Resumos
Este artigo discute a possibilidade de uma poética de cuidado e atenção às formas de vida em uma instituição de longa permanência para idosos. O texto ancora-se em uma etnografia que ocorreu em um abrigo para idosos, realizada por meio de observação participante, entrevistas e acompanhamento da vida cotidiana. Durante o trabalho de campo, uma das atividades centrais era um Círculo de Leitura promovido pela instituição. Ao acompanhar essas atividades, a literatura provocava os afetos e memórias dos participantes e constituiu uma forma de cuidado e produção de saúde. Nesse contexto, ler e rememorar também era produzir saúde. Procurando analisar as vivências no Círculo de Leitura, o texto indaga o que pode a literatura e quais experiências provocam. A busca é por entender como a literatura afeta os idosos.
Palavras-chave
Envelhecimento; Literatura; Asilo; Afeto; Etnografia
This article discusses the potential of poetics of care in a long-term care facility for older persons. The text is anchored in an ethnography conducted in a care home using participant observation, interviews, and accompanying day-to-day life in the home. One the central activities during field work were reading circles organized by the home. It was observed that the literature triggered affects and memories among the participants and constituted a form of care and production of health. Within this context, reading and reminiscing also produce health. Analyzing the experiences of the reading circles, the text explores the potential of literature and the experiences provoked by reading, seeking to understand how it affected the residents.
Keywords
Aging; Literature; Care home; Affect; Ethnography
El objetivo de este artículo es discutir la posibilidad de una poética de cuidado y atención a las formas de vida en una institución de larga permanencia para ancianos. El texto está anclado en una etnografía que ocurrió en un asilo para ancianos, realizada por medio de observación participante, entrevistas y acompañamiento de la vida cotidiana. Durante el trabajo de campo, una de las actividades centrales era un círculo de lectura promovido por la institución. Al acompañar esas actividades, la literatura provocaba los afectos y memorias de los participantes y se constituyó como forma de cuidado y producción de salud. En ese contexto, leer y rememorar también era producir salud. Buscando analizar las vivencias en el círculo de lectura, el texto indaga lo que puede la literatura y cuáles son las experiencias que provoca. La búsqueda es entender de qué forma la literatura afectaba a los ancianos.
Palabras clave
Envejecimiento; Literatura; Asilo; Afecto; Etnografía
Introdução
Este artigo tem por objetivo discutir a possibilidade de uma poética de cuidado e atenção às formas de vida em uma instituição de longa permanência para idosos (ILPI). De maio de 2017 a maio de 2018, realizamos uma etnografia no Lar da Feliz Idade (nome fictício), instituição que abrigava por volta de cinquenta velhos e velhas, localizado na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Durante esse período, participamos de todas as atividades, sobretudo das rodas de leitura, sempre indagando o que pode a literatura e quais experiências provoca. Tentávamos entender como a literatura afetava os idosos. A hipótese era que, se compreendêssemos isso, poderíamos, também, entender um pouco da poética de cuidado11 Ferreira JBO. Espelhos partidos têm muito mais luas: por uma poética das formas-de-vida. Ecos. 2017; 7(2):235-244.. Poética aqui entendida como a criação do fazer poético e o cuidado como atenção sensível à vida e de afirmação de direitos de existência22 Ferreira JBO. Por uma poética da atenção às formas de vida. In: Pereira BA. Velhice e a literatura como potência de vida. Simões Filho: Devires; 2021. p.11-16..
No decorrer da pesquisa, fomos percebendo que o tema velhice era premente. Sabemos que a população brasileira está envelhecendo de forma exponencial. Além disso, o termo velhice é múltiplo e não pode ser encapsulado em uma única forma. Vidas diferentes resultam em velhices diferentes, cada uma com sua trajetória.
A literatura sobre o tema nota que a velhice não pode ser considerada uma abstração, pois é uma realidade vivida, repleta de experiências singulares nas quais a pluralidade de vidas não se pode situar apenas em conceitos ou noções33 Debert GG. A invenção da terceira idade e a rearticulação de formas de consumo e demandas políticas. Rev Bras Cienc Soc. 1997; 12(34):39-56.. A velhice não é um estado, mas um constante e sempre inacabado processo de subjetivação33 Debert GG. A invenção da terceira idade e a rearticulação de formas de consumo e demandas políticas. Rev Bras Cienc Soc. 1997; 12(34):39-56.. Beauvoir44 Beauvoir S. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1979. já alertava para o fato de que encaixar a vida em categorias não consegue representar o que é essa fase nem sua grandeza. Fomos, então, aprendendo, com essas formulações e com a pesquisa, que era preciso estudar a velhice considerando sua história e a rede de relações na qual ela é constituída.
A velhice, cada vez mais detalhada pela fisiologia e pela Medicina, foi atrelada à degeneração dos corpos e à perda das funções vitais. Velhice e doença passaram a ser relacionadas e as representações sobre a experiência de envelhecer se tornaram negativas. Estar fora do mundo produtivo é também um fator relevante para caracterizar a velhice. Nesse contexto, há a imagem da velhice asilada, que sobrevive à custa de cuidadores e que não possui nenhuma independência55 Tótora S. Velhice: uma estética da existência. São Paulo: Educ-Fapesp; 2015..
Essa imagem reflete a história dos asilos. Asilo, por definição, é uma casa de assistência social destinada ao sustento e à proteção de pessoas desamparadas. Como asilo é um termo abrangente, novas nomenclaturas foram surgindo, tais como: casa de repouso, ancionato e instituições de longa permanência para idosos66 Araújo CLO, Souza LA, Faro ACM. Trajetória das instituições de longa permanência para idosos no Brasil. Hist Enferm Rev Eletronica [Internet]. 2010 [citado 28 Mar 2022]; 1(2):250-262. Disponível em: http://pesquisa.bvsalud.org/enfermagem/resource/pt/bde-25611
http://pesquisa.bvsalud.org/enfermagem/r...
. No Brasil, os primeiros asilos abrigavam idosos em situação de pobreza e exclusão social. O Asilo São Luiz para Velhice Desamparada, criado em 1890, foi a primeira instituição para idosos no Rio de Janeiro. Considerado modelar para a época, o São Luiz contava com o apoio da Ordem Franciscana, cujas freiras cuidavam dos internos. A mediação com o mundo externo era feita pela instituição; então, ingressar naquele asilo significava romper vínculos com a família e com a sociedade77 Groisman D. Asilos de velhos: passado e presente. Estud Interdiscip Envelhec. 1999a; 2(2):67-87.,88 Groisman D. Duas abordagens aos asilos de velhos: da Clínica Santa Genoveva à história da institucionalização da velhice. Cad Pagu. 1999b; 13: 161-190..
Como a palavra “asilo” remete a uma conotação negativa, a Sociedade Brasileira de Gerontologia e Geriatria sugeriu que fosse adotada a denominação Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI) ou clínicas geriátricas. Tais locais, além da assistência social, integram-se à rede de assistência à saúde, ou seja, tornam-se mais que um abrigo99 Camarano AA, Kanso S. As instituições de longa permanência para idosos no Brasil. Rev Bras Estud Popul. 2010; 27(1):233-235.. As ILPIs precisam oferecer assistência gerontogeriátrica, dispor de uma equipe para suporte e, principalmente, oferecer um ambiente doméstico que preserve a intimidade e a identidade dos pacientes. Como a velhice se apresenta de forma singular para cada pessoa, as internações ocorrem de diferentes modos. Assim, cada idoso vai lidar com a institucionalização à sua maneira77 Groisman D. Asilos de velhos: passado e presente. Estud Interdiscip Envelhec. 1999a; 2(2):67-87.,88 Groisman D. Duas abordagens aos asilos de velhos: da Clínica Santa Genoveva à história da institucionalização da velhice. Cad Pagu. 1999b; 13: 161-190..
Este artigo, então, vai se voltar para a experiência do envelhecimento em uma ILPI, tentando explorar como a literatura afeta e pode transformar os idosos de uma instituição de longa permanência. Há uma vasta bibliografia que aborda a velhice: Beauvoir44 Beauvoir S. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1979., Bosi1010 Bosi E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras; 1999., Debert33 Debert GG. A invenção da terceira idade e a rearticulação de formas de consumo e demandas políticas. Rev Bras Cienc Soc. 1997; 12(34):39-56., Haddad1111 Haddad EGM. A ideologia da velhice. 2a ed. São Paulo: Cortez; 2017., Neri1212 Neri AL, Fortes-Burgos ACG. Processos de envelhecimento saudável. Geriatr Gerontol. 2009; 3(2):49-52., Tótora55 Tótora S. Velhice: uma estética da existência. São Paulo: Educ-Fapesp; 2015.. Este artigo se vale também dessa produção. Ainda há poucos trabalhos que se dedicam à relação entre literatura, asilo e velhice. Uma das exceções é Tótora55 Tótora S. Velhice: uma estética da existência. São Paulo: Educ-Fapesp; 2015., que escreveu sobre envelhecimento e poesia. Contudo, dentro do contexto asilar, não encontramos trabalhos sobre a temática e, principalmente, textos que indagassem a possibilidade de uma poética de cuidado e atenção às formas de vida em uma ILPI.
Este artigo foi organizado da seguinte forma: na próxima seção, buscaremos descrever a metodologia, falar um pouco da etnografia realizada, apresentar o cenário da pesquisa e descrever o Círculo de Leitura ali desenvolvido. Depois, sempre ancorados na pesquisa, procuraremos analisar se as vivências dentro do Círculo de Leitura podem, também, se constituir como experimentação de afetos e atos de criação de vida. Assim, a literatura seria forma de cuidado e produção de saúde.
Etnografia e afeto
De maio de 2017 ao final de maio de 2018, realizamos uma pesquisa etnográfica por meio de observação participante, de entrevistas e de acompanhamento da vida dos profissionais e dos idosos. Trata-se, portanto, de uma pesquisa qualitativa que buscou se aproximar do fazer etnográfico, procurando, acima de tudo, as concepções dos interlocutores sobre o envelhecimento e sobre a literatura.
Aprendemos a fazer etnografia lendo etnografias, como a de Malinowski1313 Malinowski B. Argonautas do pacífico ocidental. São Paulo: Abril Cultural; 1978. A partida de uma expedição marítima; p.151-159. (p. 21), em “Os argonautas do Pacífico Ocidental”. O antropólogo escreveu que o autor da etnografia é seu próprio cronista e historiador e sua fonte se ancora no relato dos acontecimentos que estão “no comportamento e na memória dos homens vivos”. Outros autores utilizados na pesquisa foram: Favret-Saada1414 Favret-Saada J. Ser afetado. Cad Campo. 2005; 13(13):155-161., Goldman1515 Goldman M. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia. Rev Antropol (Sao Paulo). 2003; 46(2):445-476. e Myerhoff1616 Myerhoff BG. Remembered lives: the work of ritual, storytelling, and growing older. Ann Arbor: University of Michigan Press; 1992.. Se em Favret-Saada1414 Favret-Saada J. Ser afetado. Cad Campo. 2005; 13(13):155-161. a etnografia surgiu como uma afetação no próprio antropólogo, Goldman1515 Goldman M. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia. Rev Antropol (Sao Paulo). 2003; 46(2):445-476., por sua vez, afirmou que fazer etnografia era mais do que a observação; o fazer etnográfico é da ordem do devir, uma forma de experimentar a vida, de escapar de meras representações, de desdobrar as diferenças, de experimentar encontros inesperados. É sair da sua condição, desconstruindo-se em campo por meio dos afetos que são produzidos. Myerhoff1616 Myerhoff BG. Remembered lives: the work of ritual, storytelling, and growing older. Ann Arbor: University of Michigan Press; 1992. foi importante para este estudo, pois escreveu uma etnografia sobre centros para idosos, captando as narrativas dos velhos e descrevendo suas capacidades criativas. E era na capacidade criativa que estávamos interessados.
Pensando nesses movimentos teórico-metodológicos, acompanhamos, sistematicamente, as atividades do Lar da Feliz Idade. Os contatos não se restringiram às oficinas, pois foi sendo evidenciada a importância de estarmos com os moradores da instituição para compreender melhor as suas rotinas, o que pensavam e faziam. Como a etnografia é uma forma de aproximação das experiências dos interlocutores, nada melhor do que buscar as formas prioritárias, por eles eleitas, para se pensar em suas existências. Foi assim que dedicamos especial atenção ao Círculo de Leitura.
Há múltiplas formas de se fazer etnografia. Uma delas, a que tentamos fazer, é a de viver e a de escutar o que as pessoas envolvidas no Círculo de Leitura produziam, buscando acessar outros saberes, com a intenção de compreendê-los em um espaço de diferença. Nesse tempo, utilizamos um caderno para anotar as cenas, as narrativas, as sensações, as percepções e os pensamentos que os debates e encontros provocavam, bem como as informações detalhadas fornecidas por voluntários de outras atividades e por cuidadoras. Esses momentos foram importantes, pois tais trabalhadores se tornaram nossos interlocutores.
O Lar da Feliz Idade
O Lar da Feliz Idade é uma ILPI localizada na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. É uma instituição de tradição judaica. Os judeus são a maior parte dos residentes, que seguem a religião, alimentam-se de comida kosher e, muitos deles, ainda falam iídiche ou hebraico. A casa abriga em média cinquenta residentes, sendo a maior parte pagante. Uma parcela bem menor reside no asilo com mensalidade doada pela comunidade judaica do Rio de Janeiro. A casa conta com 13 voluntários no total (psicóloga, fisioterapeuta, terapia ocupacional, arteterapia, médico; três voluntários são da diretoria e quatro, do Círculo de Leitura). Além dos voluntários, há ainda os profissionais contratados da parte administrativa da casa, da portaria e da limpeza. Embora tivéssemos contato com todos durante a pesquisa, concentramos nosso olhar nos idosos internos e nos voluntários.
Quando entramos no Lar da Feliz Idade, percebemos uma casa antiga, contudo muito bem cuidada e reformada, composta por dois andares com diversos quartos, individuais ou compartilhados. Alguns equipados para pacientes portadores de doenças que requeriam mais atenção. Havia também, nesse andar, duas enfermarias. Cabia às enfermeiras distribuir, pela manhã, à tarde e no final da noite, remédios e lanches. A quantidade de residentes variava de ano para ano, mas, no período em que estivemos no trabalho de campo, a casa contava com cinquenta moradores. A casa era arejada, com um bonito jardim, sala de televisão, refeitório e sala para arteterapia. Na época, a mensalidade para morar variava entre seis mil reais e dez mil reais, considerada, pois, uma casa de alto padrão no Rio de Janeiro.
No que se refere ao funcionamento, devemos registrar que a portaria do Lar da Feliz Idade, por medida de segurança, exigia que se preenchesse um formulário com o nome, o número de identidade e o horário de entrada e saída. As voluntárias e os trabalhadores usavam um crachá para se identificar. Ao entrar na casa, havia um corredor enorme, com algumas salas da administração, que conduzia a uma sala, com piano, sofá, televisão, mesa, várias cadeiras, que dava acesso ao refeitório. Era nessa sala que a maioria dos residentes ficava na maior parte dos finais de semana. Nesse espaço de socialização, muitos assistiam à televisão.
O refeitório era amplo e acessível àqueles que usavam cadeiras de rodas. Ali se serviam tanto o almoço, das 11 horas às 12h30min, quanto o jantar, das 17 horas às 18h30min, sempre com comidas kosher. Saindo do refeitório, nos deparamos com um jardim muito bem cuidado, onde muitos residentes gostavam de tomar sol pela manhã, principalmente nos poucos meses frios do Rio de Janeiro.
A casa oferecia, além de enfermeiras e médicos, o serviço de cuidadoras, que acompanhavam os residentes durante todo o dia. Elas os levavam ao banheiro e observavam o horário prescrito para remédios específicos, guardavam o dinheiro deles, davam banho neles e trocavam suas roupas. Era uma assistência permanente. Contudo, a instituição não conseguia oferecer uma cuidadora para cada residente; então, a diretoria da instituição aconselhava que a família contratasse o serviço de uma cuidadora para que o residente tivesse apoio durante todo o dia.
Dentre as muitas atividades ali realizadas, o Círculo de Leitura tornou-se central na pesquisa. Aos sábados, ao chegar ao Lar da Feliz Idade, os participantes faziam uma roda com as cadeiras do refeitório e anotavam, em uma espécie de ata, os nomes dos presentes e o título da leitura proposta. Só então começavam a ler, com o auxílio de, pelo menos, duas voluntárias por sábado, pois as duas horas de leitura, sempre de 14h30min às 16h30min, poderiam se tornar cansativas por requererem voz alta e pausada. Assim, as voluntárias se revezavam durante o horário dedicado ao Círculo de Leitura. Quanto à escolha do texto, era realizada de comum acordo entre os participantes, sem quaisquer critérios preestabelecidos. Além das voluntárias, participavam por volta de dez residentes assíduos, mas em algumas ocasiões o número chegava a 15. A média de idade dos residentes participantes era de 80 anos – o mais velho, Sr. Eduardo, tinha 95 anos. O gênero predominante era o feminino, tanto da oficina quanto em relação à moradia na casa.
O Círculo não tinha o objetivo de ser um grupo clínico. Contudo, havia uma troca marcada por ressonâncias. Ali se discutia gostos de comida em comum, filmes que tinham marcado gerações, episódios de dificuldades com o corpo, entre vários outros aspectos, que ganhavam força quando compartilhados. Aquele não era um momento de encontro com o outro, pois modificava a todos que estavam ali presentes. Como esperamos demonstrar no decorrer do artigo, a literatura afetava os participantes e propiciava nova forma de ver a vida e lidar com o cotidiano. Naquelas ocasiões, a leitura era uma maneira de instigar as discussões e propiciava o contato, o sentar ao lado e o corpo a corpo que também permitiam conhecer outros saberes, outras realidades e opiniões.
Gostaríamos de fazer uma observação antes de prosseguir. Apesar de conseguirem acompanhar as leituras, de se lembrarem de idiomas que aprenderam ainda muito novos, de debaterem assuntos complexos, os participantes do Círculo estavam presos a um corpo que enfrentava dificuldades, que em alguns casos se locomovia graças a uma cadeira de rodas, que se defrontava com a falta de memória. Os privilégios materiais, pois eram de classes mais abastadas, conferiam certo conforto, mas não impediam a solidão, as doenças e as limitações. Descrever as possibilidades da leitura não implica uma visão romantizada da velhice e dos velhos em uma ILPI. Antes, o intuito é ver nas brechas, nas criações, formas de extrapolar tais características e situações. Assim, depois de comentar sobre a etnografia e descrever rapidamente o cenário da pesquisa desenvolvida, passaremos, então, a analisar os achados etnográficos.
Resultados e discussão
Levados pela dinâmica da etnografia, buscamos acompanhar o Círculo de Leitura no Lar da Feliz Idade, onde eram lidos, todos os sábados, diferentes tipos de textos literários. Mas o que é literatura? Para Antônio Candido, literatura é uma forma de criação que percorre diferentes culturas, como os folclores, os chistes, os poemas e as formas complexas da produção escrita. Essas fabulações modificam, transformam e permitem que se viva “dialeticamente”, pois “a literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate”1717 Candido A. Vários escritos. São Paulo: Ouro Sobre Azul; 2003. O que é literatura? (p. 177). Literatura, segundo Candido1717 Candido A. Vários escritos. São Paulo: Ouro Sobre Azul; 2003. O que é literatura?, é uma manifestação universal, um instrumento de educação com grande poder de humanização. Pode ser um meio para desmascarar situações de restrição de direitos ou de sua negação. É também resistência.
A literatura, além da prática da escrita, é o contato da experiência da linguagem com outras possibilidades de existência; é a produção de uma nova realidade1818 Ferreira JBO, Martins SR, Vieira FO. Trabalho vivo como apropriação do inapropriável e criação de formas de vida. Trab (En)Cena. 2016; 1(1):29-49.. No contato com essa nova dimensão da realidade, a escrita possibilita a criação de uma nova língua por meio da mesma língua. Segundo Deleuze1919 Deleuze G. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34; 2013. (p. 11), torna-se uma língua estrangeira que, ao estar sempre em movimento, cria novas formas e “extravasa toda matéria vivível ou vivida”.
Todorov2020 Todorov T. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel; 2009. sustentou que o escritor não faz imposição de uma tese, mas incita o leitor a formular questões, a ser ativo nesse processo sempre inacabado. Para o filósofo búlgaro, a “literatura pode muito”, uma vez que permite o encontro com realidades e seres diferentes de nós. E, com esse contato, possibilita a criação de novos territórios que podem fazer emergir formas de vida.
A literatura tem o poder de trazer à tona eventos, momentos, pois instiga a memória. A memória é uma linha que guia episódios passados ao que se vivencia agora. Para Bosi1010 Bosi E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras; 1999., o velho utiliza a memória para se ocupar do próprio passado. O velho não guarda passivamente suas memórias, ele as busca, as interroga, precisa delas. Desse modo, o velho, ou seja, o homem ou a mulher, que já viveu grande parte de sua vida, ao lembrar o passado não está descansando, por um instante, das lides cotidianas. Não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho, está ocupando, consciente e atentamente, o próprio passado, a substância mesma da sua vida e fazendo com que a história se reproduza de geração a geração, criando muitas outras. Isso porque cada geração tem sua memória de acontecimentos, que permanecem como pontos de demarcação em sua história, que pode reproduzir-se, manifestando muitas outras histórias que prolongam a original por meio da memória de outras pessoas1010 Bosi E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras; 1999. (p. 484). Outro autor que também se dedicou ao assunto da memória foi Norberto Bobbio, que, em “O tempo da memória”, afirmou: “O mundo dos velhos, de todos os velhos, é, de modo mais ou menos intenso, o mundo da memória”2121 Bobbio N. O tempo da memória. Rio de Janeiro: Campus; 1997. (p. 30). As conquistas, as tristezas, as lembranças repletas de afetos que o tempo guardou são, segundo o autor, uma atividade mental desgastante, mas provavelmente salutar.
Pensando nas memórias de velhos, Bosi1010 Bosi E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras; 1999. concluiu ser necessário um projeto de vida, algo que dê significado ao cotidiano dos idosos em instituições. A criatividade das brincadeiras, dos jogos e das cantigas, ao serem evocadas pela lembrança dos velhos, talvez possa proporcionar significações e ressignificações de suas experiências.
Tais contribuições teóricas nos afetaram, mas, no fazer etnográfico, percorrendo esses espaços de criação, o enfrentamento da realidade nos colocava desafios. Por exemplo: E quando a pessoa não se lembra mais? E quando fica difícil acessar a memória, até mesmo em atividades recentes? Nesse acontecimento, o que um Círculo de Leitura poderia ativar? Era o caso de uma das idosas com quem convivemos mais proximamente: Dona Joana, portadora da doença de Alzheimer, sobre a qual comentaremos adiante.
Sempre nos apresentamos no começo das reuniões, pois fomos alertados de que os residentes demorariam a decorar nossos nomes e que, se não fossem mencionados com frequência, provavelmente iriam esquecer quem éramos. E, realmente, demorou um tempo para que eles pudessem saber quem éramos. Contudo, mesmo depois de vários encontros, uma participante respondia como se de fato não nos conhecesse. Somente depois de algum tempo uma voluntária avisou que Dona Joana era portadora da doença de Alzheimer. Sabíamos tratar-se de uma doença degenerativa que faz a pessoa perder a memória. O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa que provoca o declínio das funções cognitivas2222 Smith MAC. Doença de Alzheimer. Rev Bras Psiquiatr. 1999; 21 Supl 2:SII 3-7.. Até então, nosso único contato com essa enfermidade foi por meio dos relatos de uma amiga, cuja avó já não lembrava mais como pronunciar as palavras. A ideia do Alzheimer como unicamente perda foi modificada por uma visão de potência e resistência quando nos deparamos com Dona Joana.
Dona Joana era muito vaidosa, sempre de arco no cabelo, unhas feitas, roupa bem alinhada. Ela ia a quase todos os encontros do Círculo, sempre preparada como se fosse a alguma festividade diferente. Sentada em sua cadeira de rodas, observava minuciosamente todos os participantes, emitindo sua opinião constantemente, de forma muito incisiva. Com seus 82 anos, afirmava não ter tempo para ficar agradando aos outros nem para ser falsa. Ao conhecê-la, buscamos mais informações sobre o Alzheimer e, aos poucos, observamos que a antiga concepção da doença era limitada.
Nos primeiros contatos com Dona Joana, nós estávamos lendo “Mentch”, um livro volumoso que ocupou vários dos nossos encontros. Sempre nos questionávamos sobre o que de cada encontro Dona Joana estaria se lembrando. Ao comentar com uma voluntária, ela de imediato respondeu: “Dona Joana? Ah! Ela não lembra de nadinha, vai porque gosta”. Diante de tal afirmação, resolvemos perguntar para a Dona Joana, no final de uma reunião, por que era uma assídua frequentadora do Círculo e do que ela mais gostava? Ela respondeu: “Eu gosto da sensação de ter acabado um livro, mesmo não lembrando do que li, é muito bom, faz bem. Terminar um livro é uma sensação muito boa, terminar algo que você se propôs a fazer”. Dona Joana acreditava que ler era uma forma de lidar com o tempo e de aprender a ter paciência consigo. Ela, então, parecia nos ensinar que havia agência até nos movimentos de paciência, de espera, de saber lidar com o tempo.
Dona Joana, mesmo não se lembrando do que lia, continuava indo aos encontros do Círculo, persistindo no entendimento dos textos mesmo sendo longos. Para ela, a literatura era um meio de encarar a doença, ressignificando o presente e fazendo da memória o instante do presente. Assim, a perda gradual da memória se contrapunha a uma resistência contra o esquecimento em uma tentativa de criar uma memória para o futuro, por meio do afeto e da poesia.
Convém lembrar que a proposta do Círculo não é terapêutica, mas lúdica. Entretanto, segundo a diretora do voluntariado, esperava-se que a discussão desenvolvesse o raciocínio lógico para ativar a memória. Analisando pelo aspecto da promoção da memória e do raciocínio, para ajudar no dia a dia dos velhos, qual era a lógica estabelecida para que Dona Joana comparecesse à leitura nos sábados de tarde?
Ao tentar responder a tal questionamento, recorremos a Lapoujade2323 Lapoujade D. As existências mínimas. São Paulo: n-1 Edições; 2017., na introdução de Deleuze, os movimentos aberrantes. O autor iniciou sua argumentação com a seguinte indagação: Qual é o problema mais geral para a filosofia de Deleuze? Lapoujade percorreu a obra de Deleuze e sustentou que sua filosofia é a dos movimentos aberrantes, a dos movimentos e processos de criação, que se apresentam como uma lógica irracional, lógica como coerência de um sistema de signos ou sintomas. É o que escapa em um processo de ruptura. Deleuze, por sua vez, apoiou-se em Melville, em Zola, em Artaud, bem como na figura positiva do “esquizo”, para pensar como tais movimentos nada têm de arbitrariedade. É o caso do escrivão no conto “Bartleby, o escrivão”, obra de Melville. O personagem título, jovem escrevente judicial, fatigado do trabalho burocrático, todas as vezes que lhe apresentam alguma tarefa no trabalho, repete I would prefer not. No começo de seu trabalho como escrivão, Bartleby mostra-se eficiente e realiza trabalhos velozmente. Até que um dia o narrador (um advogado, o patrão) pede para que ele revise um documento, ao que o escrivão responde: “Eu preferiria não fazer”. A partir daí, são várias recusas em um ambiente em que não deveria haver recusa.
O escrivão expõe um pensamento que se aproxima dos movimentos aberrantes – que não expõem razão alguma, apesar de obedecerem a uma lógica outra2323 Lapoujade D. As existências mínimas. São Paulo: n-1 Edições; 2017.. Os movimentos aberrantes combatem as formas de organização sociopolíticas e suas lógicas singulares. O exemplo de Bartleby leva-nos a pensar em uma lógica contra a racionalidade da conformidade social produtivista e instrumental de que tudo tem uma finalidade ou uma utilidade identificável. Uma lógica que o capitalismo não pode tolerar. Burtleby age de forma desconcertante, pois calmo e sereno, mas com ação decidida de recusa. A recusa de obedecer às ordens do patrão apresenta-se como modo de pensar a resistência na contemporaneidade.
Tais movimentos teóricos permitiram indagar: Não estaria Dona Joana, mesmo sem conservar a experiência na memória, experimentando uma lógica de criação que afirma seu direito de existência singular e, assim, colocando em questão um determinismo produtivista que impera de modo naturalizado no campo social?
Lapoujade afirma a insistência de Deleuze e Guattari em abordar os movimentos aberrantes, daí sua aproximação aos loucos, aos perversos, ao nomadismo de grupos étnicos na história, aos processos esquizos; enfim, às pessoas negligenciadas, isoladas, esquecidas. Na busca de seguir os movimentos aberrantes, destacam duas características: os movimentos são inexplicáveis (no sentido de que não se explica de forma racional) e, ao mesmo tempo, seguem uma lógica – são sempre necessários para aqueles que atravessam esse movimento. Assim, o irracional não é o ilógico; o irracional obedece a uma lógica que nos convida a pensar fora da lógica da razão. Pensando nessa formulação, Lapoujade2323 Lapoujade D. As existências mínimas. São Paulo: n-1 Edições; 2017. (p. 23) sustentou que os “movimentos aberrantes nos ‘arrancam’ de nós mesmos, segundo um termo que retorna com frequência em Deleuze. Há algo ‘forte demais’ na vida, intenso demais, que só podemos viver no limite de nós mesmos”.
Na ponta da própria vida, está o instante. Para Lapoujade2323 Lapoujade D. As existências mínimas. São Paulo: n-1 Edições; 2017., os instantes são comparados a portas de um corredor, que podem ser abertas. Cada porta se abre para um mundo novo. E, para cada mundo, há novas formas de ver a vida. O que Dona Joana vislumbrava nesses instantes da leitura eram as portas que podiam levá-la a novos mundos. Esses instantes tornavam a vida de Dona Joana mais real; eram as formas de legitimar sua existência singular, utilizando-se da leitura, dos textos, das conversas. Era no contato com as outras pessoas do grupo, no contato com os textos em variados instantes, que ela, por si mesma, legitimava sua existência. Assim, a literatura afetava. Mas essa afirmação exigia a própria definição de afeto. E, novamente, recorremos a Deleuze.
Para Deleuze2424 Deleuze G. Conversações. São Paulo: Editora 34; 2007., afetos são forças que nos atravessam, ultrapassando a distinção entre sujeito e objeto, já que o homem se transforma noutra coisa em virtude de uma fusão, de um entrelaçamento. Afetos são devires não humanos do homem. E devires são encontros, indiferenciações; trata-se, portanto, de uma zona de indeterminação, de indiscernibilidade, como se coisas, animais e pessoas atingissem um ponto, embora no infinito, que precede imediatamente sua diferenciação. Afetos estão no interstício, no entre, nas intercessões; são vibrações ou intensidades e, por isso, não se confundem com o que é vivido em uma interioridade subjetiva. O afeto é o próprio movimento, em um contínuo diferir. Os afetos são os efeitos de um determinado corpo sobre uma duração, são variações de potência. Afeto corresponde, portanto, ao modo como problematizamos nossas dores e prazeres2525 Pereira PPG. Limites, traduções e afetos: profissionais de saúde em contextos indígenas. Mana (Rio de Janeiro). 2012; 18(3):511-538..
Dessa forma, ao se fazer no instante como forma de problematização e, ao mesmo tempo, maneira de insistir na existência, Dona Joana ia se colocando como possibilidade nesses encontros. Momentos fugazes nos quais talvez se inventasse o impossível, o instante repensando a memória. Assim, no Círculo de Leitura, o instante, a memória e o rememorar se apresentaram como uma das dimensões da existência. Mas a leitura coletiva poderia ser uma forma de cuidado? Quais as relações entre a literatura, o ato de ler coletivamente e o cuidado? É possível que esse afetar alicerce uma lógica de cuidado?
A literatura e a lógica do cuidado
Os pacientes são “ativos”, sustentou Mol2626 Mol A. The logic of care: health and the problem of patient choice. London: Routledge; 2008.. Por exemplo, os portadores de alguma doença crônica precisam “fazer” muito, também precisam ter cuidados constantes, com muitas mensurações. No entanto, “eles [os pacientes] não ‘usam’ cuidados em saúde, eles ‘fazem’ cuidados em saúde. Eles estão participando ativamente”2626 Mol A. The logic of care: health and the problem of patient choice. London: Routledge; 2008. (p. 302). Para Mol2727 Mol A, Moser I, Pols J. Care in practice: on tinkering in clinics, home, and farms. Bielefield: Transcript Verlag; 2010. Care: putting practice into theory; p. 7-26., os pacientes devem ser levados a sério, como pessoas que estão lidando com uma doença, tentando aliviar os problemas decorrentes dela para poder continuar vivendo. Há uma ilusão de que ser totalmente saudável é a situação-padrão da vida, quando, na verdade, são múltiplas as formas de viver com as doenças e de operar o cuidado.
Nas práticas de cuidado, esse ideal não funciona tão bem porque as pessoas não escolhem ter as doenças. Elas acontecem e constituem um problema, porque se torna impossível organizar suas vidas cotidianas de acordo com as várias regras que a doença impõe. Como o cuidado abrange as práticas e organizações do dia a dia, estudar o assunto permite a apreensão de outras formas de organizar a vida e práticas ao mesmo tempo em que se enfrentam os problemas da doença2626 Mol A. The logic of care: health and the problem of patient choice. London: Routledge; 2008. (p. 303).
Na lógica do cuidado não é possível prever o que vai dar certo ou não. Por isso, a importância da experimentação. Cuidar é uma prática e, assim, ser um ator é, primeiramente, uma questão prática. Ao experimentar, a fazer escolhas, o cuidado converte-se em prática: “Você faz o melhor, mas é impossível prever como uma tentativa de fazer o bem funcionará na prática”2626 Mol A. The logic of care: health and the problem of patient choice. London: Routledge; 2008. (p. 90).
Se o cuidado acontece na prática do cotidiano de forma constante e ativa, as reuniões do Círculo de Leitura podiam ser consideradas um exemplo da “lógica do cuidado”. Nesses momentos, os residentes assumiam uma posição de decidir o que vão ler e o que querem discutir. E, nesse espaço, nas falas que emergiam problemas, surgiam reclamações e percepções sobre a vida institucionalizada. Mas nesses eventos a leitura afetava os participantes, as pessoas deixavam-se levar por esses encontros, alterando-se, modificando o próprio sentido dos encontros.
Por exemplo, grande parte dos participantes do Círculo, ao escutar alguma notícia no jornal, ou algum comentário de cuidadoras sobre algo que lhes chamasse a atenção, logo queriam discutir no momento da leitura e buscavam referências na literatura de sua infância para poder complementar as discussões. Eles se encorajavam a buscar conhecimento sobre atualidades para se sentirem fazendo parte de algo maior do que eles. Como seu Messias retratou em sua fala: “Quando sabemos o que está acontecendo no mundo, saímos daqui (instituição) por um momento, é ruim se sentir alienado e excluído, por isso buscamos saber de tudo”.
Nesses momentos, percebemos que eles eram ativos não somente por escolherem o que ler, mas por fazerem da fala e da linguagem uma forma de pensar no que os cercava, pensar em suas próprias questões, no que os afligia e os libertava. E isso, para eles, era cuidado. Por sua vez, as cuidadoras, na maioria, mulheres, eram mães, esposas, filhas, que deixavam suas casas para poder se dedicar ao cuidado do outro. As cuidadoras estiveram presentes nos círculos para ajudar caso se precisasse. Mas geralmente não falavam, apenas riam, aplaudiam e se emocionavam. Um delicado trabalho de paciência e espera.
A linguagem, como ferramenta para o cuidado, apareceu constantemente nas narrativas dos participantes. Gostaríamos de mencionar uma experiência. Em um dos encontros do Círculo, lemos o conto “Yentl, the yeshiva boy”, de Issac Bashevis Singer, vencedor do prêmio Nobel de literatura. No conto, várias palavras aparecem em iídiche (uma das línguas faladas pelos judeus europeus) e hebraico. Todos os participantes do Círculo falavam o iídiche, que lhes foi ensinado por seus familiares. Por ser uma língua que não é mais estudada como outrora, eles temiam que fosse considerada uma língua morta. Todos manifestaram carinho pela língua, não só por ela em si, mas pelo orgulho de dominarem um idioma tão difícil.
Após o encontro em que se leu “Yentl, the yeshiva boy”, relatamos no diário de campo quanto a memória de cada um ali foi apagando as palavras em iídiche. Os textos cada vez mais incompreensíveis, nessa língua que eles falavam cada vez menos. Quando eles se conectaram outra vez com essa língua mediante nossas leituras, a felicidade transpareceu de forma latente. Talvez porque a experiência da leitura em íídiche remetesse a momentos pessoais e de comunidade, momentos de vida. Com essa imersão na língua foi possível nos aproximar mais deles. Seu Eduardo, por exemplo, apontou que, para eles, quando alguém fala em iídiche é uma forma de cuidar de si e do outro, significa comunidade, pertencimento e cuidado.
Outro ponto importante no cuidado é o que as cuidadoras proporcionam no cotidiano dos idosos. As cuidadoras do Lar da Feliz Idade, em sua maioria mulheres, eram as protagonistas do cuidado institucional. Cuidavam dos pormenores, cientes de tudo o que ocorria lá dentro, e criavam uma dinâmica de cuidado e de amizade muito particular.
A leitura afetava os idosos, provocava a memória, fazia surgir, em lampejos, em pronúncias fugazes no Círculo de Leitura, a língua da infância. A leitura colocava-se como instante da memória fugidia, afirmando a presença de quem se imagina extinguindo. A leitura propiciava crítica ao mundo e, nesse processo, a construção de um espaço de encontro que possibilitava a construção de vínculos, percepções compartilhadas e, assim, laços de pertencimento. A leitura é um ato, uma ação que afetava os velhos, pois era o efeito de um corpo sobre outro, um corpo sofrendo ações de outro. O afeto não se reduz a uma comparação intelectual das ideias, é, antes, constituído pela transição vivida e passagem vivida. O cuidado se faz na atenção a esses afetos.
Considerações finais
No Lar da Feliz Idade, aos sábados, nos reuníamos para ter a experiência com a leitura da literatura. Se a literatura pode muito, como sustentou Todorov2020 Todorov T. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel; 2009., o que podia a leitura da literatura para esses velhos? É pela leitura que a literatura ganha vida. Além disso, no momento da leitura se podia tocar no livro, entonar a voz de várias maneiras e apresentar variadas leituras do mesmo texto. Era um processo sempre inacabado, que dependia do outro. As discussões após as leituras, que deveriam, a princípio, acontecer para encorajar estímulos intelectuais, como a memória, por exemplo, também evidenciaram uma forma de os velhos e de todos os participantes serem afetados e criarem um espaço de comunicação, de interação. Assim, as vivências dentro do Círculo de Leitura podiam também se constituir como experimentação de afetos e atos de criação de vida.
Como afirmamos, a literatura surgia como cuidado, pois o leitor se faz ativo no processo da leitura. É um processo que possibilita a criação de laços, gera pensamentos em comum e discórdias, mas está sempre sendo vivido e reinventado. A leitura é em grupo, uma atividade em conjunto, mas o cuidado também se faz individualmente.
O cuidado se faz presente no Círculo de Leitura e pelo trabalho das cuidadoras, que estavam sempre presentes para dar conta das demandas que os residentes possuíam. Portanto, a literatura, mesmo que em uma esfera micro, mostrou-se potente. Assim, mesmo com a da vida institucionalizada dos participantes, que parecia dominada, ressurgia como uma reviravolta nos Círculos de Leitura, como os vagalumes de Didi-Huberman2828 Didi-Huberman G. Que emoção! Que emoção? São Paulo: Editora 34; 2014., que, com suas microluzes, exercem resistência às luzes da contemporaneidade. E, no final, nos indagamos: Quando essas microformas de cuidado, quando esses afetos poderão iluminar outras práticas de cuidado para velhos e velhas? Para um pouco de luz nessas vidas de hoje, que seremos nós amanhã.
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Pereira BA, Ferreira JBO. Envelhecimento e poética de atenção às formas de vida. Interface (Botucatu). 2022; 26: e220115 https://doi.org/10.1590/interface.220115
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Financiamento
Esse trabalho foi financiado pela Capes.
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Editado por
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Out 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
29 Mar 2022 -
Aceito
13 Jul 2022