APRESENTAÇÃO
O riso do filósofo
Coube-me a estimulante e honrosa tarefa de apresentar o presente número de Interface. Assim, serei eu próprio a interface entre você, leitor ou leitora, e esse conjunto de trabalhos, que, por sua vez, são outras tantas interfaces - as interfaces multiplicam-se ad infinitum, para o interior e para o exterior, como pude aprender neste número da revista.
Aprendi também que uma interface não é o lugar que separa ou distingue uma identidade de outra, seja de territórios, nacionalidades, individualidades, objetos etc., como nos sugerem as idéias correlatas de fronteira, divisão, limite entre uma coisa e outra. Uma interface é uma superfície de troca, de interação, dispositivo de mútua atribuição de identidades aos espaços que através dela se comunicam. Por isso, se há alguma introdução que eu queira fazer a esse número da Interface é recomendar aos leitores que se deixem permear por ele e, ao mesmo tempo, fecundem-no de suas leituras particulares. Que não atravessem as fronteiras rumo a esse material para colonizá-lo de si mesmos, mas que, estimulados pela própria proposta da publicação, explorem com o máximo de gozo e proveito o encontro promovido por sua leitura.
Bem, se você chegou até este ponto da apresentação é bastante provável que já tenha me aceitado como seu mediador, mesmo que temporariamente. Devo me policiar para evitar que, favorecido pelo seu crédito, eu tente lhe conduzir à mesma leitura que fiz deste número - risco de todo indesejável, mas muito comum em apresentações, prefácios, resenhas. Não posso, contudo, deixar de responder à curiosidade que lhe trouxe até aqui, leitor ou leitora. Afinal, você deve estar se perguntando, o que tem esse apresentador a dizer sobre a leitura que estou prestes a fazer? Eu lhe responderei com o riso do filósofo e o semblante inquiridor do paciente.
O riso do filósofo está por toda parte na entrevista concedida por Pierre Lévy a Ricardo Teixeira, especialmente quando se trata dos temas mais profundos e significativos, e o semblante inquiridor está na segunda foto do ensaio fotográfico de Haná Vaisman, num duro contraste com outros risos.
Por que o filósofo ri? Por que o paciente não ri?
Reagindo à foto de Vaisman, o acadêmico de medicina conclui: "a descontração é legal, mas é uma descontração só nossa, né?". Comentando o riso do filósofo, o entrevistador comenta: "é o imenso prazer do nosso interlocutor com as idéias...sua alegria espontânea de pensar". A co-presença desses dois elementos, a experiência fecunda e compartilhada do riso, de um lado, e a estranha e inquietante ausência desse riso, de outro, conformam um pano de fundo sobre o qual todos os demais trabalhos adquirem contornos extremamente vivos e instigantes. Os artigos aqui reunidos estão todos permeados desse riso e da sua ausência, do êxtase da liberdade na aventura do viver e do constante susto de flagrar a participação nem sempre concorde, mas inexorável, que o outro tem nessa aventura. Seres que nos "obrigamos" à liberdade, compreendemos o riso e reclamamos sua presença.
Talvez ainda não tenhamos dado a devida atenção à importância que Kant (em seus próprios êxtases) atribuiu à felicidade como fundamento prático de todo pensar e conhecer, da Razão, ela mesma. De qualquer forma, o rico diálogo que Lévy, Teixeira, Vaisman e os internos do hospital estabelecem entre si e conosco nos exime de chegar a tão altas pretensões filosóficas para alcançar uma compreensão, no meu ver, quase tão simples quanto fundamental: a de que a felicidade pode ser a medida da razão e de que esta só se realiza plenamente na efetiva comunicação com o outro.
É a razão que nos distingue como seres obrigados à liberdade. Seres que a cada momento tomam a realidade como experiência aberta e se põem a inventar suas formas, damos asas ao grande arcanjo de que nos fala Michel Serres, impulsionadas pelo perene vento da história, de que uma vez nos falou Walter Benjamim. E qual pode ser a reação de um ser criador diante da sua aptidão criadora senão o riso, a felicidade? Da mesma forma, o incômodo com o desencontro na felicidade é um duplo sinal da relevância da comunicação num projeto racional de humanização da vida. Vivida como um déficit, a ausência do sorriso é a constatação de que o motivo da felicidade de um não o é para o outro, de que esse outro não é efetivamente partícipe do ato criador em curso. Ao mesmo tempo, essa sensação de déficit é expressão de uma autêntica vontade de que isso fosse diferente. É como se, não sendo a felicidade completa, a razão ainda estivesse a meio caminho. O riso do filósofo não nos cobra significado, mas a feição tensa do paciente sim (e o detalhe da Bíblia aberta na cabeceira do leito, da leitura possivelmente interrompida, tinge de cores ainda mais fortes o desencontro retratado).
Ora, e o que são todos os esforços de comunicação senão esse movimento da razão que cria, da razão que atualiza nossa escolha pela liberdade, na direção de seu total compartilhamento? Senão, vejamos. Não pode a boneca Gertrudes ser entendida como uma tentativa de fazer com que a felicidade na vida sexual e reprodutiva seja compartilhada entre as diferentes mulheres? Não incomoda à pesquisadora do PAISM que as técnicas assistenciais em saúde da mulher não consigam romper a diferença de poder entre homens e mulheres na criação de suas formas de convivência? Ao perscrutar o diálogo estabelecido através do meio rádio ou do meio jornal, não é a dúvida sobre o que se está verdadeiramente criando que está em questão?
O que dizer, então, dos diversos textos debatendo a universidade e a educação? Não é a razão debruçando-se sobre si mesma e recusando o caráter limitado de sua capacidade de criar compartilhamento na felicidade?
Este me parece o sentido mais substantivo de todo e qualquer esforço racional/comunicacional: a possibilidade de nos colocarmos juntos na criação, não para criar todos a mesma coisa, nem de uma vez por todas, mas para desfrutarmos o mesmo êxtase da liberdade de estarmos inventando a vida. Parece também uma leitura possível deste estimulante número da Interface. É desta leitura que quero, de minha parte, convidar os leitores a compartilhar. Só a leitura de cada leitor e leitora poderá, por outro lado, decidir sobre a felicidade desse convite.
São Paulo, 12 de Fevereiro de 1999
José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Jul 2009 -
Data do Fascículo
Fev 1999