Ago 2024
UNESP Distrito de Rubião Jr, s/nº, 18618-000 Campus da UNESP- Botucatu - SP - Brasil, Caixa Postal 592, Tel.: (55 14) 3880-1927 - Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br