Resumos
O objetivo deste ensaio foi refletir sobre a dinâmica das áreas de conhecimento no interior do campo da Saúde Coletiva. O ensaio foi construído a partir das obras de Fleck, Bourdieu, Foucault, Deleuze e Guattari e da experiência da autora. Esses pensadores trataram de diferentes faces da produção científica, ressaltando seu caráter social e histórico, a construção dos objetos, as formas de enunciação, os processos de trabalho, os métodos e as relações internas e externas. São destacados aspectos políticos e reflexões sobre as relações entre várias formas de saber e o conhecimento científico. Foram tematizadas as relações da Epidemiologia no interior do campo da Saúde Coletiva e apontados movimentos no sentido de superar barreiras e dificuldades na cooperação entre ciências e disciplinas nesse campo.
Palavras-chave Epistemologia; Campo científico; Coletivo de pensamento; Episteme; Saúde Coletiva
The aim of this essay is to reflect upon the dynamics of areas of knowledge within the field of public health. The essay draws on the works of Fleck, Bourdieu, Foucault, Deleuze and Guattari, and the experiences of the author. These authors dealt with different facets of scientific output, highlighting its social and historic nature, the construction of objects, forms of enunciation, work processes, methods, and internal and external relations. We highlight political aspects of and reflections on the relationships between various forms of knowledge and science. We thematize epidemiological relations within the field of public health and highlight movements towards overcoming barriers and difficulties in cooperation between the sciences and disciplines in this field.
Keywords Epistemology; Scientific field; Thought collective; Episteme; Public health
El objetivo de este ensayo fue reflexionar sobre la dinámica de las áreas de conocimiento en el interior del campo de la Salud Colectiva. El ensayo se construyó a partir de las obras de Fleck, Bourdieu, Foucault, Deleuze y Guattari y de la experiencia del autor. Esos autores trataron de diferentes faces de la producción científica, subrayando su carácter social e histórico, la construcción de los objetos, las formas de enunciación. Los procesos de trabajo, los métodos y las relaciones internas y externas. Se destacan aspectos políticos y reflexiones sobre las relaciones entre varias formas de saber y el conocimiento científico. Se plantearon como tema las relaciones de la Epidemiología en el interior del Campo de la Salud Colectiva y se señalaron movimientos en el sentido de superar barreras y dificultades en la cooperación entre ciencias y asignaturas en ese campo.
Palabras clave Epistemología; Campo científico; Colectivo de pensamiento; Episteme; Salud colectiva
O convite dos editores de Interface para participar neste dossiê sobre os diálogos, articulações e interfaces entre áreas no campo da Saúde Coletiva constituiu excelente oportunidade para refletir sobre as dinâmicas que operam nos distintos campos de saberes.
Reflexão provisória e exploratória ancorada em um conjunto de autores europeus que, durante o século XX, pensaram o processo de construção de conhecimentos nas sociedades ocidentais contemporâneas, buscando superar diversas dualidades que atravessaram a teoria do conhecimento desde a Antiguidade até os tempos modernos.
São quatro franceses e um polonês os autores convocados a nos auxiliar nessa reflexão, contribuindo para a compreensão mais geral dos problemas da enunciação e da pragmática, que incidem também no campo particular da Saúde Coletiva: Ludwig Fleck, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari.
Ludwik Fleck e a construção do Fato Científico
Fleck teve papel destacado nos desenvolvimentos iniciais da imunologia e no papel da sorologia como marcador de infecção no início do século XX e, a partir de suas pesquisas empíricas em torno desse objeto ainda pouco formalizado e insuficientemente individualizado no conjunto das questões relacionadas aos processos infecciosos e à ocorrência de doenças transmissíveis, produziu reflexões epistemológicas que se contrapunham frontalmente aos postulados do Círculo de Viena e ao positivismo lógico dos seus membros1,2.
Fleck3 dessacralizou a ciência afirmando que ela não é uma construção formal, mas sim o resultado da atividade da comunidade de pesquisadores. Ele partiu da reflexão sobre as peculiaridades do pensamento médico, por oposição a outros campos de desenvolvimento científico, chamando a atenção para dois aspectos em particular: a necessidade de lidar com o anormal e não com regularidades, ou seja, com aquilo que se desvia da norma; e a obrigação de obter, a partir do conhecimento, um êxito imediato nas ações de intervenção.
O fato de a Medicina ser um campo de saberes e práticas específico e de haver uma grande distância entre a abstração presente no conceito de doença, enquanto entidade nosológica embasada nas ciências biomédicas, e as manifestações clínicas concretas observáveis nos pacientes levou o autor à preocupação com o fato científico e sua natureza, colocando-o assim no centro de sua reflexão epistemológica3.
Para o autor, a produção de conhecimentos científicos só se realiza coletivamente, não podendo ser atribuída a indivíduos, dependendo assim das estruturas sociológicas e das convicções que unem os cientistas em torno de determinados problemas. Para expressar essa compreensão, ele propõe dois conceitos complementares: coletivo de pensamento, constituído pelos pesquisadores de cada um dos campos científicos, e estilo de pensamento ou conjunto de proposições consensuais desse coletivo, sobre as quais são construídas as teorias. Os hábitos do estilo de pensamento permitem passar da observação formativa à formulação das proposições1,3.
O estilo de pensamento define as disposições dos pesquisadores para perceber de forma orientada, ou seja, dirigida pelas convenções aceitas pelo coletivo de pensamento. O fato científico, portanto, não é algo que se ofereça diretamente aos observadores, imediatamente ou por meio de procedimentos de desvelamento, mas sim o resultado da articulação entre o percebido e as crenças e concepções do coletivo de pensamento1,3.
Daí decorrem outras características da produção do conhecimento, como o caráter histórico do saber e a atuação de fatores externos, tais como as pressões sociais, as expectativas políticas e a necessidade de êxito. Segundo o autor, não há verdade absoluta. No desenvolvimento dos conceitos e teorias há sempre um passado que permanece vivo, em noções e ideias herdadas, nas formas de conceber os problemas, nas características do ensino formal, na vida cotidiana, na linguagem e nas instituições1,3.
O estilo de pensamento constitui um sistema de opiniões estruturalmente coerente e íntegro que resiste frente aos fatos que possam contradizê-lo. Ao mesmo tempo que ele constitui um plano seguro para a formulação das perguntas e a construção de proposições que resultem em um conhecimento sobre problemas de interesse do coletivo de pensamento, é também um obstáculo epistemológico, no sentido de limitar e constranger as observações e a construção dos fatos relevantes1,3.
Assim, um fato científico é a resultante da articulação entre um observar formativo e as proposições existentes no estilo de um coletivo de pensamento. A escolha e a construção dos objetos já contêm pressupostos consensuados pelo coletivo. As observações e experimentos em cada disciplina dependem dos hábitos de pensamento dos seus coletivos. Não é o acúmulo das observações e os registros sistemáticos que produzirão o novo. O observar formativo decorrente da formação e da experiência dos pesquisadores é a base sobre a qual se assenta a atribuição de sentido ao observado1,3.
Todo fato científico se relaciona ao coletivo de pensamento de três maneiras: precisa estar situado de modo consonante com os interesses intelectuais do grupo; precisa caracterizar uma resistência aos conhecimentos já estabelecidos, sob a forma de algo observável e experimentável que questiona o já conhecido; e, finalmente, deve expressar-se no estilo de pensamento do coletivo3.
Os estilos de pensamento garantem a persistência do sistema de ideias por meio de dois processos complementares: o núcleo de identidade fornecido pelo coletivo de pensamento e a delimitação de um campo de problemas e objetos válidos fornecidos por ele (ciclo esotérico ou dos iniciados); e a legitimação conferida pelo núcleo externo dos leigos que depositam confiança no saber assim produzido (ciclo exotérico dos apoiadores)1,3.
As transformações inevitáveis no estilo de pensamento e nas concepções e teorias são derivadas da acumulação de problemas e situações cuja explicação foge do quadro estabelecido. Segundo Fleck3, a circulação interna e externa das ideias, entre os membros do coletivo e os círculos externos de apoiadores, desloca e transforma os saberes. Além disso, o acúmulo de fatos contraditórios que inicialmente tendem a ser afastados, reinterpretados ou postergados, acaba por tensionar as explicações estabilizadas, rompendo a “harmonia das ilusões” do coletivo de pensamento1 (p. 32).
A admissão aos coletivos de pensamento se dá por meio dos procedimentos de formação. Inicialmente, os novos membros passam por um processo de doutrinação ou inculcação dos valores e modos de funcionamento do campo: formas de trabalho; conjunto de problemas pertinentes; e equipamento teórico e conjunto de aplicações práticas, além do estilo de pensamento (modos de construção das proposições, comunicação e aplicação). A formação, aliada à tradição e ao costume, vai conformando as disposições para a percepção ou observação formativa e a capacidade de agir segundo o estilo dominante. A experiência vai progressivamente resultando na produção de um conhecimento científico fático1,3.
O coletivo de pensamento corresponde a uma oposição do saber dos especialistas, sejam eles generalistas ou experts em certas particularidades ou regiões do campo de conhecimento, em relação ao saber popularizado que irá circular entre os leigos e apoiadores. A popularização se apoia na simplificação, no esquemático e na certeza. A ciência especializada exige postura, capacidade crítica e construção de um sistema ordenado e coerente de proposições3.
Quanto à compreensão da dinâmica dos objetos e dos problemas construídos em torno deles, as ideias de Fleck reforçam as barreiras e a incomunicabilidade entre diferentes coletivos de pesquisadores. Para ele, os estilos de pensamento, se são elementos importantes de socialização no interior dos coletivos e ferramentas para a produção de fatos científicos, conceitos e teorias, representam também a impossibilidade de diálogo e a relativa cegueira para fenômenos que extravasam os limites do já estabelecido, funcionando assim como obstáculo epistemológico. Löwy2 chama a atenção para a inadequação dessa visão no que se refere às formas de organização do trabalho científico atual, que se realiza muito mais por meio de redes de comunicação e trocas do que em grupos herméticos, isolados e protegidos.
Aparentemente, Fleck estava empenhado em descrever a dinâmica de comunidades relativamente delimitadas no interior de campos mais extensos do conhecimento, ou seja, regiões delimitadas por problemas assemelhados. Nesse sentido, se pensarmos em um campo tão vasto quanto o da Saúde Coletiva, estaríamos provavelmente diante de uma verdadeira torre de Babel, com distintos estilos de pensamento e diversos coletivos dedicados a tratar problemas e questões recortados e estruturados em torno de inúmeras disciplinas, podendo ainda, com o avanço da divisão do trabalho, desdobrar-se em diversos subconjuntos especializados em aspectos cada vez mais particulares.
O desafio então seria o de identificar um plano contextual mais geral capaz de dar sentido e unidade a esses diferentes territórios, a ponto de delimitar um campo de conhecimentos e práticas que se diferencia de outros tantos na grande área da Saúde e no reino das Ciências da Vida. Seguindo as intuições do autor, talvez possamos falar em especialistas generalistas (sanitaristas) e especialistas particularistas, tais como epidemiologistas; cientistas sociais em saúde; pesquisadores dos serviços e da política de saúde; e assim por diante. Se o estilo de pensamento mais geral e abrangente for capaz de manter as ideias e as proposições em circulação e os ruídos na comunicação não forem tantos a ponto de impedir a comunicação, podemos garantir uma certa unidade na diversidade. Entretanto, se os diferentes coletivos de pensamento formados por especialistas especializados e por seus subgrupos produzirem estilos de pensamento também progressivamente mais especializados, a comunicação no interior do campo se tornará cada vez mais difícil e fragmentada, e a produção de conhecimentos, menos articulada. As consequências dessa desarticulação se farão sentir nas práticas e nas propostas de intervenção, ameaçando seriamente a efetividade destas, visto que os problemas complexos que povoam o campo exigem soluções complexas e articuladas para seu enfrentamento.
Pierre Bourdieu: agentes e instituições
Cerca de quarenta anos depois da publicação do trabalho de Fleck, Bourdieu publicou dois artigos dedicados às especificidades do campo científico. Para fugir de uma ciência vista como capaz de engendrar a si mesma, fora de qualquer conexão no mundo social, ou de uma ciência vista como simples reflexo do contexto social, o autor propôs a noção de campo científico designando um espaço relativamente autônomo constituído pelos agentes e instituições que produzem, reproduzem e difundem a ciência, um microcosmo com regras próprias4.
O campo científico é habitado por diferentes áreas de saberes e disciplinas, com distintos graus de autonomia dependendo da natureza das pressões externas a que estão submetidas; das formas de trabalho; dos créditos acadêmicos; dos contratos e fontes de financiamento; das formas de resistência diante das expectativas políticas, assim por diante4.
Como todo campo social, o campo científico também é atravessado por forças e lutas e está estruturado pelas relações objetivas entre agentes e instituições, determinadas pela distribuição do capital científico. O capital científico tem dois componentes principais: uma espécie de capital simbólico, que consiste no reconhecimento dos pares (crédito acadêmico) e em signos de consagração; e um capital político-administrativo, que decorre do reconhecimento da competência e da autoridade e do domínio das regras do jogo no âmbito da política científica4.
Assim como em outros campos sociais, o campo científico inclui um habitus decorrente de disposições adquiridas ao longo do processo de formação e no trabalho, maneiras de ser permanentes e duráveis. Do mesmo modo, o campo científico define uma illusio compartilhada por seus agentes, que repousa na sublimação de interesses internos e externos, apresentando-se como desinteresse interessado, abnegação e gratuidade4.
O campo científico é caracterizado ainda por definir os princípios de verificação admissíveis em seus limites, métodos de validação na produção de verdades e contrato tácito entre os praticantes (círculo esotérico dos iniciados) que os afastam e diferenciam dos leigos (círculo exotérico, cada vez mais incapaz de julgar e criticar; e, consequentemente, de apoiar).
O campo científico é atravessado por fenômenos de concentração de capital e poder, monopólios e relações de dominação como qualquer outro campo social. Há dois grandes tipos de poder derivados dos capitais acadêmico e político-administrativo: um poder político institucionalizado, relacionado à ocupação de posições importantes, resultando em controle sobre os meios de produção (fontes de financiamento, acesso a equipamentos, composição de equipes, etc.); e outro derivado de um prestígio pessoal baseado no reconhecimento pelos pares e no resultado das contribuições relevantes ao conhecimento em um determinado campo, normalmente envolvendo uma qualidade carismática do pesquisador ou da equipe4.
Há duas formas diferenciadas de concorrência em ação no interior do campo científico, cuja intensidade e frequência dependem fundamentalmente do grau de autonomia das áreas e disciplinas: uma concorrência perfeita mediada pelo mérito acadêmico baseada fortemente em argumentos, demonstrações e refutações teórico-conceituais e metodológicas, que se estabelecem entre diferentes grupos e correntes de pensamento internas a cada subcampo; uma concorrência imperfeita, na qual intervém forças e pressões externas, não científicas, decorrentes dos compromissos firmados pelas instituições com outras instâncias sociais externas ao âmbito científico.
Nas áreas e subgrupos com maior autonomia, predominam as formas de concorrência internas, enquanto nas áreas e grupos mais heterônomos predominam o recurso a forças políticas externas para a solução de conflitos4.
Ainda em relação à maior ou menor autonomia dos subgrupos e áreas que povoam o campo científico, é importante ter em conta o paradoxo entre a autonomia relativa que repousa no financiamento estatal, diminuindo e anulando as pressões de mercado sobre o fazer científico, e os constrangimentos e as demandas apresentadas pelos governos enquanto caixa de ressonância de interesses econômicos e políticos de classes e frações de classes4.
É interessante notar os vários pontos de contato entre a compreensão de Bourdieu acerca da dinâmica do campo científico e os aspectos apontados por Fleck. Ambos compreendem o empreendimento científico como fundamentalmente social e histórico; e identificam comunidades de praticantes articulados em torno de um modo de produzir ou estilo de pensamento, compartilhando um conjunto de ilusões ou representações sobre sua missão. Bourdieu vai além ao identificar os processos de disputa política e enfrentamentos no interior do campo, que são fundamentais para definir sua organização e dinâmica.
A reflexão desenvolvida por Bourdieu se aplica de modo geral à compreensão do campo científico como umas das instâncias especializadas de organização da sociedade, na qual diferentes áreas de conhecimentos e disciplinas se distribuem disputando espaço e poder. No entanto, cremos que essa mesma análise macrossocial poderia ser aplicada em nível meso ou microssocial para iluminar as disputas e relações que se verificam no interior de campos particulares constituídos por grandes áreas do conhecimento como a Saúde Coletiva e seus subcampos ou regiões disciplinares ou intradisciplinares.
Nessa perspectiva, que privilegia as disputas de poder e as formas de concorrência e acumulação dos capitais acadêmico e político-administrativo, as relações entre áreas, disciplinas ou especialidades podem ser pensadas como processos cambiantes que podem incluir momentos de concorrência acirrada e oposição, bem como momentos de articulação, cooperação e solidariedade capazes de reforçar o coletivo frente a outros coletivos ou agrupamentos. É possível pensar em formas de articulação que superem a falsa hierarquia entre pesquisa básica, pesquisa estratégica e pesquisa tecnológica, estimulando a interfecundação entre as diferentes missões e trajetórias; e a construção de objetivos comuns que fortaleçam a defesa da autonomia do campo científico e que garantam o apoio social necessário para sua sobrevivência.
Um aspecto particularmente importante nas estratégicas de fortalecimento e superação das disputas internas a um campo de conhecimento específico diz respeito às formas e aos mecanismos de avaliação aplicados pelas agências de fomento ou pelas próprias instituições acadêmico-científicas na repartição dos recursos materiais e dos marcadores imateriais de prestígio. Os processos avaliativos, necessários como instrumentos de desenvolvimento e aprimoramento do trabalho e como forma de prestação de contas à sociedade, precisam ser elaborados tendo em conta a necessidade de articulação, cooperação e solidariedade imprescindíveis para lidar com problemas complexos, transdisciplinares e multifacetados, evitando o acirramento de disputas improdutivas no interior da comunidade acadêmica.
Michel Foucault e a arqueologia do saber
Nas próprias palavras do autor, a arqueologia dos saberes objetivava revelar a especificidade das “coisas ditas”; e as condições que propiciaram a emergência de discursos sobre questões muito particulares como a loucura, a clínica médica, a biologia, a economia política, a linguagem, a sexualidade e todo um conjunto de práticas a elas associadas5.
A arqueologia é um projeto de descrição de acontecimentos discursivos e de como certos enunciados apareceram e outros não; das condições de existência dos enunciados; dos limites e das correlações com outros enunciados; e da exclusão de outros tantos enunciados possíveis. Em lugar da elaboração dos grandes edifícios históricos que delimitam épocas e eras, o empreendimento da arqueologia está na identificação de questões muito particulares que sinalizam rupturas importantes no fluxo dos acontecimentos; descontinuidade de processos; recortes e limites de fenômenos; e deslocamentos e transformações de saberes5.
Para proceder com esse tipo de abordagem histórica, é fundamental identificar, como ponto de partida, a emergência de formações discursivas constituídas por conjuntos de enunciados referidos a um mesmo objeto, que obedecem a determinadas condições de existência e apresentam certas regularidades relativas, tais como os tipos de enunciados, os temas e os conceitos que utilizam5.
As regras de formação dos enunciados dependem da emergência de certos objetos em determinadas circunstâncias, delimitados no interior de certas instâncias ou instituições sociais e especificados a partir de sistemas de classificação que os separam, agrupam, opõem ou derivam, por referência a outros objetos do conhecimento. As formações discursivas, ao invés de serem analisadas como conjuntos de signos, passam a ser tratadas como conjunto de “práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”5 (p. 60).
Além dos objetos que permitem individualizar uma formação discursiva, é importante compreender o encadeamento entre os diferentes tipos de enunciados considerando três aspectos complementares: Quem tem o direito de proferir certos discursos? Quais são os lugares institucionais nos quais se encontram a origem legítima e as aplicações de um discurso? Quais são as posições dos sujeitos na malha de domínios nos quais os discursos podem circular? Assim, as diversas modalidades de enunciação manifestam a dispersão dos sujeitos e de seus pontos de vista5.
Os conceitos que fazem parte das formações discursivas surgem da organização do próprio campo de enunciados que compreende formas de sucessão nas quais estão dispostas as séries enunciativas; as correlações entre elas; os esquemas retóricos; formas de coexistência entre verificações experimentais; validações lógicas; aceitação pela tradição ou pela autoridade; repetição; comentários; análise de erros; concomitância de enunciados de domínios diferentes; e um domínio de memória de enunciados já superados e não mais admitidos. Ainda há que se considerar procedimentos que podem ser aplicados aos enunciados, como técnicas de reescrita, métodos de transcrição, modos de tradução, domínios de validade, transferências entre campos e métodos de sistematização das proposições. Todos esses processos e elementos vão originar os conceitos sem que seja necessário recorrer a idealizações, a uma individualidade psicológica ou à história das ideias5.
Progressivamente, as formações discursivas vão dando lugar a formas mais organizadas e delimitadas de objetos, conceitos, temas e tipos de enunciação que resultam em teorias que poderão ser analisadas segundo as incompatibilidades, as equivalências e as sistematizações internas. Há também uma distribuição dos temas e teorias que podem estabelecer relações de analogia, oposição, complementariedade ou delimitação recíproca com outros discursos, estabelecendo assim uma repartição do campo dos saberes e criando uma topologia particular em torno dos objetos segundo os graus de coerência, rigor e estabilidade de certas construções teóricas5.
Há um último aspecto a se considerar nesse trajeto que vai do aparecimento de enunciados até a elaboração de teorias, sobre objetos construídos nesse percurso, que é a função que tais conhecimentos podem ter no âmbito de práticas não discursivas relacionadas aos mesmos objetos5.
Para concluir sua exposição sobre a arqueologia do saber, Foucault5 sintetiza sua concepção de saber como o conjunto de elementos formados por uma prática discursiva – incluindo diferentes objetos, espaços dos quais e nos quais os sujeitos podem falar desses objetos – em um plano de coordenação de enunciados, conceitos, teorias e possibilidades de utilização prática do conhecimento5.
Além disso ele apresenta os momentos ou etapas de transformação das práticas discursivas e seu devir em disciplinas e ciências. O processo tem início quando certas práticas discursivas se individualizam e se tornam autônomas no sistema de formação de enunciados, produzindo objetos novos em torno dos quais novos enunciados vão sendo formados, delimitando um conjunto de questões que se articulam com determinadas práticas sociais e políticas. Daí surgem aquilo que o autor denominou positividades, ou seja, práticas discursivas nas quais as regras de formação dos objetos, formas de enunciação, jogos de conceitos e escolhas teóricas se organizam, ultrapassando o limiar de positividade e constituindo espaços delimitados para certos saberes que começam a se diferenciar e se destacar do senso comum5.
Na medida em que tais positividades se desenvolvem e circulam em diferentes espaços, começam a ser produzidas normas de verificação dos enunciados formulados e essa normalização passa a ter uma função dominante sobre o saber, ultrapassando o limiar de epistemologizacão, configurando-se em uma disciplina científica e produzindo um relevo mais destacado no campo dos saberes5.
A etapa seguinte é delimitada pelo desenvolvimento de critérios formais de construção e verificação de proposições lógicas que passam a substituir os enunciados e permitem a ultrapassagem do limiar de cientificidade, transformando disciplinas em ciências. A última etapa consiste na ultrapassagem do limiar de formalização, caracterizado pela abstração e formalização no interior das ciências, visando à formulação de axiomas e estruturas proposicionais legítimas fortemente fundadas em elementos matemáticos e lógicos5.
Foucault5 insiste que não há uma linearidade nesse processo, ao contrário do que a ideia de etapas poderia levar a crer. Para o autor, os diferentes saberes podem encontrar-se simultaneamente em diferentes etapas no interior do campo de saberes, bem como em subcampos específicos e em subdivisões ainda menores da vasta planície dos saberes. É o conceito de episteme – conjunto de relações que podem unir práticas discursivas, positividades, disciplinas, ciências e sistemas formalizados em um determinado tempo e lugar – que melhor representará essa afirmação.
Foucault acrescenta, aos enfoques anteriores, essa dimensão de articulação permanente entre práticas sociais e formulação de saberes que, no entanto, não se ligam estreitamente nem às palavras, nem às coisas, ou seja, saberes que ultrapassam a simples formalização da linguagem e atribuição de nomes, mas que também sobrepassam o simples símbolo atrelado às coisas com função significante. De certo modo, ao mesmo tempo que reconhece as regiões delimitadas pelas disciplinas e pelas ciências, o autor valoriza um conjunto mais descentrado e menos formalizado de relações diversas e provenientes de diferentes âmbitos sociais, na emergência e consolidação de novos saberes, identificáveis nas brechas e fendas que marcam as rupturas históricas, sem uma sincronicidade demarcável no devir histórico.
Trazendo essas contribuições para o campo da Saúde Coletiva, poderíamos identificar uma episteme própria, que não é a mesma, nem se mantém inalterada ao longo do devir histórico, mas que delimita um conjunto de objetos e temas que se organizam em diferentes disciplinas, ciências, sistemas formalizados ou práticas discursivas menos estruturadas e mais flexíveis. Esse conjunto de elementos díspares e assíncronos podem ser observados em todas as áreas e subáreas que compõem o campo, bem como em estratificações internas a cada uma delas.
Retomando a proposta de Bourdieu4 com relação a formas mais produtivas de superar conflitos e disputas de territorialidade, parece importante compreender que, embora seja possível identificar essas estratificações, elas não deveriam necessariamente originar estruturas hierárquicas rígidas e acumuladoras de poder e prestígio, mas, antes, poderiam ser geradoras de maior flexibilidade, movimentos de fertilização cruzada e enriquecimento mútuo, construindo pontes e modos de comunicação que superem a incomunicabilidade dos estilos de pensamento ou habitus arraigados em cada comunidade de praticantes.
Gilles Deleuze e Felix Guattari: multiplicidades
Na última década do século XX, Deleuze e Guattari6, a partir de um questionamento iniciado e motivado pela prática psiquiátrica e psicanalista e em oposição ao estruturalismo que dominou a cultura francesa ao longo do século, problematizaram a dominância de um esquema de pensamento baseado na metáfora das árvores e raízes que, segundo eles, aprisionava e dificultava a compreensão de fenômenos não hierarquizáveis e não redutíveis a uma radicalidade simbolizada pelas raízes e suas radículas.
Os autores adotam a teoria das multiplicidades afirmando que a realidade não supõe nenhuma unidade ou totalidade, nem remete a um sujeito, existindo nas multiplicidades de fenômenos e manifestações. O modelo do rizoma, no qual singularidades interrompem os fios de continuidade, acontecimentos se individualizam em processos de devir constante e as divisões de espaço-tempo são livres, é o escolhido para se contrapor ao modelo radicular e arborescente6.
As características dos rizomas que os tornam interessantes metáforas no mundo das multiplicidades são: o princípio de conexão e heterogeneidade, segundo o qual qualquer ponto pode ser conectado a qualquer outro, independentemente da natureza; o descentramento incessante nas conexões que remetem a diferentes dimensões sociais; agenciamento que leva ao aumento das dimensões na multiplicidade, provocando mudança de natureza; princípio de rupturas ocasionadas pelas linhas de segmentação que delimitam territórios e organizações ou pelas linhas de fuga que forçam a desterritorialização; e o princípio da cartografia, do mapa aberto conectável em qualquer direção, reversível, desmontável, com múltiplas entradas e em constante modificação6.
A forma de organização dos rizomas é o platô ou zona de intensidade contínua, atravessada por vetores que estabelecem territórios provisórios e graus distintos de desterritorialização. Um platô é uma multiplicidade conectada com as linhas de extensão do rizoma. No rizoma, a enunciação é necessariamente social, remetendo aos agenciamentos coletivos6.
As sociedades são sujeitas a diferentes vetores de segmentação e estratificação como classes, gênero, grupo etário, etnias, entre outras, por meio de oposições binárias; processos de espacialização circulares a partir de centros que se expandem para cobrir territórios mais amplos; e linearidades temporais, delimitando episódios e processos. Os sistemas econômicos, políticos e culturais são pensados como totalidades globalizadas compostas por subsistemas justapostos ou embricados, ordenados e compartimentalizados, apresentando continuidades e deslocamentos ao longo do tempo. O plano macrossocial é habitado por estruturas e organizações. Porém, o plano micropolítico é marcado por linhas de fuga, extravasamentos, fenômenos indisciplinados cuja compreensão escapa das formas rígidas e hierarquizadas6.
A emergência do novo está na dependência da conjugação de fluxos diversos sujeitos a interrupções relativas, acumulações e reterritorialização. O mapa resultante dos mil platôs rizomáticos delimita uma linha flexível de territorialidades entrelaçadas, linhas duras que organizam segmentos e círculos de ressonância bem estabelecidos e linhas de fuga que implementam a decodificação e o descentramento, abrindo sempre novas possibilidades de expansão6.
Os micropoderes são focos de instabilidade, reagrupamentos e acumulações de forças, escapadas, fugas e transbordamentos. Correlativamente, os centros de poder são acumuladores, conversores, permutadores e osciladores nos pontos em que os fluxos se convertem em camadas rígidas definidoras das estratificações ou formadoras das estruturas. Eles se configuram como zonas de potência, zonas de difusão dos fluxos para o nível microfísico e zonas de impotência diante das linhas de fuga produzidas por esse mesmo nível6.
Portanto, Deleuze e Guattari vêm acrescentar mais uma camada de sentidos e possibilidades às contribuições de Fleck, Bourdieu e Foucault, questionando o pensamento sistêmico e estrutural e enfatizando as multiplicidades e seu potencial extremamente rico para a compreensão de problemas complexos. Poderíamos aproximar a noção de rizoma ao conceito de episteme formulado por Foucault, identificando um substrato menos formalizado, mais flexível e rico em acontecimentos dos mais diferentes tipos, capazes de estimular a formulação de novos saberes imbricados a ações e intervenções práticas.
A reviravolta nesse ponto se dá, a meu ver, no recurso às multiplicidades que substituiriam os objetos, formas mais rígidas e disciplinadas, necessárias para articular os tipos de enunciação, métodos de validação, formação de conceitos e elaboração de teorias.
Pensando no campo da Saúde Coletiva, talvez seja o caso de abandonar as disciplinas e seus derivativos inter, multi e transdisciplinaridades; e pensar em organização de fluxos de saberes e enunciados mais flexíveis e multivariados em torno de temáticas e problemas, não mais dirigidos por objetos perfeitamente delimitados.
Epidemiologia e o campo da Saúde Coletiva
Após essa especulação conduzida com o auxílio desses pensadores icônicos da contemporaneidade, precisamos voltar à questão do lugar e papel da Epidemiologia como área no campo da Saúde Coletiva para concluir este ensaio.
Provavelmente, a Epidemiologia é a ciência, no interior do campo, que se construiu em torno da delimitação muito precisa de um objeto constituído pelo processo saúde-doença em sua dimensão populacional, destacando dois aspectos fundamentais referidos à distribuição dos eventos em populações e aos determinantes dessas distribuições. Do mesmo modo, desenvolveu e formalizou um conjunto de métodos e formas de construção e validação de seus enunciados e proposições sobredeterminados pelo número e pelos procedimentos de quantificação; abstraiu progressivamente a episteme do campo; e estabeleceu um estilo e coletivo de pensamento razoavelmente esotérico tanto no interior do campo quanto em relação à sociedade em geral. Porém, a despeito desses procedimentos de afastamento e abstração, foi capaz de produzir intervenções e modelos tecnológicos de prevenção de doenças e promoção da saúde, ainda que limitados em sua efetividade, dada a complexidade crescente dos problemas enfrentados.
Ao longo do processo histórico da constituição do campo, essas características se aprofundaram e foram criando barreiras cada vez mais impermeáveis com as demais ciências e disciplinas, que vivenciaram processos semelhantes de especificação e diferenciação. As lutas e disputas de poder e prestígio se intensificaram sem, entretanto, comprometer a integridade do campo.
Evidentemente, esse processo aqui esquematizado e diagramado em linhas caricaturais não ocorreu de modo síncrono em relação a todos os segmentos temáticos ou entre diferentes correntes teóricas no interior da própria ciência, assim como nas demais ciências e disciplinas.
Como superar esses compartimentos e limites entre as diversas disciplinas e enriquecer a reflexão científica no campo? Há um conjunto de sugestões que podemos aproveitar a partir dos autores que escolhemos para iluminar essa reflexão.
Primeiramente, podemos tentar reorganizar o campo, não mais por territórios disciplinares, mas sim por problemáticas prático-intelectuais, ou seja, por necessidades práticas de ação que motivem a reflexão intelectual, seja na dimensão acadêmica, seja na perspectiva tecnológica.
Em segundo lugar, podemos rever e reorientar as derivas metodológicas e teóricas com maior potencial de formalização, que caminham no sentido de abstrações e recortes em que a expressão tende a substituir os conteúdos, em busca de uma cientificidade abstrata, descarnada e descompromissada.
Uma terceira abordagem necessária envolveria a descentralização e a quebra de qualquer hierarquia entre as problemáticas do campo, favorecendo movimentos de distribuição do poder que facilitem cooperação, solidariedade e articulação.
Seria necessário ainda buscar formas de comunicação menos ancoradas nos estilos de pensamento cristalizados nos coletivos de pensamento mais estreitos e rigidamente constituídos, buscando ampliar esses coletivos cujo interesse se centrasse nas problemáticas, e não mais nos objetos-métodos de investigação.
Finalmente, seria necessária uma ampla revisão dos procedimentos de formação, de modo a habituar os novos praticantes a estes agenciamentos mais fluidos e ao trânsito em um campo menos estruturado.
Obviamente, nenhum desses movimentos é facilmente alimentado e incentivado, além de comportarem riscos não desprezíveis na direção de uma indiferenciação não necessariamente produtiva entre o saber científico e outras modalidades de saberes tão importantes quanto ele, no âmbito social, mas que evidentemente não são intercambiáveis, nem podem ser pensados como possíveis substituições.
Enfim, nesse início do século XXI, talvez estejamos diante de um momento de ruptura e reorientação dos modos de produzir conhecimentos no campo da Saúde Coletiva e da ciência em geral.
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Barata RB. As dinâmicas dos campos de saberes e práticas e seus objetos indisciplinados. Interface (Botucatu). 2023; 27: e220362 https://doi.org/10.1590/interface.220362
Referências
- 1 Schäfer L, Schnelle T. Los fundamentos de la visión sociológica de Ludwik Fleck de la teoría de la ciencia. In: Fleck L. La génesis y el desarrollo de un hecho científico. Madrid: Alianza Editorial; 1986. p. 9-42.
- 2 Löwy I. Ludwik Fleck e a presente história das ciências. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 1994; 1(1):7-18.
- 3 Fleck L. La génesis y el desarrollo de un hecho científico. Madrid: Alianza Editorial; 1986.
- 4 Bourdieu P. Os usos sociais da ciência - por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora UNESP; 2004.
- 5 Foucault M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária; 2022.
- 6 Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. São Paulo: Editora 34; 2011. Vol. 1.
Editado por
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EditorAntonio Pithon CyrinoEditoraLilia Blima Schraiber
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
29 Jul 2022 -
Aceito
20 Set 2022