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Monkeypox e o retorno de um espectro: o campo da saúde em tempos sombrios

Monkeypox y el regreso de un espectro: el campo de la salud en tiempos oscuros

A história é marcada e transformada por grandes epidemias e pandemias. Tal afirmação pode soar trivial se não lembrarmos que, nas transformações, algo persiste e retorna. Por meio da experiência com a Aids, poderíamos parafrasear Karl Marx11 Karl M. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro; 2006., para quem fatos de importância na história ocorrem duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa. Se vivemos como tragédia a epidemia da Aids pela forma como ela estigmatizou segmentos populacionais, atualmente enfrentamos a emergência de uma nova crise sanitária, provocada pela monkeypox, popularmente conhecida como “varíola dos macacos”, embora a doença não seja originária dos macacos (sendo eles também hospedeiros do vírus).

O cerne da questão que queremos discutir neste Editorial é se não estaríamos assistindo, no caso da monkeypox, ao retorno da patologização das homossexualidades. Afinal, o discurso adotado por instituições, o direcionamento de determinadas pesquisas, bem como a repetição de lugares-comuns parecem estar reproduzindo um dispositivo que, no caso da Aids, estigmatizava segmentos e pessoas.

Como se sabe, no contexto da eclosão da epidemia de HIV/Aids, em meados da década de 1980, tivemos a emergência da noção de grupos de risco, a cristalização de práticas sexuais em identidades sociais e a estigmatização de grupos vulneráveis. A literatura mostrou, na época, que o uso do termo “grupos de risco” e “comportamentos de risco” resultou na percepção da Aids como uma doença restrita a determinados grupos e populações, inibindo quaisquer esforços de prevenção. A doença estaria sempre distante e separada, como se os grupos sociais fossem homogêneos e não se relacionassem entre si. Essas categorias epidemiológicas, nas quais são enquadrados os “grupos de risco”, foram amplamente debatidas e ficou evidente quanto eram vagas e problemáticas como base de prevenção22 Schiller NG, Crystal S, Lewellen D. Risky business: the cultural construction of AIDS risk groups. Soc Sci Med. 1994; 38(10):1337-46.,33 Singer M. AIDS and the health crisis in the U.S. urban poor: the perspective of critical medical anthropology. Soc Sci Med. 1994; 39(7):931-48.. As implicações desse discurso estigmatizador e dessas noções e formas de controle perduraram por décadas, como no caso da preconceituosa proibição de doação de sangue por homossexuais e bissexuais, que só foi derrubada pela justiça brasileira em 202044 Oliveira J. Em decisão histórica, STF derruba restrição de doação de sangue por homossexuais [Internet]. São Paulo: El País; 2020 [citado 22 Ago 2022]. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-08/em-decisao-historica-stf-derruba-restricao-de-doacao-de-sangue-por-homossexuais.html
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. O contexto da monkeypox parece reproduzir algumas dessas características.

Os primeiros registros de surtos da monkeypox datam da década de 1970, oriundos das regiões central e oeste da África55 World Health Organization. Monkeypox [Internet]. Geneva: WHO; 2022 [citado 23 Ago 2022]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/questions-and-answers/item/monkeypox
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. Em 2022, identificaram-se importantes surtos em diversos países do mundo – o sítio de vigilância da Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que, desde o dia primeiro de janeiro, houve registros de casos da nova infecção, atualmente em cerca de noventa nações nos cinco continentes66 Mathieu E, Spooner F, Dattani S, Ritchie H, Roser M. Monkeypox [Internet]. England: Our World in Data; 2022 [citado 22 Ago 2022]. Disponível em: https://ourworldindata.org/monkeypox
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. Em agosto de 2022, o Brasil estava entre os cinco países com maior registro no número de casos da doença77 Brasil. Ministério da Saúde. Boletim epidemiológico especial Monkeypox [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2022 [citado 22 Ago 2022]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/svs/resposta-a-emergencias/sala-de-situacao-de-saude/sala-de-situacao-de-monkeypox/publicacoes
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. Até a semana epidemiológica 32, que foi encerrada dia 13 de agosto de 2022 (data do Boletim Epidemiológico Especial Monkeypox do Ministério da Saúde), havia 10.195 casos notificados, 3.040 confirmados (29,8%), 176 prováveis (1,7%), 3.737 suspeitos (36,7%) e 3.242 descartados (31,8%)77 Brasil. Ministério da Saúde. Boletim epidemiológico especial Monkeypox [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2022 [citado 22 Ago 2022]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/svs/resposta-a-emergencias/sala-de-situacao-de-saude/sala-de-situacao-de-monkeypox/publicacoes
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. Do conjunto de casos confirmados e prováveis, a mediana de idade foi de 31 anos; 93,2% são homens; 45,9% são brancos; 34,1%, negros. A orientação sexual não foi informada em mais de 60% dos casos, tendo 22,7% dos homens se identificado como homossexuais; 2,4%, como bissexuais; enquanto 29,9% das mulheres se identificaram como heterossexuais.

A forma como os surtos de monkeypox têm sido noticiados, e mesmo abordados por alguns pesquisadores no campo da Saúde Pública, faz pensar que estamos assistindo a um filme já conhecido. Até o momento, o que se tem de informação sobre a infecção é que o vírus pode ser transmitido por secreções de pessoas infectadas – perdigotos, contato sexual ou íntimo, contato direto com as feridas e outros fluidos corporais, por objetos como lençóis, toalhas etc88 McCollum AM, Damon IK. Human monkeypox. Clin Infect Dis. 2014; 58(2):260-7.. Contudo, o fato de a incidência dos primeiros casos registrados ter se concentrado no grupo de homens que fazem sexo com homens (HSH) – categoria epidemiológica que abarca homens gays, bissexuais e outros homens que, ainda que não se identifiquem nessas categorias sexuais, têm práticas sexuais com outros homens99 Patel A, Bilinska J, Tam JCH, Fontoura DS, Mason CY, Daunt A, et al. Clinical features and novel presentations of human monkeypox in a central London centre during the 2022 outbreak: descriptive case series. BMJ. 2022; 378:1-17. – tem servido para que as memórias relacionadas à epidemia de HIV/Aids ressoem como uma força que deve nos alertar para uma repetição farsesca.

Em um estudo descritivo com 197 pacientes infectados pela varíola símia, 196 se identificavam como HSH99 Patel A, Bilinska J, Tam JCH, Fontoura DS, Mason CY, Daunt A, et al. Clinical features and novel presentations of human monkeypox in a central London centre during the 2022 outbreak: descriptive case series. BMJ. 2022; 378:1-17.. Em outro estudo, publicado no New England Journal of Medicine, dos 528 casos confirmados, 98% eram de homens gays ou bissexuais e 41% eram de pessoas que vivem com HIV (PVHIV)1010 Thornhill JP, Barkati S, Walmsley S, Rockstroh J, Antinori A, Harrison LB, et al. Monkeypox virus infection in humans across 16 countries - April-June 2022. N Engl J Med. 2022; 387(8):679-91. doi: https://doi.org/10.1056/NEJMoa2207323.
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. Estudos como esses nos levam a refletir sobre esse direcionamento em um segmento que, como mostramos no segundo parágrafo, pelos números gerais que temos até o momento, não representa a maioria dos casos da doença, mas parece predominar como objeto de investigação. Nessa mesma linha, a OMS, em comunicado oficial realizado pelo seu diretor-geral, Tedros Adhanom, orientou que esses homens deveriam diminuir tanto o número de parceiros sexuais quanto o número de relações sexuais55 World Health Organization. Monkeypox [Internet]. Geneva: WHO; 2022 [citado 23 Ago 2022]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/questions-and-answers/item/monkeypox
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Aqui, mais uma vez, devemos nos questionar sobre as implicações sociais de dois fenômenos que se repetem: a identificação dos surtos com o segmento populacional que primeiro reporta a enfermidade ao sistema de saúde; e a recomendação da OMS, que mescla o objetivo de contenção biológica à histórica obsessão com a homossexualidade. À luz da experiência histórica dos órgãos, serviços e profissionais de saúde com a Aids e, principalmente, dos estudos críticos que versam sobre como a epidemia iniciou um ciclo com consequências estigmatizantes, que depois levou décadas para arrefecer, cabe refletir sobre esses pontos cegos para uma Saúde Pública comprometida a não repetir erros do passado e a construir novas formas de comunicação com a sociedade, que não reproduzam a estigmatização de qualquer grupo social.

O foco no segmento HSH (sobre o qual os primeiros casos e estudos se concentraram) e a orientação de conotação asséptica, que ignora dimensões sociais e psíquicas do ser humano, precisam ser repensados em favor de outra abordagem. Para tanto, é necessário nos voltarmos à história da epidemia de HIV/Aids e a como a Saúde Pública, mesmo com boas intenções, produziu discursos e lugares estigmatizantes direcionados a determinados grupos populacionais1111 Ferreira JP, Miskolci R. “Reservatórios de doenças venéreas”, “HSH/MSM” e “PWA”: continuidades, rupturas e temporalidades na produção de bioidentidades no contexto da epidemia de AIDS. Cienc Saude Colet. 2022; 27(9):3461-74.. E, ao fazermos esse retorno, a pergunta de que não podemos nos esquivar é: a ação da OMS, das instituições (que se baseiam no discurso epidemiológico) e mesmo de alguns pesquisadores da área da Saúde não estariam reproduzindo a construção do dispositivo da Aids? Também temos de questionar quais seriam os impactos dessa insistência na lógica patologizante das práticas não heterossexuais.

Néstor Perlongher1212 Perlongher N. O que é AIDS? São Paulo: Brasiliense; 1987. assinalou que o dispositivo da Aids foi capaz de perpetuar a perseguição e a condenação das práticas sexuais fora da normalidade (compreendida como sinônimo de heterossexualidade). Indiretamente, os posicionamentos e as políticas dos órgãos de saúde partiram da heterossexualidade presumida e compulsória como ponto apenas aparentemente neutro de observação e análise sobre o que se passava. A noção de dispositivo trabalhada aqui é inspirada em Michel Foucault e consiste em um conjunto de discursos e práticas que tomam forma de saberes e poderes que regulam, controlam e produzem verdades que modelam subjetividades e estruturam relações sociais1313 Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 3a ed. Rio de Janeiro: Graal; 1980..

Como apontam Pelúcio e Miskolci1414 Pelúcio L, Miskolci R. A prevenção do desvio: o dispositivo da AIDS e a repatologização das sexualidades dissidentes. Sex Salud Soc. 2009; 1:125-57., o dispositivo da Aids operou uma inflexão histórica na compreensão da homossexualidade: do antigo modelo psiquiátrico, que a definiu por mais de um século como uma espécie de doença mental, para outro que passava a compreendê-la como risco epidemiológico. No auge mortal da epidemia de Aids, um pânico sexual em relação aos homossexuais se alastrou, moldando discursos preventivos que tiveram consequências estigmatizantes e discriminatórias (como as criadas pela classificação de grupo de risco). Vemos tal espectro reaparecer em propostas de políticas públicas de prevenção e tratamento de agências internacionais ou nacionais, em pleno ano de 2022, devido à emergência epidemiológica da monkeypox.

Sob o véu do controle da epidemia sustentada por esse discurso epidemiológico, está o retorno do horror coletivo ao desejo homossexual1515 Hocquenghem G. Le désir homosexuel. Paris: Fayard; 2000.,1616 Rubin G. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In: Vance CS, editor. Pleasure and danger: exploring female sexuality. Boston: Routledge & Kegan Paul; 1984. p. 143-78. e a tensa relação entre a medicina e a patologização de comportamentos. Relação que, infelizmente, tende a retomar categorias sociais estigmatizantes para circunscrever os segmentos vulneráveis enquanto se preserva uma imaginária maioria “normal” e, portanto, supostamente protegida de patologias. Assim, o que Perlongher1212 Perlongher N. O que é AIDS? São Paulo: Brasiliense; 1987. chamou de dispositivo da Aids, e Pelúcio e Miskolci1414 Pelúcio L, Miskolci R. A prevenção do desvio: o dispositivo da AIDS e a repatologização das sexualidades dissidentes. Sex Salud Soc. 2009; 1:125-57. identificaram como o processo que transformou a compreensão social, que passava a perceber a homossexualidade como ameaça epidemiológica, pode adquirir novas feições em cada época, segundo seu contexto político e de saúde. Atualmente, via surtos de monkeypox, o discurso da prevenção resgata suas origens normativas e pudicas na esfera sexual, disparando um novo-velho pânico em relação ao sexo entre homens. Devemos sublinhar que, desviando de seu compromisso em controlar a epidemia, enfoca, mais uma vez, não a ameaça de saúde global e, sim, sua imaginária supressão, efetuada pelo controle e pela domesticação do desejo entre pessoas do mesmo sexo.

A epidemia de HIV/Aids não foi apenas biológica, mas também cultural e moldada pelos discursos1717 Treichler PA. How to have theory in an epidemic - cultural chronicles of AIDS. 3rd ed. Durham: Duke University Press; 1999., daí o saber biomédico ter se utilizado de metáforas bélicas ao abordar as linhas de prevenção e tratamento1818 Sontag S. Doença como metáfora / AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras; 2007., bem como o entendimento comum da epidemia como uma praga, um castigo, uma danação e uma ameaça à ordem vigente. Essas metáforas, presentes na construção social do HIV/Aids, tendem a ser reatualizadas e reempregadas na emergência da monkeypox. Em parte, por questão de oportunidade, já que a incidência inicial foi identificada oficialmente entre homens que tiveram relações sexuais com outros homens. Casos de uma doença reportados inicialmente em um segmento populacional não definem o risco à Saúde Pública intimamente vinculada a esse grupo. Afinal, talvez seja importante ponderar se a infecção pode ter sido encontrada em um segmento por razões como: ele foi o primeiro a ter acesso a diagnóstico ou a reportar o problema às autoridades ou, ainda, o que seria mais preocupante, foi o grupo que a Saúde Pública decidiu tornar mais visível à sociedade.

Infelizmente, o quadro que se passou durante o auge mortal da epidemia de Aids, nas décadas de 1980 e 1990, agora ameaça retornar. Como já salientamos, tal ameaça nos leva à necessidade de aprender com a história da Aids, para impedir que se reatualizem discursos e práticas patologizantes em relação às homossexualidades. Voltemo-nos, portanto, aos mencionados tecidos discursivos para compreender sua urdidura.

Entre esses tecidos discursivos, a pessoa vivendo com HIV e o doente de Aids foram sendo reduzidos à própria doença (“aidético”), ao vírus (“soropositivo”) ou àquilo que é da ordem do abjeto. As pessoas contaminadas tiveram as suas singularidades apagadas em detrimento de bioidentidades estigmatizantes1111 Ferreira JP, Miskolci R. “Reservatórios de doenças venéreas”, “HSH/MSM” e “PWA”: continuidades, rupturas e temporalidades na produção de bioidentidades no contexto da epidemia de AIDS. Cienc Saude Colet. 2022; 27(9):3461-74.; não são raros os relatos de violências físicas, discriminações direcionadas a essas pessoas1919 Trevisan JS. Devassos no paraíso - a homossexualidade no Brasil da colônia à atualidade. 4a ed. Rio de Janeiro: Objetiva; 2018. em diversas instâncias da vida – expulsas de casa, demitidas sumariamente do trabalho, dentre outras formas de violências cotidianas, em um enunciado que vem sendo denominado de “sorofobia”2020 Barbosa Filho EA, Vieira ACS. A expansão da sorofobia no discurso político brasileiro. Argum. 2021; 13(3):134-47. doi: https://doi.org/10.47456/argumentum.v13i3.35656.
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Há que se destacar que não estamos mais na crise inicial da epidemia de HIV/Aids, quando não se sabia o agente etiológico e quando não se tinha perspectiva alguma de tratamento. Atualmente, entrando na quinta década da epidemia, temos toda uma lista de antirretrovirais disponíveis para controle da replicação viral, possibilitando o controle da infecção, além de profilaxias pré e pós-exposição sexual (PrEP e PEP), como alternativas de métodos preventivos e de controle da infecção – uma realidade bastante diferente da observada décadas atrás. Assim, hoje em dia, é possível viver com HIV/Aids com carga viral indetectável e nem sequer transmitir o vírus sexualmente – mantendo uma boa qualidade de vida, especialmente no domínio da saúde física2121 Santos ECM, França Junior I, Lopes F. Qualidade de vida de pessoas vivendo com HIV/AIDS em São Paulo. Rev Saude Publica. 2007; 41 Supl 2:64-71..

Contudo, pode-se falar de uma nova crise da Aids quando a aliança entre neoliberalismo e os movimentos contra o avanço dos direitos humanos (sobretudo os que envolvem os direitos sexuais e reprodutivos) ameaçam o Estado democrático no Brasil, sabotam o Sistema Único de Saúde (SUS) e a capacidade de se seguir implementando políticas e ações de Saúde Pública de enfrentamento à epidemia do HIV/Aids2222 Agostini R, Rocha F, Melo E, Maksud I. The Brazilian response to the HIV/AIDS epidemic amidst the crisis. Cienc Saude Colet. 2019; 24(12):4599-604.. As pessoas vivendo com HIV/Aids hoje estão inseridas, ainda, em um contexto de estigma e violação de seus direitos que, como observamos em anos recentes, tem se agravado.

Esse argumento é confirmado empiricamente no recém-elaborado “Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/Aids”, um trabalho realizado pela Unaids em conjunto com ONGs e universidades. Nesse trabalho, que resultou na publicação de um Sumário Executivo2323 Unaids. Sumário executivo - Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS [Internet]. Brasília: Unaids; 2020 [citado 25 Ago 2022]. Disponível em: https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2019/12/2019_12_06_Exec_sum_Stigma_Index-2.pdf
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, observa-se como o estigma ainda atravessa as pessoas vivendo com HIV e Aids em diversas dimensões de suas vidas pessoais – há relatos de uma capacidade reduzida de se apaixonar, de se lidar com o estresse, de se estabelecer relações de confianças reduzidas; há uma decisão deliberada em não participar de eventos sociais familiares ou de amigos; há uma parcela importante dessas pessoas que optam por não mais fazer sexo e por se isolarem socialmente. Nota-se, também, a existência de sentimentos autodepreciativos de inutilidade, afetando não somente os sujeitos, mas também a forma como eles se relacionam e se posicionam socialmente. É ainda relatado, no mesmo documento, uma constante violação de direitos básicos – como, por exemplo, direitos reprodutivos, o direito ao sigilo médico e de prontuário.

Pelongher1212 Perlongher N. O que é AIDS? São Paulo: Brasiliense; 1987. termina seu livro sobre a Aids chamando a atenção para o contexto de conservadorismo, especialmente de setores religiosos e de direita, que fora fecundo para fazer da epidemia um novo dispositivo de controle social da sexualidade e do desejo. Enquanto temos uma doença/síndrome com agente infeccioso, sinais, sintomas, tratamentos e linhas de cuidado, temos também uma epidemia socialmente forjada por pautas morais que convive, e acentua, as violências e os sofrimentos da população diretamente afetada. Além da Aids, a experiência recente da pandemia de Covid-19 também provou que vivemos impactos epidemiológicos dentro de um contexto histórico similarmente afeito a polarizações e conflitos políticos. Nos dias de hoje, o campo da Saúde Pública atua em tempos sombrios, equilibrando-se entre pautas morais que voltam a transformar segmentos sociais vulneráveis e estigmatizados em bodes expiatórios e pressões identitárias que, com objetivos meritórios, tendem a contribuir para transformar práticas em identidades, categorias e outras definições com potencial normalizador e de controle.

Nesse contexto sombrio, o campo da Saúde – e o saber biomédico em particular – tem o desafio do enfrentamento de doenças e agravos, especialmente quando se está diante de emergências sanitárias, como a que vivemos com a Covid-19 e, agora, a monkeypox, sem reavivar antigos fantasmas que contribuiriam para disseminação de novos pânicos sexuais. Desse modo, é crucial, partindo dos estudos e experiências trazidas e elaboradas mediante a epidemia de Aids, debruçarmo-nos sobre o foco (da OMS, por exemplo; mas de outras instituições, serviços e discursos) em homens que fazem sexo com outros homens e sua recomendação para que diminuam suas práticas sexuais diante dessa nova emergência sanitária – a monkeypox –, trazendo para esse cálculo os contextos sociais, políticos e econômicos. É urgente interrogarmos o que subjaz a esse direcionamento, novamente no segmento HSH, e, retomando a história, alertar sobre os possíveis impactos que pode causar.

O discurso primeiramente adotado pela OMS, ainda que possivelmente justificado pelos dados estatísticos disponíveis, tem conotações e implicações morais. Tal discurso acaba por reproduzir a lógica de regulação e normalização de sexualidades dissidentes, as primeiras e mais afetadas pelas duas doenças (e, aqui, os paralelos nos saltam os olhos). A recomendação da OMS pode atuar como produtor de estigma e vulnerabilidade. Trata-se de um discurso que pode ter impacto negativo tanto nas questões de saúde propriamente ditas como nos direitos humanos, especialmente os hoje sob ataque da extrema-direita em diversos contextos nacionais: os sexuais e reprodutivos.

Políticas públicas precisam ser feitas por meio de informação e educação em saúde, e necessitam trazer as pessoas para o protagonismo de seus cuidados. Pânico, vergonha, culpa, linguagem bélica e outros discursos morais já se revelaram deletérios: interferem negativamente na prevenção2424 Kerr L, Kendall C, Guimarães MDC, Mota RS, Veras MA, Dourado I, et al. HIV prevalence among men who have sex with men in Brazil: results of the 2nd national survey using respondent-driven sampling. Medicine (Baltimore). 2018; 97 Suppl 1:9-15. doi: https://doi.org/10.1097/MD.0000000000010573.
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, afetam adesão ao tratamento, produzem adoecimentos e sofrimentos mentais2323 Unaids. Sumário executivo - Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS [Internet]. Brasília: Unaids; 2020 [citado 25 Ago 2022]. Disponível em: https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2019/12/2019_12_06_Exec_sum_Stigma_Index-2.pdf
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. Como dizíamos, a ideia de que são só os “outros” que se contaminam, no caso da epidemia da Aids, se mostrou como promotora da disseminação da doença (como foi o caso do aumento de incidência em grupos que não se consideravam como “de risco”, como mulheres heterossexuais ou populações de áreas rurais). Não há nenhuma razão que justifique repetir algo que se mostrou tão ineficaz na prevenção. Ademais, estabelecem divisões entre o nós e eles; e, nesse sentido, a identificação de um determinado grupo como de risco cria uma falsa sensação de segurança para o restante da população que, resguardados sob as orientações institucionais, podem se considerar imunes ao risco de infecção pela varíola.

Sobretudo, vale dizer diretamente, a monkeypox não é uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST) e suas condições de infecção e disseminação já são conhecidas. Embora tenha sido encontrada a presença de DNA da monkeypox no sêmen, não há estudos suficientes que comprovem a transmissão por sêmen, fluido vaginal, líquido amniótico, leite materno ou sangue55 World Health Organization. Monkeypox [Internet]. Geneva: WHO; 2022 [citado 23 Ago 2022]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/questions-and-answers/item/monkeypox
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. Neste momento, rotular a monkeypox como IST poderia levar as pessoas que não estão mantendo relações sexuais à ideia enganosa de que seriam imunes à doença, o que só produziria desinformação2525 Howard J. Por que chamar a varíola dos macacos de IST é mais do que apenas um rótulo [Internet]. São Paulo: CNN Brasil; 2022 [citado 23 Ago 2022]. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/por-que-chamar-a-variola-dos-macacos-de-ist-e-mais-do-que-apenas-um-rotulo/
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No auge do pânico (homos)sexual da Aids, o historiador da medicina Sander L. Gilman2626 Gilman SL. Disease and representation: images of illness from madness to AIDS. Ithaca: Cornell University Press; 1988. Seeing the AIDS Patient; p. 245-72. analisou a fatal escolha da Saúde Pública da época. Essa análise serve de alerta para que o mesmo movimento não se repita com a monkeypox. Diz o autor sobre a Aids:

O contato sexual não é necessário para contrair a doença. É uma doença viral que pode ser transmitida sexualmente, mas também por outros meios. A ambiguidade deste fato significou que a doença poderia ter sido categorizada de maneiras diferentes, mas ela foi caracterizada não como doença viral, como a Hepatite B, no entanto, e sim como uma infeção sexualmente transmitida, como a sífilis2626 Gilman SL. Disease and representation: images of illness from madness to AIDS. Ithaca: Cornell University Press; 1988. Seeing the AIDS Patient; p. 245-72..

(p.247)

Portanto, essas formas de aproximação de uma ameaça de saúde à esfera das antigas doenças venéreas são veículos históricos de cruzadas morais.

Este Editorial buscou mostrar ser questionável que práticas e condições sociais específicas, que condicionam ambiente propício para a disseminação do vírus, sejam relacionadas a práticas e/ou a identidades sexuais. Precisamos não incorrer nos erros cometidos no passado e ter consciência dos tempos sombrios em que atuamos, de maneira que uma nova emergência sanitária não sirva para reavivar um fantasma, alimentando preconceitos e permitindo novas formas de discriminação. O campo da Saúde Coletiva tem experiência e conhecimento acumulados para agir com responsabilidade, justiça e respeito em relação a um segmento social (HSH, no momento, mas também outros corpos e subjetividades dissidentes), cuja história foi marcada pelo estigma e, recentemente, por tentativas renovadas de patologização.

  • Rocha F, Pinheiro R, Miskolci R, Signorelli MC, Martin D, Pereira PPG. Monkeypox e o retorno de um espectro: o campo da saúde em tempos sombrios. Interface (Botucatu). 2022; 26: e220417 https://doi.org/10.1590/interface.220417

Referências

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Editado por

Editor
Antonio Pithon Cyrino
Editora associada
Carolina Siqueira Mendonça

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2022
  • Aceito
    03 Set 2022
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