Open-access Tecnologias de informação e comunicação, saúde e vida metropolitana

Information and communication technologies, health and urban life

ENSAIO SOBRE COMUNICAÇÃO

Tecnologias de informação e comunicação, saúde e vida metropolitana(*)

Information and communication technologies, health and urban life

Ana Clara Torres Ribeiro

Professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional ( IPPUR), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Bolsista do CNPq.

RESUMO

A autora parte da idéia de que os avanços técnicos e a vida urbana comandam a modernização do território e a administração das relações sociais. Analisa as características do processo de urbanização no capitalismo periférico, marcado pela concentração demográfica sem o decorrente acesso à técnica. Discute de que modo esta reduzida incorporação da técnica e, mais exatamente, sua distribuição desigual, cria obstáculos para a humanização e enriquecimento cultural da vida metropolitana; discute, ainda, o impacto dessas transformações na vida social, tanto em nível da construção dos seres sociais, quanto na emergência de novas tendências e desafios para a área saúde.

Palavras-chave: tecnologias de informação; comunicação; saúde.

ABSTRACT

The author reports that technological advancements and urban life are responsible for "territory" modernization and for management of social relations. The author analyzes the characteristics of the urbanization process in capitalism in developing countries. This process is known for demographic concentration without access to technology. She discusses this reduced technological incorporation, and more precisely, its unequal distribution which impedes humanization and cultural enrichment of urban life. In addition, the author discusses the impact these transformations have on social life, both on the formation of citizens and on the emergence of new tendencies and challenges to public health

Key words: information technologies; communication; health

"Todos nós sabemos que estamos no mundo da informação. Tudo se sabe. Nada acontece que não tenha a sua publicação fulminante. É como se todos nós nascêssemos, amássemos e morrêssemos, ao ar livre, no centro da Avenida Rio Branco". Nelson Rodrigues – O Remador de Ben-Hur: confissões culturais, crônica de 19/6/71

Primeira apresentação: A humanização do meio técnico

A reflexão da problemática social instaurada pela expansão mundial do capitalismo encontra relevantes núcleos temáticos na observação da metrópole e da técnica. Estes núcleos constituem verdadeiras sínteses de mudanças históricas ocorridas, a partir do século XVIII, na distribuição espacial dos recursos e nas relações sociais de produção. Metrópole e técnica exprimem configurações da divisão social do trabalho, responsáveis por amplas mudanças na vida social, em formas de extração do excedente e na concretização do lucro. Hoje, nenhuma questão social pode ser plenamente apreendida sem a consideração dessas duas dimensões fundamentais da vida moderna, articuladas nas relações entre: Estado e sociedade, produção e reprodução, lugar e mundo.

Desta maneira, seria inútil tentar apreender conteúdos da vida urbana moderna sem o reconhecimento da presença da técnica na organização da materialidade e na gestão das relações sociais (Santos, 1994). Da mesma forma, torna-se inócuo refletir a técnica sem a simultânea apreensão do seu significado na construção da metrópole, isto é, dos centros de gestão da economia. Homem e meio, em sua expressão contemporânea, estão comprometidos pela experiência da vida agregada e densa e pelo crescente convívio com produtos e sistemas técnicos (Santos,1996; Giddens, 1989).

A vida em aglomerados urbanos e o convívio social com a técnica trazem novas exigências à compreensão de nossas perspectivas de futuro. Afinal, a saúde - como necessidade e ideário - tem sido permanentemente refeita a partir do avanço técnico e da vida urbana. Seriam exemplos: alterações na morbidade e na mortalidade, mudanças culturais na percepção de risco e segurança (Ribeiro, 1997), formatos assumidos pela transmissão da informação e do conhecimento (Pitta, 1995), formas de organização dos serviços de saúde e a incorporação da técnica no saber e na prática médica (Dutra, 1986).

Tanto a metrópole como a técnica são meios e mediações, além de experiências irreversíveis da humanidade. A compreensão da metrópole como mediação ocorre quando reconhecemos a sua natureza de epicentro da acumulação (Ribeiro, 1996). Trata-se da emergência histórica de um contexto que comanda a modernização do território e que permite a administração de relações sociais em escalas extendidas (Santos, 1993). A metrópole é, assim, meio de vida e meio de sucção da riqueza, através de complexas redes empresariais, financeiras e de comunicação.

Essas funções mediadoras, que internamente aos espaços metropolitanos se traduzem em transformações no ambiente construído e na organização diária da vida social, viabilizam-se pela difusão social e territorial da técnica - das primeiras formas terrestres de comunicação até os processos potencializados pela informática (Dias, 1995). Estas funções ultrapassam desígnios isolados dos agentes econômicos hegemônicos ou do Estado, expressando novos conteúdos da vida sócio-cultural e política. A sociedade urbaniza-se. Nas palavras de Milton Santos (1996:174): "Concretude e conteúdo em informação são, juntos, sinônimo de intencionalidade na sua concepção e a função a que se destina, essa extrema adaptação a uma ação planejada que torna possível sua exatidão e eficácia. E esta também depende do arranjo espacial em que o objeto se encontra" (grifo nosso).

Observamos, cada vez com maior clareza, a rápida ampliação dos vínculos entre vida metropolitana e técnica, ultrapassando os limites das grandes cidades em sua capacidade de influenciar comportamentos sociais. As denominadas novas tecnologias de informação e comunicação ampliaram, enormemente, esta capacidade. Convivemos com experiências de vida metropolitana desconectadas da materialidade imediata: lugar e não lugar constróem seres sociais enlaçados por novas formas de comunicação (Benko, 1993 ). A urbanidade e a cidade constituem duas histórias articuladas, porém diversas, da experiência moderna, como nos diz Milton Santos (1993).

Para a problemática da saúde, estas duas histórias também correspondem a questões distintas. De um lado, o enfrentamento das conseqüências sociais de condições urbanas de vida, marcadas por necessidades não satisfeitas de acesso a serviços e equipamentos e, de outro, um cenário nacional intensamente transformado, nas últimas décadas, por mudanças em modos de vida, formas de organização das atividades econômicas e hábitos.

A vida social na periferia do capitalismo, especialmente na América Latina em decorrência de seu elevado nível de urbanização, pode ser rapidamente descrita pelas carências urbanas, em que sucessivos processos de modernização da economia aconteceram de forma parcial ou incompleta. Assim, a vida urbano-metropolitana se fez pela distribuição socialmente seletiva da técnica, gerando o desgaste de seres humanos e o sobre-trabalho.

Os efeitos sociais perversos dessa experiência têm origem na subordinação, da sociedade brasileira, aos processos mundiais de expansão do capitalismo; subordinação que se expressa, internamente, em radicais desigualdades de classe. A vida urbana encontra-se submetida, desta maneira, a formas de alcance da modernidade técnica que escapam ao usufruto da maioria da população (Carneiro, 1997).

A concentração demográfica, desacompanhada do acesso à técnica, denuncia numerosos aspectos da segregação sócio-espacial que caracteriza a urbanização brasileira. Aspectos que podem ser verificados na geografia das redes de infra-estrutura e serviços, na precariedade da circulação urbana, na distribuição socialmente excludente de equipamentos, inclusive aqueles de apoio à comunicação.

Ao considerarmos os elos entre tecnologias de informação e comunicação, saúde e vida metropolitana, nos defrontamos com múltiplas manifestações da incongruente paisagem de nossas grandes cidades. A parcialidade e a incompletude, características da difusão da técnica na urbanização periférica, ampliam as distâncias entre classes e segmentos de classe. A permanente reprodução destas distâncias impede, por outro lado, que a técnica seja apropriada em benefício da sociedade.

A reduzida incorporação da técnica em projetos voltados à humanização da vida metropolitana transforma em bens escassos áreas e serviços urbanos tecnicamente atualizados. Esta escassez apoia o aumento exacerbado do seu valor econômico e do seu valor simbólico, isto é, como itens de status e de estilos de vida trabalhados pela indústria cultural. A democratização da técnica se constitui, portanto, num pleito que envolve direitos sociais fundamentais. A permanente reprodução da escassez impõe a crítica à privatização perversa de investimentos que poderiam permitir o enriquecimento cultural da vida metropolitana e a distribuição mais justa de oportunidades de acesso ao futuro (Egler, 1996).

As contradições entre avanço técnico e relações sociais de produção, analisadas para momentos anteriores do capitalismo, envolvem atualmente a totalidade da vida social. O ambiente social encontra-se comprometido pela desigual distribuição da técnica. Afinal, todas as formas de trabalho, e não apenas aquelas da esfera produtiva, têm sido atingidas por inovações tecnológicas que transformam as condições do seu exercício.

Torna-se indispensável, portanto, refletir a problemática da saúde através da observação do extraordinário contraste entre a vida possível e a que temos. Oportunidades de melhoria da vida coletiva têm sido retidas por formas de controle, reprodutoras da escassez, exercidas por corporações transnacionais (Dreifuss, 1996) e segmentos privilegiados da sociedade brasileira. Aliás, a articulação entre vida metropolitana e técnica espelha o seu comando por gestores da escala-mundo (Valladares e Coelho, 1995) e investidores externos que transportam mais técnica para a sociedade brasileira e o território (Ribeiro e Silva, 1997).

Precisamos reconhecer os agentes econômicos envolvidos nesses processos e interferir no cenário projetado para a metrópole: uma sociedade fragmentada, conformada por consumidores ansiosos por objetos técnicos - cuja utilidade é parcialmente explorada - e por formas alienadas de lazer, expressivas da infindável fetichização das relações sociais. Neste cenário, o cidadão encontra-se ausente - o ser social portador de direitos e deveres para com a sociedade (Santos, 1987).

Segunda apresentação: Comunicação – a construção de seres sociais

Consumimos a técnica desenvolvida para o exercício do poder, o que cria obstáculos à sua apropriação para a melhoria da vida coletiva. A grande presença da técnica no mundo contemporâneo corresponde, em geral, à racionalização das relações sociais, ou seja, à afirmação, nas palavras de Henri Léfebvre (1991), da sociedade burocrática de consumo dirigido. Nesta sociedade, o indivíduo parece ser portador de todas as possibilidades de controle autônomo de sua própria vida. Entretanto, esta imensa promessa de liberdade se reduz, em geral, ao sempre limitado consumo individual.

A privatização da saúde, ocorrida nas últimas décadas, dependeu da extensão da técnica na vida metropolitana, como demonstra o teor das novas linguagens aplicadas na propaganda e no marketing. Seria desnecessário dizer que a linguagem constrói os seres sociais e que, portanto, o aumento do seu conteúdo técnico penetra a vida social espontânea, atingindo o âmago da experiência coletiva.

A onipresença da linguagem imagética no mundo contemporâneo trouxe o corpo à superfície da percepção social, rompendo a anterior hegemonia do discurso (e, logo, da escrita, do saber e da doutrina). A hipertrofia do corpo, na sociedade burocrática de consumo dirigido, corresponde à emergência de novas percepções da saúde, cada vez mais codificadas na aparência de saúde e, pela estetização desta aparência, diretamente articulada à transformação da saúde em mercadoria.

O corpo considerado como totalidade, em associação com a figura quase religiosa do médico de família, pode ser hoje dividido em infinitas ações e serviços. Esta transformação acontece com base numa decupagem permanente da imagem do corpo, das necessidades e desejos. Esta fragmentação também corresponde à aguda especialização do saber. Nesta intensa mutação, o corpo torna-se objeto de observação cada vez mais atenta, detalhista e voraz. Assim, a mercantilização da saúde exprime o nível alcançado, na sociedade brasileira, pela instrumentalização do olhar: sobre si mesmo, os outros e o íntimo dos outros.

A nova gestão financeira da saúde refez formas de transmissão do conhecimento e a cultura compartilhada. As mediações entre interesses econômicos e cultura, propiciadas pelo denominado meio técnico-científico e informacional (Santos, 1994), viabilizam as formas mais relevantes de exercício do poder, articulando o micro e o macro, o íntimo e o público. Estas são mediações que nos obrigariam ao reconhecimento da administração como a principal instância de poder no mundo contemporâneo.

A vida cotidiana, associada às relações face a face, tem recebido os impactos de rupturas em âmbitos estruturados - estruturantes das relações sociais, como exemplificariam as relações pais-filhos, professor-aluno, médico-paciente. Seria um exemplo, a denúncia, realizada no programa Sem Censura da TV Educativa em 1997, da demissão de médicos mais experientes pelo convênio que atende o Banco do Brasil, já que estes não se adaptariam à velocidade - e, portanto, às margens de lucro - esperada nos novos tempos.

Assistimos a um amplo movimento de superficialização das relações sociais (Ribeiro, 1995). Diversos âmbitos da vida social encontram-se penetrados por saberes vulgarizados pela mídia e por redes de serviços que reforçam o anonimato. É impossível desconsiderar a relevância destas questões para a própria saúde pública, já que formas de exercício das profissões, deste campo, estão sendo alteradas. Novos significados da eficácia técnica referida ao corpo mudam expectativas com relação à qualidade dos serviços.

Uma esfinge ergue-se no horizonte das práticas sociais, a do ser humano perfeito, difundido pelos controladores dos denominados, por Milton Santos (1996), objetos perfeitos, expressivos da modernização econômica e cultural. O tempo do mundo penetra a periferia do capitalismo, como ainda nos diria este autor, rompendo contextos sociais, introduzindo inovações práticas e transformando o sistema de ação. A racionalização recodifica amplamente o fazer, recriando nos serviços o que era específico da produção: a eficácia em linha e a segmentação dos atos que perdem conteúdo cultural e simbólico em quase todos os âmbitos da vida social. Afinal, atos sem narrativa, sem camadas sedimentadas de trocas inter-subjetivas, são atos dessacralizados. A perda de valor simbólico, e logo econômico, das profissões encontra algumas de suas mais claras explicações nestes movimentos da última modernidade.

Na atualização da vida social, o anonimato e os coletivos instáveis tendem a penetrar âmbitos institucionalizados das relações sociais, ou seja, o acúmulo historicamente construído de comportamentos esperáveis. Algumas perdas radicais convivem, nestes processos, com oportunidades inesperadas de superação de mecanismos tradicionais de dominação social. As pressões pela desregulamentação são muito amplas, ultrapassando os limites do trabalho. É o próprio fazer diário da sociedade que está sendo desregulamentado e dessacralizado, e não apenas as relações capital - trabalho, como tantas vezes afirma o pensamento de teor economicista.

A crescente importância da imagem e da informação constitui a expressão mais visível de sistemas e enlaces técnicos que são indispensáveis às novas formas de organização da sociedade, à financeirização da economia e à transformação dos serviços em cunhas estrategicamente inscritas nos circuitos hegemônicos da riqueza. Na organização moderna dos serviços, o dado substitui a narrativa, a imagem substitui e/ou recodifica o discurso. Assim, fronteiras que isolavam as esferas pública e privada da vida coletiva foram atravessadas por gestores, mediadores e articuladores.

Este tem sido o lugar ocupado pelas práticas de terceirização dos serviços e pelo capital financeiro. Lugar também disputado pelos novos movimentos sociais – inclusive aqueles que tratam da problemática da saúde – surgidos da mudança cultural e da superação de antigas formas de dominação (Offe, 1996). No que concerne aos serviços de saúde, pode ser feita referência aos elos técnico-financeiros de um mercado de trabalho que coletiviza o profissional liberal. Trata-se da conformação de um curioso coletivo, constituído por vínculos organizacionais por vezes vividos, exclusivamente, no âmbito privado dos consultórios. Por outro lado, trata-se de um mercado consumidor pago a prestações, formado por usuários que antes adquiriam existência coletiva apenas ao nível das políticas públicas.

Estes coletivos de profissionais e usuários vêm ganhando lentamente forma e voz, mesmo que ainda dispersas no protesto individual, nas reivindicações pontuais por salário e nos pleitos realizados através dos órgãos de defesa do consumidor. Estes processos, ainda incipientes face à dimensão da problemática social, constituem a expressão do afastamento mantido entre vida real e vida possível. A nova problemática social inclui o fato de que a gestão dos serviços permitida pela técnica tem penetrado as relações capital - trabalho, condicionando crescentemente o salário e as formas improdutivas de consumo.

De fato, novos formatos empresariais destróem, rapidamente, o significado político da histórica figura do médico de fábrica. As organizações sindicais têm que lidar, cada vez mais, com mecanismos de gestão modificadores da composição do salário, na medida em que salários indiretos, administrados por terceiros e através do sistema financeiro, transformam conteúdos do contrato de trabalho. As formas assumidas pela privatização da saúde têm mudado as regras do jogo em contextos antes até um certo ponto organizados, apenas, em torno das relações patrão e empregado e pela intervenção do Estado.

Terceira apresentação: Espaço e vida urbana, a apropriação social da técnica

A sociedade da informação nos tem sido apresentada como superação da sociedade industrial e da concentração metropolitana. Neste sentido, as imagens mais difundidas do futuro apontam para o esgotamento das modalidade conhecidas de emprego sendo afirmado o término da sociedade do trabalho. Entretanto, o que constatamos, pela própria velocidade da mudança em curso, é a impossibilidade de qualquer visão modelar e sintética de futuro.

Na época das incertezas, as configurações sociais ainda estão sendo transformadas, resistindo a conceitos formulados para momentos históricos anteriores. Entretanto, convém recordar que análises das metrópoles capitalistas, realizadas nos anos 60-70, apontaram para a necessidade de inclusão do espaço e do consumo entre as condições gerais da produção, valorizando papéis assumidos pelo Estado na gestão de equipamentos e serviços.

A própria cidade seria, para alguns, expressão material das condições gerais da acumulação capitalista (por exemplo, Lojkine, 1981) . Apenas recentemente, porém, ficou mais clara a relevância da gestão, propiciada pela metrópole, para a fase contemporânea do capitalismo, associada à centralidade dos serviços na realização do lucro. A disputa por novas funções metropolitanas, analisadas através da noção de cidade mundial, indica a escala alcançada pela cooperação capitalista e por fluxos financeiros administrados por meio das redes técnicas de comunicação e informação (Castells, 1995).

A difusão do meio técnico-científico e informacional tornou possível o exercício de funções mundiais por algumas metrópoles de países periféricos. Desta maneira, não apenas a técnica é difundida, mas também a gestão, os métodos e os procedimentos. Orientações administrativas e comportamentais adquirem, rapidamente, a forma de mercadoria. Podemos dizer que, cada vez mais, vende-se metodologia, público, clientela, informação, imagens e desejos. Consultores, equipamentos, médicos e pacientes são mercantilizados num único universo da gestão orientada pela sociabilidade do capital.

Os espaços metropolitanos, pela heterogeneidade social que condensam, são contextos privilegiados da experimentação e do lastreamento das formas contemporâneas de acumulação. Comando e serviços, gestão e consumo constituem algumas chaves-mestras para a identificação dos principais interesses envolvidos na determinação da qualidade da vida urbana no país. Se antes já era impossível compreender as formas concretas de realização da economia sem levar em conta os papéis exercidos pelas metrópoles, na atual conjuntura torna-se urgente a análise dos vínculos entre acumulação urbana, mudanças comportamentais e reconfiguração do trabalho.

As formas de privatização dos investimentos públicos têm alargado o seu campo de influência, como demonstra o imbricamento das redes pública e privada de saúde na efetiva realização do SUS. Por outro lado, os códigos da administração privada - na forma de assessorias, consultorias, treinamentos e metas - penetram rapidamente os serviços públicos, sem permitir a descoberta de caminhos para a articulação da eficácia a princípios éticos e práticas democráticas.

Qual é o cenário que se avizinha? De um lado, temos um agir privado que transforma suas formas de atuação e que expande suas fronteiras e, de outro, um agir público que se enlaça no agir privado e que não pode apresentar, sem perda de legitimidade, a plasticidade e a agilidade do mercado. Nesta conjuntura, a direção a seguir por aqueles que defendem a democratização do acesso à saúde parece passar, simultaneamente, pela incorporação da técnica na flexibilização democrática do serviço público e pelo enrijecimento das formas de controle social sobre a dinâmica dos interesses privados.

Entretanto, os coletivos oriundos da nova gestão da saúde ainda permanecem, em grande parte, sem uma consistente construção político-ideológica. Hoje, sem dúvida, a consciência social encontra-se articulada à linguagem da grande comunicação e do marketing. Quais serão as conseqüências desta germinação de ideários no âmago dos instáveis coletivos construídos pela nova gestão dos serviços? Torna-se indispensável investigar os valores (de saúde e doença) instaurados na sociedade a partir da extensão, nos anos 70, das redes técnico-financeiras e administrativas de amplo alcance. Porém, o reconhecimento, pelo Estado e pelas organizações da sociedade civil, de necessidades coletivas articuladas à última modernidade acontece de forma lenta e difícil, como demonstrou o recente debate em torno dos Planos de Saúde.

Façamos, agora, uma rápida recuperação de tendências observadas nas últimas décadas: a) a privatização da saúde adquiriu um novo perfil, diretamente associado à comunicação e à financeirização da economia; b) surgiram coletivos com origem na alteração do exercício profissional na saúde e do lugar (anteriormente isolado) do consumidor; c) a privatização da saúde interfere diretamente na composição do salário e, logo, nas relações capital - trabalho; d) as organizações sindicais passam a se confrontar com vários gestores das condições imediatas de vida do trabalhador; e) a identidade coletiva do trabalhador mescla-se com a identidade do consumidor que adquire, cada vez mais, uma configuração também coletiva; f) a disputa pela informação e pelo acesso aos meios de comunicação ganha grande relevância estratégica, já que dela depende a politização dos interesses sociais e a nova gestão privada.

A análise crítica da pressão exercida pela medicina privada sobre o setor público sempre orientou a reflexão do sistema de saúde. Esta orientação, que precisaria ser hoje atualizada, permite a resistência à mercantilização de um bem que não pode estar submetido às regras de mercado - a saúde individual e coletiva. É claro que esta perspectiva não se coaduna com a redução do serviço público de saúde ao precário atendimento dos excluídos. Também não se coaduna com leituras que reduzam a relevância dos papéis esperados, da sociedade organizada, na democratização do acesso à saúde.

O modelo de atendimento democrático e descentralizado do SUS expressa a luta pela superação dos descaminhos da ditadura e dos conseqüentes processos de exclusão social. Mas, como este modelo pode resistir à atual dinâmica do setor privado? Afinal, é enorme a agilidade adquirida pela medicina privada na produção de alterações rápidas e contundentes em conteúdos técnicos da prática profissional e no imaginário coletivo. As oportunidades abertas pela extensão do meio técnico-científico e informacional ainda não foram amplamente apropriadas pelos defensores do sistema público de saúde. De fato, esta apropriação tem se limitado, o que não reduz a relevância intrínseca destas práticas, à difusão do saber médico pelas redes de radioteledifusão ou à racionalização do acesso aos serviços.

É bem verdade que a informatização também tem permitido o acompanhamento, mais rápido e generalizado, do uso dos recursos públicos (ver o caso da CPMF) e das decisões assumidas em várias instâncias de poder. Porém, os desafios são claramente mais amplos, atingindo a organização da sociedade e a capacidade de renovação dos partidos políticos, sindicatos e entidades de assessoria aos movimentos populares. É neste sentido que cabe refletir a metrópole como contexto de inovação, favorecendo a emergência de propostas radicalmente criativas e transformadoras.

A inovação estimulada pela metrópole tem sido apropriada quase exclusivamente pela gestão privada. Na ruptura deste limite, a luta pela democracia nas comunicações e na informática precisaria ser articulada à luta pelo acesso social à saúde. De fato, caminhamos para um futuro em que as novas condições técnicas de produção e difusão do saber não podem permanecer, apenas, em mãos dos donos do poder. A sociedade necessita do desvendamento de formas de gestão dos recursos que garantam a vida e a saúde.

Cabe observar, nesta direção, que o marketing do setor público tem se restringido à propaganda política ou ao apoio a campanhas sanitárias. Raramente vemos a mídia sendo efetivamente acionada em defesa do setor público, o que constitui uma estranha omissão na era da comunicação. Além disto, os novos coletivos, originados da gestão privada, poderiam ser, ainda que parcialmente, incorporados ao setor público, através de mecanismos financeiros mais inteligentes do que a CPMF. O volume de recursos transferido à iniciativa privada através de convênios e formas privilegiadas de contratação da medicina privada mina, permanentemente, a eficácia do setor público. Afinal, a agilidade alcançável através das novas tecnologias de informação e comunicação não é apenas a da quantificação, mas sobretudo a agilidade política e, mais ainda, a da imaginação.

LOJKINE, J. O Estado capitalista e a questão urbana, Trad. Estela dos Santos Abreu. São Paulo: Martins Fontes. 1981.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Fev 1998
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