No último dezembro, quando foi celebrado o dia mundial de luta contra a aids, a divulgação das tendências da epidemia no mundo11 Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. Global Report: UNAIDS report on the global AIDS epidemic 2013. Geneve: Word Heath Organization; 2013. e no Brasil22 Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento Nacional de DST, Aids e Hepatites Virais. Boletim Epidemiológico Aids/DST. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2014. pelas Nações Unidas e pelo Ministério da Saúde evidenciaram contradições e suscitaram interrogações. Na contramão do cenário mundial, os dados brasileiros apontaram que a aids está longe de ser controlada e que atingiu seus piores indicadores nesses mais de trinta anos da doença. Desde 2011 a barreira dos quarenta mil casos novos anuais foi ultrapassada, sem sinais de que voltará a reduzir em um curto período de tempo. Voltou a crescer o número de casos entre homossexuais, acompanhado da maior concentração da epidemia nos centros urbanos e do aumento da razão masculino/feminino devido, especialmente, à redução da transmissão do HIV por meio do uso compartilhado de drogas injetáveis e da desaceleração da transmissão heterossexual. Uma nova geração, nascida após meados da década de 1990, também começou a apresentar taxas de incidência maiores do que as registradas entre aqueles que iniciaram sua vida sexual logo após o início da epidemia. Um perfil epidemiológico que, de certa forma, volta a assumir características similares ao observado no início dos anos de 1980, quando a doença começou a fazer suas primeiras vítimas e apresentou uma incidência fortemente concentrada em segmentos sociais específicos. Agora, porém, com taxas de incidência e mortalidade mais alarmantes.
Mas, o que mais evidencia a re-emergência da doença no país é a tendência da mortalidade. Depois de anos seguidos de redução, o número de mortes e a taxa de mortalidade voltaram a crescer. Somente em 2013 foram 12.700 casos de óbitos pela doença, um número similar ao de 15 anos atrás, quando a política de acesso aos antirretrovirais havia sido implantada. Nos últimos sete anos o crescimento da taxa nacional de mortalidade aumentou em pouco mais de 5%, passando de 5,9% por cem mil habitantes em 2006, para 6,2% por cem mil habitantes, em 2013. Nas regiões Norte, Nordeste e Sul as taxas chegaram a ser até duas vezes maiores do que no período anterior à política de acesso aos antirretrovirais, neutralizando todos os avanços observados anteriormente nessas locais.
O recrudescimento da aids no Brasil ocorre em um momento em que os conhecimentos científicos acumulados no campo lançam perspectivas alvissareiras para o controle da epidemia no mundo. Estudos sobre os efeitos dos antirretrovirais utilizados no cotidiano dos serviços de saúde33 Collaboration of Observational HIV Epidemiological Research Europe (COHERE) in EuroCoord, Lewden C, Bouteloup V, De Wit S, Sabin C, Mocroft A, et al. All-cause mortality in treated HIV-infected adults with CD4 500/mm3 compared with the general population: evidence from a large European observational cohort collaboration. Int J Epidemiol. 2012; 41(2):433-45. mostram que pessoas tratadas nas fases iniciais da infecção apresentaram expectativa de vida próxima de pessoas não infectadas. Isso nos permite distinguir um cenário onde a morte por aids deveria ser um evento cada vez mais raro. O maior entusiasmo, porém, veio com os estudos que relataram a redução de mais de 90% da transmissão do HIV em pessoas com HIV tratadas por antirretrovirais e com supressão total da replicação viral44 Donnell D, Baeten JM, Kiarie J, Thomas KK, Stevens W, Cohen CR, et al. Heterosexual HIV-1 transmission after initiation of antiretroviral therapy: a prospective cohort analysis. Lancet. 2010; 375(9731):2092-8.. Uma taxa de proteção superior ao observado em programas de distribuição de preservativos55 Weller SC, Davis-Beaty K. Condom effectiveness in reducing heterosexual HIV transmission (Review). The Cochrane Collaboration; 2007 [acesso 2014 Abr 14]. Disponível em: http://apps.who.int/rhl/reviews/CD003255.pdf
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Com base nesse novo cenário, os estudos de modelagem matemática66 Investigating the impact of treatment on new HIV infection. PLoS Med. 2012; 9(7):1-92. têm indicado que o diagnóstico e tratamento universal de pessoas infectadas teria o potencial de eliminar a ocorrência de novas infecções. Isso impulsionou as Nações Unidas77 Joint United Nations Programme on HIV/Aids. 90-90-90: an ambitious treatment target to the help end the AIDS epidemic. Geneve: UNAIDS; 2014. a convocarem os países a implantar até 2020 programas ambiciosos para diagnosticar 90% das pessoas com HIV, tratar 90% delas com antirretrovirais e fazer com que 90% das tratadas tenham carga viral indetectável. É a denominada meta 90-90-90 que, segundo as Nações Unidas, poderia levar ao fim da epidemia no mundo até 2030.
Para além da polêmica acerca da factibilidade de estratégias de controle de epidemias baseadas em tratamento medicamentoso obterem pleno sucesso - basta observar a permanência da tuberculose e da hanseníase como importantes problemas de saúde pública, apesar da existência de tratamentos efetivos para a cura e para evitar a transmissão das infecções -, a proposição das Nações Unidas trouxe para o centro do debate a capacidade dos sistemas de saúde de absorver um grande contingente de pessoas infectadas e a qualidade do cuidado prestado a elas.
No Brasil, os dados do Ministério da Saúde22 Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento Nacional de DST, Aids e Hepatites Virais. Boletim Epidemiológico Aids/DST. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2014. sobre o “contínuo do tratamento” - com a estimativa do número de pessoas infectadas no país e os percentuais dos que sabem do diagnóstico e estão em tratamento efetivo - apontaram para um quadro surpreendente: o número de pessoas infectadas que conhecem o seu diagnóstico e estão fora dos serviços de saúde ou com carga viral detectável (296000) é cerca do dobro do número de pessoas (145000) que não conhecem o seu diagnóstico. Uma dificuldade clara das políticas para garantir o seguimento clínico e a adesão ao tratamento de forma sustentável ao longo do tempo.
Desde o início da epidemia, ainda nos anos de 1980, uma rede de cuidado às pessoas infectadas foi implantada no país, baseada nos princípios da integralidade e interdisciplinaridade e com avaliações de qualidade88 Nemes MIB, Alencar TMD, Basso CR, Castanheira ERL, Melchior R, Brito e Alves MTSS, et al. Avaliação de serviços de assistência ambulatorial em aids, Brasil: estudo comparativo 2001/2007. Rev Saude Publica. 2013; 47(1):137-46. mostrando estruturas e processos de trabalho relativamente satisfatórios, para parcelas significativas das unidades de saúde. Nos últimos anos, entretanto, parte dessa rede tem sido penalizada, devido ao subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e o enfraquecimento da resposta à aids no país.
A recente proposta do Ministério da Saúde de fortalecimento dessa rede pela ampliação do cuidado de pessoas infectadas na atenção básica deixa interrogações a respeito de sua efetividade. É certo que experiências positivas foram observadas em serviços implantados nesse nível de atenção, porém, as avaliações também mostraram que os piores indicadores de qualidade se concentraram nos serviços de menor complexidade, implantados em cidades de médio e pequeno porte populacional e com número reduzido de pacientes. Além disso, problemas inerentes a esse nível de atenção permanecem com respostas insuficientes, como a eliminação da transmissão vertical do HIV e da sífilis, o tratamento das doenças sexualmente transmissíveis (DST) e a universalização do diagnóstico do HIV.
Ademais, a experiência brasileira na resposta à aids contribuiu para consolidar convicções de que o sucesso das estratégias de cuidado está fortemente relacionado às políticas de promoção à saúde e dos direitos humanos. Por um lado, o surgimento de novos métodos preventivos eficazes99 Chang LW, Serwadda D, Quinn TC, Wawer MJ, Gray RH, Reynolds SJ. Combination implementation for HIV prevention: moving form clinical trial evidence to population-level effect. Lancet. 2013; 13(1):65-76., muitos dos quais de caráter biomédico, com as profilaxias pré- e pós-exposição sexual e a circuncisão masculina, junto com os já tradicionalmente conhecidos, como o preservativo masculino e feminino, o uso de sorologias para definição de acordos sexuais e as práticas sexuais não penetrativas abrem a possibilidade de ampliar o número de pessoas e de situação em que a prevenção pode ser praticada. Por outro lado, está claro que são as ações estruturais1010 Piot P, Bartos M, Larson H, Zewdie D, Mane P. Coming to terms with complexity: a call to action for HIV prevention. Lancet. 2008; 372(9641):845-9. de redução de estigma, de discriminação, de inserção social e eliminação de barreiras legais, que farão com que as taxas de incidência e mortalidade sejam controladas em grupos sociais mais atingidos pela epidemia. Esses grupos sempre tiveram dificuldade para serem inseridos nas respostas estaduais e municipais à aids11 e, mais recentemente, houve importantes retrocessos da política federal nesse aspecto.
Com isso, é preocupante que após anos de indicadores mais positivos, a resposta à aids no Brasil volte a mostrar indícios de re-emergência, especialmente quando os conhecimentos científicos e a comunidade internacional apontam para um controle mais efetivo da epidemia no mundo. A resposta a essa situação deve conjugar experiências bem sucedidas da resposta brasileira, com as oportunidades abertas pelos novos conhecimentos produzidos no campo da prevenção e do cuidado à aids.
Referências
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1Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. Global Report: UNAIDS report on the global AIDS epidemic 2013. Geneve: Word Heath Organization; 2013.
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2Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento Nacional de DST, Aids e Hepatites Virais. Boletim Epidemiológico Aids/DST. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2014.
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3Collaboration of Observational HIV Epidemiological Research Europe (COHERE) in EuroCoord, Lewden C, Bouteloup V, De Wit S, Sabin C, Mocroft A, et al. All-cause mortality in treated HIV-infected adults with CD4 500/mm3 compared with the general population: evidence from a large European observational cohort collaboration. Int J Epidemiol. 2012; 41(2):433-45.
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4Donnell D, Baeten JM, Kiarie J, Thomas KK, Stevens W, Cohen CR, et al. Heterosexual HIV-1 transmission after initiation of antiretroviral therapy: a prospective cohort analysis. Lancet. 2010; 375(9731):2092-8.
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5Weller SC, Davis-Beaty K. Condom effectiveness in reducing heterosexual HIV transmission (Review). The Cochrane Collaboration; 2007 [acesso 2014 Abr 14]. Disponível em: http://apps.who.int/rhl/reviews/CD003255.pdf
» http://apps.who.int/rhl/reviews/CD003255.pdf -
6Investigating the impact of treatment on new HIV infection. PLoS Med. 2012; 9(7):1-92.
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7Joint United Nations Programme on HIV/Aids. 90-90-90: an ambitious treatment target to the help end the AIDS epidemic. Geneve: UNAIDS; 2014.
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8Nemes MIB, Alencar TMD, Basso CR, Castanheira ERL, Melchior R, Brito e Alves MTSS, et al. Avaliação de serviços de assistência ambulatorial em aids, Brasil: estudo comparativo 2001/2007. Rev Saude Publica. 2013; 47(1):137-46.
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9Chang LW, Serwadda D, Quinn TC, Wawer MJ, Gray RH, Reynolds SJ. Combination implementation for HIV prevention: moving form clinical trial evidence to population-level effect. Lancet. 2013; 13(1):65-76.
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10Piot P, Bartos M, Larson H, Zewdie D, Mane P. Coming to terms with complexity: a call to action for HIV prevention. Lancet. 2008; 372(9641):845-9.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2015