Resumos
Este estudo objetivou analisar as percepções dos trabalhadores da Estratégia Saúde da Família sobre a saúde da pessoa com deficiência que vive no campo. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, com o desenho de cunho etnometodológico. Foi realizada observação participante e debates por meio da roda, com registro em diário de campo, e entrevistas semiestruturadas em uma Unidade Básica de Saúde de Grão Mogol, Minas Gerais. Na análise, combinaram-se os dados coletados para triangulação. Os resultados evidenciam que as políticas desenvolvimentistas e a inserção das políticas públicas estão incidindo sobre a saúde das populações do campo. A deficiência está ancorada no modelo biomédico e a dimensão da caridade se ressalta nas ações em saúde. O desenho da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência deve ser repactuado a fim de enfrentar as barreiras de acesso à saúde.
Pessoas com deficiência; Saúde da população rural; Atenção primária à saúde; Acesso aos serviços de saúde; Sistema Único de Saúde
This study aimed to analyze the perceptions of Family Health Strategy workers about people with disabilities living in rural areas. This was a qualitative research with an ethnomethodological design. Data was collected through participant observation, discussion roundtables, field notes and semi-structured interviews at the Primary Health Care Service in the city of Grão Mongol, state of Minas Gerais. The analysis was supported by triangulation methods. The results show that the developmental policies and implementation of public policies are impacting the health of populations in the rural areas. Disability is described based on biomedical model, and charity perspective is evident in health care activities. The Health Care Network for People with Disabilities should be subject of new agreements to lower health access barriers.
People with disability; Rural health; Primary health care; Health services accessibility; Brazilian National Health System
El objetivo de este estudio fue analizar las percepciones de los trabajadores de la Estrategia Salud de la Familia sobre la salud de la persona con deficiencia que vive en el campo. Se trata de una investigación de abordaje cualitativo con diseño de cuño etno-metodológico. Se realizó una observación participativa y círculo de debates, con registro en diario de campo y entrevistas semi-estructuradas en una Unidad Básica de Salud de Grão Mogol, Estado de Minas Gerais. En el análisis se combinaron los datos colectados para triangulación. Los resultados mostraron que las políticas desarrollistas y la inserción de las políticas públicas inciden sobre la salud de las poblaciones del campo. La discapacidad está anclada en el modelo biomédico y la dimensión de la caridad se subraya en las acciones de salud. El diseño de la Red de Cuidados a la Persona con Discapacidad debe ser objeto de un nuevo pacto con la finalidad de enfrentar las barreras de acceso a la salud.
Personas con discapacidad; Salud de la población rural; Atención primaria a la salud; Acceso a los servicios de salud; Sistema Brasileño de Salud
Introdução
No Sistema Único de Saúde, a Atenção Básica é um importante componente da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência por desenvolver ações estratégicas para a ampliação do acesso e da qualificação da atenção à saúde1. Na Política Nacional de Saúde Integral para as Populações do Campo, da Floresta e das Águas, a relevância da Atenção Básica também é ressaltada para garantir o acesso com equidade2. Destaca-se que, na Atenção Básica, a Estratégia Saúde da Família é uma das prioridades para reorganização do modelo de atenção à saúde no Brasil3.
A priorização das atividades desenvolvidas pela Atenção Básica deve considerar o critério de vulnerabilidade3, podendo esta ser compreendida como um conjunto de fragilidades individuais e precariedades sociais que atingem um sujeito cujas condições de vida e saúde são influenciadas ou determinadas por aspectos sócio-históricos4. Entre aqueles que estão em condição de vulnerabilidade, podemos citar as pessoas com deficiência que, em função de diversas barreiras, são impossibilitadas de participarem ativamente da vida cotidiana.
Nesse sentido, o presente artigo aborda a dupla vulnerabilidade na vida social das pessoas com deficiência que vivem no campo, compreendendo-as na perspectiva da interseccionalidade5. Refletir sobre a interação entre as vulnerabilidades que atingem pessoas do campo com deficiência pode demonstrar como são necessárias políticas públicas que contemplem a diversidade dos sujeitos com deficiência, e não apenas aqueles que sofrem restrição de participação social na vida cotidiana.
A literatura discute vários significados da deficiência, emergindo, ao menos, dois modelos teóricos: biomédico e social. O modelo biomédico aborda a deficiência na perspectiva individual como condição essencialmente negativa, infortúnio, tragédia pessoal e drama familiar, estando fortemente arraigada no determinismo biológico6. O modelo social da deficiência surgiu como contraponto ao modelo biomédico, e transfere a responsabilidade de mudança defendendo que a opressão social não decorreria de suas limitações corporais. O tema da deficiência, portanto, além de ser pautado pela biomedicina, também deve ser alvo de ações políticas e intervenções do Estado por meio de proteção social e reparação de desigualdades7.
Diante do debate provocado pelos estudos da deficiência e pela mobilização social deste segmento, definiu-se que pessoas com deficiência são “aquelas que têm impedimento de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas”. Essa denominação foi promulgada com equivalência de emenda constitucional no Brasil8, e dialoga com o modelo biomédico e social de deficiência7,9.
Em relação às pessoas do campo com deficiência, a limitada literatura sugere que essas pessoas têm a condição de saúde mais comprometida do que a população do campo sem deficiência10. Apesar de tanto as pessoas com deficiência, quanto aquelas que vivem no campo relatarem muitos dos mesmos tipos de impedimentos, a lesão parece exacerbar as barreiras de acesso à saúde11.
As pessoas do campo com deficiências parecem viver em maior desvantagem quanto às suas condições de saúde, uma vez que a deficiência e a vida no campo estão associadas: a menor número de oportunidades de educação e emprego, à falta de transporte público acessível e a dificuldades comunicacionais e no acesso a serviços de saúde12. Nesse sentido, estudar a percepção dos profissionais de saúde sobre a interseccionalidade entre deficiência e vida rural é importante para ampliar o acesso desse segmento populacional a políticas públicas condizentes com suas particularidades.
Diante disso, o objetivo deste artigo é analisar as percepções dos trabalhadores da Saúde da Família sobre a saúde da pessoa do campo com deficiência, valorizando-se seus modos de ser e subjetividades.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa na modalidade compreensiva, a qual está inserida no Projeto de Pesquisa intitulado ‘Pesquisa Avaliativa da Implantação da Política Nacional de Saúde Integral para as Populações do Campo, da Floresta e das Águas em distintos cenários do Brasil’, coordenada pelo Observatório de saúde das populações do campo, da floresta e das águas – Teia de Saberes e Práticas/OBTEIA. Essa pesquisa foi desenvolvida em nove territórios prioritários, sendo que, em um deles, foi realizada em duas etapas, a saber: fase exploratória com investigação participante e fase sistemática com cunho etnometodológico13. Este artigo apresenta os resultados da fase sistemática do projeto.
Campo de estudo
Na fase exploratória, a coleta de dados se deu em nove territórios prioritários, escolhidos por meio dos seguintes critérios: 1) possuir movimento social organizado; 2) apresentar área de conflito socioambiental; 3) existir situações ainda não pesquisadas; 4) apresentar gestores e trabalhadores comprometidos com o Sistema Único de Saúde (SUS). Utilizando-se esses critérios, o Distrito ‘Porta do Mundo’ – nome fictício – foi selecionado como um dos territórios. O critério para selecionar esse território na fase sistemática foi a implicação da primeira autora deste artigo com o território, uma vez que ela compõe a equipe do Observatório de saúde das populações do campo – Teia de Saberes e Práticas/OBTEIA, como referência nessa localidade, e apoia o Estado de Minas Gerais (MG) na implantação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência.
‘Porta do Mundo’ está localizada no município de Grão Mogol, norte de MG, distando 51 km da sede municipal por terra e 101 km por pavimentação asfáltica. Grão Mogol14 possui uma população de 15.024 habitantes, com área territorial de 3.885,294 km2 e densidade populacional de 3,87 hab/km2. A população cadastrada pela Unidade Básica de Saúde (UBS) do Distrito é estimada em dois mil habilitantes. Esta UBS, único estabelecimento de saúde existente na localidade, dispõe de uma equipe de Saúde da Família – formada por um Médico, um Enfermeiro, um Técnico de Enfermagem, sete Agentes Comunitários de Saúde – com equipe de Saúde Bucal – formada por um Dentista e um Técnico de saúde bucal. A Unidade de Saúde conta, ainda, com dois trabalhadores ligados aos Serviços Gerais, dois Recepcionistas, três Técnicos de Enfermagem e um trabalhador na Farmácia.
População do estudo e coleta das informações
A fase exploratória da pesquisa foi realizada de fevereiro a junho de 2015, com a participação de movimentos sociais locais. Essa fase baseou-se no desenho da investigação participante13 para mapear os componentes da Política de Saúde para as Populações do Campo e o desenvolvimento de ações de saúde. Foram realizadas quatro reuniões de articulação para inserção dos pesquisadores no campo de estudo. Nesse território, foi desenvolvida a Oficina de Planejamento da Pesquisa, cinco Oficinas na zona rural, uma entrevista coletiva com Agentes Comunitários de Saúde e duas entrevistas individuais com gestores locais da saúde.
A fase sistemática desdobrou-se da fase exploratória da pesquisa com o retorno ao território em dezembro de 2015, a partir de um desenho de cunho etnometodológico13, com a perspectiva epistemológica da investigação emancipatória da deficiência9. Foram utilizadas as seguintes técnicas: observação participante; entrevistas individuais semiestruturadas; debates por meio da roda15. As três técnicas foram aplicadas com auxílio de roteiros com questões norteadoras, sendo que as duas primeiras visavam compreender a realidade local e as percepções dos trabalhadores sobre saúde da pessoa com deficiência do campo. A terceira técnica almejava fortalecer a discussão coletiva, proporcionando a interação intersujeitos e análise das situações.
O convite de participação no estudo foi realizado para todos os trabalhadores, e participaram aqueles que o aceitaram. As observações, as entrevistas e a roda foram realizadas na Unidade de Saúde, sendo que as observações contemplaram, também, o território adscrito. Houve entrevista realizada na residência dos trabalhadores.
Análise das informações
Os dados das observações e da roda foram sistematizados no diário de campo e as entrevistas foram transcritas. O contexto sócio-histórico da produção das entrevistas foi incorporado às análises, assim como as informações provenientes das observações e da roda. Por fim, combinaram-se os dados coletados para Triangulação13.
As percepções dos trabalhadores foram sistematizadas em três grandes eixos de análise: rural, deficiência e saúde. O eixo rural foi considerado sinônimo da denominação ‘campo’ em uma perspectiva mais ampla, o qual corrobora com a concepção de ruralidade16; identificaram-se três categorias relacionadas: contexto sócio-histórico, inserção das políticas públicas e modos de vida. A partir das percepções sobre deficiência, foi composto o modelo analítico por meio da tríade explicativa, com as seguintes categorias: corpo patológico, incapacidade funcional e limitada participação social. Por fim, quanto à saúde, os dados foram organizados como modo de fazer saúde e acesso à saúde.
As normas estabelecidas pela Resolução CNS nº 466/2012 foram observadas. O projeto CAAE foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa.
Resultados e Discussão
Foram entrevistados um Médico, um Enfermeiro, dois Técnicos de Enfermagem e seis Agentes Comunitários de Saúde – dentre os quais, quatro estão lotados no povoado e dois na zona rural –, totalizando dez trabalhadores. A maioria deles mora na “Porta do Mundo” e está envolvida nos processos locais da gestão com seus grupos políticos mais defensores e críticos.
Percepções sobre o rural
A maioria dos trabalhadores teve a experiência de ter morado e/ou trabalhado na saúde da zona rural em algum momento de sua trajetória. Mesmo aqueles que não moram na ‘Porta do Mundo’, geralmente, frequentam o campo no final de semana com familiares e/ou amigos. O povoado do Distrito está localizado às margens da BR-251, e concentra: os comércios, os serviços e edificações públicas (onde não há plantação de eucalipto). Quanto à zona rural, situa-se distante do povoado, em média, 15 km.
Contexto sócio-histórico
As falas dos trabalhadores revelam o contexto sócio-histórico local da ‘Porta do Mundo’ e da região norte de MG. Com base na literatura, notou-se que suas histórias de vida podem ser reconhecidas em três ciclos de desenvolvimento. As políticas desenvolvimentistas foram pautadas por critérios de crescimento econômico de natureza produtivista e consumista, com desrespeito à vida humana e dos ecossistemas, bem como da cultura e dos valores dos povos nos territórios onde os investimentos e as cadeias produtivas se realizaram17. Esse processo provocou a ocupação do território e a consequente retirada da população18, além da reestruturação do sistema de produção daqueles que viviam na zona rural.
O primeiro ciclo se iniciou nos anos 1970, quando a vegetação nativa das chapadas foi substituída pela monocultura de eucaliptos e pinus, e os territórios foram retirados das pessoas que viviam na zona rural19, obrigando-as a se tornarem trabalhadores assalariados. O segundo foi impulsionado pela produção de carvão vegetal e pelo processamento da madeira de eucalipto nas serrarias locais. A grande fazenda, situada na região do povoado, passou a atrair pessoas de diversos locais à procura de trabalho a partir da década de 1990. Por fim, o terceiro se deu a partir de 2006, na preparação da ‘Porta do Mundo’ para a extração do minério de ferro e seu transporte por meio do mineroduto19. Nesse ciclo, trabalhadores foram atraídos novamente para o povoado. As falas dos trabalhadores da saúde sobre o Distrito e o seu cotidiano e história fazem referências aos três ciclos acima apresentados.
‘(O Distrito) é a porta do mundo’, afirmou um trabalhador, se referindo ao fato de o local atrair cidadãos locais e de outros lugares, a fim de usufruírem do crescimento econômico ou contribuírem para o desenvolvimento. Ressalta-se que o norte de MG foi tradicionalmente estigmatizado como lugar de pobreza e miséria, tornando-o alvo de políticas desenvolvimentistas em função da necessidade de superação do subdesenvolvimento imputada a essa região18.
Inserção das políticas públicas no Distrito
Observou-se que os ciclos desenvolvimentistas se correlacionam diretamente com a inserção das políticas públicas na ‘Porta do Mundo’. A partir do segundo ciclo, foram implantadas políticas de saúde, educação, previdência e assistência social para atenderem aqueles que migraram para o Distrito, contemplando tanto o povoado, quanto a zona rural. Diante da dificuldade de acesso à educação para quem vive no campo, a estratégia para se chegar à escola no povoado é o transporte escolar. Segundo os trabalhadores, o tempo de deslocamento pode chegar a quatro horas, fazendo, portanto, que o horário de saída e chegada dos escolares em seus domicílios seja diferente entre aqueles que moram no povoado e na zona rural, mesmo que estudem no mesmo turno.
No terceiro ciclo desenvolvimentista na ‘Porta do Mundo’, houve incremento de políticas para o acesso à energia elétrica e aos serviços de telefonia e comunicação de dados no povoado e no campo. Além disso, banheiros foram construídos nos domicílios da zona rural. O tratamento da água, a coleta de lixo e o calçamento das ruas, entretanto, restringem-se ao povoado. As ruas com calçamento são aquelas próximas à Unidade de Saúde, à escola, ao ginásio poliesportivo, ao campo de futebol e ao Posto Policial. Destaca-se que ‘Porta do Mundo’ foi reconhecida, em 2013, como Distrito de Grão Mogol.
Os elementos descritos acima, que foram produzidos pelo processo sócio-histórico de construção do Distrito, são fatores ambientais e sociais dificultadores, especialmente para aquelas pessoas que apresentam algum tipo de comprometimento corporal. A lesão somada às barreiras apresentadas produzem as deficiências na população em questão, dificultando cada vez mais os acessos.
Modos de vida no povoado e na zona rural
A UBS da “Porta do Mundo” é identificada pela Secretaria de Saúde como um estabelecimento de saúde da zona rural, em uma concepção tradicional e hegemônica descrita na literatura, como um lugar de atraso, o qual precisa de intervenção para se modernizar19. O campo legalmente foi definido por oposição e exclusão às áreas consideradas urbanas16, ou seja, todo espaço de um município que não corresponder às áreas urbanas é considerado como rural.
Identificou-se um paradoxo na concepção de rural na ‘Porta do Mundo’, uma vez que os trabalhadores da Saúde da Família dividem seu território em sete microáreas, sendo quatro no povoado, com 1.311 habitantes, e três na zona rural, com 691 habitantes. Ressalta-se que os usuários têm frequentemente domicílio em ambas as localidades. Segundo a narrativa dos trabalhadores, é comum usuários saírem da zona rural e se mudarem para o povoado quando necessitam de cuidado intensivo e buscam melhores condições de vida.
A motocicleta é o meio de transporte mais utilizado para se transitar entre o povoado e a zona rural, demonstrando que o modo de viver no campo está em transformação, conforme relato:
“[...] E a maioria, hoje teve um avanço, porque antigamente na roça, antes você falava em roça já se pensava o que? Vaca, cavalo[...] Hoje os cavalos virou moto, em tudo quanto é região, as pessoas não tem mais animal, não tem cavalo nem burro. Eles têm moto.. os rapazinhos vão de charrete pra trabalhar pra comprar uma moto, e vai, trabalha e compra a moto, entende?[...] Modernizou muito a roça, em todos os sentidos [...]”. (Entrevistado 8)
As falas dos trabalhadores corroboram com a literatura no que se refere ao reconhecimento do meio rural como o espaço de produção relacionado à atividade agropecuária e artesanal20 como fonte de renda. Nesse sentido, os trabalhadores questionam quem vive no campo e não cultiva horta nem cria animais: “Eu acho muito ruim a pessoa morar na zona rural e não aproveitar a terra” (Entrevistado 5). Eles também reconhecem o campo como lugar de (re)produção social ao falarem dos singulares modos de vida das comunidades da zona rural. Esse reconhecimento da diversidade sociológica do campo corrobora com a concepção de ruralidade16:
“[...] cada localidade nós temos alguma coisa. Por exemplo, o jeito de falar do pessoal do Lamarão [...] Ele pode chegar aqui e ter cem pessoas lá fora, se ele abrir a boca, você vê que é um Lamarão; porque tem um sotaque diferente, um jeito de falar [...] Já o pessoal do São Francisco, para te cumprimentar ele vai dar uma abaixadinha assim. Eu acho que isso é uma questão cultural de cada comunidade [...]”. (Entrevistado 5)
Ainda, os trabalhadores da Saúde da Família são unânimes ao afirmarem que se vive melhor na ‘Porta do Mundo’ atualmente, e alguns deles destacam as melhorias nos modos de vida no campo – “Tudo que você tem na cidade, você tem na roça agora [...] Então assim, a época das vacas magras já passou” (Entrevistado 8); ainda que reconheçam desafios a serem superados. Entretanto, as melhorias apresentadas pelos profissionais não podem ser pensadas como iguais para todos os habitantes do Distrito. As pessoas com deficiência, conforme veremos, ainda apresentam maior vulnerabilidade e menos acesso aos avanços vividos pelos demais moradores.
Percepções sobre deficiência
Diferentemente dos outros tópicos abordados, o tema deficiência não surgiu espontaneamente nas entrevistas nem nas conversas. Isto revela que essa não é uma questão que faça parte das preocupações cotidianas deles. A deficiência física foi mais frequentemente abordada pelos trabalhadores, mas também houve menção às deficiências auditiva e intelectual, sendo esta última tratada como transtorno mental.
A deficiência é narrada pelos trabalhadores, na perspectiva individual, como infortúnio – “Graças a Deus na minha área nunca teve deficiente...” (Entrevistado 4) –, tragédia pessoal e drama familiar – “[Ser deficiente] pode acabar com a vida...” (Entrevistado 4). Essa forma de pensar corrobora com o modelo biomédico da deficiência6, o qual ressalta seu determinismo biológico e é criticado pelo modelo social7, o qual destaca o manejo coletivo da deficiência, e, por este motivo, reivindica mudanças nos conceitos e atitudes referentes ao tema.
Ao mesmo tempo, os trabalhadores da ‘Porta do Mundo’ reconhecem necessidades específicas das pessoas com deficiência, e se organizam para atendê-las, identificando suas vulnerabilidades conforme as diretrizes da Atenção Básica e da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência1,3. A partir das percepções dos trabalhadores da ESF, identificou-se o tripé das categorias analíticas (corpo patológico, incapacidade funcional e limitada participação social) que explicam a deficiência na perspectiva dos mesmos.
Fundamentando-se nos saberes biomédicos, as necessidades das pessoas com deficiência são centrais nesse tripé – “Tem um probleminha que precisa ser olhado mais de perto” (Entrevistado 2). Para eles, a pessoa com perda auditiva que faz uso de aparelho de amplificação sonora, por exemplo, não é reconhecida como pessoa com deficiência, pois não apresenta restrição funcional nem na participação social, estando dispensada de intervenções de saúde específicas.
A equipe da Saúde da Família percebe ainda, como noção de deficiência, a existência de problemas sociais que se relacionam com a transgressão dos padrões considerados normais no Distrito, tais como: uso de álcool e outras drogas, desemprego, gravidez na adolescência e pobreza. De acordo com a concepção cultural da deficiência na literatura, a anomalia humana e a experiência de opressão social podem ser determinadas por expectativas sociais e situação econômica de uma sociedade21.
Corpo patológico
Observou-se que a deficiência é percebida pelos trabalhadores com estranhamento, dada a visão de anormalidade quanto às diferenças e marcas dos corpos:
“[...] aquela pessoa aérea, e assim parece que não tem discernimento nenhum [...] A forma dele andar ou de se expressar ou conversar [...] Você olha pra pessoa e ela é assim parece ter nada, mas assim na forma como ela conversa com você, você vê que ela tem algum tipo de deficiência pela fala, forma, gesto [...]”. (Entrevistado 6)
Ainda, para os entrevistados, deficiência e diagnóstico patológico estão intrinsecamente relacionados: “[A pessoa estava] sem patologia nenhuma além da deficiência auditiva” (Entrevistado 1). As falas dos trabalhadores apontam para a importância das ações curativas e de reabilitação para esses corpos desviantes no âmbito da atenção à saúde. Segundo o modelo biomédico da deficiência6, tais ações são prioritárias para reverter ou atenuar os sinais da anormalidade.
Incapacidade funcional
Para os trabalhadores da Saúde da Família, a incapacidade funcional se relaciona diretamente com a dependência parcial ou total do corpo patológico nas atividades cotidianas: “Não daquela deficiência que a pessoa é inoperante que a pessoa não pode fazer nada, mas tem uma coisa diferente” (Entrevistado 2). Eles afirmam que essa dependência do corpo patológico no desempenho funcional se dá em função de desvantagens biológicas:“[...] É pessoa que não consegue desenvolver suas atividades de vida diária ou de vida diária instrumental sozinha, não tem independência para isso, por alguma limitação física ou mental [...]”. (Entrevistado 1)
Esse relato corrobora com o modelo biomédico no qual a deficiência é determinada como consequência do corpo com impedimento6. O modelo social da deficiência inova na concepção de que a deficiência é produto da opressão social, explicitando-se a relação de desigualdade imposta por ambientes com barreiras sociais a corpos com impedimentos. Nessa perspectiva, nem todo corpo com impedimento vivencia a opressão pela deficiência7.
Limitada participação social
Os trabalhadores da Saúde da Família associam deficiência aos ‘acamados’ que, não necessariamente, estão limitados ao leito, podendo estar restritos ao domicilio e ao convívio com a família. A pessoa com deficiência, geralmente, não frequenta a escola nem trabalha fora, ainda que desenvolva habitualmente atividades domésticas. No modelo biomédico da deficiência, restringe-se o corpo com impedimentos à intimidade da esfera privada da vida, e o seu confinamento se justifica pela desvantagem natural6.
Enquanto o afastamento do convívio social é naturalizado pelos trabalhadores, o isolamento social, acompanhado de denúncia de falta, omissão ou abuso dos pais ou do responsável, gera incômodo, mobilizando a equipe a intervir com o Conselho Tutelar no atendimento às pessoas em situação de risco psicossocial, para defender seus direitos fundamentais. No modelo biomédico da deficiência, o isolamento social e a institucionalização são explicados pelo fracasso da intervenção terapêutica no corpo patológico6.
Na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a deficiência é definida expressamente como restrição de participação, sendo produto da interação dos impedimentos corporais com um ambiente com barreiras à diversidade corporal6. Nessa perspectiva, a sociedade deve reduzir as desvantagens das pessoas com deficiência por meio de políticas sociais que promovam a igualdade de participação.
Percepções sobre a saúde
A Atenção Básica se fundamenta no princípio da resolutividade, identificando as necessidades de saúde, articulando tecnologias de cuidado nas intervenções setoriais e intersetoriais1-3. Mesmo assim, os trabalhadores da Saúde da Família na ‘Porta do Mundo’ assumem que têm dificuldades em lidar com situações relacionadas às pessoas com deficiência. O desenvolvimento de ações intersetoriais é um desafio, ainda que reconheçam a importância da participação de outros setores. Os entrevistados avaliam como exitosa a intervenção do Núcleo de Apoio à Saúde da Família, a qual foi interrompida devido a dificuldades no transporte da sede à Unidade de Saúde, fazendo com que os trabalhadores da Saúde da Família reivindicassem a ampliação da equipe.
Modo de fazer saúde
Na ‘Porta do Mundo’, os principais focos de atenção estão no âmbito da saúde da criança e da mulher e no atendimento às condições crônicas – hipertensão arterial, diabetes, tuberculose, hanseníase e saúde mental. A deficiência, portanto, não é prioridade entre as ações desenvolvidas pelos trabalhadores. Historicamente, a saúde da pessoa com deficiência foi negligenciada pelo poder público, deixando, à sociedade civil, tal responsabilidade.
Corroborando com as diretrizes da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência1, os trabalhadores da Saúde da Família desenvolvem ações para identificação precoce das deficiências ao acompanharem o crescimento e desenvolvimento infantil – “Eu pego uma criança de seis meses e ela não senta. Aí eu tenho que observar uma criança de seis meses que não senta, se ela tem algum tipo de deficiência” (Entrevistado 6).
Os trabalhadores da ‘Porta do Mundo’ desenvolvem, há mais de dez anos, atividades para garantir o cuidado integral das pessoas com deficiência, ofertando assistência com equipe multidisciplinar, e articulando os serviços de saúde para atender as necessidades dos usuários nas condições e tempo adequados. Essa prática corrobora com os princípios da Atenção Básica, da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência e da Política de Saúde para as Populações do Campo1-3, conforme o relato:
“[...] A menininha nasceu com síndrome de down, quando ela chegou do hospital, eu fui visitar [...] quando eu cheguei lá na casa dela, eu olhei, e observei, ela estava mamando tão devagarinho, assim, eu olhei as características dela, o choro dela, um choro bem fraquinho sabe, ai eu voltei, orientei ela direitinho, falei com ela que ela tinha que ter cuidado para dar de mamar, que ela era pequenininha e tal. Eu falei com a médica: óh, Dra. Eu quero que você vá comigo ver/ fazer visita fulana de tal porque eu fui ver a nenenzinha dela. Eu acho que essa nenenzinha dela tá com problema. Aí ela foi [...] Aí na hora a médica chamou ela, conversou com ela: sua filha tem um problema, mas tem tratamento. Vou te encaminhar para um médico, vai dar tudo certo. Encaminhou ela para Grão Mogol, para o cardiologista. Foi para Belo Horizonte, fez a cirurgia e hoje ela tá com 13 anos [...]”. (Entrevistado 8)
Além da dimensão técnica das ações desenvolvidas pelos trabalhadores, faz-se muito presente a dimensão da caridade. Eles relatam que estão de prontidão para ‘ajudar’ a quem necessita, estabelecendo relações de solidariedade e reciprocidade entre trabalhadores e usuários, as quais são produzidas pelo sentimento de aliança22. Por se reconhecerem como responsáveis pelos usuários, os trabalhadores se preocupam com o outro e se ocupam em atendê-los a qualquer momento, disponibilizando-se pelo telefone particular ou pessoalmente, inclusive fora do horário de trabalho. Essa atitude acolhedora se processa na esfera da intimidade, uma vez que os usuários são seus familiares, amigos ou vizinhos.
A não correspondência, no entanto, pode destruir tais alianças, enfraquecendo suas relações e provocando desavenças entre trabalhadores e usuários. A relação de desconfiança é exemplificada, pelos trabalhadores, nas situações em que os usuários se recusam a receber o Agente Comunitário de Saúde no domicílio. Assim, o ciclo da dádiva e contradádiva pode ser rompido quando há recusa em dar, em receber ou em retribuir a ajuda, podendo causar conflitos22. Nessas situações em que há troca de agressividades, os usuários demonstram sua insatisfação quando seus problemas não são resolvidos, desconfiando da conduta e responsabilizando os trabalhadores, além de se queixarem com colegas ou superiores. Por outro lado, os trabalhadores se apropriam do discurso normativo administrativo e biomédico para se imporem, desconsiderando os aspectos socioculturais dos usuários.
Acesso à saúde
As falas dos trabalhadores revelam singularidades referentes à vida no povoado e na zona rural, assim como das pessoas com ou sem deficiência, revelando as condições de vulnerabilidade na vida social que são influenciadas pelos aspectos sócio-históricos, e que podem determinar as condições de vida e saúde do sujeito.
Tendo como base a literatura disponível, o acesso à saúde pode ser discutido em duas dimensões de acessibilidade: a geográfica e a sócio-organizacional23. A geográfica é uma dimensão determinante para o efetivo uso dos serviços de saúde, podendo facilitar ou dificultar o acesso das pessoas. As barreiras geográficas são citadas por todos os trabalhadores na ‘Porta do Mundo’, sendo que a literatura discute sobre a inadequação do transporte e a longa distância a ser percorrida na zona rural10.
O fator ambiental facilitador do acesso ao povoado é a proximidade entre o domicílio e a Unidade de Saúde, fazendo com que as pessoas sem deficiência e os trabalhadores desloquem-se nesse trajeto, na maioria das vezes, caminhando. Apesar da proximidade, geralmente, as pessoas com deficiência necessitam de transporte sanitário ou particular. Ressalta-se que, no povoado, é mais fácil conseguir transporte sanitário devido à organização do sistema logístico, não havendo, no entanto, transporte sanitário adaptado para pessoas com deficiência.
Na zona rural, os trabalhadores da Saúde da Família abordam duas barreiras geográficas: barreira física – irregularidade no solo, aclive e declive na topografia – e distância entre o domicílio e a Unidade de Saúde. Em geral, as pessoas com ou sem deficiência e os trabalhadores não se deslocam a pé neste trajeto. As pessoas sem deficiência que vivem no campo são usualmente atendidas pelo transporte escolar que faz o percurso zona rural-povoado. Reiteram-se as limitações do transporte escolar no que se refere ao longo tempo de deslocamento. Além disso, essa estratégia resolve parcialmente o problema, porque, em alguns casos, os motoristas se recusam a realizar o transporte. Os ônibus são disponibilizados conforme o calendário escolar, e as pessoas necessitam se locomover até a parada de ônibus. Observa-se, portanto, maior dificuldade de acesso ao transporte escolar, variando de acordo com a região da zona rural.
Vale ressaltar que as narrativas dos trabalhadores revelaram as fragilidades individuais e precariedades do acesso ao serviço de saúde da pessoa do campo com deficiência que necessita de transporte sanitário ou particular. Essa população sofre a desigualdade de modo único e qualitativamente diversa daquela vivida pela população da zona urbana com deficiência ou pela população do campo sem deficiência. Ressalta-se, ainda, que cada pessoa ou grupo populacional experimenta distintas opressões e privilégios, sendo impossível analisar a dupla desvantagem a partir de uma mera soma das vulnerabilidades. Nesse sentido, deve-se aprofundar na compreensão das relações de poder e dinâmicas discriminatórias, revelando a realidade social na perspectiva da interseccionalidade.
Em relação à acessibilidade sócio-organizacional, priorizou-se o atendimento da zona rural no turno vespertino, podendo ser atendidos de manhã em caso de urgência. Além disso, para diminuir a desigualdade de acesso entre as pessoas do povoado e da zona rural, aqueles que vivem no campo podem agendar atendimento por telefone, evitando, assim, que se desloquem até a Unidade de Saúde.
Os trabalhadores organizam o atendimento para que sejam atendidos, primeiramente, aqueles que vivem no campo, uma vez que o transporte escolar tem horário fixo. Em alguns casos, entretanto, as pessoas retornam sem atendimento porque o médico não as atendeu. Os trabalhadores na ‘Porta do Mundo’ não citam a prioridade de atendimento para pessoas com deficiência apesar de normativa vigente sobre o tema24.
Os trabalhadores da Saúde da Família relataram que o número de vagas para consultas e exames especializados é insuficiente, resultando no longo tempo de espera. Diante disso, os usuários têm recorrido aos prestadores privados que operam valores inferiores ao atendimento particular, violando-se o direito à saúde gratuita25 e podendo gerar barreira de acesso em função da exigência de pagamento pelo usuário23.
O Plano de Ação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência em MG propõe o desenho dessa rede temática sem aprofundar no diagnóstico da capacidade instalada na Atenção Básica, bem como sem explicitar suas atribuições como coordenadora do cuidado, ignorando, ainda, o fato de a pessoa viver na zona rural ou não26. Grão Mogol não será contemplado com Centro Especializado em Reabilitação, porque foi pactuado, na sua macrorregião de saúde, entre os Secretários de Saúde, que seriam implantados cinco serviços de reabilitação, os quais estão em funcionamento. Ainda assim, os trabalhadores da Saúde da Família relatam dificuldade de acesso à reabilitação das pessoas com deficiência.
Considerações finais
Na ‘Porta do Mundo’, as políticas desenvolvimentistas e a inserção das políticas públicas se correlacionam diretamente com a transformação do modo de vida na zona rural. Apesar das melhorias especialmente no povoado, há necessidade de se qualificarem as ações implantadas e levar em consideração o recorte da deficiência, visto que foi percebido que ainda existem barreiras vivenciadas por esta população. Além disso, é necessário ampliar efetivamente as políticas públicas para a zona rural, dentre elas, aquelas destinadas ao saneamento básico.
A dupla vulnerabilidade da pessoa do campo com deficiência não é abordada expressamente em documentos oficiais da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência ou Política de Saúde para as Populações do Campo, nem discutida na literatura nacional. Pesquisas devem ser desenvolvidas para revelar a interação entre essas duas formas de desvantagens, as quais geram opressão conjuntamente, coexistindo e reforçando-se mutuamente na produção das desigualdades sociais. Essa interpretação da realidade visa subsidiar o enfrentamento e superação das barreiras de acesso à saúde das pessoas com deficiência do campo.
O desenho da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência deve ser revisto, uma vez que os resultados dessa pesquisa evidenciaram as barreiras de acesso à saúde das pessoas com deficiência do campo na ‘Porta do Mundo’. Essa repactuação do Plano de Ação deve ser conduzida de forma ascendente, do nível local para o Estadual, discutindo-se a operacionalização da rede baseada no modelo social da deficiência e na coordenação do cuidado pela Atenção Básica. O desafio é implantar políticas de saúde que garantam os princípios do Sistema Único de Saúde, considerando contextos específicos e experiências distintas na perspectiva da interseccionalidade.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Jun 2017 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2018
Histórico
-
Recebido
11 Jul 2016 -
Aceito
13 Fev 2017