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Gestar, parir e não se tornar mãe: recusas, impossibilidades e violações no contexto da Covid-19

To gestate, give birth and not become a mother: refusals, impossibilities and violations in the context of the Covid-19 pandemic

Gestar, parir y no convertirse en madre: rechazos, imposibilidades y violaciones en el contexto de la Covid-19

Resumos

Com o intuito de chegar aos motivos que levam pessoas à entrega voluntária, escolhemos a comarca do Rio de Janeiro, RJ – Brasil – como lócus privilegiado. O caminho metodológico utilizado para a presente pesquisa foi a análise documental sobre ações de destituição de poder familiar e extinção de poder familiar que tramitaram a partir da promulgação da Lei n. 13.509/17, com atenção especial ao contexto pandêmico. A partir de reflexões propostas por Ferreira e Lowenkron, a coleta e análise desses documentos foi realizada levando em conta que a produção, a escrita e a circulação dos autos são tecnologias de fabricação das realidades. A partir das multiplicidades de vozes sobre os motivos para a entrega voluntária, construímos três eixos de análise: (1) a impossibilidade do cuidado; (2) a recusa da maternidade, a resignação e a indiferença; e (3) a violência institucional.

Palavras-chave
Entrega legal; Covid-19; Direitos reprodutivos


This study sought to understand the reasons for “voluntary surrender” in the district of Rio de Janeiro, Brazil. We performed a document analysis of termination of parental rights actions and extinction of parental rights actions that took place after the promulgation of Law 13509/17, focusing on the context of the Covid-19 pandemic. Drawing on the reflections of Ferreira and Lowenkron, data collection and document analysis was performed bearing in mind that the production, writing and circulation of writs are reality manufacturing technologies. Based on the multiplicity of voices speaking about the motives, we defined three core themes of analysis: (1) the impossibility of care; (2) the refusal of motherhood, resignation and indifference; and (3) institutional violence.

Keywords
Voluntary surrender; Covid-19; Reproductive rights


Con el objetivo de llegar a los motivos que llevan a las personas a la “entrega voluntaria”, elegimos la comarca de Río de Janeiro/RJ - Brasil como locus privilegiado. El camino metodológico fue el análisis documental sobre acciones de destitución de poder familiar y extinción de poder familiar que se tramitaron a partir de la promulgación de la Ley nº 13.509/17, con atención especial al contexto pandémico. A partir de reflexiones propuestas por Ferreira y Lowenkron, la colecta y análisis de esos documentos se realizó llevando en consideración que la producción, la redacción y la circulación de los autos son tecnologías de fabricación de las realidades. A partir de las multiplicidades de voces sobre los motivos, construimos tres ejes de análisis: (1) la imposibilidad del cuidado, (2) el rechazo de la maternidad, la resignación y la indiferencia y (3) la violencia institucional.

Palabras clave
Entrega legal; Covid-19; Derechos reproductivos


Introdução

A proposta deste artigo é apreender a gestão da vida de mulheres(e (e) Utilizamos o termo “mulher” neste texto, uma vez que todos os documentos analisados se referem às pessoas cisgênero que foram identificadas documentalmente como “mulher”. Dessa forma, optamos por manter o uso da categoria, porém, cientes de possíveis deslizes. Importa apontar para a não reificação do termo e para esforços em não produzir invisibilização de outras pessoas que podem engravidar e dar à luz, podendo fazer parte do circuito que analisamos. ) e/ou casais em âmbito da Justiça da Infância e da Juventude quando decidem não permanecer com a prole. Em termos específicos, há a intenção de analisar em que medida a Covid-19 impactou as decisões sobre a entrega voluntária e o posterior encaminhamento desses bebês à adoção, entre 2020 e 2022, em contexto nacional e local, tendo o Rio de Janeiro como lócus privilegiado(f (f) Este texto resulta de uma pesquisa de maior abrangência, apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). que visa analisar, em cenário nacional atual, a adoção como parte de uma política para a infância e juventude. ).

A entrega voluntária diz respeito às situações nas quais gestantes, puérperas e/ou seus/suas companheira(o)s decidem não permanecer com as crianças durante a gestação e/ou após o nascimento, entregando-as diretamente ao Poder Judiciário, cuja responsabilidade será conduzi-las à adoção.

Em caso de decisão imediata, durante o pós-parto, compete aos hospitais e maternidades informar às Varas da Infância e Juventude (VIJI) e ao Ministério Público (MP) a ocorrência. Se a decisão for tomada ao longo da gestação, a pessoa que gesta poderá se conduzir, acompanhada ou sozinha, ao Poder Judiciário para realizar a comunicação e obter esclarecimentos. A partir de uma cooperação com os profissionais dos serviços de saúde pública voltados à atenção materno-infantil, a equipe técnica das VIJI fará o acompanhamento desse percurso. Tais direcionamentos são produtos da promulgação da Lei n. 13.509/17, de autoria do deputado federal Augusto Coutinho (Solidariedade/PE), que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Apesar de as disposições elencadas fazerem parte do texto da Lei n. 13.509/17, a entrega voluntária foi normatizada no Brasil em 2009, por meio da Lei n. 12.010/09. Contudo, no texto anterior, não havia um destaque à entrega do recém-nascido como é dado na lei atual referente a essa matéria, assim como não era contemplado o direito das mulheres ao sigilo do decurso da entrega(g (g) Ressaltamos que adolescentes não podem tomar essa decisão sem a autorização dos pais, de um tutor ou de um curador nomeado pelo juiz. ).

A Lei n. 13.509/17, no que toca à entrega voluntária, foi formulada visando à celeridade dos procedimentos legais de desligamento dos recém-nascidos de suas famílias de nascimento, almejando que os bebês entregues sejam rapidamente adotados. Por essa razão, o texto da lei visou evitar a propositura de uma ação de destituição do poder familiar(h (h) De acordo com Rinaldi1, a propositura de uma ação de destituição do poder familiar é de competência do MP, mas pode ser movida por um parente do infante ou do jovem quando se entender, segundo o art. 1637 do Código Civil de 2002, que um pai ou uma mãe “abusou de sua autoridade ou faltou com os deveres a eles inerentes”. ), tendendo aos princípios da “economia processual e do melhor interesse da criança”.

Dessa forma, de acordo com o art. 166, § 1º, da mesma lei, após a realização da audiência prevista, na qual serão escutados a mãe e/ou o pai de nascimento em presença de um juiz da Infância e da Juventude, de um representante do MP e de um defensor público e/ou advogado, poderá ser decretada a extinção do poder familiar e a consequente determinação de colocação em família substituta, evitando-se, dessa forma, o ajuizamento de uma ação judicial. Seu texto previu, por outro lado, a possibilidade de buscar o genitor e a família extensa, desde que a mulher o permita, sempre garantindo o seu direito à privacidade.

Com base no que foi descrito, importa considerar o que a atual política da entrega voluntária no Brasil, garantida pela Lei nº 13.509/17, comunica em termos de sentidos sobre adoção, infância, juventude e direitos das mulheres no Brasil. Conforme o texto da cartilha “Entregar de forma legal é proteger”, produzida pela Coordenadoria Judiciária de Articulação das Varas da Infância, da Juventude e do Idoso; e o Poder Judiciário do Rio de Janeiro22 CEVIJ. Entregar de forma legal é proteger. Rio de Janeiro: Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro; 2017., a entrega voluntária possui grande relevância social, posto ser capaz de evitar o “aborto em situações não previstas pela lei”(i (i) Sobre o aborto legal no Brasil, ressaltamos que, apesar de densas, históricas e constantes ações de movimentos sociais (com diversas caracterizações) em prol de sua ampliação, a legislação em vigência – artigo 128 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, do Código Penal – permite-o em apenas em dois casos: gravidez decorrente de estupro e risco à vida da gestante. O aborto feito fora dessas situações é criminalizado e previsto no Código Penal Brasileiro, sancionado em 1940, e prevê que médicos e mulheres sejam punidos penalmente se o provocarem (artigos 124, 125 e 126 do Código Penal). ), assim com o “infanticídio”, o “abandono de bebês” e as “adoções irregulares”. No entanto, olhando para as partes dos autos aos quais nos dedicamos, tais evitações não ficam aparentes, o que pode ser demonstrativo de um descompasso entre a propositura legal e sua materialização.

Além de contornar o debate sobre o aborto como uma necessidade de Saúde Pública, esse dispositivo acentua desigualdades, dispondo algumas pessoas nas condições de produtoras/dadoras e outras, nas de receptoras de crianças no mercado adotivo. Assim, essa lei materializa uma “política seletiva do parentesco”(j (j) Usamos essa expressão inspirados na discussão sobre oferta seletiva de métodos contraceptivos reversíveis de longa duração (LARC), feita por Elaine Brandão e Cristiane Cabral3. ), fazendo com que grupos mais vulneráveis, mesmo que tenham filhos, não constituam relações parentais.

Se levarmos em conta a informação dada por Fonseca44 Fonseca C. Lucro, cuidado e parentesco: traçando os limites do “tráfico” de crianças. Civitas Rev Cienc Soc. 2013; 13(2):269-91. doi: 10.15448/1984-7289.2013.2.15481.
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de que o universo adotivo é constituído por uma enorme desigualdade social e econômica entre pais adotivos e famílias doadoras, sendo os primeiros mais ricos do que as segundas, podemos assumir que a entrega voluntária acentuaria esse estado de coisas? Uma vez que as famílias doadoras são em sua maioria de populações pobres, pode-se supor que a situação de vulnerabilidade social tenha sido acentuada em razão da Covid-19? Por fim, considerando que a pandemia do coronavírus assolou o mundo e, especialmente, o Brasil, promovendo uma catástrofe humanitária, de que forma esse estado de coisas impactou as decisões sobre a entrega legal na comarca do Rio de Janeiro?

Para tanto, buscamos analisar a gestão da vida de mulheres e/ou casais em âmbito da Justiça da Infância e da Juventude quando decidem não permanecer com a prole. Com base nessas ponderações, a proposta é apreender, a partir de suas narrativas, em que medida esse contexto impactou suas decisões sobre o encaminhamento das crianças à adoção. Esse será o tema abordado nesse artigo.

Metodologia

Com o intuito de chegar aos motivos que levam pessoas e casais à entrega voluntária, escolhemos a comarca do Rio de Janeiro como lócus privilegiado. O caminho metodológico foi a análise documental sobre ações de destituição de poder familiar e extinção de poder familiar que tramitaram, a partir da promulgação da Lei n. 13.509/17, com atenção especial ao contexto pandêmico. Uma vez que os processos coletados tramitaram em diferentes contextos da Covid-19, há trechos dos autos produzidos em cenário de teletrabalho, outros confeccionados em regime híbrido e presencial(k (k) As Resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) n. 314 e n. 318 de 2020 são prorrogações da resolução n. 313, que “estabelece, no âmbito do Poder Judiciário, regime de Plantão Extraordinário, para uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários, com o objetivo de prevenir o contágio pelo novo Coronavírus – Covid-19, e garantir o acesso à justiça neste período emergencial”. ).

A partir de reflexões propostas por Ferreira e Lowenkron55 Ferreira L, Lowenkron L. Etnografia de documentos: pesquisas antropológicas entre papéis, carimbos e burocracias. Rio de Janeiro: E-Papers; 2020., a coleta e análise dos dados foi realizada levando em conta que a produção, a escrita e a circulação dos autos são tecnologias de fabricação das realidades. Assim, o levantamento de dados foi pautado no entendimento de que os diversos registros sobre os motivos da entrega são produzidos em âmbito da gestão burocrática da Justiça da Infância e da Juventude.

À luz de Muzzopappa e Villalta66 Muzzopappa E, Villalta C. Los Documentos como campo. Reflexiones teórico-metodológicas sobre un enfoque etnográfico de archivos y documentos estatales. Rev Colomb Antropología. 2011; 47(1):13-42., é possível analisar os autos processuais como peças resultantes do fluxo da burocracia das práticas da Justiça da Infância e da Juventude, produzidas por diversos atores. Nas ações de destituição de poder familiar, assim como nas extinções de poder familiar, há múltiplas vozes concorrentes na produção de um discurso de verdade77 Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes; 2001. sobre os motivos que ensejaram a entrega. Mulheres, casais, membros do conselho tutelar, promotores de Justiça, defensores públicos, juízes da Infância e da Juventude, psicólogos e assistentes sociais que atuam nas VIJI e/ou em instituições de acolhimento e/ou em maternidades produzem apreciações sobre os motivos.

Levando em conta que essa pesquisa versa sobre as formas de governo da Infância e Juventude em âmbito de esferas do Estado, ponderamos que analisar práticas estatais é considerá-las como resultado das ações dos atores que as constroem. Com base nisso, o percurso trilhado é o de apreender, com base em Fassin88 Fassin D. Another politics of life is possible. Theor Cult Soc. 2009; 26(5):44-60. doi: 10.1177/0263276409106349.
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, as economias de valores morais envolvidas nas produções de motivos sobre as entregas voluntárias.

Algumas citações diretas apresentadas no texto sofreram modificações a fim de ocultar/diminuir certas informações pessoais dos envolvidos para mantermos o sigilo dos casos sem comprometer sua veracidade.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, Plataforma Brasil (CAAE: 58380022.5.0000.5582 – Parecer n. 5.485.159/23 de junho de 2022) e obtivemos a anuência de duas varas da comarca do Rio de Janeiro.

Recusa, impossibilidade e violações de gêneros

Seguindo nossas preocupações com os motivos atribuídos à entrega99 Rinaldi AA, Escuri G, Vicente ALC, Rocha JN. O fazer da “entrega voluntária”: moralidades, acusações e biopolítica sobre corpos que gestam. Antropolítica. 2023; 55(2):e56464. doi: 10.22409/antropolitica.i.a56464.
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, utilizamos partes dos autos que se apresentaram como mais relevantes. Trabalhamos de forma desigual com o material e, ao produzir a análise final, não fizemos uso de todos os trechos, nem de todos os relatórios, tampouco de todas as manifestações dos integrantes do Sistema de Justiça (Poder Judiciário, MP e Defensoria Pública) e dos membros da rede protetiva. Fizemos o recorte demonstrativo em termos de relevância das peças processuais.

Levantamos dez autos que tratam de entregas voluntárias. Como estes tramitam em segredo de justiça, mantemos em sigilo as varas nas quais se desenrolam, assim como nomes e datas que caracterizariam os envolvidos. No período correspondente à escrita deste texto, tínhamos acesso a dez autos, mas, ao longo da incursão em campo, obtivemos acesso a mais sete documentos. Importa considerar que, com esse número, não vislumbramos uma amostra quantitativa representativa de um universo total. Trata-se de um levantamento qualitativo, tecido em pesquisa de campo nas VIJI, na comarca do Rio de Janeiro.

No que tange ao corte temporal, a proposta era ter a promulgação da Lei n. 13.509/17 como delimitadora. Por outro lado, no campo, encontramos tabelas elaboradas pelas equipes técnicas das varas pesquisadas tendo como chave classificatória a expressão “entrega voluntária” e como limite temporal o período pandêmico (pós-2020), quando os processos começaram a ser digitais(l (l) Resoluções CNJ n. 314 e 318 de 2020. ). Uma vez que o projeto objetivava refletir também sobre o contexto pandêmico, a classificação produzida pelos interlocutores auxiliou sobremaneira a nossa coleta.

Sobre os processos analisados, entre os dez autos, nove versam sobre decisões manifestadas por mulheres nos hospitais-maternidade, imediatamente após o nascimento do bebê. Apenas um trata de uma entrega direta feita por uma gestante a um casal que conheceu através de redes sociais. Entre esses nove, outros dois foram transformados processualmente em “abandono”, originando ações de destituição do poder familiar. Isso porque, após informar sobre a renúncia do recém-nascido, as puérperas deixaram o hospital. De acordo com os autos, como as parturientes “evadiram” do hospital, apesar de terem manifestado sua vontade à equipe técnica, não o fizeram “em juízo” (na presença da magistratura, da Promotoria da Infância e da Defensoria Pública), sendo, por isso, tal ato considerado “abandono”.

Entre os dez documentos, oito versam sobre mulheres sem parceiro(a)s, algumas delas vítimas de violência sexual e de “abandono conjugal”. Desse universo de dados, encontramos uma predominância de pessoas pobres, que, em sua maioria, não fizeram acompanhamento pré-natal, moradoras de regiões periféricas e sendo algumas são adictas. A maioria possui filhos de relações anteriores, sem rede de apoio e vivem em situação de extrema vulnerabilidade, agravadas em contexto pandêmico. De todo modo, seus casos comportam certas particularidades, as quais exploraremos.

Apenas dois documentos envolvem casais, tendo estes o mesmo perfil socioeconômico das mulheres sozinhas. Um deles diz respeito a uma entrega decidida pelo casal. O outro tratou da decisão, ocorrida no pós-parto, de uma “mulher abandonada” pelo parceiro no período gestacional. Após o nascimento e acolhimento da criança, reataram a relação afetiva. Uma vez que, na maternidade, o casal havia informado ao setor de Psicologia e Serviço Social que não iria permanecer com o recém-nascido, este fora encaminhado a uma instituição de acolhimento, ajuizando-se uma ação de destituição de poder familiar. Em razão desses trâmites, o casal precisou, por meio da Defensoria Pública, requerer a reintegração do poder familiar.

Quanto à identidade étnico-racial, não há informações sobre quem decide encaminhar crianças à adoção. Há descrições sobre os bebês, que, em sua maioria, são designados como “pardos”. Supomos que tal escolha de registrar informações étnico-raciais dos infantes se deva ao fato de que esses dados interessam à gestão da Infância e da Juventude que se ocupa da alimentação de informações pertinentes aos disponíveis à adoção no Sistema Nacional de Adoção(m (m) Segundo o Art ١º da Resolução n. 289, de 14 de agosto de 2019, do CNJ, trata-se de um instrumento cuja “finalidade é consolidar dados fornecidos pelos Tribunais de Justiça referentes ao acolhimento institucional e familiar, à adoção, incluindo as intuitu personae, e a outras modalidades de colocação em família substituta, bem como sobre pretendentes nacionais e estrangeiros habilitados à adoção”. ). Acreditamos, ainda, que esse olhar seletivo/classificatório seja consequência de práticas de Justiça1010 Schuch P. Práticas da justiça: uma etnografia do “campo de atenção do adolescente infrator” no Rio Grande do Sul depois do Estatuto da Criança e do Adolescente [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2005. organizadas por uma sensibilidade que aposta nas adoções em detrimento da reintegração familiar.

No que toca à análise, procuramos observar quais eram as ordens explicativas acionadas sobre a decisão. Alguns documentos contêm depoimentos de mulheres e/ou casal, com destaque às suas falas, em uma voz ativa sobre o fato, narrando sua posição sobre o evento. Já em outros documentos, a voz dos envolvidos é sobrelevada e as razões sobre as entregas são construídas de forma indireta, por meio de relatórios técnicos psicossociais e por peças escritas por promotores de justiça, juízes, defensores, conselheiros tutelares, etc.

Ainda sobre nossa forma de compreensão e análise das razões das entregas e suas relações com o contexto pandêmico, ao discuti-las, notamos que, de um conjunto múltiplo de causas, algumas eram ressaltadas. Assim, construímos três eixos de análise: (1) a impossibilidade do cuidado; (2) a recusa da maternidade, a resignação e a indiferença; e (3) a violência institucional. Apesar de termos feito essa classificação, é importante levar em conta que, em um mesmo auto processual, uma entrega voluntária comporta distintas razões concorrentes.

Os efeitos da pandemia na impossibilidade do cuidado

Dispomos na categoria “A impossibilidade do cuidado” os autos que envolvem tanto mulheres sozinhas quanto casais. Nesses documentos, as construções de motivos são organizadas em torno da impossibilidade financeira de cuidar de uma criança ou de mais um filho; das dificuldades impostas pela escassez de emprego no país; e das consequências econômicas e dos efeitos da pandemia nas vidas de parte da população brasileira.

As ações que visaram ao controle pandêmico pautaram-se no distanciamento social, embasados em um modelo hegemônico de casa, higiene, família, maternidade, trabalho, etc. Desconsideravam, assim, pessoas em situação não-hegemônica. Ademais, centradas no isolamento, não levaram em conta que o espaço doméstico comporta ambiguidades. Nos termos de Eugênia Motta, houve uma falha ao não ser considerado que a casa congrega “[...] cuidado e violência, afeto e dinheiro, liberdade e aprisionamento, intimidade e vida pública [...]”1111 Motta E. Ambiguidades domésticas e a pandemia [Internet]. Dilemas. 2020 [citado 25 Fev 2023]. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-19
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(p. 1).

Nesse contexto, fomos assujeitados às políticas de saúde que desconsideraram as singularidades sociais. Estivemos sob a égide de políticas de Estado negacionistas quanto às pesquisas científicas sobre a Covid-19, desencorajando o uso de máscaras, assim como as medidas de distanciamento social. Tais ações contribuíram para o aprofundamento de desigualdades e das vulnerabilidades decorrentes do empobrecimento e adoecimento da população.

Pontuamos que a impossibilidade de cuidar de um filho, ensejando uma entrega voluntária, pode ser consequência desse cenário atravessado pela pandemia e por sua gestão em solo nacional, que acirrou vulnerabilidades econômicas e sociais. Em contexto de pandemia, a população brasileira viveu e vive experiências e efeitos associados à Covid-19 muito diferenciados em razão dos pertencimentos de gênero, de raça, de território e de classe social. Os danos ocasionados afetaram não apenas a saúde coletiva, mas também a possibilidade de trabalho, de constituição de família e de exercício de parentalidade. Ponderamos que possa existir um elo entre entrega legal e a pandemia.

Com o intuito de adensar a reflexão, trazemos parte dos autos processuais que envolvem o casal Elizabete e Januário. Os dois são pais de outra criança. Ao tomarem ciência da nova gestação, informaram que amadurecem juntos a decisão sobre o encaminhamento do bebê à Justiça da Infância e da Juventude. O casal é morador de favela. Ela é diarista, mas encontrava-se desempregada; ele, sem vínculo empregatício, trabalhava como faxineiro de prédio em uma região de classe média. Ambos souberam da gravidez tardiamente, ao final de 2021, de acordo com o relatório psicossocial produzido pelos técnicos da Vara da Infância e Juventude. Após o nascimento do infante, ainda na maternidade, optaram pela entrega voluntária. Segundo relatório da equipe técnica do hospital, contido no processo de extinção de poder familiar:

[...] Genitora demonstrou muita tristeza e resistência em dialogar sobre os motivos que a levaram a decidir por não ficar com o bebê. E após sensibilização em atendimento social, aceitou conversar com um profissional da Saúde Mental [psicólogo] [...].

É possível apreender no trecho citado que há, por parte da equipe técnica da maternidade, a expectativa de que Elizabete se arrependa, “expresse sua dor” e/ou queira “ter contato com o bebê”. Com base em uma chave interpretativa das emoções como pensamentos incorporados1212 Rosaldo MZ. Toward an anthropology of self and feeling. In: Rosaldo MZ, Shweder RA, LeVine RA, organizadores. Culture theory: essays on mind, self, and emotion. Cambridge: Cambridge University Press; 1984. p. 137-57., acreditamos que os membros da equipe técnica compreendem que Elizabete se recusa a “externar suas emoções”, fato visto como “manifestação de um sofrimento que precisa ser trabalhado”. É possível supor que assim o façam à luz de valores morais que consideram tal atitude desconforme a um ideal de feminilidade/cuidado e família/reprodução.

Januário também narra no fluxo processual os motivos que os levaram à renúncia. Segundo a versão dos autos, “a falta de trabalho, a ausência de programas de transferência de renda, a impossibilidade de sustento de mais um filho” são motivações para a decisão. Apesar de expressar a certeza sobre a impossibilidade de cuidado, Januário manifesta, perante os representantes do Estado, o medo de sofrer sanções legais por não ter condições de “criar o próprio filho”. Talvez isso se deva ao fato de que compartilha da ideia de que, nas práticas da Justiça da Infância e Juventude, populações vulneráveis podem ser responsabilizadas pela situação a que foram expostas.

Há outro processo envolvendo entrega voluntária e precarização da vida, potencialmente acirrada em consequência da pandemia de Covid-19. Trata-se dos autos sobre a escolha de Jurema, uma mulher pobre, moradora de região periférica e que, ao final de 2020, dá à luz a um bebê no chuveiro de sua casa, durante a madrugada. O recém-nascido foi fruto de um relacionamento fortuito que teve com um rapaz de quem não tem informações. Em paralelo, sua mãe faleceu e ela entrou em depressão. De acordo com o relatório da casa de acolhimento na qual a criança foi encaminhada pela comissária da Vara da Infância e Juventude:

Durante sua gestação ela [...] iniciou um quadro depressivo e lidando com o isolamento social, e sem autocuidado, desprovida de rede familiar, rede de apoio e meios de subsistência precária, motivo pelo qual expressa o desejo de entrega voluntária de seu bebê.

De acordo com Sousa et al.1313 Sousa GS, Gomes NMR, Alves TC, Pereira MO. Repercussão da Covid-19 para a saúde mental e risco de suicídio. In: Esperidião E, Saidel MGB, organizadores. Enfermagem em saúde mental e Covid-19. 2a ed. Brasília: Editora ABEn; 2020. p. 56-64. (Série Enfermagem e Pandemias, 4)., em razão das políticas de isolamento social e da acentuação das ideias neoliberais na gestão do Governo Federal, houve um agravamento dos transtornos mentais, associado ao consumo abusivo de álcool e drogas. Somado a isso, em 2020, ano que Jurema decidiu entregar o bebê, a pobreza no Brasil se expandia e havia uma grande incerteza quanto à continuidade dos programas de transferência de renda, consequência da interação majoritária de dois fatores: efeitos da pandemia nos setores econômicos e sociais e modo de gestão e organização político-econômica do governo brasileiro na época.

Levando em conta que os efeitos da pandemia são não só biomédicos, mas também sociais, culturais, econômicos e psíquicos, é possível aventar a hipótese de que o estado emocional de Jurema tenha sido afetado por esse cenário, ensejando a decisão pela entrega, somado ao fato de que não possuía rede de apoio, de que perdera a mãe e o benefício social a que tinha direito, além de “não querer mais um filho, pois já possui outros”. À luz de sua decisão, a equipe técnica da Vara da Infância e Juventude produziu peça dirigida ao juízo indicando que a criança fosse encaminhada à família substituta, propondo uma ação de destituição de poder familiar.

Um corpo que gesta: a recusa, a resignação e a indiferença

Desde os anos 1950, as relações entre os gêneros em âmbito do parentesco e de família vêm se transformando em contexto contemporâneo, impactando o exercício maternal1414 Charton L, Lemieux D, Ouellette FR. Lé désir d’enfant explores à travers les pratique de nomination. Antropol Soc. 2017; 41(2):157-73. doi: 10.7202/1042319ar.
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. Apesar das transformações, estas não são vividas em contextos diferenciados da mesma maneira. As experiências sociais das pessoas são marcadas pela raça, classe e território e esses marcadores organizam sentidos distintos sobre o que é desejar ser mãe e/ou sobre a possibilidade ou impossibilidade de recusar a maternidade.

Levando isso em conta, importa refletir sobre o contexto pesquisado. Os documentos referem, sobretudo, à gestão da vida de mulheres periféricas, moradoras de subúrbios e favelas, que engravidam por falta de acesso aos serviços de saúde e às políticas de contracepção. A maioria não possui parceiro e conduz a gestação sem rede de apoio.

Seguindo as trilhas abertas pelas reflexões de Fernandes1515 Fernandes C. Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2017., a ideia de maternidade como resultado de uma escolha e/ou de um projeto parental torna-se distante das pessoas arroladas nos processos. Apesar disso, há, entre os documentos pesquisados, mulheres que optam, sob densos cálculos, por não ser mãe. A título de exemplo, temos a ação de destituição de poder familiar, em andamento, proposta pelo MP em face de Maria, em situação de rua e adicta, que deu à luz em um hospital-maternidade, em 2021. Naquele momento, manifestou interesse em “entregar a criança em adoção”. Talvez por considerar que o ato de informar aos técnicos do serviço social do hospital que não queria a criança seria o suficiente, Maria deixou o recém-nascido na maternidade.

Segundo os autos, “evadiu, abandonando a criança”. Como saiu da unidade de saúde sem declarar a anuência da entrega voluntária, seu ato foi considerado “abandono”. Em consequência, o MP ajuizou ação de destituição de poder familiar. Segundo essa peça processual:

A Requerida é genitora da recém-nascida em epígrafe, não registrada pelo pai, institucionalizada desde [...] 2021. [...] Conforme indicam os documentos acostados a esta, a Ré manifestou “a vontade de não ficar com a filha e abandonou a [nome da recém-nascida]” ainda na maternidade, motivo pelo qual, após receber alta hospitalar, a criança foi encaminhada para o referido abrigo, “onde se encontra até o momento em estado de total abandono”.

De forma comparável, é possível citar o processo de extinção do poder familiar ajuizado em 2021 em face de Jundiara, “genitora de um recém-nascido”. O bebê nasceu ao final de 2020 e ela, ainda no hospital, manifestou o interesse pela“entrega. Um dia após o nascimento, a criança foi encaminhada à instituição de acolhimento. De acordo com o relatório social da casa de acolhimento:

A genitora da criança, a Sra. Jundiara, havia manifestado “o desejo de entregar o filho” em adoção, sendo assim necessária a aplicação da medida de acolhimento institucional. Além disso, é importante dizer que, segundo relato da maternidade, “a avó materna da criança estaria ciente de sua decisão e sem desejo de interferir na decisão da filha”. Segundo o mesmo relatório, a Sra. Jundiara não deu informações sobre o genitor do bebê. “Desde o momento do acolhimento institucional da criança, não houve nenhum contato da genitora, nem da família extensa”.

O acolhimento foi mantido por decisão judicial e Jundiara foi intimada a depor em juízo para confirmar sua decisão. Após ser citada por e-mail, responde que não compreende a razão da intimação, assim como “o motivo da audiência”, posto já ter manifestado que não desejava ficar com a criança. Sem compreender que seu desejo só pode ser selado “sob os constrangimentos de Estado”1616 Efrem Filho R, Mello BM. A renúncia da mãe: sobre gênero, violência e práticas de Estado. Horiz Antropol. 2021; 27(61):323-49. doi: 10.1590/S0104-71832021000300011.
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(p. 332), é obrigada a novamente informar o que já havia dito: não quer ser mãe!

Os dados apresentados não permitem saber ao certo o porquê dessas entregas. Essas escolhas decorrem do fato de que ser mãe é algo indiferente e distante das realidades vividas? Suas entregas são manifestações de resignação frente à impossibilidade do exercício parental, em razão da extrema vulnerabilidade social? A despeito de não ser possível acessar essas repostas, podemos entender que são decisões/escolhas/cálculos densos. Ademais, configuram-se como problematizações de convenções de gênero suportadas na ideia de que existe um vínculo inextricável entre mulher, instinto materno e cuidado1616 Efrem Filho R, Mello BM. A renúncia da mãe: sobre gênero, violência e práticas de Estado. Horiz Antropol. 2021; 27(61):323-49. doi: 10.1590/S0104-71832021000300011.
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.

A renúncia da maternidade em meio a violações institucionais

Incluímos nesse eixo as ações que tratam da renúncia do exercício materno como resultado da ausência de creches, de escola, da falta de suportes ou de redes de apoio às mulheres, acentuadas em contexto de pandemia. Apesar de esses documentos poderem estar dispostos no eixo “impossibilidade de cuidado” anteriormente descrito, a escolha de situá-los nessa categoria de análise se deve ao entendimento de que a ausência, a escassez ou a desativação de serviços dessa ordem são formas de violências institucionalizadas nas práticas do Estado1717 Das V, Poole D. El Estado y sus margenes: etnografías comparadas. Cuad Antropol Soc. 2008; 27:19-52..

Consideramos essas formas de gestão como ações seletivas que afetam diferencialmente os gêneros, as classes e as raças/etnias, acentuando os infortúnios vividos cotidianamente. Além disso, refletem uma política liberal, segundo Fonseca e Cardarello1818 Fonseca C, Cardarello A. Direitos dos mais e menos humanos. Horiz Antropol. 1999; 5(10):83-121. doi: 10.1590/S0104-71831999000100005.
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, que tende a responsabilizar as famílias pobres por suas mazelas. A etnografia de Camila Fernandes1515 Fernandes C. Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2017., por exemplo, encontrou a acusação de que a falta de vagas em creches é culpa das mulheres que “fazem filhos demais”.

Com o propósito de abordar o eixo da violência institucional, trazemos partes da ação de destituição de poder familiar proposta em face de Aparecida. Em 2020, após dar à luz em um hospital localizado em bairro da região metropolitana, optou por entregar o recém-nascido ao Poder Judiciário. De acordo com relatório social e psicológico produzido pela equipe da maternidade, tem-se:

Realizamos abordagem à genitora que nos relatou o desejo de entregar [nome do recém-nascido] para adoção; mas preferiu manter [nome do recém-nascido] junto a ela durante toda a internação. Amamentou e o chamou de [...]; o chamava de “meu filho”. [...] Informou que soube da gestação com quatro meses, após falecimento do genitor de [nome do recém-nascido], e iniciou o pré-natal, não dando continuidade [...].

Após ter alta do hospital, o bebê foi encaminhado a uma instituição de acolhimento, sob os cuidados do comissariado da Vara da Infância e da Juventude. Posteriormente, Aparecida requereu a guarda da criança, porém, ressaltando sua impossibilidade financeira de cuidar de mais uma criança.

Todo esse quadro ocorreu em 2020, quando aumentavam as medidas restritivas de distanciamento social e de isolamento no país. As visitas presenciais às casas de acolhimento estavam suspensas. Mesmo assim, Aparecida compareceu à unidade de atendimento, 14 dias após o nascimento da criança, solicitando vê-la. Naquele momento, realizou uma entrevista com a equipe técnica “chorando e expressando o desejo de ficar com o seu filho, assim como arrependimento por ter feito a opção da entrega voluntária”.

No mês consecutivo, Aparecida compareceu à casa de acolhimento, informando não ter “definido sua situação financeira”. Agendou uma nova visita, mas não compareceu. Após poucos meses de acolhimento, em trabalho conjunto, as equipes técnicas da casa de acolhimento e da Vara da Infância e da Juventude informaram que “a genitora não cumpriu as metas previstas durante o período que solicitou e se afastou da criança”. Assim, foi sugerido ao juízo que o caso prosseguisse, sendo o bebê encaminhado à adoção.

De forma um pouco distinta de Aparecida, que tem sua experiência de vida afetada pela brutalidade do Estado1919 Das V. Encarando a Covid-19: meu lugar sem esperança ou desespero [Internet]. Dilemas. 2020 [citado 25 Fev 2023]. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-26
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, Marcelina tem seu corpo marcado pela gramática da violência de gênero. Ela foi duas vezes estuprada pelo mesmo homem e engravidou nas duas ocasiões. Assim, a violação é uma norma inscrita em sua história de vida.

Em 2022, Marcelina, 23 anos, moradora de uma favela, deu entrada em um hospital. Após dar à luz, informou à equipe do serviço social que “entregaria o bebê em adoção”. O recém-nascido foi acolhido em família cadastrada pelo Programa Família Acolhedora e Marcelina foi escutada de forma remota por psicólogas e assistentes. De acordo com relatório de assistência social do Centro de Atendimento Social:

Revelou que a gestação foi fruto de violência sexual, assim como aconteceu em sua primeira gestação, com o nascimento de [nome da criança]. Durante a entrevista Marcelina se emocionou, chegando a chorar, quando se referiu aos dois estupros sofridos. Mas, não nos pareceu haver sofrimento pelo fato de não assumir a maternidade dos seus dois filhos [...].

Diversamente de alguns autos abordados, Marcelina possui uma voz ativa, vociferando a recusa dessa maternidade. Compreendemos sua escolha como um ato de resistência que demarca sua experiência de vida. Uma vez que não teve acesso ao aborto legal, provavelmente por ter descoberto a gravidez tardiamente, cuidou de garantir a sua vontade: não transformar aquela potencial maternidade em testemunho de uma violência de gênero2020 Das V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cad Pagu. 2011; (37):9-41. doi: 10.1590/S0104-83332011000200002.
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.

Por fim, trazemos o processo que envolve Marli, Edmilson e o bebê que tiveram juntos. Em 2021, a moradora de uma favela carioca, desempregada, residindo sozinha, sem família na cidade, dá à luz a um bebê. De acordo com uma primeira versão contada na maternidade, havia sido “vítima de estupro e por essa razão não queria ficar com a criança, que lhe lembrava a violência sofrida”. Não fez pré-natal e soube que estava grávida ao final da gestação. Após o nascimento, o recém-nascido foi encaminhado à instituição de acolhimento. Não havia nenhum familiar que pudesse ficar com o bebê. Em ato consecutivo, foi marcada audiência virtual para que, em juízo, confirmasse sua decisão.

Marli altera sua versão inicial. Segundo disse, ela e Edmilson tiveram um relacionamento durante um ano. “Ao saber da gravidez, o rapaz não a procurou mais’”. No segundo contato realizado com os técnicos da Vara da Infância e da Juventude, “informou que o pai de sua filha apareceu e que se disponibilizou a ajudá-la nos cuidados com a criança”. Segundo os autos, foi solicitada nova audiência com a presença dos dois. Naquele rito, ela “desiste” da entrega. Por meio da Defensoria Pública, Marli e seu parceiro ajuízam ação de “reintegração de poder familiar”.

Com inspiração em Fonseca2121 Fonseca C. Mães “abandonantes”: fragmentos de uma história silenciada. Rev Estud Fem. 2012; 20(1):13-32. doi: 10.1590/S0104-026X2012000100002.
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, é importante lembrar que, no cenário nacional, a moralidade sexual repressiva e a instabilidade financeira, geográfica e conjugal podem ser motivos que levam à entrega legal de uma criança. Podemos supor que questões análogas incidiram originalmente na escolha de Marli, sujeita às políticas da vida(n (n) De acordo com Fassin, a política da vida é “também uma questão sobre a maneira concreta nas quais indivíduos e grupos são tratados, sob quais princípios e em nome de quais morais, implicando nas desigualdades e não reconhecimentos” (p. 57)8. ) que reiteravam suas precariedades. Sem creche, sem emprego, sem parceiro, sem serviço de atenção à saúde, sem acesso aos programas sociais e em situação de extrema pobreza, tornou-se uma pessoa sem “poder de decisão” sobre sua vida, dependendo de Edmilson para desejar ou não constituir família.

Considerações finais

Do ponto de vista da relevância, dos efeitos e das limitações da análise esboçada neste texto, é importante ressaltar que realizamos uma pesquisa documental, cujo foco foi um pequeno número de documentos que tramitaram nas comarcas do Rio de Janeiro. Apesar de versar sobre uma população restrita, sua esfera de alcance é vasta, posto possibilitar comparações posteriores em contextos nacionais.

Em termos analíticos e metodológicos, realizamos a pesquisa procurando observar nos autos processuais quais eram as ordens explicativas acionadas sobre a decisão. Ao discuti-las, notamos que, de um conjunto múltiplos de causas, algumas eram ressaltadas. Construímos, então, três eixos de análise: (1) a impossibilidade do cuidado; (2) a recusa da maternidade, a resignação e a indiferença; e (3) a violência institucional.

Do ponto de vista dos motivos que levam à entrega voluntária, foi possível notar que a impossibilidade de cuidar de um filho, ensejando o encaminhamento do infante à adoção via entrega voluntária, pode decorrer do contexto pandêmico que acirrou no país as vulnerabilidades econômicas e sociais. Como dito, nesse cenário, a população brasileira viveu e vive experiências e efeitos associados à Covid-19 em razão dos pertencimentos de gênero, de raça, de território e de classe social. Desse modo, esse fenômeno afetou não apenas a saúde, mas também a possibilidade do exercício parental.

No entanto, o material analisado nos leva a refletir que a pandemia não é um condicionante exclusivo. Há múltiplas causas entrelaçadas na entrega, tais como vulnerabilidades sociais preexistentes ao contexto pandêmico, violências institucionais, violações de gênero, bem como a ruptura com as gramáticas morais de gênero baseadas na associação entre feminilidade, o dito instinto materno e cuidado. Por fim, dar o filho em adoção é em uma decisão, independentemente se feita sozinha ou com parceiros, por vezes organizada por sofrimentos, raiva, cuidado, indiferença e/ou resignação.

  • (e)
    Utilizamos o termo “mulher” neste texto, uma vez que todos os documentos analisados se referem às pessoas cisgênero que foram identificadas documentalmente como “mulher”. Dessa forma, optamos por manter o uso da categoria, porém, cientes de possíveis deslizes. Importa apontar para a não reificação do termo e para esforços em não produzir invisibilização de outras pessoas que podem engravidar e dar à luz, podendo fazer parte do circuito que analisamos.
  • (f)
    Este texto resulta de uma pesquisa de maior abrangência, apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). que visa analisar, em cenário nacional atual, a adoção como parte de uma política para a infância e juventude.
  • (g)
    Ressaltamos que adolescentes não podem tomar essa decisão sem a autorização dos pais, de um tutor ou de um curador nomeado pelo juiz.
  • (h)
    De acordo com Rinaldi11 Rinaldi AA. Ações de destituição do poder familiar em processos de adoção no Rio de Janeiro: valores morais e práticas legais. Rev Soc Hum. 2020; 33(2):75-91. doi: 10.5902/2317175847247.
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    , a propositura de uma ação de destituição do poder familiar é de competência do MP, mas pode ser movida por um parente do infante ou do jovem quando se entender, segundo o art. 1637 do Código Civil de 2002, que um pai ou uma mãe “abusou de sua autoridade ou faltou com os deveres a eles inerentes”.
  • (i)
    Sobre o aborto legal no Brasil, ressaltamos que, apesar de densas, históricas e constantes ações de movimentos sociais (com diversas caracterizações) em prol de sua ampliação, a legislação em vigência – artigo 128 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, do Código Penal – permite-o em apenas em dois casos: gravidez decorrente de estupro e risco à vida da gestante. O aborto feito fora dessas situações é criminalizado e previsto no Código Penal Brasileiro, sancionado em 1940, e prevê que médicos e mulheres sejam punidos penalmente se o provocarem (artigos 124, 125 e 126 do Código Penal).
  • (j)
    Usamos essa expressão inspirados na discussão sobre oferta seletiva de métodos contraceptivos reversíveis de longa duração (LARC), feita por Elaine Brandão e Cristiane Cabral33 Brandão ER, Cabral CS. Vidas precárias: tecnologias de governo e modos de gestão da fecundidade de mulheres “vulneráveis”. Horiz Antropol. 2021; 27(61):47-84. doi: 10.1590/S0104-71832021000300002.
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    .
  • (k)
    As Resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) n. 314 e n. 318 de 2020 são prorrogações da resolução n. 313, que “estabelece, no âmbito do Poder Judiciário, regime de Plantão Extraordinário, para uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários, com o objetivo de prevenir o contágio pelo novo Coronavírus – Covid-19, e garantir o acesso à justiça neste período emergencial”.
  • (l)
    Resoluções CNJ n. 314 e 318 de 2020.
  • (m)
    Segundo o Art ١º da Resolução n. 289, de 14 de agosto de 2019, do CNJ, trata-se de um instrumento cuja “finalidade é consolidar dados fornecidos pelos Tribunais de Justiça referentes ao acolhimento institucional e familiar, à adoção, incluindo as intuitu personae, e a outras modalidades de colocação em família substituta, bem como sobre pretendentes nacionais e estrangeiros habilitados à adoção”.
  • (n)
    De acordo com Fassin, a política da vida é “também uma questão sobre a maneira concreta nas quais indivíduos e grupos são tratados, sob quais princípios e em nome de quais morais, implicando nas desigualdades e não reconhecimentos” (p. 57)88 Fassin D. Another politics of life is possible. Theor Cult Soc. 2009; 26(5):44-60. doi: 10.1177/0263276409106349.
    https://doi.org/10.1177/0263276409106349...
    .
  • Financiamento

    Pesquisa realizada com bolsa de produtividade do CNPQ PQ-2021, processo n. 306790/2021-1
  • Rinaldi AA, Vicente ALC, Escuri G, Rocha JN. Gestar, parir e não se tornar mãe: recusas, impossibilidades e violações no contexto da Covid-19. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230070 https://doi.org/10.1590/interface.230070

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Editado por

Editora
Rosamaria Giatti Carneiro
Editora associada
Johana Kunin

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2023
  • Aceito
    18 Out 2023
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