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Promoção de saúde, vínculos e processos de sublimação

Health promotion, bonds and sublimation processes

Promoción de la salud, vínculos y procesos de sublimación

Na experiência descrita no texto de Bagrichevsky et al.11. Bagrichevsky M, Roberto MS, Cacciari M, Meireles AA. “Grupo de hombres” como dispositivo de promoción de la salud: experiencias singulares en prácticas de cuidado. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220585. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.220585
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, deparamo-nos com a problemática há muito debatida na Academia e na Saúde: a ausência de homens em Unidades Básicas de Saúde (UBS). Entretanto, no lugar de tecer julgamentos usuais, o texto revela sua potência ao se debruçar sobre a intervenção realizada conjuntamente entre acadêmicos e profissionais de saúde, apreciando-a minuciosamente sem análises simples, moralizantes e sem se esquivar de empreender críticas necessárias.

Porém, uma leitura provocativa do texto pode conduzir a objeções, sobretudo à pertinência de se classificar a referida intervenção como ação em promoção da saúde (PS). Para contribuir com essa reflexão, vamos nos referir a personagens do texto sobre os quais teceremos reflexões teóricas visando corroborar as principais assertivas sustentadas. Com base nesses personagens, demonstraremos que, em contraposição à tradição da promoção de estilos de vida, a PS é, em última instância, produção de vínculos sociais, coletivos e sublimatórios, relativamente independente de transformações concretas operadas na vida dos usuários. Daremos suporte à presente tese por meio de autores que estudam a atividade de trabalho.

Promoção da saúde, estilo de vida e determinantes sociais da saúde

Há acumulado teórico relativamente consolidado que problematiza a PS apreendida sobretudo mediante os riscos à saúde e o estímulo a determinados estilos de vida considerados saudáveis22. Castiel LD. A medida do possível… saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999.. As práticas de PS apreendidas nessa perspectiva acarretam efeitos frequentemente moralizantes, culpabilizantes, e capitaneadas por dinâmicas capitalísticas. Analisando por esse ângulo a experiência do personagem Sócrates, do texto, talvez chegássemos a interpretações muito distintas das apresentadas pelos autores. O fato de ele ter sofrido ataque cardíaco sugere comportamentos contraproducentes para manutenção de saúde ideal. Podemos até supor que Sócrates faça uso de bebidas alcoólicas e se alimente inadequadamente. É provável que não realize atividades físicas, embora execute atividades profissionais de alta demanda física (montagem de móveis). Pela noção de PS tida como estilos de vida, o grupo de homens parece não ser suficiente para debelar tais comportamentos inapropriados, como testemunha seu ataque cardíaco. Ora, se o “estilo de vida” dos membros do grupo de homens não se altera com a intervenção, é possível indagar: a prática realizada fora é de fato PS?

Contrários a essa perspectiva, acompanhamos a premissa dos autores no sentido de que as atividades desenvolvidas na UBS estiveram, sim, dentro do escopo de práticas de PS. Mas deve-se prestar atenção: poderíamos ser tentados, na esteira das clássicas contribuições de Laurell e Noriega33. Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo: Hucitec; 1989. que vinculam a saúde das populações a modos de produção sócio-historicamente determinados, a supor que práticas de PS estejam relacionadas unicamente a determinantes sociais objetivos, isto é, materiais, da saúde.

Essa noção requereria que fossem realizadas mudanças profundas nos bairros, nas profissões e nos equipamentos sociais ofertados aos homens do grupo de homens. Ora, Sócrates não tem emprego fixo, é aposentado, e atua realizando bicos sem remuneração suficiente e talvez sem equipamentos de proteção. Sua aposentadoria é insuficiente para uma vida materialmente satisfatória e o grupo de homens não alterou concretamente em nada sua residência ou seu bairro. Nesse raciocínio, o grupo de homens não contribuiu para alterações de condições concretas dos membros, não podendo, portanto, ser denominado de PS.

Se é verdade que a produção de saúde está atrelada a determinantes sociais materiais, ações de PS realizadas unicamente por meio de transformações dos aspectos contextuais e ambientais podem ser uma ação de difícil reprodução. De modo igual, apreender da PS por meio de estilos de vida também parece insuficiente. Solucionamos esse impasse com contribuições teóricas de linhagem que investigam a atividade de trabalho, dentre as quais Dejours44. Dejours C. Trabalho vivo - 2 volumes. Brasília: Paralelo 15; 2012. e Clot55. Clot Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: FabreFactum; 2010. são algumas das referências. Essa tradição contribui para problematizar e ampliar a análise sobre PS pela relação entre Saúde, Saúde Mental, atividade e coletivo de trabalho.

Dejours44. Dejours C. Trabalho vivo - 2 volumes. Brasília: Paralelo 15; 2012. e Clot55. Clot Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: FabreFactum; 2010., amparados em Canguilhem66. Canguilhem G. O normal e o patológico. 11a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2000., compreendem a saúde como não equivalente à ausência da doença: se ser saudável não é não ter doença, o que seria saúde? Canguilhem66. Canguilhem G. O normal e o patológico. 11a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2000., em uma análise crítica do conceito de normal, sugere que saúde é capacidade normativa: “o homem só se sente em boa saúde (...) quando se sente mais do que normal, isto é, não apenas adaptado ao meio e às suas exigências, mas também normativo, capaz de seguir novas normas de vida” (p. 161). E continua: “o poder e a tentação de se tornar doente são uma característica essencial da fisiologia humana (...) A possibilidade de abusar da saúde faz parte da saúde” (p. 162).

Por essa reflexão, revisitamos a história dos homens do grupo de homens. Muitos poderiam ser considerados “doentes” por meio de critérios biológicos, tais como Sócrates com seu problema cardíaco, ou Vavá e seus índices glicêmicos. Contudo, mais que proteger a saúde das supostas agressões ao corpo, estimulando mudanças comportamentais normatizantes, o grupo promove reflexão sobre a importância de como se pode “abusar da saúde” em meio à vida tal como ela é, para ampliá-la e não para limitá-la. Vide o exemplo das partidas de futebol: após inúmeras contusões decorrentes do espírito competitivo que conduzia a lesões e à inviabilidade do jogo, ressignifica-se essa atividade pelos princípios colaborativos, para se poder continuar a jogar e “abusar da saúde”.

Menos que redução das possibilidades da ação de cada um mediante normas impostas pelo saber médico-biológico, repactuaram-se normas e valores partilhados que ampliam as possibilidades da atividade, isto é, uma deontologia do fazer44. Dejours C. Trabalho vivo - 2 volumes. Brasília: Paralelo 15; 2012., amparando-se na solidariedade, na partilha de um comum e na ampliação do poder de agir55. Clot Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: FabreFactum; 2010.. Trata-se, portanto, de ampliar as capacidades de agir e inventar: ou seja, PS. O que mudou, em termos concretos, na vida de Sócrates ou Vavá? Acesso a serviços de saúde? Mais frequência na UBS? Talvez. Certamente suas residências continuam as mesmas. E talvez muitos comportamentos se mantenham inalterados. Porém, indubitavelmente, agora se identificam como membros de um coletivo que os une: a UBS nesse momento é também deles, o que faz toda a diferença!

Qual é o efeito de serem apenas dez homens em meio a milhares? Mais uma vez Sócrates revela uma dimensão crucial: o efeito social do grupo. Há intenção de ampliá-lo: “a sala deve estar cheia”! Buscando mobilizar colegas do território, os participantes provavelmente comentam o que ocorre nesse grupo. O texto nada menciona sobre o efeito imaterial que reverbera nos sentidos socialmente produzidos e partilhados sobre a UBS, mas é patente que ela se tornou hábitat dos homens. Independentemente de se ter avaliado ou não a frequência de homens na UBS pré e pós-existência do grupo, para muitos esse espaço provavelmente se torna simbolicamente mais acessível, mesmo que não frequentem o grupo. A produção simbólica sobre uma unidade não feminina se tece nos bares e becos do bairro. Essa dimensão imaterial, a qual podemos supor existir, é transformação importante das representações no território. Materialmente pouco se altera, porém simbolicamente se constrói terreno fértil para outras ações desenvolverem.

Indo além, Dejours44. Dejours C. Trabalho vivo - 2 volumes. Brasília: Paralelo 15; 2012. convida-nos a repensar a problemática da saúde pela dimensão da Saúde Mental e dos processos de sublimação. Em reflexão sobre o trabalho, Dejours alega que ele nunca é neutro em relação à Saúde Mental. Nessa psicodinâmica, pode-se produzir sofrimento ou prazer, sendo os modos de viver e produzir o coletivo um dos elementos cruciais dessa equação. Pertencer a um coletivo pode possibilitar partilha de saberes e reconhecimentos sobre as contribuições pessoais no desenvolvimento de uma sociabilidade que é fruto de um coletivo histórico. Essa partilha é pela ética do fazer, eixo de prazer. Ou, ao contrário, produzir defesas coletivas orientadas contra o medo e fonte de violência, eixo do sofrimento.

Eis o que se produz no grupo de homens: por meio do desenvolvimento de vínculos e pelo espaço de comunicação que partilham, faz-se florescer o que, talvez, em outros locais não se possa viver de modo produtivo: processos de sublimação44. Dejours C. Trabalho vivo - 2 volumes. Brasília: Paralelo 15; 2012. e Saúde Mental. Pelo grupo de homens experimenta-se a força do pertencimento, expressa tanto na insistência em participar do grupo, mesmo em dias de dilúvio, quanto pela necessidade de publicizar iconograficamente o pertencer – dimensão subjetiva, sublimatória e também concreta –, por meio da produção de camisas que afirmam o grupo como viável, necessário e saudável.

Conclusões

Vemos, portanto, que a PS não é mera reprodução de estilos de vida idealmente estimulados. E não se pode imaginar que nada possa ser feito se as condições concretas das pessoas não se alterarem. Bagrichevski et al.11. Bagrichevsky M, Roberto MS, Cacciari M, Meireles AA. “Grupo de hombres” como dispositivo de promoción de la salud: experiencias singulares en prácticas de cuidado. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220585. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.220585
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nos ensinam que a PS é a possibilidade de construção de um terreno em que os processos de saúde se ampliam, tendo nos processos subjetivos e sublimatórios um de seus elementos mais cruciais. E tais processos são, antes de tudo, imateriais, simbólicos, afetivos e coletivos.

Referências

  • 1
    Bagrichevsky M, Roberto MS, Cacciari M, Meireles AA. “Grupo de hombres” como dispositivo de promoción de la salud: experiencias singulares en prácticas de cuidado. Interface (Botucatu). 2023; 27:e220585. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.220585
    » https://doi.org/10.1590/interface.220585
  • 2
    Castiel LD. A medida do possível… saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999.
  • 3
    Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo: Hucitec; 1989.
  • 4
    Dejours C. Trabalho vivo - 2 volumes. Brasília: Paralelo 15; 2012.
  • 5
    Clot Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: FabreFactum; 2010.
  • 6
    Canguilhem G. O normal e o patológico. 11a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2000.

Editado por

Editor: Antonio Pithon Cyrino
Editor de debates: Sérgio Resende Carvalho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2022
  • Aceito
    20 Dez 2022
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