O estudo, que originou o artigo “As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente”1, teve desdobramentos na vida pessoal e profissional da enfermeira pesquisadora, uma vez que transcendeu ao técnico e ao pragmático de um estudo para o doutoramento, pois promoveu debate com pesquisadores da área do cuidado. Tornando-se um fio condutor, a chave destravou o cadeado do portão gradeado do ambulatório, do campus da universidade, do sistema de maneira mais abrangente, proporcionando o deslocamento de rotas para conhecer pessoas, histórias de vida, afetar (o Outro – da linguagem) e sentir-se afetada com os sujeitos envolvidos no cuidado ao usuário em tratamento para tuberculose multidroga resistente (TB-MDR).
A caminhada com a Zoe, usuária-guia, como Slomp Junior destacou em “Um estudo de caso outro: o teatro de multiplicidades na Saúde”2, foi um acontecimento, não apenas a descrição de um estudo de caso que, como o próprio autor destaca, “não daria conta” (p. 3) da complexidade de uma vida vivida, pois se trata de um encontro na sua intensidade que me permitiu a aproximação com a sua vida e de sua família ao longo do tratamento TB-MDR. Algo sensível ocorreu, já que foi possível quebrar o protocolo do exercício de poder sobre o corpo do outro; ela conduziu, proclamou a sua existência e, com isso, convidou-nos a perceber tantas(os) outras(os) Zoe(s)3,4. Honrando seu pseudônimo escolhido, “vida”, “cheia de vida”, seu agir trouxe luz à invisibilidade, à mudez imposta pelas relações nos serviços de saúde, assim como outros sujeitos que são apagados ao longo do processo de tratamento, convocando uma discussão sobre o cuidado na tuberculose, seja sensível seja droga resistente.
Na tecitura das redes vivas de cuidado, constituídas no cotidiano da atenção aos sujeitos, apresentam-se “Zoes”, ou seja, os usuários do sistema de saúde que desejam o cuidado na forma pela qual entendem suas vidas vividas em plenitude e nos guiam no caminho do tratamento com o uso da ferramenta relacional. Em “O feitiço das redes vivas no cuidado da tuberculose”5, a autora aponta que o cuidado em saúde deve ser discutido na formação de novos profissionais de saúde; reitero que tenham de ser realizadas rodas de conversas na trajetória acadêmica ao longo dos períodos. Uma vez que muitos desses usuários, a quem nomino como Zoes, se pronunciarão e os momentos de encontro entre profissional de saúde e usuário mostrarão que o conhecimento exclusivamente tecnológico não suprirá a necessidade do outro, o que instigará os profissionais a pensar em ações menos protocolares e a se movimentarem em suas formas de fazer, aventurando-se na busca por valises que extrapolem a ordem do biopoder, engendrando maneiras no cuidar em saúde com a associação dos seus conhecimentos técnico-científicos à atenção e à disponibilidade ao outro. E, ainda, tem-se a importância da construção de fóruns de debates, não se limitando à formação, mas estendendo-se para os profissionais atuantes nas estações do cuidado em saúde (redes de Atenção Primária à Especializada), com ampliação àqueles que recebem os usuários desde sua chegada à unidade de saúde, independentemente da categoria profissional6,7.
Os usuários são sujeitos ativos e participativos na vida, por isso não podem ser simplesmente reduzidos e definidos à categorização de desfecho como abandonadores. São integralmente humanos, com suas descobertas, recriando-se a todo tempo, mesmo quando retornam à unidade, em alguns momentos, sob o efeito direto pela adicção de substâncias psicoativas, buscam o cuidado e o apoio nas várias tentativas de tratamento e solicitam que os enxerguem em uma sociedade cujo discurso circulante da saúde é excludente e enfatiza o adoecimento, neutralizando os sujeitos nas decisões de seu tratamento e paralisando o profissional de saúde.
O texto, “Desassociar a tuberculose de sua metáfora: convite para um devir-abandonador”8, traz o diálogo quanto à importância de repensar e se despir das taxonomias conclusivas sobre o sujeito em tratamento para tuberculose, que o determina e o define como doença ou como abandonador e desinteressado. Nas rodas de conversa para a escolha da usuária-guia, no momento da elaboração do estudo, a narrativa para a escolha da Zoe foi de usuário-problema, complexo, difícil, que tenciona o sistema protocolar e instituído, mas que, por outro lado, proporciona a reavaliação de todo o processo e encontra espaços para se reinventar e se conectar com os sujeitos em sua existência nessa travessia pela temporalidade do adoecimento.
Na trajetória de sete anos com Zoe, foi possível vivenciar experiências intensas (que ocorre quando o profissional de saúde se permite desterritorializar) e encontrar no mundo as singularidades das Zoes: o local em que vivem, com as subidas, vielas, além da violência física e simbólica (impostas pelo poder local e pelo poder público). Cada sujeito, usuário-profissional, traz consigo suas filiações na pausa para observar a dinâmica na Atenção Primária (AP), são perceptíveis situações que fazem compreender a dimensão do cuidado, aponta-se um exemplo disso quando uma enfermeira descreveu seu olhar para a atenção a um usuário procedente dos povos originários: “Ele é o Pajé!... A alma é uma outra coisa, né? O sangue que corre nas suas veias não tem o significado que tem pra mim ou pra você, né? Você tem que respeitar”9 (p. 64).
Ao expandir seu próprio mundo, entende que o cuidar está para além de sistemas de notificação, quantidades de doses administradas, evolução clínica, bacteriológica e radiológica. Pois está para algo a mais, como em “Zoe e a inovação no processo de cuidado: da tecitura das redes à ruptura no regime de verdade”10, em que se ressalta que na saúde os regimes dominantes são centralizados pelo discurso científico e institucional, formas de poder verticalizadas, universal, fomentando o debate sobre quebra do paradigma assistência para transmutação de cuidar, que está para além da governabilidade sobre o corpo do outro. A autora reitera o discurso acima ao frisar que devemos estar atentos, questionar e refletir o que é a vida para o outro e quais são as suas verdades e filiações; para cuidar, o sujeito deve estar na centralidade do processo, na autogovernabilidade de si e em parceria com a sua rede constitutiva do cuidado11,12.
A radiografia com que nos deparamos é a realidade do acontecimento da vida, de um país com políticas de saúde “frágeis”, à mercê de grupos temporários de poder que promovem a culpabilização do sujeito, definindo-o como aquele que não procura o atendimento, que não se interessa por sua saúde. Nesse contexto, os profissionais de saúde também são apontados como desinteressados, mas por muitas vezes têm limitações, sendo cerceado seu direito em se reinventar e realizar modificações significantes por atingirem diretamente os protocolos estabelecidos.
Há profissionais que querem criar, cuidar com arte, promover e extrapolar barreiras, mas às vezes não conseguem realizar a ruptura dos paradigmas. Porém, quando efetuam, tornam-se uma potência capaz de realizar ações que valorizam o sujeito, que rompem com a estrutura rígida e epidemiológica da tuberculose. O autogoverno no cuidado entrelaça os saberes e capacidades dos sujeitos envolvidos nos núcleos de Atenção Primária, de atenção especializada e dos gestores de saúde.
Atualmente, destaca-se o Projeto Terapêutico Singular (PTS), presente no Manual de Recomendações para o Controle da Tuberculose no Brasil (2019), também expresso por Slomp Junior2, em seu texto, na sua proposta da centralidade do sujeito no cuidado. Entendendo que esse cuidado será guiado pelo sujeito mediante suas singularidades. Entretanto, compartilho a preocupação quanto à forma como isso está descrito no Manual de Recomendações para o Controle da Tuberculose no Brasil (2019), uma vez que o profissional de saúde poderá promover o sentido em execução de um arcabouço de passos e metas para serem realizadas, o que iria na contramão da proposta. Pautada nisso, ouso expressar a proposta em retirar as seguintes etapas enumeradas no manual:
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Diagnóstico situacional do paciente: identificação de necessidades, demandas, vulnerabilidades e potencialidades do usuário, além das intervenções já realizadas e seus resultados.
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Definição de metas, questões sobre as quais se pretende seguir;
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Divisão de responsabilidades: define-se um profissional da equipe, em geral aquele com o qual o usuário tem melhor vínculo, que servirá de referência para o caso;
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Reavaliação: conduzida pelo profissional de referência, a reavaliação envolve encontros com os envolvidos no processo e deve ser feita em diversos momentos13. (p. 207)
Com a intenção de substituí-las por uma narrativa a qual contemple que cuidado em saúde se trata de um processo que está no encontro, nas relações e nos vínculos estabelecidos, em que o sujeito vai conduzir seu projeto em conjunto com o profissional. Ressalto essa proposta de substituição textual, pautada em práticas diárias, em que o profissional de saúde tende a seguir etapas protocolares e mantê-las fidedignamente de maneira universal, o que instauraria, de forma regulamentar, o alcance de metas que fogem ao objetivo principal do PTS. Já que esse objetivo envolve o encontro com o sujeito integral, com suas redes de cuidado, com a particularidade e a pluralidade de cada usuário e sua capacidade de conduzir o seu próprio projeto de tratamento com apoio dos profissionais de saúde2.
Em resposta à Cunha, em “Redes vivas: entre o individual e o coletivo”14, estar com a Zoe nos sete anos de (con)vivência entrecruzou nossos caminhos, despertando experiências imprescindíveis e desafiadoras tanto no cotidiano da pluralidade da existência pessoal quanto na produção do cuidado no âmbito profissional. O que desencadeou novas vivências por meio de encontros com cada “Zoe” que se apresenta para iniciar tratamento, reiterando, intrinsecamente, a pergunta que me acompanha a todo o momento: Como cuidar? Na perspectiva de desterritorialização das amarras em um corpo vibrátil, que agencia construir em conjunto, sem imposições às vidas que trazem as marcas de suas histórias, priorizando conhecer um pouco mais dos sujeitos que estão conosco, seus sonhos e projetos, suas particularidades, suas relações pessoais e profissionais, parcerias com a família e o território, conforme a disponibilidade que cada sujeito nos permite acessar, gerando uma potência transformadora e um intenso aprendizado para a vida15.
Aciono os sujeitos para essa pergunta, usuários-família-profissionais, sem não mais me surpreender que a resposta esteja no fato de o próprio usuário poder propor a forma que constituirá seu acompanhamento. A partir desse movimento, associam-se a medicação, os exames, a avaliação clínica, bacteriológica e radiológica, conforme as possibilidades apontadas pelo e com o usuário. Extrair o território, o contexto social, emocional e mental desse processo é dissociar o individual do coletivo, com a promoção da assistência biomédica, e afastar o cuidado.
No sistema de saúde, encontramos diariamente pessoas como Zoe, usuários em busca de compreensão de si dentro de um sistema pronto e determinista. Assim como se destacam os trabalhadores da saúde que, além do conhecimento e do desempenho dos procedimentos técnico-científicos ou da execução de ações sobre os corpos, necessitam de visibilidade, de ser ouvidos e acolhidos diante das necessidades e dificuldades, para que suas potencialidades aflorem diante das estruturas montadas e organizadas para serem administradas.
Zoe concluiu seu tratamento após sete anos e nove tentativas, tendo o desfecho de cura em julho de 2023. Compareceu sorridente à unidade de atenção especializada, tocou o sino, é uma representação de um som vibrante que promove o sentido de finalização do processo, e foi realizado com muita festa e ela estava feliz por mais uma etapa da sua vida. Exatamente um mês após a alta do tratamento, Zoe faleceu por circunstância que indica falha no sistema de saúde, que burocratiza o acesso ao broncodilatador para asma, tão imprescindível para sua condição de saúde. Finalizou seu ciclo de vida após longo período de tratamento. Para muitos pode ser avaliado como inútil, mas foi inútil?
Obviamente que não, Zoe deixou o legado por provocar questões sobre o tratamento terapêutico institucionalizado que não considera o contexto do sujeito como único, que em várias situações tem na assistência em saúde, regulamentar, um obstáculo e não uma solução. Fato que pode ainda ser modificado, reconstruído, na micropolítica do cuidado, na medida em que se propõe a cuidar do sujeito.
Zoes estão no cotidiano das estações/redes de saúde do Sistema Único de Saúde, onde o cuidado deve extrapolar as metas. Sua abrangência está no entremeio das relações e se constitui com sujeitos, usuários-família-profissionais, diante de suas vidas e filiações. O debate apresenta-nos possiblidades para reflexão do cuidado, com os usuários na centralidade do processo em quaisquer das situações que necessitem, e apresentem, seja no período em que se encontram em tratamento de doenças negligenciadas seja em terapias de alta complexidade, em todo o percurso que realizam, ou seja, desde seu território com as unidades de Atenção Primária às Especializadas, sujeitos que participam das redes vivas, integradas e entrelaçadas.
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Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. Zoe(s) e a multiplicidade das vidas dos sujeitos envolvidos no cuidado no percurso do tratamento da tuberculose. Interface (Botucatu). 2024; 28: e240529 https://doi.org/10.1590/interface.240529
Referências
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1 Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface (Botucatu). 2024; 28:e230182. doi: 10.1590/interface.230182.
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2 Slomp H Jr. Um estudo de caso outro: o teatro de multiplicidades na Saúde. Interface (Botucatu). 2024; 28:e230588. doi: 10.1590/interface.230588.
» https://doi.org/10.1590/interface.230588 -
3 Seixas CT, Baduy RS, Cruz KT, Bortoletto MSS, Slomp H Jr, Merhy EE. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170627. doi: 10.1590/Interface.170627.
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7 Kachenski IC. Foucault e o controle dos corpos pela linguagem: os caminhos da biopolítica contemporânea no saber-poder médico. Kínesis. 2022; 14(36):198-216. doi: 10.36311/1984-8900.2022.v14n36.p198-216.
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8 Seixas CT. Desassociar a tuberculose de sua metáfora: convite para um devir-abandonador. Interface (Botucatu). 2024; 28:e240344. doi: 10.1590/interface.240344.
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10 Silva KL. Zoe e a inovação no processo de cuidado: da tecitura das redes à ruptura no regime de verdade. Interface (Botucatu). 2024; 28:e240317. doi: 10.1590/interface.240317.
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11 Freire MP, Louvison M, Feuerwerker LCM, Chioro A, Bertussi D. Regulação do cuidado em redes de atenção: importância de novos arranjos tecnológicos. Saude Soc. 2020; 29(3):e190682. doi: 10.1590/S0104-12902020190682.
» https://doi.org/10.1590/S0104-12902020190682 - 12 Abrahão AL, Merhy EE, Gomes MPC, Tallemberg C, Chagas MS, Rocha M, et al. O pesquisador in-mundo e o processo de produção de outras formas de investigação em saúde. Lugar Comum. 2012; (39):133-44.
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13 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde/CGDI; 2019 [citado 1 Out 2024]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
» https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf -
14 Cunha GT, Sacardo DP, Carvalho SR. Redes Vivas: entre o individual e o coletivo. Interface (Botucatu). 2024; 28:e230533. doi: 10.1590/interface.230533.
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Editado por
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Editor
Antonio Pithon Cyrino
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Editor associado
Helvo Slomp Junior
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
14 Out 2024 -
Aceito
05 Nov 2024