Resumos
Em meio ao crescimento de um modelo neoliberal conservador na atual agenda pública brasileira, a Educação Popular em Saúde (EPS) apresenta-se como possibilidade para a produção de experiências direcionadas à constituição da saúde como direito; para mais, está também compromissada com o desenvolvimento do protagonismo das pessoas na busca pelo bem viver e pelo enfrentamento crítico às determinações sociais da saúde. O presente artigo aborda a EPS nos processos formativos, seus desafios e perspectivas. Centralmente, são problematizados aspectos como: a criticidade nos movimentos e nas práticas de EPS; os processos formativos críticos e mobilizadores do protagonismo; a ação em rede; e a articulação da luta dos movimentos e das práticas de EPS. Espera-se que essas reflexões contribuam com a alimentação do debate em torno da EPS e seu papel enquanto referencial teórico e metodológico para a formação na área da saúde.
Educação popular em saúde; Formação em saúde; Movimentos sociais; Participação popular
En medio del crecimiento de un modelo neoliberal conservador en la actual agenda pública brasileña, la Educación Popular y Salud (EPS) se presenta como posibilidad para la producción de experiencias dirigidas a la constitución de la salud como derecho; además, también tiene compromiso con el desarrollo del protagonismo de las personas en la búsqueda por el buen vivir y por el enfrentamiento crítico a las determinaciones sociales de la salud. El presente artículo aborda la EPS en los procesos formativos, sus desafíos y perspectivas. Centralmente, se problematizan aspectos como: la criticidad en los movimientos y en las prácticas de EPS, los procesos formativos críticos y movilizadores del protagonismo; la acción en red y la articulación de la lucha de los movimientos y de las prácticas de EPS. Se espera que esas reflexiones contribuyan a la alimentación del debate alrededor de la EPS y su papel como factor referencial teórico y metodológico para la formación en el área de la salud.
Educación popular y salud; Formación en salud; Movimientos sociales; Participación popular
Amidst the growth of a conservative neoliberal model in the current Brazilian public agenda, Popular Education and Health (EPS) presents itself as a possibility for the production of experiences directed to the constitution of health as a right; moreover, it is also committed to the development of people's role in the search for good living and for the critical confrontation with social determinations of health. The present article addresses EPS in formative processes, their challenges and perspectives. Centrally, it problematizes aspects such as: criticality in the movements and practices of EPS; the critical and mobilizing processes of protagonism; network action and the articulation of the struggle of movements and EPS practices. It is expected that these reflections will contribute to the debate on EPS and its role as a theoretical and methodological referential for training in the health area.
Popular education and health; Health training; Social movements; Popular participation
Do povo buscamos a força
Não basta que seja pura e justa a nossa causa
É necessário que a pureza e a justiça
existam dentro de nós.
Na mesma barca nos encontramos.
Todos concordam – vamos lutar.
Lutar pra quê?
Pra dar vazão ao ódio antigo?
ou pra ganharmos a liberdade
e ter pra nós o que criamos?
(Agostinho Neto)
Introdução
O atual contexto brasileiro vem sendo marcado pelo adensamento da exploração humana, sobretudo por meio do paulatino estabelecimento de uma agenda ultraliberal no campo econômico e social. Especialmente após o ano de 2016, uma série de reorientações na perspectiva política da ação estatal tem se colocado na vida nacional. Isso tem acarretado no desmonte de políticas sociais públicas ao retirar do Estado a responsabilidade de promover direitos humanos e sociais essenciais.
Em 2020, a emergência da pandemia da Covid-19 traz à cena uma crise sanitária de proporções consideráveis. Tal pandemia (e seus desdobramentos nos territórios) passa então a acentuar, de forma substancial e crescente, a insistente investida de processos de exclusão social da maioria da população brasileira, centralmente por meio da intensificação do efeito das determinações sociais, econômicas, políticas e culturais no âmbito da saúde11. Rocha C. “Imposto é roubo!” A formação de um contrapúblico ultraliberal e os protestos pró- impeachment de Dilma Rousseff. Dados. 2019; 62(3):e20190076.,22. Miranda L, Carvalho AI, Brito C, Mendonça MHM, Vasconcellos MTL, Lima SML. Crise e saúde: implicações para a política, a gestão e o cuidado em saúde. Cienc Saude Colet. 2019; 24(12):4372..
Como uma onda, essa tendência ultraliberal (ou neoliberal totalitária) vem dando sinais, em diversas partes do mundo, de que as saídas para as recentes crises capitalistas seriam pela ofensiva de restauração conservadora e pela afirmação do fundamentalismo de mercado, a partir do qual tudo é mercantilizado. Todas as formas de vida e as relações passam a ser transformadas em objetos de compra e venda.
Esse cenário evidencia também processos como a produção de insistentes desgastes da democracia, de suas instituições e das relações democráticas; o reforço às lógicas de dominação, exploração e alienação nos âmbitos sociais, econômicos, culturais, de trabalho e de poder; o aumento da polarização com o uso da força e das mais variadas formas de violência; o controle da produção de subjetividades e intersubjetividades; a tentativa de impor padrões hegemônicos de crenças e rituais com base conservadora, racista, misógina e preconceituosa; e tentativas de abafar e/ou destruir aspectos fundamentais das identidades e diversidades étnicas e culturais, tão fortes na sociedade brasileira11. Rocha C. “Imposto é roubo!” A formação de um contrapúblico ultraliberal e os protestos pró- impeachment de Dilma Rousseff. Dados. 2019; 62(3):e20190076.,33. Rech MJ. Crise e golpe. Rev Direito Praxis. 2019; 10(4):3116-25.,44. Mascaro AL. Crise e golpe. São Paulo: Boitempo; 2018.. Esses processos são desenvolvidos não apenas pela ação governamental ocupante dos espaços públicos eletivos, mas também com apoio de parte da população, inclusive com organizações em grupos e movimentos de base neofacista e conservadora.
Assim, é precisamente neste momento que urge a necessidade de movimentos, práticas e experiências que tanto denunciem esses contextos desumanizadores quanto anunciem outros caminhos pedagógicos, culturais, políticos e sociais. Caminhos que possibilitem a construção permanente de outro modelo de sociedade, de forma necessariamente acompanhada da tessitura imediata de outras relações e sociabilidades, sobretudo aquelas orientadas pelo horizonte da justiça social e por uma perspectiva de emancipação humana44. Mascaro AL. Crise e golpe. São Paulo: Boitempo; 2018..
No contexto da Saúde Coletiva, a EPS apresenta-se como um campo profícuo de possibilidades para o desvelamento de uma ação social, científica e profissional em saúde, compromissada com a produção coletiva de práticas, experiências e movimentos que, por meio do compartilhamento dialógico de saberes, contribuam com a transformação social e com a emancipação das pessoas. Em especial, pela colaboração em mutirão de promoção da vida e de luta pela realização da dignidade humana, refletida em processos de ensino e de aprendizagem profundamente conectados com o enfrentamento à exclusão social das classes populares e de seus protagonistas55. Cruz PJSC, organizador. Educação popular em saúde: desafios atuais. São Paulo: Hucitec; 2018..
No multifacetado cenário da saúde brasileira, a concepção da Educação Popular vem merecendo destaque como uma abordagem metodológica, política e epistemológica orientadora da ação de trabalhadores, de protagonistas de movimentos sociais e de práticas populares, bem como de atores da cena universitária. A EPS atua na promoção de experiências sociais e de processos de ensino e de aprendizagem direcionados à constituição da saúde como direito e ao desenvolvimento do protagonismo das pessoas na busca pelo bem viver e pelo enfrentamento crítico às determinações sociais da saúde e do viver. Seu componente fundante é a metodologia, pois tem como base a ação participativa e dialógica, intermediando a formação de sujeitos para a construção da vida com qualidade e dignidade, a partir da participação em trabalhos sociais em diferentes territórios, contextos e situações66. Botelho BO, Vasconcelos EM, Carneiro DGB, Prado EV, Cruz PJSC, organizadores. Educação popular no sistema único de saúde. São Paulo: Hucitec; 2018..
O presente manuscrito constitui um ensaio crítico e reflexivo produzido a partir da síntese da interpretação de seus autores acerca dos desafios da EPS e de seus processos formativos no atual contexto brasileiro. Portanto, teve como base de sua redação as reflexões dos autores em suas experiências na coordenação do Núcleo Gestor do Grupo Temático de EPS da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), no período entre outubro de 2016 e fevereiro de 2020. Centralmente, são problematizados os seguintes aspectos: a criticidade nos movimentos e nas práticas de EPS; os processos formativos críticos e mobilizadores do protagonismo; a ação em rede; e a articulação da luta dos movimentos e das práticas de EPS.
Como assevera Mello77. Mello M. Educação crítica e educação popular: um diálogo (norte-sul) entre comadres. Pedagogica. 2013; 1(30):68-104., os tensionamentos em curso na conjuntura precisam de respostas que não sejam simplistas, tampouco dualistas. Acima de tudo, torna-se prudente e premente exercitar a dimensão crítica, autocrítica e reflexiva para aqueles e aquelas que protagonizam experiências de EPS.
Exige-se a complexidade e o refinamento no pensar e no agir para o desvelamento processual de uma compreensão cada vez mais rigorosa, precisa e assertiva da atual realidade social brasileira, a qual tem se transformado celeremente. Se é verdade que, em si, a EPS dispõe de subsídios teóricos e metodológicos para apoiar esse processo, a capacidade de estudo, de análise, de problematização é essencial de ser construída com, na e a partir das experiências, a fim de se produzir uma teoria e uma prática críticas, capazes de oferecer elementos de análise e de superação do estágio social no qual nos encontramos77. Mello M. Educação crítica e educação popular: um diálogo (norte-sul) entre comadres. Pedagogica. 2013; 1(30):68-104..
Em nosso ver, o esforço reflexivo compartilhado neste artigo revela-se importante como exercício autocrítico e de alimentação da problematização das práticas e dos movimentos de EPS em todo o país. As perspectivas aqui apontadas certamente não são as únicas possíveis maneiras de olhar para a EPS e seus desafios, mas podem constituir ideias provocantes do pensamento e mobilizar a sistematização de suas práticas e de seus resultados, acarretando na emergência de outros olhares e ideias para esse campo.
O desafio de promover a criticidade nos movimentos e nas práticas de EPS
A pergunta que sustenta a apresentação desse desafio está em compreender em que medida os movimentos e as práticas de EPS, em seus diferentes espaços, têm aplicado, efetivamente, a criticidade em uma perspectiva ética, política e emancipadora. Isso se evidencia pela sua presença no discurso dos protagonistas da EPS e os traz como uma preocupação tão cotidiana e sistemática que, então, reflete-se na forma como se conduz, avalia-se e se desvelam suas ações e reflexões.
A ação transformadora nas práticas cotidianas das pessoas e dos processos sociais – na perspectiva de construção de uma sociedade liberta de todas as formas de opressão, dominação, exploração, discriminação e violência – é um desafio ético-político e pedagógico presente nas ações de EPS. Para isso, é preciso desenvolver a capacidade crítica, entendida como um modo de analisar a realidade, considerando-a por meio de um prisma dialético, ou seja, tomando-a em sua essência contraditória e em permanente transformação88. Melo Neto JF. Heráclito: um diálogo com o movimento. João Pessoa: UFPB; 1996..
No enfrentamento aos contextos de opressão política, de desumanização e de exclusão social, torna-se premente a utilização de teorias que deem conta de compreender e explicar a realidade dominante, que é eticamente injusta e contraditória em nossa sociedade. Ao pressupor a análise dessas contradições, a dialética em Karl Marx se qualifica como um dos mais importantes alicerces teóricos para a condução desses trabalhos.
Para tanto, a criticidade deverá se configurar em um cuidadoso estudo e se debruçar sobre a realidade e suas determinações, tomando como ponto de partida a complexidade a elas inerente, suas várias facetas, contradições, aparências e ilusões. Assim, uma compreensão importante de criticidade consiste justamente naquela que aponta para o desvelamento da capacidade de enxergar a realidade, suas determinações em suas contradições e suas diversas e (muitas vezes) contrastantes facetas, na linha filosófica fundamentada por Karl Marx.
Nos dias de hoje, é fundamental que os protagonistas dos movimentos e das práticas de EPS adensem a dimensão da criticidade em seus pensares e em seus fazeres. Para isso, em primeiro lugar, precisaremos conceber a ação em EPS não apenas em sua dimensão prática, mas também em sua faceta reflexiva e produtora de novos conhecimentos sobre o mundo, sobre a própria EPS, sobre cada uma de suas experiências e sobre nós mesmos.
A criticidade está, portanto, potencialmente presente no fazer de cada prática de EPS, mas exige-se, para seu desvelamento, que os seus protagonistas se disponham a ampliar o olhar sobre esse fazer, entendendo, assim, que faz parte do “fazer EPS” o empreendimento sistemático de uma análise crítica propiciadora de aprendizados e reveladora de limites de cada ação.
Desse modo, qualifica-se o conhecimento da realidade, o autoconhecimento dos protagonistas e o aprimoramento das ações na busca pela emancipação humana ao serem destacados acertos e erros; potencialidades e situações-limites. Portanto, elucidando social, cultural, econômica e politicamente os caminhos trilhados pela EPS, inclusive para verificar em que medida suas iniciativas estão efetivamente promovendo processos de mudança, mesmo que moleculares, nas situações e nas relações promotoras de exclusão.
Destarte, exigem-se atitudes nas quais fique cristalina a consciência do inacabamento de cada um dos sujeitos envolvidos nas experiências de EPS e, entre eles, a compressão da mutabilidade da realidade, ou simplesmente de que transformar é possível. Transformar nós e o mundo. Na perspectiva dialética, esse pensamento provém de Heráclito, que disse que a todo momento nossa realidade está permeada por diferentes tensões, resultantes de distintos interesses humanos. Esse embate tenso e permanente é o motor das mudanças, pois ora prevalece uma atitude/querer/modo de agir, ora será outro, e assim por diante. Por isso, “a essência, o elemento primordial, é o vir-a-ser. Tudo está em perpétuo movimento. A realidade está sujeita a um vir-a-ser contínuo”88. Melo Neto JF. Heráclito: um diálogo com o movimento. João Pessoa: UFPB; 1996. (p. 21).
Nessa direção, outra dimensão fundante para a criticidade dos protagonistas da EPS está na constante provocação de, além de excelentes ativistas das transformações, serem primorosos pensadores da transformação. Ou seja, conceber que o protagonismo não se faz apenas na ação, mas no pensamento. O exercício do pensamento crítico, revolucionário e inconformista é uma das marcas fundamentais para a EPS, especialmente na atualidade. É, então, patente a necessidade de formarmos pensadores, via EPS, e não apenas ativistas sociais. Ou melhor: é preciso formar ativistas sociais que, concebendo sua inconclusão e os limites de seus trabalhos e ideias, busquem na reflexão crítica a base e essência da produção permanente de sua ação social. Uma reflexão dialética que se dê individualmente, mas também de modo coletivo, favorecendo diferentes olhares e percepções sob distintas perspectivas e pontos de vista. Dimensões várias.
A criticidade, enquanto processo, estimula, na EPS, a prática do diálogo como condição essencial na pactuação, planejamento e implementação das ações. O diálogo é elemento emulsificante das interações humanas e subjetivas. Torna-se condição fundante para a condução dos trabalhos de modo participativo, solidário e gerador de conscientização. Nas palavras de Zea-Bustamante99. Zea-Bustamante LE. La educación para la salud y la educación popular, una relación posible y necesaria. Rev Fac Nac Salud Publica. 2019; 37(2):61-6., o diálogo não é outra coisa senão um encontro intencionado e nunca neutro.
Hablar del diálogo como epicentro de las acciones de la educación popular implica entender la educación como un acto de amor, como un encuentro intencionado y nunca neutral, donde, a través de la palabra, se logra que quienes participan en el acto educativo − estudiantes, docentes y comunidade − signifiquen su mundo, reconozcan los aspectos que lo constituyen y puedan así establecer procesos de empoderamiento para transformar sus realidades99. Zea-Bustamante LE. La educación para la salud y la educación popular, una relación posible y necesaria. Rev Fac Nac Salud Publica. 2019; 37(2):61-6.. (p. 63)
No que tange à criticidade, importa ainda assinalar que ela recomenda aos atores da EPS considerar a historicidade dos fatos, das realidades e dos sujeitos. Nessa perspectiva, o olhar histórico surge como condição básica a ser considerada no desenvolvimento do trabalho em EPS. Por ele, não se pode considerar um fenômeno sem historicizá-lo, pois o movimento da criticidade concebe que as coisas possuem determinações várias que lhe constituem. As pessoas, as coisas e as realidades são, em um dado momento, sínteses de muitas e distintas determinações.
Portanto, não se pode pensar em uma ação pela criticidade, coerente com a realidade circundante e suas determinações, visando sua transformação, sem considerar sua historicidade. A EPS precisa, então, ser concebida e praticada como processo dialético que se concretiza na formação de atores sociais pensadores da edificação da sociedade, como reivindicam Melo Neto1010. Melo Neto JF. Extensão popular. 2a ed. João Pessoa: UFPB; 2014. e Santos1111. Santos BS. Para uma pedagogia do conflito. In: Silva LH, Azevedo JC, organizadores. Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina; 1996. p. 15-33., e dedicados ao desenvolvimento permanente de um trabalho social significativo para a transformação rumo a um projeto societário plural, solidário e participativo. Como fundamenta Mello77. Mello M. Educação crítica e educação popular: um diálogo (norte-sul) entre comadres. Pedagogica. 2013; 1(30):68-104., a partir do diálogo entre as ideias de Michael Apple e de Paulo Freire, a educação popular prioriza a criticidade quando se propõe a desvelar a formação de subjetividades compromissadas com a busca de relações e de experiências que possibilitem a ruptura com quaisquer ilusões e subjetividades conformistas – as quais têm como pressuposto a crença de que os modos em que nossas sociedades e seus aparatos educacionais estão atualmente organizados podem levar à justiça social. Para tanto, Mello77. Mello M. Educação crítica e educação popular: um diálogo (norte-sul) entre comadres. Pedagogica. 2013; 1(30):68-104. posiciona como conteúdos centrais para o processo educativo crítico a política de redistribuição (processos e dinâmicas econômicas de exploração) e a política do reconhecimento (lutas culturais contra a dominação e lutas pela identidade).
Por tais elementos, acreditamos ser imprescindível pensar a EPS com a criticidade, entendida como dimensão teórica e epistemológica da prática e da produção do pensamento em saúde. Nesse sentido, como adverte Melo Neto1212. Melo Neto JF. Extensão universitária: bases ontológicas. In: Melo Neto JF, organizador. Extensão universitária: diálogos populares. João Pessoa: UFPB; 2002. p. 7-22., ao se estudar uma realidade por meio de um olhar crítico, faz-se necessária uma maior exigência metodológica.
Conforme estudou Mello77. Mello M. Educação crítica e educação popular: um diálogo (norte-sul) entre comadres. Pedagogica. 2013; 1(30):68-104., a educação popular possui, em sua construção teórica, dimensões da educação crítica que consubstanciam seu aprofundamento na direção da criticidade. Tal compreensão é, nas palavras do referido autor, mais robusta e envolve colocar em pauta transformações radicais (no sentido de raiz) dos pressupostos epistemológicos e ideológicos subjacentes nos processos educativos. Isso implica, também, uma prática pedagógica eminentemente fundamentada em mudanças radicais dos compromissos de cada pessoa com o social. Acostando-se nas ideias de Apple, Mello77. Mello M. Educação crítica e educação popular: um diálogo (norte-sul) entre comadres. Pedagogica. 2013; 1(30):68-104. diz que a educação, para ser efetivamente crítica, precisa cultivar atitudes coerentes com a transformação social.
O desafio de desvelar processos formativos na EPS que sejam críticos e mobilizadores do protagonismo
É preciso ponderar, no âmbito dos movimentos e das práticas de EPS, em que medida e por quais caminhos essas iniciativas têm repercutido em uma alteridade concreta. Ou seja, é preciso ponderar quais têm sido os percursos trilhados pelos protagonistas dessas experiências para que elas possam promover concretamente inéditos-viáveis, refletidos em novas possibilidades sociais, culturais e políticas para a vida em sociedade. Essas questões são as que mobilizarão as reflexões tecidas neste tópico.
A EPS não se restringe a um fazer pedagógico, tampouco a um ativismo social. Seu arcabouço teórico-metodológico aponta e propõe claramente novas perspectivas para o fazer e pensar em saúde, na busca por novas sociabilidades e por horizontes sociais diferentes dos atualmente hegemônicos. Espera-se, portanto, que o desenvolver de suas práticas e de seus movimentos enseje a formação de protagonistas e a constituição de relações marcadas, sobretudo, pela defesa intransigente e pela promoção permanente de princípios como justiça, solidariedade, igualdade e liberdade, possibilitando o desenvolver da vida com alegria e dignidade para todas as pessoas e conferindo-lhes a chance de buscar “ser mais”, como diria Paulo Freire1313. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25a ed. São Paulo: Paz e Terra; 1996..
Nesse sentido, fazer EPS é construir, desde já, novas possibilidades de ser, de estar e de atuar no mundo. Não é preciso esperar o mundo mudar para se instalar novas relações sociais e novas formas de participar, de intervir e de construir. Pela EPS, aponta-se ser possível promover experiências que consigam, com elas mesmas e pelos espaços por elas criados, delinear coletiva e processualmente novos horizontes sociais e novas hegemonias políticas.
Concordamos, portanto, com Paro et al.1414. Paro CA, Ventura M, Silva NEK. Paulo Freire e o inédito viável: esperança, utopia e transformação na saúde. Trab Educ Saude. 2020; 18(1):e0022757., que destacam o caráter praxiológico como pressuposto de qualquer processo pedagógico que intencione mobilizar a construção da mudança, ou, nos termos freireanos, dos inéditos viáveis1313. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25a ed. São Paulo: Paz e Terra; 1996.. Para tanto, os autores destacam ser fundante uma:
[...] consubstancialidade entre as dimensões ontológica e política [...]. Colocando em evidência as relações excludentes e de injustiça, a leitura da realidade pode suscitar uma miríade de sentimentos envolvendo espanto, rebeldia, inconformismo, raiva, mas também coragem, ousadia e esperança. Nesse momento, faz-se presente o imbricamento entre as dimensões ontológica e política da pedagogia freireana, na medida em que a indignação e a esperança só se justificam quando são mobilizadoras de mudanças1414. Paro CA, Ventura M, Silva NEK. Paulo Freire e o inédito viável: esperança, utopia e transformação na saúde. Trab Educ Saude. 2020; 18(1):e0022757.. (p. 9)
Um novo agir em saúde já vem sendo tecido a partir de diversas iniciativas de EPS nas quais se desvelam outros princípios e diferentes metodologias e se elabora uma teoria do conhecimento. Um agir no qual os serviços de saúde sejam espaços capazes de qualificar a busca de “ser mais” das pessoas, de relações respeitosas e democráticas, além de propiciar subsídios concretos para melhorar mais a vida em sociedade, sendo ela pautada pelos princípios da solidariedade, justiça, liberdade e igualdade.
Mas como esse agir pode ser promovido e cultivado? Em nosso ver, um caminho relevante consiste na característica pedagógica da EPS quanto à instituição permanente do protagonismo das pessoas em todas as etapas do processo educativo. Tal protagonismo não é dado às pessoas, mas é promovido e mobilizado, sobretudo, pelo incentivo à construção de análises críticas protagonizadas por esses atores e pelo estabelecimento de espaços próprios para que eles consigam refletir sobre os processos sociais que vivenciam.
O protagonismo será tecido e aprimorado a partir do momento em que cada ator exercite uma reflexão crítica capaz de apontar não apenas inconsistências e lacunas no outro, mas em si mesmo, evidenciando sua capacidade de errar e a concepção de que seu saber não é o único. Assim, aprendendo sempre a fazer junto com os envolvidos em relações de aprendizados e transformações mútuas, superando as lógicas autoritárias e verticais no agir cotidiano.
Em continuidade ao legado freiriano, comprometido com a emancipação humana e a transformação social, nós nos colocamos diante da necessidade de lutar e construir um mundo com justiça social para todos e todas. Nesse sentido, o reconhecimento da diversidade está atrelado à luta pelo direito à diferença como ponto de partida, vislumbrando a igualdade material como ponto de chegada. Assim se traduz a urgência em lutarmos pela equidade, entendida como direito à igualdade de oportunidades, considerando as diferenças1515. Pini FR. Educação popular em direitos humanos no processo de alfabetização de jovens, adultos e idosos: uma experiência do projeto Mova-Brasil. Educ Rev. 2019; 35:e214479.. (p. 18)
O estímulo ao protagonismo não pode, no entanto, consistir apenas de uma etapa, de um dispositivo ou de uma dinâmica pontual do processo formativo. Pela EPS, o protagonismo deve ser considerado como princípio pedagógico essencial que deve ser tecido e exercitado na transversalidade de seus fazeres. Com isso, apontamos para a relevância de ponderar o quanto esse aspecto não pode ser reduzido à visão pedagógica utilitarista, mas precisa se constituir em um preceito ético que impacta em toda a organização e orientação das práticas e dos movimentos de EPS.
Assim, por essa compreensão, tal protagonismo apenas será gerado quando se compartilha, no espaço educativo em questão, o exercício da confiança nas atitudes das pessoas, espelhada na valorização de seus saberes e na crença de que sua ousadia e coragem possibilitará a construção de ações, intervenções e iniciativas promissoras. Promover o protagonismo em EPS passará, necessariamente, por um processo em movimento. Ou seja, um caminhar. Por essa razão, há que se ter também paciência com as lacunas e os limites de cada protagonista, de seus movimentos e de suas práticas; encarar os obstáculos como pontos de análise crítica e substratos para novos direcionamentos às ações empreendidas.
Nessa esteira, outra dimensão revelada por esse debate estará na imprescindível busca por uma relação efetivamente horizontal entre docente e estudante, sem autoritarismos, pautada pelo diálogo e pelo vínculo amoroso. Zea-Bustamante99. Zea-Bustamante LE. La educación para la salud y la educación popular, una relación posible y necesaria. Rev Fac Nac Salud Publica. 2019; 37(2):61-6. aponta elementos que avalia serem centrais para os processos educativos com tais características:
El reconocimiento del otro como agente válido, histórico y con saberes; Replantear los espacios de poder en el acto educativo, la educación como escenario de negociación cultural, donde se pongan en juego los saberes, las experiencias y las prácticas comunitarias, donde la historia y los conocimientos de las personas sean el punto de partida para la concreción del acto educativo; Establecer un acto de amor, es decir, el diálogo como encuentro y reconocimiento de la alteridad, reconocimiento del otro con quien se puede transformar el mundo99. Zea-Bustamante LE. La educación para la salud y la educación popular, una relación posible y necesaria. Rev Fac Nac Salud Publica. 2019; 37(2):61-6.. (p. 64)
Até que ponto estamos conseguindo, nos processos formativos dos movimentos e das práticas de EPS, promover esse tipo de relação? Em muitas das propostas progressistas de formação em saúde, enquanto muito se discute dinâmicas e iniciativas para encorajar o protagonismo e criticidade estudantil, pouco se mexe com o poder absoluto do educador nos espaços educativos. Como dizem Rios e Caputo1616. Rios DRS, Caputo MC. Para além da formação tradicional em saúde: experiência de EPS na formação médica. Rev Bras Educ Med. 2019; 43(3):184-95., apesar do processo evolutivo do ensino em saúde nas experiências brasileiras, tem seus aspectos tanto curriculares quanto metodológicos, ainda há importantes lacunas a superar na perspectiva de uma formação humanista e integral. Nesse sentido, destaca-se a ideia de que:
[...] não basta apenas transformar as metodologias e a grade curricular; é fundamental inserir os estudantes em espaços de prática e reflexão, onde eles possam ter contato com atividades que extrapolem a formação puramente técnica e dialoguem com a realidade. [...] o sujeito reflete não apenas sobre a sua atuação como futuro profissional, mas também acerca do seu papel de cidadão1616. Rios DRS, Caputo MC. Para além da formação tradicional em saúde: experiência de EPS na formação médica. Rev Bras Educ Med. 2019; 43(3):184-95.. (p. 185)
Nosso olhar, diante desses desafios, está na acepção de ser preciso incentivar na EPS uma relação de companheirismo e de fraternidade entre educadores e educandos, na qual a tarefa de aprender seja uma caminhada compartilhada entre seres humanos com a mesma característica de serem contraditórios, de terem seus gostos, de cultivarem seus sonhos.
O educador, em qualquer processo formativo pela EPS, precisa exercitar sua humanidade, com toda a inconclusão imersa nela. O que é, sem dúvida, um ato de coragem, pois implica se abrir e se expor, mas não significa retirar seu papel de orientação, apoio, estímulo e incentivo pedagógicos. Implica criar espaços de gestão participativa do espaço educativo e das ações educativas. Nessa perspectiva, há um envolvimento concreto do educador com o desenvolvimento do educando e sua busca de “ser mais”. Há um companheirismo na trilha dessa longa e dura jornada chamada formação.
Isso se aplica, em nossa compreensão, para o processo educativo não apenas na Academia, mas para muito além desta, envolvendo os serviços de saúde, os contextos de promoção de políticas públicas, as escolas de educação básica, fundamental e de ensino médio, os movimentos sociais populares, os grupos populares e as práticas comunitárias.
Ainda no âmbito do desafio discutido neste item, torna-se necessário ponderar a promoção de outras relações e de novas sociabilidades. Ou seja, os processos formativos em EPS precisam frisar não somente a abordagem de uma série de conteúdos, mas também a tessitura de novas formas de estar no mundo e com os outros. Sendo assim, em nossa visão, as metodologias formativas em EPS não podem estar separadas da ética e da estética do mundo novo que se quer construir.
Portanto, pelo olhar da EPS, não adianta se falar em metodologias ativas no interior da formação em saúde sem priorizar uma presença ativa nos serviços de saúde, nos espaços dos movimentos sociais e das práticas e em outros contextos sociais. Isso é fortalecido em Freire1313. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25a ed. São Paulo: Paz e Terra; 1996., quando este chama a atenção, em sua obra Pedagogia da Autonomia, para o fato de que ensinar exige corporificação pelo exemplo. O mergulho em trabalhos sociais inseridos no mundo concreto e em suas determinações permite a produção desejante e constitui a base fundamental para qualquer proposta de formação em saúde cujo interesse esteja no desenvolvimento crítico, cidadão e emancipatório.
Dessa forma, aponta-se que não se pode desenvolver processos formativos em EPS sem uma firme, orgânica e profunda articulação dos conteúdos e das experiências de ensino e de aprendizagem com a dinâmica da realidade social, a vida pulsante nos territórios e os desafios concretos e as questões palpitantes presentes em cada realidade. Isso somente pode ser compreendido quando sentido pela presença consistente e sistemática em trabalhos sociais no contexto das práticas e dos movimentos de EPS, o que inclui contribuir na construção da autonomia das pessoas que atuam e intervêm nesse território vivo.
Aprender, pela EPS, passa necessariamente por aprender a mobilizar as pessoas envolvidas nos processos do fazer saúde a, efetivamente, criar, desenvolver e aprimorar um agir crítico e reflexivo sobre os problemas concretos de seus respectivos contextos.
O desafio de fomentar a ação em rede e a articulação da luta dos movimentos e das práticas de EPS
Em nossa concepção, o formar-se em EPS deve se construir de forma atrelada ao exercício concreto da participação em movimentos sociais populares e outras formas de organização social e política. Como nos diz Dantas et al.1717. Dantas ACMTV, Martelli PJL, Albuquerque PC, Sá RMPF. Relatos e reflexões sobre a Atenção Primária à Saúde em assentamentos da Reforma Agrária. Physis. 2019; 29(2):e290211., a EPS “visa ao resgate da organicidade interna, orientada à prática e vinculada a uma análise mais ampla da questão de saúde por meio do incentivo e da construção da autonomia transformada em luta”1717. Dantas ACMTV, Martelli PJL, Albuquerque PC, Sá RMPF. Relatos e reflexões sobre a Atenção Primária à Saúde em assentamentos da Reforma Agrária. Physis. 2019; 29(2):e290211. (p. 7).
Dessa forma, o presente tópico é tecido a partir da ponderação sobre em que medida os processos formativos promovidos pelos movimentos e pelas práticas de EPS estão se desdobrando em protagonismos de cunho individual e na mobilização da participação das pessoas nesses mesmos espaços e em contextos mais amplos, na perspectiva de sua inserção crítica e atuação política diante da realidade social e de suas determinações.
Participar ativamente da construção de movimentos sociais populares permite às pessoas em formação desenvolver, por exemplo, o protagonismo, como reivindicamos anteriormente neste texto. Vivenciar espaços de articulação e de organização política e social, em especial pelos movimentos sociais populares, permite, de um lado, que as pessoas se envolvam na tessitura de novas sociabilidades. Essas sociabilidades, por sua vez, são espelhadas em outras formas de conviver em coletivo, em novas perspectivas de relacionamento social, na valorização da mística e da solidariedade, bem como no desenrolar de uma organização da vida a partir das lutas por mudança daquilo que oprime e incomoda. A inserção em espaços de participação política mais ampla permite ainda às pessoas extrapolar a dimensão de uma participação-observação, rumo a uma participação-ação concreta, por meio da experimentação de suas contribuições em várias lutas sociais. Transbordar a ação crítica e criativa, de cunho individual, para um protagonismo tecido coletivamente. O trabalho social empenhado em prol de um desejo coletivo e mediatizado necessariamente por uma comunicação dialógica.
É no fazer concreto das lutas dos movimentos sociais populares que os protagonistas da EPS poderão ampliar seus olhares para além das práticas locais e perceber, certamente, a potencialidade da construção coletiva e da ação social organizada de forma participativa e cooperativa entre gentes com saberes distintos, inclusive técnicas e profissões variadas. Aprende-se, por exemplo, a interprofissionalidade e a transdisciplinaridade por meio da prática e do trabalho vivo em ato.
Especificamente no campo da EPS, a inserção no espaço dos coletivos nacionais de EPS possui um potencial pedagógico rico para as pessoas participantes, ampliando sua capacidade crítica e sua visão estratégica pelo aprendizado de lidar com as conjunturas macropolíticas e o desafio de lutar pela EPS como princípio ético das relações sociais, humanas, culturais e educativas na universidade. Para mais, a participação na construção desses coletivos enseja a vivência dos protagonistas da EPS na luta pelo reconhecimento desta no Sistema Único de Saúde (SUS), na inserção ativa de suas práticas e em seus movimentos nos serviços e nas políticas de saúde, sobretudo pela promoção e pela defesa da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no SUS (PNEPS-SUS).
A trajetória dos coletivos de EPS na construção, na implementação e na defesa da PNEPS-SUS demonstra ser fundamental ativar, de modo permanente e capilarizado, redes de comunicação entre atores sociais da EPS e suas lutas. Assim, a aprendizagem dos protagonistas dos movimentos e das práticas de EPS poderá ocorrer também pela compreensão dos sentidos, dos significados e dos caminhos de diferentes experiências em diversos contextos e cenários. Valorizar a participação das pessoas em redes e em articulações de movimentos e práticas implica mobilizar cada pessoa a aprender com o outro, com as iniciativas de outras regiões do país e com empreendimentos bastante diferentes dos seus.
O cultivo da possibilidade do diálogo em redes de experiências de EPS pode se desvelar, por exemplo, tanto apresentando o processo de construção dos trabalhos de EPS de cada pessoa, seus movimentos e suas práticas, quanto escutando as apresentações de companheiros do campo. Vai-se, então, acumulando aprendizados sobre metodologias e perspectivas teóricas; e ampliando o olhar para os mesmos problemas que geraram as ações em destaque. Percebe-se que as demandas comunitárias não se adscrevem àquela comunidade na qual se desenvolveu a experiência, nem as problemáticas em foco limitam-se àquela cidade, mas transcorrem em outras regiões, com formas semelhantes e diferentes de luta e enfrentamento. Compartilhar experiências viabiliza aos protagonistas da EPS, nos processos formativos, exercitar um olhar conjuntural acerca das questões sociais, o que vai se dando de maneira processual e de acordo com seu próprio tempo.
Assim, percebe-se a relevância de estimular a participação nos coletivos de EPS em encontros de caráter regional e nacional, ampliando a dimensão do compartilhamento de experiências. Especialmente para aqueles atores em pleno processo de protagonismo local, a convivência com outros atores em nível regional e nacional lhes permitirá constatar que as lutas sociais e a EPS constituem iniciativas em diversos recantos dentro e fora do país.
Com tal constatação, poderá conferir mais importância e valor ao trabalho localmente desenvolvido por ele em sua comunidade e em sua universidade. Perceberá que a EPS não se trata de um sonho distante de alguns poucos “loucos” do contexto onde estudam. Descobrem que há muitos outros sonhos e uma diversidade imensa de outros “loucos” dedicados à viabilização desses sonhos em muitos outros locais.
Como se não bastasse, nesses encontros, também as pessoas envolvidas descobrem a importância significativa de seus trabalhos para a geração de inovações e conhecimentos em saúde, a partir do momento em que constatam a dinamicidade com que pessoas de outras regiões não apenas admiram seus trabalhos, mas também aprendem com eles e incorporam muitos de seus elementos na construção de suas ações locais. Percebem, então, a dimensão de conhecimento que suas experiências carregam e a relevância desse saber ser continuamente sistematizado e divulgado.
Considerações finais
Com base nos objetivos propostos para as reflexões empreendidas neste ensaio, podemos concluir que, quando falamos de EPS, estamos falando de um corpo prático que ilustra uma ética de viver. Todavia, alcançar essa harmonia entre o que se faz na prática com o que se acredita ser ideal compõe um desafio constante para aqueles e aquelas que se lançam nas experiências de EPS.
A constituição de um agir em saúde que se afirma na Educação Popular deve se dar em uma relação dialética entre o prático e o ético, na medida em que, em certo ponto, ideais/ideologias/utopias constituem uma ética que leva determinados sujeitos a empreenderem ações que busquem alcançar um novo modo de viver em sociedade (ética levando à constituição de outra prática); ao mesmo tempo aquelas ações vão constituindo novas formas de relação e sociabilidade1818. Batista MSX. Movimentos sociais e educação: construindo novas sociabilidades e cidadania [Internet]. In: Anais do 8o Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais; 2004; Coimbra, Portugal. Coimbra: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; 2004 [citado 10 Abr 2020]. Disponível em: https://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/MAriadoSocorroXavierBatista.pdf
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,1919. Calado AJF. Novos e velhos movimentos sociais populares: quais saberes necessários à construção de uma sociabilidade alternativa? In: Scocuglia AC, Jezine E, organizadores. Educação popular e movimentos sociais. João Pessoa: UFPB; 2006. p. 59-76., reverberando em uma nova ética (prática levando à constituição de outra ética, agora universal).
Diante de tudo isso, concluímos que, ao falar de EPS, referimo-nos ao desafio de trazer uma outra perspectiva teórica e epistemológica para o agir em saúde, capaz de apontar caminhos possíveis para outras realizações que estejam pautadas firmemente na busca por uma racionalidade solidária, humana e ambientalmente amorosa.
Com a EPS, poderemos ainda (quem sabe) ensaiar respostas fortes contra o movimento hegemônico de significação dos homens e mulheres enquanto valores de mercado, no qual a grande preocupação é a sua estabilidade, a movimentação e o equilíbrio das empresas. Nesse contexto, esforços sem medida são empreendidos para recuperação de crises financeiras, enquanto a crise da existência material humana continua em voga – seja expressada por fome, pobreza econômica e miséria, seja refletida na violência cotidiana com a qual o mundo convive, espelhada na discriminação e na competitividade – na construção de uma ideia eticamente avessa de que as desigualdades são naturais e de responsabilidade individual.
Como lugar propício para a reflexão crítica e a produção de conhecimentos e tecnologias emancipatórios, os serviços de saúde bem que poderiam, pela EPS, direcionar suas ações e reflexões para a superação desse quadro; ensaiar cantigas e gerar movimentos populares que respondam aos reclames da maioria da população mundial; e recomendar, por meio de suas ações e interações, uma decisão firme de que precisamos remar em outra direção. Por tudo que pudemos refletir ao longo destas páginas, acreditamos firmemente que a EPS dá corpo metodológico e orientações éticas/filosóficas para a constituição de outra formação em saúde, configurando um caminho na direção da realização de utopias sonhadas e compartilhadas coletivamente.
Nesse sentido, destacamos que a EPS é, ao mesmo tempo, a realização da aplicação da ciência de modo edificante e emancipatório junto com as classes populares e um caminho de lutas em movimento pela transformação da sociedade na qual está inserida. A efetivação de ações educativas pautadas por princípios éticos definidos, com reforço ao coletivo e com preocupações voltadas às maiorias sociais, será conduzida no sentido de garantir que alternativas sejam possíveis, inibindo modelos de produção que só mantenham ou fortaleçam os mecanismos de exclusão. EPS em processos formativos necessariamente empenhados na necessidade de resistir e re-existir, na construção cotidiana do esperançar e do bem viver, no tecer de inéditos-viáveis com experiências voltadas a uma nova sociedade e uma nova humanidade.
Agradecimentos
A todas as pessoas que compõem o Grupo Temático de Educação Popular e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), pela generosidade na formulação solidária e colaborativa de reflexões sobre o campo da Educação Popular e Saúde, seus caminhos, desafios e perspectivas. Também registramos a gratidão à Secretaria Executiva e à Diretoria da Abrasco pelo sistemático apoio às atividades desse grupo temático ao longo dos anos.
Referências
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18Batista MSX. Movimentos sociais e educação: construindo novas sociabilidades e cidadania [Internet]. In: Anais do 8o Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais; 2004; Coimbra, Portugal. Coimbra: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; 2004 [citado 10 Abr 2020]. Disponível em: https://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/MAriadoSocorroXavierBatista.pdf
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19Calado AJF. Novos e velhos movimentos sociais populares: quais saberes necessários à construção de uma sociabilidade alternativa? In: Scocuglia AC, Jezine E, organizadores. Educação popular e movimentos sociais. João Pessoa: UFPB; 2006. p. 59-76.
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O presente manuscrito é resultado de um ensaio crítico e reflexivo. Não houve coleta de dados e tampouco foram abordados seres humanos, razão pela qual a pesquisa não foi apreciada por Comitê de Ética em Pesquisa.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Nov 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
12 Maio 2020 -
Aceito
23 Jun 2020