Open-access “Conscientes, exaustas e conectadas”: até onde vão os agenciamentos de mulheres que amamentam?

“Conscientes, agotadas y conectadas”: ¿hasta dónde llegan las agencias de las mujeres lactantes?

O artigo “Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil”1 situa-se em um campo de pesquisas que se dedica a pensar as práticas e os discursos sobre maternidades, sobretudo no âmbito do que se nomeou como estudos de gênero, mas não apenas nele. Autoras/es da Psicanálise, por exemplo, também têm empreendido esforços no sentido de compreender causas e efeitos dos modelos de maternidade em vigor2. Esse campo não é homogêneo em sua apreciação do fenômeno das maternidades no contexto contemporâneo. Ao mesmo tempo que presenciamos, mundialmente, a problematização de tais modelos de amamentação e maternidade3-6, assistimos ao fortalecimento de uma “maternidade ecológica”3, que informa uma corrente essencialista do feminismo e é informada por ela, que “exalta a ‘diferença sexual’ e defende a existência de uma ‘essência feminina’”7 (p. 45).

No caso do artigo em questão, ele incorpora uma perspectiva crítica com relação a um ideal que romantiza a maternidade e tem, dentre seus elementos primordiais, o aleitamento materno (AM). Como pontuou a filósofa francesa Elisabeth Badinter, o AM “está no cerne da revolução materna a que assistimos nos últimos vinte anos”3 (p. 86), constituindo o que ela nomeou, nada mais, nada menos, de “a batalha do leite”. As autoras ainda acrescentam, à discussão, a reflexão extremamente atual acerca das trocas comunicacionais que ocorrem entre mães de diferentes condições socioeconômicas em um ambiente de interação digital: o Baby Center, portal internacional de conteúdos sobre gravidez e bebês em sua versão brasileira. E, por isso mesmo, o texto carrega o mérito de problematizar dois objetos em inter-relação: os modelos de maternidade atuais e os usos das novas tecnologias de informação e comunicação pelas mães.

Sobre os modelos de maternidade que vigoram entre as mulheres entrevistadas, o estudo empreendido pelas autoras indica que reproduzem muito do que o discurso oficial preconiza, inclusive com o uso de “expressões técnicas, tais como ‘confusão de bicos’ e ‘amamentação exclusiva’”1 (p. 11), mesmo entre mulheres das classes sociais mais baixas e menos escolarizadas. Isso já havia sido registrado também por Kalil e Aguiar8, cujo estudo aponta que muitos dos sentidos encontrados nas narrativas de mães entrevistadas “estão propostos nos discursos governamentais pró-AM de ontem e de hoje, (...) o que demonstra a força do discurso oficial na produção de sentidos das mulheres que vivem a experiência” (p. 52).

O mesmo se dá com o discurso das evidências científicas, como notaram Fazzioni e Lerner, que não está confinado às mães mais escolarizadas, mas se espraia – ainda que não de forma homogênea – por todas as mães sujeitas ao paradigma de uma “maternidade baseada em evidências”9, sucessora da “maternidade científica”. Enquanto a maternidade científica10 visa nomear a transformação no exercício da maternidade, que deixa de estar calcado na tradição e passa a se estruturar em bases científicas na virada do século 19 para o 20, a maternidade baseada em evidências, embora surja de um movimento em defesa da desmedicalização do corpo feminino em um contexto de humanização das práticas assistenciais, apoia-se, de forma paradoxal, “em ‘evidências científicas’ como matriz privilegiada de legitimação das práticas humanizadas de parto e amamentação, ancoradas nos pressupostos de uma natureza feminina universal e que o corpo feminino é uma extensão das mamíferas do reino animal”9 (p. 1).

Em razão da ideologia dessa maternidade baseada em evidências, que questiona o poder médico, mas, ao mesmo tempo, contrapõe-se aos valores de cuidado mais tradicionais, trazidos pelas avós, em razão do conflito geracional, as mães de hoje acabam por repelir o único apoio (ou um dos poucos apoios) de que dispõem, de sua mãe ou sogra, por serem elas vistas como potenciais inimigas da amamentação. Mães e sogras que, muitas vezes, parecem ser as únicas pessoas que olham para a mulher recém-parida e se preocupam com o seu cuidado, enquanto o restante do entorno só tem olhos para “sua majestade o bebê”11 (p. 63).

Por outro lado, um ponto de tensionamento seria a inferência, feita pelas autoras1, de que, enquanto algumas mães passam pela experiência da maternidade e da amamentação de maneira mais discreta, mulheres com menor capital econômico e social carregam “um desejo de monetizar as relações com a produção de informações em torno da maternidade”1 (p. 11). Creio que isso possa ser problematizado se considerarmos o número de perfis de novas influenciadoras digitais, profissionais da saúde ou não, no âmbito dos discursos sobre maternidade e amamentação nas redes sociais.

As próprias doulas e consultoras de amamentação, que são profissões relativamente jovens, parecem já ter iniciado sua recente existência em meio ao ambiente digital e investem cada vez mais tempo e recursos na produção de conteúdo para atrair seguidores/clientes para seus perfis nas redes sociais. Muitas dessas novas profissionais do cenário do parto e puerpério “vivenciaram tais processos de maternidade, que consideram transformadores, e buscaram cursos livres para formação de doulas ou consultoras como forma de conjugar seus novos interesses, conhecimentos e experiências como mães com uma nova atuação profissional”12 (p. 70). E, em grande medida, imbuídas da autoridade da experiência, elas vêm conquistando, nos últimos anos, um lugar de novas especialistas no contexto da maternidade baseada em evidências.

Nesse sentido, o atravessamento das nossas experiências pela midiatização percorre todas as camadas sociais, talvez em diferentes graus e formas de apropriação por meio dos distintos contextos. O “bios midiático”, como definiu o pesquisador Muniz Sodré:

[...] é uma espécie de clave virtual aplicada à vida cotidiana, à existência real-histórica do indivíduo. Em termos de puro livre-arbítrio, pode-se entrar e sair dele, mas nas condições civilizatórias em que vivemos [...] estamos imersos na virtualidade midiática13. (p. 108)

As autoras constataram que as mulheres entrevistadas não utilizam a internet apenas para o consumo de informações, mas também para sua produção. Notaram, ainda, que, embora defendam as máximas preconizadas pelo discurso oficial – sobre o leite materno como melhor alimento e amamentação exclusiva nos primeiros seis meses –, elas precisam, por seus contextos objetivos e também subjetivos de vida, negociar sentidos, fazendo o melhor que podem ou o melhor que conseguem. Mas, mesmo tendo alguma margem de manobra, elas se encontram, como bem definem as autoras, “conscientes, exaustas e conectadas” (até porque estar conectada é, hoje, mais uma condição da maternidade). Para Fazzioni e Lerner, ao mesmo tempo que as redes permitem às mulheres serem também produtoras de informação, e não somente receptoras, “por outro lado tal movimento parece adicionar maior sobrecarga no que se refere aos cuidados com seus filhos”1 (p. 13). Nessa direção, cabe problematizar: até onde vão os agenciamentos maternos diante de modelos hegemônicos tão poderosos – do aleitamento materno como medida da boa mãe e da maternidade baseada em evidências como padrão ideal – e da midiatização da vida como uma realidade que nos afeta a todos/as?

Referências

  • 1 Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
    » https://doi.org/10.1590/interface.220698
  • 2 Iaconelli V. Manifesto antimaternalista: psicanálise e políticas de reprodução. Rio de Janeiro: Zahar; 2023.
  • 3 Badinter E. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record; 2011.
  • 4 Hays S. Contradições culturais da maternidade. Rio de Janeiro: Gryphus; 1998.
  • 5 Meyer DE. Educação, saúde e modos de inscrever uma forma de maternidade nos corpos femininos. Movimento. 2007; 9(3):33-58.
  • 6 Wolf JB. Is breast really best? Risk and total motherhood in the National Breastfeeding Awareness Campaign. J Health Polit Policy Law. 2007; 32(4):595-636.
  • 7 Araújo MF. Diferença e igualdade nas relações de gênero: revisitando o debate. Psic Clin. 2005; 17(2):41-52.
  • 8 Kalil IR, Aguiar AC. Narrativas sobre amamentação e desmame: entrelaçamentos de experiências, políticas públicas e saúde. Rev Geminis. 2020; 11:45-69.
  • 9 Carvalho F, Nucci MF. Ocitocina e a “maternidade baseada em evidências”. Concepções sobre natureza e ciência em uma rede virtual de mães [Internet]. In: Anais do 12o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva; 2018; Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Saúde Coletiva; 2018 [citado 1 Mar 2024]. p. 1. Disponível em: https://abrascoeventos.org.br/saudecoletiva/2018/programacao/exibe_trabalho.php?id_trabalho=26072&id_atividade=3069&tipo=#topo
    » https://abrascoeventos.org.br/saudecoletiva/2018/programacao/exibe_trabalho.php?id_trabalho=26072&id_atividade=3069&tipo=#topo
  • 10 Apple RD. Mothers and medicine: a social history of infant feeding 1890-1950. Madison: The University of Wisconsin Press; 1987. (Part Three, Scientific Motherhood; p. 95-132).
  • 11 Iaconelli V. Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna. 2a ed. São Paulo: Zagodoni; 2020.
  • 12 Nucci M, Russo J. Ciência, natureza e moral entre consultoras de amamentação. In: Silva CD, organizadora. Saúde, corpo e gênero: perspectivas teóricas e etnográficas. Juiz de Fora: Editora UFJF; 2021. p. 70-87.
  • 13 Sodré M. Bios midiático. Dispositiva. 2013; 2(1):108-10.

Editado por

  • Editor
    Antonio Pithon Cyrino
    Editor de debates
    Sérgio Resende Carvalho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2023
  • Aceito
    28 Fev 2024
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