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EFEITOS DE INTERFERÊNCIA BASEADA EM SEMELHANÇAS NO PROCESSAMENTO ANAFÓRICO DE BRASILEIROS FALANTES DE INGLÊS COMO L2

SIMILARITY-BASED INTERFERENCE EFFECTS IN REFLEXIVE PROCESSING BY BRAZILIAN SPEAKERS OF ENGLISH AS L2

Resumo

O objetivo deste artigo é investigar como ocorre o processamento anafórico por brasileiros falantes de inglês como L2, buscando descobrir se estes sujeitos se guiam pela sintaxe desde o momento inicial do processamento, ou se fazem uso de informações de outras naturezas, especialmente semântico-lexicais, para identificar o possível antecedente das anáforas. Para isto, realizamos um experimento de leitura automonitorada, que mostrou diferenças entre os sujeitos de nível de proficiência intermediário e os avançados. No primeiro grupo, houve uma facilitação da leitura quando os traços de gênero de ambos os antecedentes combinavam com o traço de gênero da anáfora. Já para os avançados, os resultados indicaram que este grupo tem a leitura facilitada quando ao menos um dos antecedentes combina com o traço de gênero da anáfora. Tais resultados são consistentes com modelos de processamento em L2 que defendem um acesso incompleto à sintaxe, dando prioridade à utilização de informações de natureza semântico-lexical e pragmática para a resolução anafórica (CLAHSEN & FELSER, 2006, 2017). Além disso, apesar de não se encaixar perfeitamente em nenhum modelo de interferência na memória de trabalho baseado em semelhanças, os resultados são indicativos de propostas que tratam sobre interferência na recuperação da memória de trabalho.

Palavras-chave
Interferência baseada em semelhanças; Processamento anafórico; Bilinguismo; Interferência de Recuperação

Abstract

The purpose of this article is to investigate how Brazilian speakers of English as L2 process anaphors in English, seeking to find out if these subjects are guided by syntax from the initial processing moment, or if they make use of information of other sources, especially semantic-lexical, to identify the possible antecedent of the anaphor. For this, we conducted a self-paced reading experiment, which showed differences between intermediate and advanced proficiency level subjects. In the first group, there was a facilitation of reading when the gender cues of both antecedents matched the gender cue of the anaphora. For the advanced group, the results indicated that the processing is facilitated when at least one of the antecedents matches the gender cue of the anaphor. These results are consistent with L2 processing models that advocate incomplete access to syntax, prioritizing the use of semantic-lexical and pragmatic information for anaphoric resolution (CLAHSEN & FELSER, 2006, 2017). In addition, although it does not fit perfectly into any similarity-based interference model, the results are indicative of proposals that address retrieval interference in working memory.

Keywords
Similarity-based interference; Anaphoric processing; Bilingualism; Retrieval interference

1. Introdução

Durante o curso de produção e compreensão de sentenças, vários processos ocorrem simultaneamente, sendo alguns cruciais para que o processamento sentencial ocorra, como a manutenção de informações na memória de trabalho de um indivíduo. Dentre os grupos de falantes que apresentam naturalmente uma sobrecarga da memória de trabalho estão os bilíngues, uma vez que neste grupo, além dos processos comumente atribuídos à memória de trabalho encontrados em falantes monolíngues, há também uma necessidade maior de controle inibitório seja da L1 sobre a L2 ou da L2 sobre a L1 para que a comunicação ocorra sem ruídos. Há consenso na literatura que afirma que quanto menor o nível de proficiência em uma L2, maior é a demanda da memória de trabalho nos falantes bilíngues (WEISHEIMER & MOTA 2009WEISSHEIMER, J.; MOTA, M. B. Individual differences in working memory capacity and the development of L2 speech production. Issues in Applied Linguistics, v. 17, p. 93-112, 2009.; FINARDI & WEISSHEIMER, 2009FINARDI, K.; WEISSHEIMER, J. On the relationship between working memory capacity and L2 speech development. Signótica. v. 20, n. 2, p. 365-389, 2009.).

Além disso, certas estruturas linguísticas apresentam maior desafio para a compreensão, tanto em L1 quanto em L2, por demandarem maior capacidade da memória de trabalho. No caso de dependências sintáticas, a memória de trabalho possui um papel fundamental em reter informações até que a dependência seja resolvida. Algumas teorias de processamento sentencial defendem que ao encontrar o segundo item de uma dependência sintática, o parser automaticamente ativa a memória para recuperar o item que se integraria a este segundo item da dependência (LEWIS & VASISHTH, 2005LEWIS, R. L.; VASISHTH, S. An activation-based model of sentence processing as skilled memory retrieval. Cognitive Science. v. 29, n. 3, p. 375–419, 2005.).

Um dos principais problemas que a memória de trabalho pode apresentar são aqueles que lidam com o “esquecimento” de algumas informações. Acredita-se que este efeito é resultado de interferências baseadas em semelhanças entre as entidades que estão armazenadas na memória de trabalho. Tais interferências são de interesse para a pesquisa pois fornecem dados mais precisos sobre os processos que ocorrem para a recuperação de um item da memória de trabalho.

Estas interferências podem acontecer em três diferentes momentos dos processos envolvidos na memória de trabalho. O primeiro momento é o momento da codificação, isto é, no momento em que os dados estão sendo inseridos na memória de trabalho. O segundo momento é o da manutenção das informações na memória de trabalho. E o terceiro momento é o da recuperação, isto é, quando as informações armazenadas na memória de trabalho são solicitadas.

Uma das estruturas sintáticas alvo dos estudos desses tipos de interferência são as anáforas1 1 Entendemos por "anáfora" neste trabalho os reflexivos e recíprocos, de acordo com a Teoria da Regência e Ligação de Chomsky (1981), mais especificamente o que trata o Princípio A desta teoria. . Sturt (2003)STURT, P. The time-course of the application of binding constraints in reference resolution. Journal of Memory and Language. v. 48, n. 3, p. 542–562, 2003. afirma que o caso das anáforas é particularmente informativo para averiguar questões de restrições sintáticas e não sintáticas por conta de suas restrições configuracionais e de concordância serem relativamente claras, e a estrutura admitir manipulações de distância e a inclusão de antecedentes indisponíveis para a resolução da dependência.

Desta forma, considerando que o grupo de falantes bilíngues é um grupo em que tradicionalmente se aceita na literatura que há uma sobrecarga na memória de trabalho, questionamos de que modo essa sobrecarga acontece quando uma dependência sintática do tipo antecedente-anáfora é processada por falantes bilíngues em situação de dominância da L1.

Com isto, buscamos nesta pesquisa investigar como ocorre o processamento de anáforas em inglês, por brasileiros falantes de inglês como L2. Procurando observar como este processamento é influenciado com base nos modelos de interferência na memória de trabalho causada por semelhanças.

Nas seções a seguir, faremos uma breve revisão da literatura da área, focando nos dois tipos de interferência mencionados acima, e no processamento anafórico por falantes bilíngues, em seguida, trataremos da metodologia utilizada nesta pesquisa, elencando controles em relação aos participantes desta, bem como à elaboração do conjunto experimental. Posteriormente, apresentaremos os resultados encontrados para esta pesquisa, seguidos de uma discussão com base na literatura apresentada e nos estímulos utilizados. Por fim, evidenciaremos nossas considerações finais.

2. Fundamentação teórica

Durante o processamento em tempo real, é preciso que o processador integre informações estruturais e não estruturais para a correta interpretação da sentença. No entanto, há ocasiões em que "esquecemos" algumas informações que estiveram disponíveis há curto prazo. Esse "esquecimento", inicialmente, era atribuído à deterioração (decay) (BROWN, 1958BROWN, J. Some tests of the decay theory of immediate memory. Quarterly Journal of Experimental Psychology. v. 10, p. 12–21, 1958.) das informações na memória de trabalho2 2 Brown (1958) fala sobre memória imediata (immediate memory), que possuiria características semelhantes à memória de trabalho utilizada nas pesquisas atuais, que seria um repositório de informações distinto da memória de longo prazo, e que funcionaria como uma memória disponível imediatamente, isto é, em prazo curtíssimo, para armazenar informação disponível de maneira imediata. . Este processo ocorreria ao se ultrapassar o limite de informações que a memória de trabalho seria capaz de reter, fazendo com que pistas pertencentes a estas informações já armazenadas sofressem uma deterioração para que nova informação pudesse ser inserida. Com isto, a informação mais antiga e tampouco a mais recente estariam completamente disponíveis para serem recuperadas, podendo haver interferência e, portanto, esquecimento da informação.

Atualmente, uma das formas de explicar este "esquecimento" é através de modelos de interferências com base em semelhanças nas informações dos itens armazenados na memória de trabalho, que podem ocorrer no momento de sua inserção (encoding interference) na memória de trabalho, ou na sua recuperação (retrieval interference).

É importante deixar claro que, embora os mecanismos causadores das interferências mencionados neste trabalho tenham origens em momentos diferentes, eles não são necessariamente mutuamente excludentes. Oberauer e Kliegl (2006)OBERAUER, K.; KLIEGL, R. A formal model of capacity limits in working memory. Journal of Memory and Language. v. 55, p. 601–626, 2006. expõem esta visão em seu modelo, ao afirmar que ambos os efeitos são encontrados nas pesquisas, e que, portanto, podem afetar a memória de trabalho de maneira independente. Laurinavichyute et al. (2017)LAURINAVICHYUTE, A.; JÄGER, L. A.; AKININA, Y.; ROß, J.; DRAGOY, O. Retrieval and Encoding Interference: Cross-Linguistic Evidence from Anaphor Processing. Frontiers in Psychology. v. 8, n. 965, 2017. ressaltam que há pouquíssimos trabalhos na literatura em Psicolinguística que proponham experimentos que efetivamente ponham os dois tipos de interferência (codificação e recuperação) em oposição um ao outro. O mais comum, como as autoras apontam, é encontrar efeitos que favorecem claramente um desses tipos de interferência, sem necessariamente desconsiderar completamente o outro.

2.1 Interferência na codificação

A interferência na codificação (encoding interference), como o próprio nome diz, é aquela que ocorre no momento da codificação da informação na memória de trabalho, ou seja, aquela que ocorre no momento de inserção de informações na memória de trabalho.

Um dos modelos que trata de Interferência na Codificação é proposto por Oberauer e Kliegl (2006)OBERAUER, K.; KLIEGL, R. A formal model of capacity limits in working memory. Journal of Memory and Language. v. 55, p. 601–626, 2006.. Os autores fazem suposições acerca do funcionamento da memória de trabalho, em especial sobre a forma como a informação é armazenada nela.

Os autores consideram que os itens que são codificados na memória de trabalho são representados por um conjunto de traços que são ativados em conjunto. Além disso, os itens codificados na memória de trabalho são representados por padrões diferentes de ativação através do mesmo conjunto de traços, com isto, suas representações podem interferir uns nos outros através de uma interação entre essas representações, que pode chegar a degradar alguns traços de uma delas. Uma das formas de interferência que esses itens codificados podem sofrer é o que os autores chamam de Sobrescrita de Traços3 3 A sobrescrita de traços também é uma explicação para uma possível interferência no momento da manutenção dos itens na memória de trabalho, uma vez que ela poderia acontecer na codificação de novos itens na memória de trabalho, mas também poderia acontecer durante a manutenção destes até que eles fossem recuperados. De todo modo, a literatura é consensual em assumir que na prática é difícil distinguir a interferência na manutenção da interferência na codificação, uma vez que ambas só podem ser verificadas no momento da recuperação. (feature overwriting) (LANGE & OBERAUER, 2005 apud OBERAUER e KLIEGL, 2006OBERAUER, K.; KLIEGL, R. A formal model of capacity limits in working memory. Journal of Memory and Language. v. 55, p. 601–626, 2006.).

A sobrescrita de traços acontece quando dois itens na memória de trabalho compartilham um mesmo traço; esses itens competem por ele, levando à perda do mesmo por um dos itens. Com isto, a representação deste seria menos distinguível, uma vez que um de seus traços não estaria mais presente, consequentemente diminuindo a probabilidade de que este item tenha uma recuperação bem-sucedida.

Um segundo modelo que trata de interferência na codificação foi proposto por Lewandowsky, Geiger e Oberauer (2008)LEWANDOWSKY, S.; GEIGER, S. M.; OBERAUER, K. Interference-based forgetting in verbal short-term memory. Journal of Memory Language. v. 59, n. 2, p. 200–222, 2008. e se chama Codificação Sensível à Novidade (Novelty-sensitive encoding). Este modelo assume uma arquitetura básica que implica na sobreposição contínua de novas informações sobre a informação já presente na memória de trabalho.

O modelo de Lewandowsky e colegas assume que quando um item novo é inserido na memória de trabalho, primeiramente ele é avaliado com relação a uma matriz de peso, que basicamente avalia a novidade em relação aos outros itens já presentes na memória de trabalho. Caso este item seja julgado como novo, ele recebe um peso de codificação maior. Caso ele não seja julgado como novo, por ser semelhante às informações já codificadas, ele recebe um peso de codificação consideravelmente menor.

É importante salientar que tanto no modelo proposto por Oberauer e Kliegl (2006)OBERAUER, K.; KLIEGL, R. A formal model of capacity limits in working memory. Journal of Memory and Language. v. 55, p. 601–626, 2006., quanto no proposto por Lewandowsky e colegas (2008)LEWANDOWSKY, S.; GEIGER, S. M.; OBERAUER, K. Interference-based forgetting in verbal short-term memory. Journal of Memory Language. v. 59, n. 2, p. 200–222, 2008., a interferência só é captada no momento da recuperação, o que não significa que a interferência seja causada neste momento. Como o nome diz, é no momento da codificação dos itens, isto é, da inserção da informação na memória de trabalho, que os traços que os representam são codificados de uma forma que impacta sua representação e cujo impacto só poderá ser aferido quando estes itens armazenados forem solicitados para serem recuperados.

2.2 Interferência na recuperação

A interferência na recuperação (retrieval interference), como o nome sugere, ocorre quando um item é recuperado da memória. Para que esta interferência ocorra, é preciso que o item compartilhe traços semelhantes, como informações sobre gênero, número ou caso, com outros itens também armazenados na memória. Entre alguns modelos propostos de interferência na recuperação aplicados ao processamento sentencial, existe o modelo proposto por Lewis e colaboradores (LEWIS & VASISHTH, 2005LEWIS, R. L.; VASISHTH, S. An activation-based model of sentence processing as skilled memory retrieval. Cognitive Science. v. 29, n. 3, p. 375–419, 2005.; LEWIS et al, 2006LEWIS, R. L.; VASISHTH, S.; AND VAN DYKE, J. A. Computational principles of working memory in sentence comprehension. Trends in Cognitive Sciences. v. 10, n. 10, p. 447–454, 2006.) e o modelo proposto por McElree e colaboradores (MCELREE, 2000MCELREE, B. Sentence comprehension is mediated by content addressable memory structures. Journal of Psycholinguist Research. v. 29, p. 111–123, 2000.; MCELREE et al, 2003MCELREE, B.; FORAKER, S.; DYER, L. Memory structures that subserve sentence comprehension. Journal of Memory and Language. v. 48, p. 67–91, 2003.; MARTIN & MCELREE, 2011MARTIN, A. E.; MCELREE, B. Direct-access retrieval during sentence comprehension: evidence from sluicing. Journal of Memory and Language. v. 64, p. 327–343, 2011.).

No modelo proposto por Lewis e colaboradores (LEWIS & VASISHTH, 2005LEWIS, R. L.; VASISHTH, S. An activation-based model of sentence processing as skilled memory retrieval. Cognitive Science. v. 29, n. 3, p. 375–419, 2005.; LEWIS et al, 2006LEWIS, R. L.; VASISHTH, S.; AND VAN DYKE, J. A. Computational principles of working memory in sentence comprehension. Trends in Cognitive Sciences. v. 10, n. 10, p. 447–454, 2006.), chamado Adaptive Control of Thought-Rational, doravante ACT-R, cada item é representado na memória como um conjunto de traços. Para que um item possa ser recuperado, é preciso que ele receba a maior ativação de recuperação entre todos os itens armazenados na memória. A ativação de cada item consiste em três fatores: o nível base de ativação do item, o ruído aleatório e o espraiamento de ativação. É devido ao espraiamento de ativação (spreading activation) que ocorre a interferência de recuperação no modelo ACT-R.

O espraiamento de ativação funciona da seguinte maneira: para encontrar um item específico na memória de trabalho para ser recuperado é preciso que sejam lançadas pistas de recuperação. Cada pista de recuperação, que pode funcionar como um traço de gênero ou uma marcação de caso, por exemplo, propaga uma ativação entre todos os itens que possuem um traço que combine com esta pista. A ativação de cada espraiamento é dividida entre todos os itens que compartilham deste traço e consequentemente combinam com a pista lançada. Uma vez que cada item é composto por um conjunto de traços, várias pistas de recuperação são lançadas. O item cujos traços combinem com todas as pistas de recuperação recebe o maior espraiamento de ativação, o que normalmente resulta num maior impulso de ativação, com isso atingindo um limiar de ativação primeiro, ocasionando na recuperação deste item da memória. A ativação de um item determina a velocidade de sua recuperação, isto é, quanto maior for o impulso na ativação de um item, mais rápida será sua recuperação.

Desta forma, a interferência na recuperação no modelo ACT-R acontece quando há outros itens em competição por algumas pistas de recuperação, uma vez que eles também serão ativados, resultando em menos ativação no item que deveria ser recuperado, e aumentando o tempo de processamento deste item.

De modo contrário, o modelo proposto por McElree e colaboradores (MCELREE, 2000MCELREE, B. Sentence comprehension is mediated by content addressable memory structures. Journal of Psycholinguist Research. v. 29, p. 111–123, 2000.; MCELREE et al, 2003MCELREE, B.; FORAKER, S.; DYER, L. Memory structures that subserve sentence comprehension. Journal of Memory and Language. v. 48, p. 67–91, 2003.; MARTIN & MCELREE, 2011MARTIN, A. E.; MCELREE, B. Direct-access retrieval during sentence comprehension: evidence from sluicing. Journal of Memory and Language. v. 64, p. 327–343, 2011.) não assume que a interferência de recuperação seja exclusivamente o motivo para um aumento no tempo de processamento de um item. Os autores sugerem que, enquanto os itens são recuperados da memória de trabalho por meio de pistas de recuperação, a velocidade de recuperação permanece constante independentemente do número de competidores pela mesma pista.

Para estes autores, no entanto, a velocidade de recuperação constante não implica necessariamente em uma velocidade constante de tempo de leitura. Eles afirmam isto ao considerar que o tempo de leitura representa não apenas a velocidade de recuperação de um item da memória de trabalho, mas também a probabilidade de recuperação bem-sucedida de um item. Ou seja, a velocidade de recuperação é constante, porém o parser precisa integrar o item recuperado à estrutura, e caso a recuperação seja de um item errado, o parser necessitará fazer uma reanálise, o que vai consumir tempo. Desta forma, o tempo de recuperação isoladamente não seria um diagnóstico preciso para a velocidade de recuperação.

2.3 Processamento anafórico e interferências baseadas em semelhança

Através de metodologias experimentais distintas, alguns estudos sobre o processamento anafórico perceberam que, ao menos inicialmente, um antecedente gramaticalmente indisponível não interfere na ligação de um reflexivo com o seu antecedente gramaticalmente disponível (NICOL & SWINNEY, 1989NICOL, J.; SWINNEY, D. The role of structure in coreference assignment during sentence comprehension. Journal of Psycholinguistic Research, v. 18, n. 1, p. 5-19, 1989.; STURT, 2003STURT, P. The time-course of the application of binding constraints in reference resolution. Journal of Memory and Language. v. 48, n. 3, p. 542–562, 2003.). Este fato, nomeado de Hipótese do Filtro Inicial, pode ser entendido ao observarmos a sentença em (1):

    (1)
  • a. Johni said that Paulj hurt himselfj in the kitchen.

  • a'. Joãoi disse que Pauloj sej machucou na cozinha.

De acordo com os achados de Nicol e Swinney (1989)NICOL, J.; SWINNEY, D. The role of structure in coreference assignment during sentence comprehension. Journal of Psycholinguistic Research, v. 18, n. 1, p. 5-19, 1989. e de Sturt (2003)STURT, P. The time-course of the application of binding constraints in reference resolution. Journal of Memory and Language. v. 48, n. 3, p. 542–562, 2003., John (João), apesar de possuir traços semelhantes ao reflexivo himself, isto é, mesmo gênero e número, não é um antecedente gramaticalmente disponível para este reflexivo. Isto faria com que, inicialmente, ele (John) não fosse considerado para a ligação com o reflexivo no momento da leitura, sendo apenas Paul considerado para servir como antecedente.

Por outro lado, Badecker & Straub (2002)BADECKER, W.; STRAUB, K. The Processing Role of Structural Constraints on the Interpretation of Pronouns and Anaphors. Journal of Experimental Psychology: Learning, Memory, and Cognition, v. 28, n. 4, p. 748-769, 2002. propõem uma alternativa divergente. Em seu estudo, os autores verificaram que nas condições em que o gênero do antecedente indisponível combinava com o gênero da anáfora, houve um aumento no tempo de leitura do segundo segmento após a anáfora. Eles interpretaram esse maior custo de processamento como indicativo que o antecedente estruturalmente inacessível influenciou no momento do processamento, contrário à Hipótese do Filtro Inicial (NICOL & SWINNEY, 1989NICOL, J.; SWINNEY, D. The role of structure in coreference assignment during sentence comprehension. Journal of Psycholinguistic Research, v. 18, n. 1, p. 5-19, 1989.).

A partir destes estudos iniciais, outras pesquisas e experimentos foram conduzidos em diferentes idiomas, buscando verificar não apenas o momento em que possíveis interferências aconteceriam, mas também quais as origens e causas destas interferências.

Jäger e colegas (2015)JÄGER, L. A.; BENZ, L.; ROESER, J.; DILLON, B. W.; VASISHTH, S. Teasing apart retrieval and encoding interference in the processing of anaphors. Frontiers in Psychology. v. 6, n. 506, 2015., buscando evidências sobre interferências na codificação e recuperação em processamento anafórico, conduziram três experimentos, sendo dois deles em alemão e um em sueco. Nos três experimentos, os autores não encontraram efeitos que justificassem uma possível interferência de codificação. No primeiro experimento, apenas um resultado, off-line, se mostrou indicativo de uma possível interferência na codificação, e por isso os autores decidiram testar as mesmas sentenças experimentais em um experimento de leitura através de rastreamento ocular. Neste experimento, também não encontraram indícios que sustentassem tal explicação. Encontraram, no entanto, em um indicativo no verbo da oração relativa que continha o antecedente indisponível um maior tempo de leitura, porém, em explicação post hoc, justificaram que se esse efeito fosse um possível efeito de interferência na codificação, tal efeito se resolvia de forma bastante rápida, não sendo verificado no momento da leitura do reflexivo. O terceiro experimento, em sueco, também não demonstrou efeito de codificação nos possessivos reflexivos, mas mostrou um indicativo de interferência de recuperação nos possessivos pronominais quando ambos os antecedentes, disponível e indisponível, possuíam a mesma marca de gênero, seja em dados on-line ou off-line. Os autores explicaram tais resultados de acordo com as previsões do modelo ACT-R.

Jager et al (2020)JÄGER, L. A.; MERTZEN, D.; VAN DYKE, J. A.; VASISHTH, S. Interference patterns in subject-verb agreement and reflexives revisited: a large-sample study. Journal of Memory and Language. v. 111, 2020., de maneira semelhante a Sturt (2003)STURT, P. The time-course of the application of binding constraints in reference resolution. Journal of Memory and Language. v. 48, n. 3, p. 542–562, 2003. não encontrou interferências no processamento de reflexivos mesmo em condições agramaticais, e aventou a possibilidade de que algumas pistas estruturais possuiriam maior peso que outras, o que possibilitaria que interferências ocorressem ou não, em comparação com pistas não estruturais.

Patil, Vasishth e Lewis (2016)PATIL, U.; VASISHTH, S.; LEWIS, R. L. Retrieval interference in syntactic processing: the case of reflexive binding in English. Frontiers in Psychology. v. 7, n. 329, 2016. questionam se realmente outras pistas não estruturais, como marcação de gênero, não seriam utilizadas em momentos iniciais. Os autores encontram, de forma diferente de Sturt (2003)STURT, P. The time-course of the application of binding constraints in reference resolution. Journal of Memory and Language. v. 48, n. 3, p. 542–562, 2003., um efeito inicial de interferência do antecedente indisponível quando este combinava em gênero com o antecedente disponível e anáfora. Além disso, os autores também encontram efeitos tardios quando o gênero do antecedente disponível não combinava com o gênero da anáfora, causando um aumento no tempo de leitura desses, bem como do número de releituras.

Para estes autores, Sturt (2003)STURT, P. The time-course of the application of binding constraints in reference resolution. Journal of Memory and Language. v. 48, n. 3, p. 542–562, 2003. não encontrou efeitos iniciais do antecedente indisponível porque este estaria em posição de objeto, que seria muito diferente da posição de sujeito. Tal diferença seria suficiente para rejeitar o antecedente indisponível durante estágios iniciais de busca pelo antecedente no curso de tempo do processamento. Além disso, os autores advogam que efeitos de interferência e de mismatch também foram encontrados em outros estudos4 4 Verificar Patil, Lewis e Vasishth (2016) para referências. , e são compatíveis com o modelo ACT-R.

Han et al (2021)HAN, Chung-hye; MOULTON, Keir; BLOCK, Trevor; GENDRON, Holly; NEDERVEEN, Sander. Pronouns are as sensitive to structural constraints as reflexives in early processing: evidence from visual world paradigm eye-tracking. Frontiers in Psychology. v. 12, 2021. investigaram a sensibilidade às restrições dos Princípios A e B da Teoria da Ligação através de um estudo de paradigma do mundo visual através de rastreamento ocular. Os autores não encontraram diferença na aplicação destas restrições, sendo as restrições de pronomes e reflexivos atuantes no processamento.

Laurinavichyute e colegas (2017)LAURINAVICHYUTE, A.; JÄGER, L. A.; AKININA, Y.; ROß, J.; DRAGOY, O. Retrieval and Encoding Interference: Cross-Linguistic Evidence from Anaphor Processing. Frontiers in Psychology. v. 8, n. 965, 2017., buscando elucidar as interferências na codificação e recuperação no processamento anafórico, conduziram 3 experimentos de leitura automonitorada, sendo o primeiro deles em alemão, e os dois últimos em russo. Os resultados do primeiro experimento foram inconclusivos, e as autoras atribuíram este fato a uma provável dificuldade no tipo de sentenças que estavam utilizando, mesmo para um falante nativo de alemão. A diferença entre o segundo e o terceiro experimento estava na ordem dos constituintes, isto é, se o reflexivo vinha anteposto ou posposto ao verbo. Os resultados obtidos com os tempos de leitura e acurácia no acerto das perguntas de compreensão não são compatíveis com possíveis interferências na recuperação. Em contrapartida, os índices de acurácia obtidos com os três experimentos parecem caminhar na direção de uma interferência na codificação, porém sem evidências robustas.

Martin (2018)MARTIN, A. E. Cue integration during sentence comprehension: Electrophysiological evidence from ellipsis. PLoS ONE. v. 13, n. 11, 2018. buscou investigar através da técnica de ERP como aconteceria a integração de pistas durante tarefas de compreensão com elipses. A autora encontrou que interferências ocorrem quando as pistas dos antecedentes disponível e indisponível interferem na recuperação apenas quando não existe um antecedente gramatical imediatamente disponível na memória. Em casos que antecedentes gramaticais não estão disponíveis, a representação com maior quantidade de pistas semelhantes (morfossintáticas) consegue interferir na recuperação e no processamento causando um efeito que a autora considerou como um P600. A autora também advoga que há um efeito de recência interferindo nesta recuperação. Já quando as pistas eram de natureza relacionada à plausibilidade, houve um efeito no componente N400. A autora defende que estes efeitos aconteceram e poderiam explicar padrões que refletiriam o comportamento de falantes quando não se encontram antecedentes que combinam com os que seriam esperados no momento da recuperação, não sendo o padrão que aconteceria em casos que houvesse um antecedente cujos traços combinassem. Contrário ao que esperava, não foram apenas antecedentes em posições estruturais possíveis que causaram interferência na recuperação, mas antecedentes que não combinavam com os traços da elipse em posições lícitas foram mais custosos que aqueles em posições não licenciadas.

Yadav et al. (2022)YADAV, H.; PAAPE, D.; SMITH, G.; DILLON, B. W.; VASISHTH, S. Individual differences in cue weighting in sentence comprehension: an evaluation using approximate Bayesian computation. Open Mind: Discoveries in Cognitive Science. v. 6, p. 1–24, 2022. investigam o peso atribuído às pistas necessárias para a recuperação em diferenças individuais com nativos de inglês, isto é, que alguns participantes atribuem pesos diferentes a estas pistas, o que pode gerar mais efeitos de interferência durante a recuperação de itens armazenados na memória de trabalho. Especificamente nos estudos que lidaram com diferenças entre concordância sujeito-verbo e anáforas reflexivas (Dillon et al, 2013; Jager et al, 2020JÄGER, L. A.; MERTZEN, D.; VAN DYKE, J. A.; VASISHTH, S. Interference patterns in subject-verb agreement and reflexives revisited: a large-sample study. Journal of Memory and Language. v. 111, 2020.), apenas nos dados relativos às anáforas os autores encontraram que alguns participantes atribuíram pesos diferentes para as pistas estruturais, especificamente de número. Apenas uma minoria dos participantes em ambos os estudos atribuiu peso maior às pistas estruturais, o que não causou efeito de interferência na recuperação. Com isto, verificaram que estes participantes mais habilidosos tinham menor tempo de leitura para as anáforas, se atendo às restrições impostas pelo Princípio A durante o processamento on-line, em comparação com a maioria dos participantes, que demonstraram efeito de interferência na recuperação.

2.4 Interferências baseadas em semelhanças em falantes bilíngues

Apesar dos estudos em processamento anafórico em monolíngues terem se mostrado altamente produtivos no estudo de interferências baseadas em semelhanças, as pesquisas com populações bilíngues não se aproveitaram com tanta intensidade dos mesmos fenômenos para investigar como ocorreria o processamento linguístico nestas populações.

Um dos primeiros estudos que tratou de estudar o processamento de anáforas reflexivas por falantes bilíngues foi conduzido por Felser, Sato e Bertenshaw (2009)FELSER, C.; SATO, M.; BERTENSHAW, N. The on-line application of binding Principle A in English as a second language. Bilingualism: Language and Cognition. v. 12, n. 4, p. 485-502, 2009.. Os autores investigaram como japoneses falantes de inglês como L2 em contexto de dominância dessa L2, buscando investigar se um antecedente indisponível, ou competidor inacessível, como eles chamam, seria capaz de influenciar a resolução anafórica.

Os autores encontraram num julgamento de gramaticalidade imediato que houve diminuição no índice de acerto para ambos os grupos. No entanto, a taxa de diminuição dessa acuidade para os bilíngues foi bem menor em ambos os tipos de sentença. A diferença, quando comparados com falantes monolíngues, foi significativa quando havia uma violação de localidade apenas. O segundo experimento consistiu em um rastreamento ocular durante a leitura. Os achados desses experimentos indicaram que inicialmente os bilíngues foram influenciados pelo antecedente indisponível. Algo que os pesquisadores levantam é o fato de que esses antecedentes eram proeminentes no discurso, uma vez que eram introduzidos como sujeitos do preâmbulo. Algo que os pesquisadores também relatam é que não encontraram efeitos tardios de interferência desse antecedente indisponível nas regiões posteriores à crítica, para nenhum dos grupos, como foi encontrado por Sturt (2003)STURT, P. The time-course of the application of binding constraints in reference resolution. Journal of Memory and Language. v. 48, n. 3, p. 542–562, 2003., o que atribuíram à diferença existente entre os materiais deste experimento e os da pesquisa feita por Sturt (2003)STURT, P. The time-course of the application of binding constraints in reference resolution. Journal of Memory and Language. v. 48, n. 3, p. 542–562, 2003..

De modo geral, os pesquisadores concluíram que os bilíngues japoneses tiveram dificuldade em aplicar o Princípio A em tarefas on-line, mas que estas dificuldades não eram refletidas em tarefas não cronometradas. Entre as possíveis explicações dadas para estes resultados, se sobressai a explicação que esta influência do antecedente indisponível, principalmente nas condições em que ele comandava a anáfora, pode ser um efeito de interferência da L1, pois há em japonês a possibilidade de se realizar anáforas de longa distância através do reflexivo zibun. Isto seria também uma explicação por que os bilíngues se saíram pior com sentenças que viam a localidade da ligação da anáfora com o antecedente, como no experimento 1. Os pesquisadores acreditam que, neste caso, haveria uma transferência por parte dos bilíngues das propriedades lexicais do reflexivo japonês zibun para os reflexivos em inglês, possibilitando ligação deste com antecedentes não locais.

Outra explicação postulada por Felser, Sato e Bertenshaw (2009)FELSER, C.; SATO, M.; BERTENSHAW, N. The on-line application of binding Principle A in English as a second language. Bilingualism: Language and Cognition. v. 12, n. 4, p. 485-502, 2009. é a que advoga que falantes avançados de uma L2 possuem representações sintáticas mais superficiais, e por isso seriam forçados a utilizar informações de natureza léxico-semânticas para resolver dependências sintáticas, entre elas as o tipo antecedente-anáfora (CLAHSEN & FELSER, 2006CLAHSEN, H.; FELSER, C. Grammatical processing in language learners. Applied Psycholinguistics. v. 27, p. 3-42, 2006., 2017CLAHSEN, H.; FELSER, C. Some notes on the Shallow Structure Hypothesis. Studies in Second Language Acquisition. https://doi.org/10.1017/S0272263117000250. 2017.
https://doi.org/10.1017/S027226311700025...
). Com isto, os dados deste experimento seriam explicados através de uma ambiguidade temporária sobre o possível antecedente correto para a anáfora, uma vez que os bilíngues conseguiram identificar o antecedente disponível como correferente à anáfora em tarefas off-line.

Outro estudo, desta vez conduzido por Felser e Cunnings (2012)FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012., investigou através da técnica de rastreamento ocular como alemães falantes de inglês como L2 processavam sentenças com anáforas reflexivas em inglês. Este experimento foi conduzido com falantes nativos de alemão, uma vez que uma das críticas feitas a Felser, Sato e Bertenshaw (2009)FELSER, C.; SATO, M.; BERTENSHAW, N. The on-line application of binding Principle A in English as a second language. Bilingualism: Language and Cognition. v. 12, n. 4, p. 485-502, 2009. é sobre o fato do japonês ser uma língua que permite o uso de anáforas de longa distância, o que poderia ser um fator que causaria interferência da L1 na L2 destes falantes.

No primeiro experimento, os autores investigaram se os aprendizes levariam em consideração um antecedente indisponível no processamento anafórico. Além de falantes de inglês como L2, os autores também conduziram a pesquisa com falantes nativos de inglês. É importante salientar que os materiais de Felser e Cunnings (2012)FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012. também utilizam antecedentes disponíveis estereotipados, isto é, que representam profissões mais comumente associadas a um gênero que a outro.

Os resultados indicaram uma violação do Princípio A nas leituras online pelos participantes bilíngues. Inicialmente, os falantes de L2 demonstraram efeito apenas para o gênero do antecedente indisponível, e apenas mostraram efeitos para o gênero do antecedente disponível tardiamente, em geral, posterior à leitura da região crítica. Em relação aos falantes nativos de inglês, estes mostraram efeitos semelhantes a outros estudos em que houve a aplicação online do Princípio A (NICOL & SWINNEY, 1989NICOL, J.; SWINNEY, D. The role of structure in coreference assignment during sentence comprehension. Journal of Psycholinguistic Research, v. 18, n. 1, p. 5-19, 1989.; STURT, 2003STURT, P. The time-course of the application of binding constraints in reference resolution. Journal of Memory and Language. v. 48, n. 3, p. 542–562, 2003.).

Felser e Cunnings (2012)FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012. argumentam que estes resultados vão ao encontro daqueles de Felser, Sato e Bertenshaw (2009)FELSER, C.; SATO, M.; BERTENSHAW, N. The on-line application of binding Principle A in English as a second language. Bilingualism: Language and Cognition. v. 12, n. 4, p. 485-502, 2009. com japoneses falantes de inglês como L2, no sentido de que houve um efeito dos antecedentes indisponíveis durante a primeira leitura da região dos reflexivos. Uma vez que o alemão também exige que os antecedentes da anáfora sejam localmente ligados a esta, este efeito do antecedente indisponível, que era não-local, não poderia ser explicado por interferência da L1, como foi postulado sobre os achados de Felser, Sato e Bertenshaw (2009)FELSER, C.; SATO, M.; BERTENSHAW, N. The on-line application of binding Principle A in English as a second language. Bilingualism: Language and Cognition. v. 12, n. 4, p. 485-502, 2009..

O segundo experimento conduzido por Felser e Cunnings (2012)FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012. testou se os falantes de inglês como L2 e os nativos de inglês se comportariam de maneira semelhante ao encontrar um antecedente indisponível que não c-comandasse a anáfora, durante o processamento, de modo semelhante ao feito por Felser, Sato e Bertenshaw (2009)FELSER, C.; SATO, M.; BERTENSHAW, N. The on-line application of binding Principle A in English as a second language. Bilingualism: Language and Cognition. v. 12, n. 4, p. 485-502, 2009., porém com materiais semelhantes ao do primeiro experimento conduzido por Felser e Cunnings (2012)FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012..

Os resultados deste segundo experimento foram semelhantes àqueles do primeiro no sentido de que os falantes de inglês como L2, ao contrário dos falantes nativos de inglês, também focaram no antecedente indisponível. Com isto, os autores sugerem que, para os falantes de inglês como L2, o que parece ter maior saliência no processamento inicial seria a proeminência discursiva do antecedente indisponível no discurso, e não sua menor saliência estrutural. Isto significaria que os falantes de inglês como L2 fariam primordialmente correferência sem necessariamente fazer a ligação sintática.

Cunnings (2017)CUNNINGS, I. Parsing and Working Memory in Bilingual Sentence Processing. Bilingualism: Language and Cognition. v. 20, n. 4, p. 659-678, 2017. propôs uma nova interpretação para vários estudos conduzidos com falantes bilíngues, entre eles os de Felser, Sato e Bertenshaw (2009)FELSER, C.; SATO, M.; BERTENSHAW, N. The on-line application of binding Principle A in English as a second language. Bilingualism: Language and Cognition. v. 12, n. 4, p. 485-502, 2009. e o de Felser e Cunnings (2012)FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012., que lidavam especificamente com processamento anafórico.

Cunnings (2017)CUNNINGS, I. Parsing and Working Memory in Bilingual Sentence Processing. Bilingualism: Language and Cognition. v. 20, n. 4, p. 659-678, 2017. advoga que, para falantes bilíngues de alto nível de proficiência, as diferenças encontradas na literatura que se explicam como um processamento superficial ou uma limitação da capacidade de integração de informações de diferentes naturezas podem ser caracterizadas por um aumento na susceptibilidade a interferências durante operações para a recuperação de itens na memória de trabalho durante o processamento sentencial na L2.

O autor vai falar que comumente são encontrados dois tipos de interferência no processamento de populações bilíngues, que são interferências inibitórias e interferências facilitatórias. As interferências inibitórias seriam encontradas em sentenças gramaticais quando um alvo de recuperação combina completamente com as pistas de recuperação, porém um distrator também combina de maneira satisfatória com tais pistas, causando competição. As interferências de facilitação ocorreriam em sentenças agramaticais em que nenhum item combina perfeitamente com as pistas de recuperação, mas um distrator consegue combinar parcialmente com essas pistas.

Podemos exemplificar estas interferências a partir das frases em (2):

    (2)
  • a. John noticed that Peter cut himself in the kitchen.

  • a'. João notou que Pedro cortou a si mesmo na cozinha.

  • b. *John noticed that Mary cut himself in the kitchen.

  • b'. *João notou que Maria cortou a si mesmo na cozinha.

A interferência inibitória ocorreria em sentenças como (6a). Ao encontrar a anáfora himself (a si mesmo), embora ela combine perfeitamente com o antecedente indisponível Peter (Pedro), haveria traços também em John (João) que combinariam com as pistas lançadas no momento de recuperação do antecedente. Isto causaria uma dificuldade na recuperação correta do antecedente disponível, e consequentemente um aumento no tempo de leitura dessa anáfora. Já em (6b) ocorreria a interferência facilitatória, pois não haveria um antecedente disponível que combinasse com a anáfora, fazendo com que a sentença fosse considerada agramatical. No entanto, por haver um antecedente que, mesmo não sendo licenciado para fazer a ligação, combina em traços com a anáfora, como o traço de número, ele seria, ao menos momentaneamente considerado como um possível antecedente, facilitando inicialmente a leitura dessa frase e, portanto, diminuindo seu tempo de leitura.

Cunnings (2017)CUNNINGS, I. Parsing and Working Memory in Bilingual Sentence Processing. Bilingualism: Language and Cognition. v. 20, n. 4, p. 659-678, 2017. reforça que estes efeitos de interferência não implicariam necessariamente em um parsing superficial, mas seriam reflexos da natureza das operações de recuperação em uma arquitetura de memória "barulhenta".

Em relação aos resultados de Felser, Sato e Bertenshaw (2009)FELSER, C.; SATO, M.; BERTENSHAW, N. The on-line application of binding Principle A in English as a second language. Bilingualism: Language and Cognition. v. 12, n. 4, p. 485-502, 2009., em que houve um maior tempo de primeira leitura da região da anáfora para os bilíngues e não para os monolíngues nas sentenças em que o antecedente indisponível estava em situação de proeminência discursiva e combinava em gênero com o antecedente disponível e a anáfora, Cunnings (2017)CUNNINGS, I. Parsing and Working Memory in Bilingual Sentence Processing. Bilingualism: Language and Cognition. v. 20, n. 4, p. 659-678, 2017. argumenta que tais resultados podem ser interpretados através das interferências inibitórias explicadas anteriormente, e que isto seria ressaltado por conta da proeminência discursiva desse antecedente indisponível.

Sobre os resultados dos experimentos de Felser e Cunnings (2012)FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012., Cunnings (2017)CUNNINGS, I. Parsing and Working Memory in Bilingual Sentence Processing. Bilingualism: Language and Cognition. v. 20, n. 4, p. 659-678, 2017. levanta o fato de que o segundo experimento pode inicialmente indicar um efeito de processamento superficial na L2, uma vez que os bilíngues tiveram tempo de primeira leitura da região crítica maior quando o antecedente indisponível, linearmente mais próximo a anáfora, não combinava em gênero com ela. No entanto, se fosse o caso de um processamento superficial, este padrão deveria ter sido encontrado também no primeiro experimento, isto é, considerar o gênero apenas do antecedente linearmente mais próximo.

O autor advoga que reflexivos trariam algumas pistas que seriam levadas em consideração durante a recuperação da memória de trabalho. Essas pistas, que teriam pesos distintos na recuperação da memória no processamento em L1 e L2, incluiriam minimamente traços de gênero e número do reflexivo, traços de antecedentes em posição de sujeito ou tópico, e pistas de um antecedente possível para a anáfora na sentença. No processamento de falantes bilíngues, haveria um peso maior para pistas semântico-discursivas na recuperação de itens da memória de trabalho, o que faria com que antecedentes que combinassem com tais pistas e tivessem em posição discursivamente proeminente na sentença, fossem inicialmente recuperados.

Luna (2017)LUNA, L. P. D. As restrições do Princípio A da Teoria da Ligação no processamento de pronomes reflexivos por Brasileiros falantes de Inglês como L2. 85 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. investigou o processamento de anáforas reflexivas em inglês por brasileiros falantes de inglês como L2 observando se, e como, os antecedentes indisponíveis atuavam na resolução da correferência anafórica. A autora investigou o processamento anafórico com falantes de nível intermediário e avançado, utilizando sentenças como em (3):

    (3)
  • a. Jane believed that Zoey/Bob had injured herself/himself with a knife in the garage.

  • a'. Jane acreditava que Zoey/Bob tinha machucado a si mesma/a si mesmo com a faca na garagem.

Os resultados foram distintos para cada um dos grupos de acordo com as condições investigadas. Os participantes de nível intermediário e avançado mostraram tempo de leitura maior para as condições em que não havia congruência da anáfora com o gênero do antecedente disponível, demonstrando sensibilidade para as questões estruturais, uma vez que estas condições violavam o Princípio A. No entanto, nas condições em que havia concordância do gênero da anáfora com o gênero do antecedente disponível, participantes intermediários demonstraram menor tempo quando o gênero do antecedente indisponível também era congruente com o do disponível e o da anáfora. No caso dos participantes avançados, o tempo de leitura mais rápido foi aquele em que apenas o antecedente disponível era congruente com o gênero da anáfora. Ainda sobre os participantes de nível avançado, houve um acréscimo no tempo de leitura quando ambos os antecedentes, disponível e indisponível, combinavam em gênero com a anáfora.

Em relação aos participantes intermediários, e o resultado inesperado da leitura mais rápida quando todos os antecedentes concordavam em gênero com a anáfora, Luna (2017)LUNA, L. P. D. As restrições do Princípio A da Teoria da Ligação no processamento de pronomes reflexivos por Brasileiros falantes de Inglês como L2. 85 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. assume explicação advinda da Hipótese da Estrutura Rasa (CLAHSEN & FELSER, 2006CLAHSEN, H.; FELSER, C. Grammatical processing in language learners. Applied Psycholinguistics. v. 27, p. 3-42, 2006., 2017CLAHSEN, H.; FELSER, C. Some notes on the Shallow Structure Hypothesis. Studies in Second Language Acquisition. https://doi.org/10.1017/S0272263117000250. 2017.
https://doi.org/10.1017/S027226311700025...
) advogando que tal grupo se guia principalmente por pistas semântico-lexicais e pragmáticas que pela sintaxe, o que causaria um maior custo de processamento na condição em que a única forma de ligação seria através da sintaxe e facilitando a leitura da condição em que todos os traços de gênero convergiam. A autora ainda argumenta que, apesar de se guiarem por tais pistas de ordem semântico-lexicais, os tempos de resposta para a pergunta de compreensão ao final de cada sentença não mostrou diferença entre a condição em que a anáfora concordava apenas com o antecedente disponível e a condição em que ela concordava com ambos os antecedentes.

Akhavan et al (2020)AKHAVAN, N.; BLUMENFELD, H. K.; LOVE, T. Auditory sentence processing in Bilinguals: The role of cognitive control. Frontiers in Psychology. v. 11, 2020. investigou qual o papel do controle executivo no processamento auditivo de bilíngues em comparação com monolíngues através da atribuição de papeis temáticos. Nos resultados de seu estudo, os autores encontraram que os bilíngues são menos suscetíveis às interferências de recuperação que monolíngues durante a integração de informações sintáticas, diferente do que advoga Cunnings (2017)CUNNINGS, I. Parsing and Working Memory in Bilingual Sentence Processing. Bilingualism: Language and Cognition. v. 20, n. 4, p. 659-678, 2017..

Felser (2019)FELSER, C. Structure-sensitive constraints in non-native sentence processing. Journal of the European Second Language Association. v. 3, n. 1, p. 12-22, 2019., que investigou restrições relacionadas à estrutura no processamento de falantes de L2 através de rastreamento ocular, encontrou que a habilidade de restringir antecedentes não licenciados no processamento varia de acordo com o tipo de dependência, tanto para bilíngues quando monolíngues. A autora defende que no processamento de uma L2, a sensibilidade dos participantes para pistas gramaticais é reduzida, em comparação com o processamento de uma L1, fazendo com que pistas semânticas, discursivas-semânticas e discursivas sejam consideradas para fazer a interpretação. Isto faria com que bilíngues fossem mais propensos a inicialmente considerar um antecedente potencial mais proeminente, posição de sujeito da oração ou tópico discursivo, antes de considerar antecedentes locais possíveis. Esta preferência inicial a antecedentes proeminentes desfavoreceria antecedentes locais, como determina o Princípio A. Além disto, a sensibilidade ao c-comando seria reduzida no processamento em L2, e a reanálise sintática das representações seria mais custosa que identificar proeminência estrutural e discursiva no processamento on-line.

3. Procedimentos metodológicos

Nesta seção, trataremos da abordagem metodológica utilizada para investigar os objetivos propostos nesta pesquisa. Conduzimos um experimento de leitura automonitorada com movimentação de janela (move window) através do software PsychoPy (PEIRCE, 2007PEIRCE, Jonathan W. PsychoPy - Psychophysics software in Python. Journal of Neuroscience Methods. v. 162, n. 1-2, p. 8-13, 2007.) com brasileiros falantes de inglês como L2.

Nas seções seguintes, traremos mais detalhes sobre as frases experimentais, bem como o gênero estereotípico do antecedente disponível (ver a seção 3.2 que trata dos materiais a serem utilizados nesta investigação).

3.1 Material

Utilizamos como materiais experimentais neste estudo frases adaptadas daquelas utilizadas por Xiang et al (2009)XIANG, M.; DILLON, B.; PHILLIPS, C. Illusory licensing effects across dependency types: ERP evidence. Brain and Language. v. 108, n. 1, p. 40–55, 2009. e replicadas por Patil et al (2016)PATIL, U.; VASISHTH, S.; LEWIS, R. L. Retrieval interference in syntactic processing: the case of reflexive binding in English. Frontiers in Psychology. v. 7, n. 329, 2016., que totalizam 24 conjuntos experimentais.

As sentenças experimentais iniciam com a apresentação de um antecedente disponível, que gramaticalmente possui gênero neutro, isto é, que pode ser atribuído a entidades do gênero masculino ou feminino, seguido por uma oração relativa que apresenta outra entidade, o antecedente indisponível, marcado com o gênero masculino ou feminino, e após a oração relativa, a continuação da sentença principal da frase, onde está a anáfora, com gênero marcado. Em relação ao antecedente disponível, embora este seja gramaticalmente neutro, foram utilizadas NPs de profissões que remetem a um gênero estereotipado, isto é, que tradicionalmente sejam atribuídas mais a um gênero que a outro. Como exemplos de profissões estereotipadas, porém gramaticalmente neutras em inglês, teremos alguns exemplos, apresentados em (4):

    (4)
  • a. Estereótipo masculino: firefighter (bombeiro), engineer (engenheiro), mechanic (mecânico), soldier (soldado), driver (motorista)

  • b. Estereótipo feminino: nurse (enfermeira), caregiver (cuidadora), teacher (professora), dancer (dançarina), secretary (secretária)

As frases foram distribuídas em 4 listas seguindo o quadrado latino, para impedir que o mesmo participante tivesse acesso a duas versões da mesma frase. Cada segmento foi apresentado individualmente, através da técnica move-window. Seguindo cada uma das frases havia uma pergunta de compreensão, apresentada em caixa alta para diferenciá-la das frases experimentais, com conteúdo referente ao que o participante acabara de ler.

Um exemplo de cada condição experimental pode ser visto em (5)5 5 Tradução nossa das sentenças apresentadas em (5) para o Português Brasileiro:O bombeiro dedicado que o Henry recomendou para o novo emprego cortou a si mesmo no vidro quebrado no chão. O HENRY CORTOU A SI MESMO NO VIDRO QUEBRADO?O bombeiro dedicado que a Linda recomendou para o novo emprego cortou a si mesmo no vidro quebrado no chão. O BOMBEIRO RECOMENDOU A LINDA PARA O NOVO EMPREGO?A bombeira dedicada que a Linda recomendou para o novo emprego cortou a si mesma no vidro quebrado no chão. A LINDA CORTOU A SI MESMA NO VIDRO QUEBRADO?A bombeira dedicada que o Henry recomendou para o novo emprego cortou a si mesma no vidro quebrado no chão. A BOMBEIRA RECOMENDOU O HENRY PARA O NOVO EMPREGO? . A relação de congruência/incongruência é em relação ao gênero da anáfora:

    (5)
  • a. Congruente-Congruente (CC):

  • The dedicated firefighter/ that Henry/ recommended/ for the new job/ cut/ himself/ on broken glass/ on the floor./

  • DID HENRY CUT HIMSELF ON BROKEN GLASS?

  • b. Congruente-Incongruente (CI):

  • The dedicated firefighter/ that Linda/ recommended/ for the new job/ cut/ himself/ on broken glass/ on the floor./

  • DID THE FIREFIGHTER RECOMMEND LINDA FOR THE NEW JOB?

  • c. Incongruente-Congruente (IC):

  • The dedicated firefighter/ that Linda/ recommended/ for the new job/ cut/ herself/ on broken glass/ on the floor./

  • DID LINDA CUT HERSELF ON BROKEN GLASS?

  • d. Incongruente-Incongruente (II):

  • The dedicated firefighter/ that Henry/ recommended/ for the new job/ cut/ herself/ on broken glass/ on the floor./

  • DID THE FIREFIGHTER RECOMMEND HENRY FOR THE NEW JOB?

Além das frases experimentais, foram inseridas no experimento, de forma pseudorandomizada, 48 sentenças distratoras. A pseudorandomização da apresentação dos estímulos é uma maneira de garantir que duas frases experimentais não sejam apresentadas em sequência para o mesmo participante, minimizando a possibilidade de que este perceba o intuito do experimento.

3.2 Participantes

Participaram deste experimento 24 sujeitos voluntários, brasileiros, falantes de inglês, sendo 12 sujeitos do nível intermediário e outros 12 do nível avançado, com idade entre 21 e 49 anos (média = 27,8 anos; desvio padrão = 6,21). Todos os participantes, no momento da pesquisa, estavam cursando a graduação ou já haviam se graduado. Destes participantes, apenas 3 são homens, todos do nível avançado. Para separar os participantes nestes níveis, utilizamos o Vocabulary Levels Test (NATION, 1990NATION, P. Teaching and Learning Vocabulary. Boston, MA: Heinle & Heinle, 1990.), doravante VLT, através da metodologia proposta por Souza e colegas (SOUZA, DUARTE & BERG, 2015SOUZA, R. A.; DUARTE, D.; BERG, I. B. A avaliação de habilidades linguísticas em L2: uma questão metodológica em estudos de influências translinguísticas. In: BUCHWEITZ, A; MOTA, M. B. (Eds.) Linguagem e Cognição: Processamento, Aquisição e Cérebro. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2015.; SOUZA & SOARES-SILVA, 2015SOUZA, R.A.; SOARES-SILVA, J. Exploring the measurement of vocabulary size to differentiate Brazilian Portuguese-English bilinguals' access to grammatical knowledge in the L2. Revista Linguística. v. 11, n. 1, p. 187-204, 2015.).

3.3 Procedimentos

O experimento on-line foi realizado através da técnica de leitura automonitorada não cumulativa, com movimentação de janela (move window), seguida por uma pergunta de compreensão sobre o conteúdo das frases lidas anteriormente. A tarefa foi conduzida em um ambiente calmo, livre de ruídos e interferências exteriores, de modo a permitir o máximo de concentração durante sua execução.

Os procedimentos descritos aqui foram feitos em duas sessões. Na primeira delas, foi aplicado o VLT com os participantes respeitando a metodologia proposta por Souza e colegas (SOUZA, DUARTE & BERG, 2015SOUZA, R. A.; DUARTE, D.; BERG, I. B. A avaliação de habilidades linguísticas em L2: uma questão metodológica em estudos de influências translinguísticas. In: BUCHWEITZ, A; MOTA, M. B. (Eds.) Linguagem e Cognição: Processamento, Aquisição e Cérebro. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2015.; SOUZA & SOARES-SILVA, 2015SOUZA, R.A.; SOARES-SILVA, J. Exploring the measurement of vocabulary size to differentiate Brazilian Portuguese-English bilinguals' access to grammatical knowledge in the L2. Revista Linguística. v. 11, n. 1, p. 187-204, 2015.). Na segunda sessão, foi aplicado o experimento de leitura automonitorada e o questionário sociolinguístico. Este intervalo entre o VLT e a sessão experimental variou entre 3 e 4 semanas para todos os participantes. No início de cada sessão os participantes foram informados que poderiam desistir de participar da pesquisa a qualquer momento sem prejuízo algum.

A tarefa consistia na leitura de frases segmentadas na tela do computador através da técnica move window, e cuja velocidade de apresentação dos segmentos era controlada pelo participante. Foi utilizado o programa PsychoPy (PEIRCE, 2007PEIRCE, Jonathan W. PsychoPy - Psychophysics software in Python. Journal of Neuroscience Methods. v. 162, n. 1-2, p. 8-13, 2007.). A ordem de apresentação das frases foi feita de modo pseudorandomizada.

Após o final do experimento, o programa indicava na tela do computador que o experimento havia sido encerrado e agradecia a participação do sujeito.

4. Resultados

As variáveis dependentes do experimento foram o tempo de leitura do segmento crítico, ou seja, o tempo de leitura do segmento que continha a anáfora, o tempo de leitura do segmento pós-crítico, e o índice de acertos da pergunta de compreensão. Inicialmente, submetemos os dados do tempo de leitura do segmento crítico e pós crítico a um tratamento estatístico através da ferramenta BoxPlot para identificar e eliminar possíveis outliers. Em seguida, os dados capturados foram organizados e considerados normais de acordo com a estatística de Kolmogorov-Smirnov (p>0,05).

Em relação aos tempos de leitura do segmento crítico, foram realizados testes de análise de variância (ANOVA) em relação aos sujeitos e aos itens do experimento. Em relação aos sujeitos, a análise demonstrou efeito principal para nível de proficiência (F1(1,94) = 31,828; p<0,05). Em relação aos itens, o teste demonstrou efeito principal também para proficiência (F2(1,190) = 43,149; p<0,05). O gráfico abaixo mostra o tempo médio de leitura do segmento crítico por sujeitos dos dois grupos investigados, em cada uma das condições experimentais do material utilizado nesta investigação:

Gráfico 1
Tempo médio de leitura do segmento crítico por condição.

Como é possível observar, o tempo de leitura médio dos participantes de nível avançado foi menor que o dos participantes de nível intermediário (aproximadamente 95 milissegundos mais rápido nos avançados). Esta diferença, como mencionado anteriormente, foi significativa (p<0,05).

Gráfico 2
Tempo médio de leitura do segmento crítico por grupo de proficiência.

Em seguida, conduzimos testes estatísticos isolados para cada um dos grupos estudados. Em relação ao grupo de participantes de nível intermediário, uma análise a partir de uma ANOVA one-way não demonstrou diferenças significativas para as condições estudadas neste grupo (p>0,05). No entanto, após conduzirmos um teste-T, encontramos diferença significativa neste grupo para o tempo de leitura das condições CC e CI (t1(11) = 2,351; p < 0,05). Não foram encontradas outras diferenças significativas para os tempos de leitura do segmento crítico deste grupo.

Na análise dos dados do grupo de sujeitos avançados, após conduzirmos uma ANOVA one-way, encontramos diferenças entre os tempos de leitura das condições estudadas (F1(3,44) = 6,765; p < 0,05). Posteriormente, conduzimos testes-T para verificar possíveis diferenças no tempo de leitura entre as condições estudadas. Desta forma, encontramos diferenças significativas entre as condições II e CC (t1(11) = 6,453; p < 0,05), II e CI (t1(11) = 5,650; p < 0,05) e II e IC (t1(11) = 3,517; p < 0,05). Outras diferenças entre os tempos de leitura das condições estudadas não foram significativas.

Além da análise do segmento crítico, realizamos também análise dos tempos de leitura do segmento pós-crítico, buscando capturar algum efeito de spillover. Desta forma, foram realizados testes de análise de variância (ANOVA) em relação aos sujeitos e aos itens do experimento. Em relação aos sujeitos, a análise demonstrou efeito principal para nível de proficiência (F1(1,94) = 46,661; p<0,05). Em relação aos itens, o teste demonstrou efeito principal também para proficiência (F2(1,190) = 48,697; p<0,05). O gráfico abaixo mostra o tempo médio de leitura do segmento pós-crítico por sujeitos dos dois grupos investigados, em cada uma das condições experimentais do material utilizado nesta investigação:

Gráfico 3
Tempo médio de leitura do segmento pós-crítico por condição.

De forma semelhante ao segmento crítico, também conduzimos testes estatísticos isolados para cada um dos grupos estudados em relação ao segmento pós-crítico. Em relação ao grupo de participantes de nível intermediário, a ANOVA one-way indicou que houve diferença significativa no tempo de leitura das condições estudadas (F1(3,44) = 3,516; p < 0,05). Em seguida, testes-T indicaram diferenças significativas nos tempos de leitura entre as condições CC e IC (t1(11) = 2,578; p < 0,05) e entre as condições CI e IC (t1(11) = 2,724; p < 0,05).

Na análise dos dados do grupo de sujeitos avançados, a ANOVA one-way conduzida não revelou um efeito significativo para as condições estudadas. No entanto, testes-T conduzidos posteriormente mostraram que houve uma diferença significativa nos tempos de leitura das condições CI e IC (t1(11) = 2,285; p < 0,05). Houve ainda um resultado marginal para diferença entre as condições II e CI (t1(11) = 1,598; p = 0,069). Nenhuma outra comparação foi considerada significativa para este grupo.

Por conta deste resultado marginal obtido no segmento pós crítico para o grupo de participantes do nível avançado, decidimos conduzir uma análise do segmento final das frases experimentais. No gráfico abaixo, temos os tempos médios de leitura de cada uma das condições investigadas no segmento 8 para o grupo de avançados.

Gráfico 4
Tempo médio de leitura do segmento final (segmento 8) do grupo avançado

Conduzimos uma ANOVA one-way, que revelou um efeito significativo para as condições lidas por este grupo (F1(3,44) = 5,959; p< 0,05). Testes-T foram conduzidos para verificar quais diferenças foram significativas no último segmento para este grupo. Foram consideradas significativas as diferenças de tempo de leitura entre as condições CC e II (t1(11) = 2,790; p < 0,05), CC e IC (t1(11) = 3,831; p < 0,05), II e CI (t1(11) = 3,092; p < 0,05), e CI e IC (t1(11) = 3,668; p < 0,05).

O gráfico 5, abaixo, mostra os tempos médios de leitura de cada um dos segmentos investigados para os participantes de nível de proficiência avançado.

Gráfico 5
Tempos médios de leitura dos segmentos 6, 7 e 8 para o nível avançado

Por fim, analisamos o índice de acerto das perguntas de compreensão. De modo geral, os participantes tiveram um índice de acerto alto para as perguntas de compreensão, como é possível ver na tabela abaixo:

Tabela 1
Valores das respostas à pergunta de compreensão.

Testes de Qui-Quadrado (χ2) foram realizados para tentar verificar possíveis diferenças estatísticas entre as variáveis estudadas, porém nenhuma diferença foi encontrada.

5. Discussão

O experimento relatado neste trabalho teve como objetivo investigar como ocorre o processamento de anáforas em inglês por brasileiros falantes de inglês como L2, buscando comparar os resultados obtidos com os a literatura existente sobre processamento anafórico por falantes bilíngues e comparar com os modelos de interferência na memória de trabalho causado por semelhanças.

Inicialmente, verificamos que todas as análises feitas sobre os dados do experimento conduzido revelaram vantagem dos sujeitos de nível de proficiência avançado sobre os intermediários. O único resultado em que esta superioridade dos avançados não foi atestada foi no índice de acertos à pergunta de compreensão, em que não houve diferença significativa para o grau de acerto de um grupo sobre o outro. Estes resultados indicam que o teste VLT (NATION, 1990NATION, P. Teaching and Learning Vocabulary. Boston, MA: Heinle & Heinle, 1990.), quando aplicado sob as condições propostas por Souza e colaboradores (SOUZA et al, 2015SOUZA, R. A.; DUARTE, D.; BERG, I. B. A avaliação de habilidades linguísticas em L2: uma questão metodológica em estudos de influências translinguísticas. In: BUCHWEITZ, A; MOTA, M. B. (Eds.) Linguagem e Cognição: Processamento, Aquisição e Cérebro. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2015.; SOUZA & SOARES-SILVA, 2015SOUZA, R.A.; SOARES-SILVA, J. Exploring the measurement of vocabulary size to differentiate Brazilian Portuguese-English bilinguals' access to grammatical knowledge in the L2. Revista Linguística. v. 11, n. 1, p. 187-204, 2015.), se mostra como uma alternativa eficaz de conseguir averiguar diferenças de nível de proficiência em língua inglesa que refletem diferenças no processamento on-line de aprendizes intermediários e avançados. Resultados semelhantes, isto é, que mostram distinções entre níveis avançados e intermediários capturados a partir do teste VLT são encontrados por Luna (2017)LUNA, L. P. D. As restrições do Princípio A da Teoria da Ligação no processamento de pronomes reflexivos por Brasileiros falantes de Inglês como L2. 85 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. para processamento anafórico e por Barbosa (2017)BARBOSA, M. A. Processamento da correferência na posição de sujeito e de objeto por brasileiros falantes de Inglês como L2. 133 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. e Santana (2017)SANTANA, J. D. Processamento Bilíngue e Transferência Linguística: O processamento da Ordem do Adjetivo e do Advérbio em Língua Inglesa. 277 f. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017., na investigação de outros fenômenos.

Em relação ao resultado do índice de acertos à pergunta final, este se mostra semelhante aos resultados encontrados em outros estudos (LUNA, 2017LUNA, L. P. D. As restrições do Princípio A da Teoria da Ligação no processamento de pronomes reflexivos por Brasileiros falantes de Inglês como L2. 85 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017.; BARBOSA, 2017BARBOSA, M. A. Processamento da correferência na posição de sujeito e de objeto por brasileiros falantes de Inglês como L2. 133 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017.; SANTANA, 2017SANTANA, J. D. Processamento Bilíngue e Transferência Linguística: O processamento da Ordem do Adjetivo e do Advérbio em Língua Inglesa. 277 f. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017.) que investigaram o processamento de falantes bilíngues, em especial em estudos que investigaram o processamento anafórico deste grupo. No geral, os bilíngues conseguem responder corretamente às perguntas de compreensão, mostrando que conseguiram integrar as informações contidas nas sentenças e responder corretamente o que estas propunham. Resultados semelhantes para testes off-line são encontrados por Felser, Sato e Bertenshaw (2009)FELSER, C.; SATO, M.; BERTENSHAW, N. The on-line application of binding Principle A in English as a second language. Bilingualism: Language and Cognition. v. 12, n. 4, p. 485-502, 2009. e Felser e Cunnings (2012)FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012.. Em Felser et al (2009)FELSER, C.; SATO, M.; BERTENSHAW, N. The on-line application of binding Principle A in English as a second language. Bilingualism: Language and Cognition. v. 12, n. 4, p. 485-502, 2009., mais precisamente no experimento 1A, que consistia em um julgamento de gramaticalidade não imediato, o índice de acerto dos bilíngues foi semelhante aos dos falantes monolíngues de inglês, mostrando que conseguiram corretamente compreender a frase que leram. Da mesma forma, no experimento 2A, que consistia em uma tarefa de identificação de antecedentes, os participantes bilíngues também conseguiram identificar corretamente os possíveis antecedentes das anáforas. Também em Felser e Cunnings (2012)FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012., o índice de acerto para as perguntas de compreensão ao final dos itens experimentais foi semelhante entre bilíngues e monolíngues nos dois experimentos conduzidos. Luna (2017)LUNA, L. P. D. As restrições do Princípio A da Teoria da Ligação no processamento de pronomes reflexivos por Brasileiros falantes de Inglês como L2. 85 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. também relata um alto índice de acerto à pergunta final para os grupos intermediário e avançado, sem diferenças significativas para esta tarefa off-line.

A análise do segmento crítico mostrou que houve diferenças significativas apenas entre os tempos de leitura dos participantes do nível avançado. Na análise do segmento pós crítico, foram encontradas diferenças significativas apenas para o grupo dos intermediários. No entanto, ao contrastarmos os tempos de leitura das condições experimentais, foram encontradas diferenças tanto no grupo de sujeitos avançados, quanto no grupo de intermediários, para ambos os segmentos.

Para os participantes do grupo intermediário, a única diferença significativa no segmento crítico foi para as condições CC e CI. Tal resultado é semelhante ao que foi encontrado por Luna (2017)LUNA, L. P. D. As restrições do Princípio A da Teoria da Ligação no processamento de pronomes reflexivos por Brasileiros falantes de Inglês como L2. 85 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017., isto é, nas sentenças em que a anáfora combinava com ambos os antecedentes, o tempo de leitura foi menor que a condição em que a anáfora combinava apenas com o antecedente disponível. Esta facilitação, de acordo com Luna (2017)LUNA, L. P. D. As restrições do Princípio A da Teoria da Ligação no processamento de pronomes reflexivos por Brasileiros falantes de Inglês como L2. 85 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. pode ser causada por uma característica que este grupo teria em se guiar principalmente por pistas semântico-lexicais e pragmáticas (CLAHSEN & FELSER, 2006CLAHSEN, H.; FELSER, C. Grammatical processing in language learners. Applied Psycholinguistics. v. 27, p. 3-42, 2006., 2017; FELSER, 2019FELSER, C. Structure-sensitive constraints in non-native sentence processing. Journal of the European Second Language Association. v. 3, n. 1, p. 12-22, 2019.) e não se guiar inicialmente pela sintaxe. Isto faria a condição CC, em que ambos os antecedentes combinam em gênero com a anáfora, ser lida mais rapidamente, uma vez que não haveria nenhuma entidade nessas condições que diferiria em relação ao traço de gênero da anáfora. Já nas condições CI, em que apenas o antecedente disponível combina em gênero com a anáfora, o custo de processamento foi maior, provavelmente devido ao fato de haver um antecedente cujo traço de gênero difere daquele das outras entidades mencionadas, o que faria com que os participantes do grupo intermediário tivessem que comprometer um custo maior no processamento.

No entanto, diferente de Luna (2017)LUNA, L. P. D. As restrições do Princípio A da Teoria da Ligação no processamento de pronomes reflexivos por Brasileiros falantes de Inglês como L2. 85 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017., nas outras condições, isto é, nas condições em que o gênero da anáfora combinava com o do antecedente indisponível, os tempos de leitura em nosso experimento foram menores. Em nossos itens experimentais, o sujeito da sentença se tratava do antecedente disponível, e o antecedente indisponível só seria apresentado posteriormente na sentença, diminuindo sua proeminência discursiva (FELSER et al, 2009FELSER, C.; SATO, M.; BERTENSHAW, N. The on-line application of binding Principle A in English as a second language. Bilingualism: Language and Cognition. v. 12, n. 4, p. 485-502, 2009.; FELSER & CUNNINGS, 2012FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012.; FELSER, 2019FELSER, C. Structure-sensitive constraints in non-native sentence processing. Journal of the European Second Language Association. v. 3, n. 1, p. 12-22, 2019.) e, portanto, não demonstrando um efeito nesse momento inicial, para o grupo de sujeitos de nível intermediário. Uma possível interpretação deste resultado poderia ser feita através dos achados de Martin (2018)MARTIN, A. E. Cue integration during sentence comprehension: Electrophysiological evidence from ellipsis. PLoS ONE. v. 13, n. 11, 2018., em que, na ausência de um antecedente gramatical, foi encontrado efeito de recência para o antecedente. Esta interpretação, no entanto, necessita de maiores estudos para poder ser afirmada com mais força.

No segmento pós-crítico foram encontradas diferenças significativas entre os tempos de leitura das condições IC e CC, e das condições IC e CI, sendo a condição IC mais custosa que ambas as condições CC e CI. Podemos ver aqui que, contrário ao que ocorreu no segmento crítico, as condições em que anáfora e antecedente disponível combinavam em gênero foram lidas mais rapidamente, o que poderia refletir uma possível atuação da sintaxe num estágio posterior neste grupo de participantes. Esta atuação da sintaxe nesse momento posterior seria também uma possível explicação para o maior custo de processamento da condição IC, em que a anáfora combina com o gênero apenas do antecedente indisponível.

Em relação ao grupo de avançados, as explicações para os resultados encontrados vão na mesma direção das explicações encontradas para os participantes do nível intermediário. Inicialmente, no segmento crítico, foram encontradas diferenças significativas para o tempo de leitura da condição II (II x CC; II x CI; II x IC), sendo esta mais custosa que todas as outras condições.

É interessante ver que neste grupo o antecedente indisponível não parece ter influenciado a leitura das condições em que a anáfora concordava com o antecedente disponível (CC e CI) no segmento crítico, uma vez que não houve diferença significativa entre estas condições. Apesar de tal padrão poder sugerir que o grupo de participantes de nível avançado de proficiência consegue fazer a ligação nestas condições com o antecedente disponível, algo que poderia corroborar com a Hipótese do Filtro de Ligação Inicial (NICOL & SWINNEY, 1989NICOL, J.; SWINNEY, D. The role of structure in coreference assignment during sentence comprehension. Journal of Psycholinguistic Research, v. 18, n. 1, p. 5-19, 1989.), os dados advindos das condições em que a anáfora não combinava com o antecedente disponível levantam dúvidas sobre esta conclusão.

Também aqui, inicialmente os participantes parecem se guiar por traços semântico-lexicais (CLAHSEN & FELSER, 2006CLAHSEN, H.; FELSER, C. Grammatical processing in language learners. Applied Psycholinguistics. v. 27, p. 3-42, 2006., 2017; FELSER, 2019FELSER, C. Structure-sensitive constraints in non-native sentence processing. Journal of the European Second Language Association. v. 3, n. 1, p. 12-22, 2019.) existentes nos antecedentes, e como eles podem ser compatíveis com os traços existentes na anáfora. A condição II é a única em que a anáfora não compartilha traços de gênero com nenhum dos antecedentes. Com isto, acreditamos que neste primeiro momento o participante de nível avançado faz uma leitura de modo a achar ao menos um antecedente que combine com o gênero da anáfora.

No segmento pós-crítico, encontramos diferença significativa entre as condições CI e IC, e um resultado marginal para a diferença entre CI e II. Aqui, vemos uma tendência de que os participantes avançados procuraram fazer a ligação da anáfora com o antecedente disponível, da maneira como a sintaxe prevê, uma vez que as diferenças significativas foram entre a condição em que a anáfora combinava apenas com o antecedente disponível e as condições em que não havia a marcação de gênero igual entre anáfora e antecedente indisponível. Esta tendência nos levou a analisar neste grupo também o segmento 8, que mostrou essa diferença mais forte, havendo diferenças significativas entre as condições em que a anáfora combinava com o antecedente disponível e as condições em que não combinava (CC x II; CC x IC; CI x II; CI x IC)

Essa tendência verificada no segmento pós-crítico (segmento 7) e confirmada no segmento 8 mostra de forma mais acentuada que apesar de inicialmente se guiar por informações de outras naturezas que não apenas sintática na tentativa de estabelecer a ligação entre anáfora e um possível antecedente, há neste grupo de sujeitos a ação do princípio A de maneira latente, o que permite a correta identificação do antecedente para a anáfora.

Apesar de não encontrarmos um efeito semelhante aos achados de Felser e Cunnings (2012)FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012., para o grupo de avançados, podemos afirmar que a interpretação dos resultados encontrados neste estudo vão ao encontro dos encontrados por estes autores. Isto é, eles encontraram um efeito inicial em que aparentemente os participantes bilíngues tentavam fazer a ligação da anáfora com o antecedente indisponível, e só posteriormente procuraram fazer a ligação da anáfora com seu antecedente disponível. No entanto, Felser e Cunnings (2012)FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012. também afirmam que o antecedente indisponível em seus dois experimentos, que foi preferido num momento inicial de processamento, é o antecedente discursivamente proeminente em seu material. Tal antecedente ocupa a posição de sujeito da sentença que funciona como preâmbulo em ambos os experimentos, sendo retomada na sentença crítica antes da anáfora, como sujeito de uma oração encaixada ou sujeito da sentença principal. Em todos os casos, podemos afirmar que este antecedente indisponível, em Felser e Cunnings (2012)FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012., ocupa uma posição de proeminência discursiva, o que poderia fazer com que seus traços fossem mais salientes para os participantes bilíngues (FELSER, 2019FELSER, C. Structure-sensitive constraints in non-native sentence processing. Journal of the European Second Language Association. v. 3, n. 1, p. 12-22, 2019.). No material da pesquisa aqui relatada, temos que o antecedente considerado mais proeminente, por ocupar a posição de sujeito, seria o antecedente disponível.

Desta forma, falando em sujeitos bilíngues, não se trataria em Felser e Cunnings (2012)FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012. e aqui nesta pesquisa de uma procura por um antecedente indisponível ou disponível, mas pela procura de um antecedente que satisfizesse a critérios que identificassem um antecedente com traços semântico-lexicais e pragmáticos proeminentes (CLAHSEN & FELSER, 2006CLAHSEN, H.; FELSER, C. Grammatical processing in language learners. Applied Psycholinguistics. v. 27, p. 3-42, 2006., 2017; FELSER, 2019FELSER, C. Structure-sensitive constraints in non-native sentence processing. Journal of the European Second Language Association. v. 3, n. 1, p. 12-22, 2019.). No caso de Felser e Cunnings (2012)FELSER, C.; CUNNINGS, I. Processing reflexives in English as a second language: The role of structural and discourse-level constraints. Applied Psycholinguistics. v. 33, p. 571–603, 2012. os traços mais proeminentes seriam os traços que levavam para o antecedente indisponível. Já aqui, haveria traços que levariam para o antecedente disponível, porém também haveria, no caso da condição IC, traços que levariam para o antecedente indisponível, uma vez que este seria o único a combinar com os traços da anáfora.

Outro ponto de divergência, em alguns aspectos, entre esta pesquisa e a conduzida por Luna (2017)LUNA, L. P. D. As restrições do Princípio A da Teoria da Ligação no processamento de pronomes reflexivos por Brasileiros falantes de Inglês como L2. 85 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017., que precisamos salientar é a diferença entre o material utilizado. Em Luna (2017)LUNA, L. P. D. As restrições do Princípio A da Teoria da Ligação no processamento de pronomes reflexivos por Brasileiros falantes de Inglês como L2. 85 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. havia não apenas o fato de que o antecedente indisponível era o sujeito da oração principal, como também este, e o antecedente disponível, eram realizados a partir de nomes próprios, o que forçava a identificação destes antecedentes com um gênero, obrigatoriamente. Em nosso material, o antecedente indisponível possuía um gênero definido, uma vez que esta entidade também era realizada através de um nome próprio, porém o antecedente indisponível era sempre uma profissão que não possuía um gênero totalmente determinado, mas se utilizava de estereótipos. Com isso, o cruzamento entre as variáveis em Luna (2017)LUNA, L. P. D. As restrições do Princípio A da Teoria da Ligação no processamento de pronomes reflexivos por Brasileiros falantes de Inglês como L2. 85 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017., geraria duas condições consideradas agramaticais (CAI - Congruente com o Antecedente Indisponível; IADI - Incongruente com os Antecedentes Disponível e Indisponível). Com isso, é possível verificar em Luna (2017)LUNA, L. P. D. As restrições do Princípio A da Teoria da Ligação no processamento de pronomes reflexivos por Brasileiros falantes de Inglês como L2. 85 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. que os tempos médios de leitura destas condições são geralmente superiores aos das condições gramaticais. A partir disso, nos questionamos até que ponto os tempos de leitura destas condições estão livres de um possível efeito de leitura de sentenças agramaticais, e como essa sobrecarga poderia ser interpretada. Nos materiais de nossa pesquisa, como mencionado anteriormente, o antecedente disponível era sempre uma profissão estereotipada, que, apesar de procurar forçar ou evitar uma ligação entre anáfora e antecedente disponível, não causava agramaticalidade. Esta explicação poderia dar conta dos resultados com os sujeitos intermediários desta pesquisa que inicialmente não repeliram as condições II e IC, mas que posteriormente recusaram ao menos a condição em que, aparentemente, havia uma tendência a querer forçar a ligação entre anáfora e antecedente indisponível (condição IC).

Por fim, ao compararmos os resultados encontrados nesta pesquisa com os modelos de interferência na memória de trabalho com base em semelhanças, podemos afirmar que para sujeitos bilíngues parece haver uma interferência de outros fatores que não apenas os sintáticos no momento de recuperação das informações da memória de trabalho, o que caracterizaria estas interferências, a princípio, como interferências de recuperação (Retrieval interference). As interferências na recuperação são comumente associadas nas pesquisas que investigam o processamento anafórico a hipóteses baseadas no uso de informação não estrutural para a resolução anafórica (Unconstrained cue-based accounts). Já a interferência de codificação lida mais diretamente com a Hipótese do Filtro Inicial (NICOL & SWINNEY, 1989NICOL, J.; SWINNEY, D. The role of structure in coreference assignment during sentence comprehension. Journal of Psycholinguistic Research, v. 18, n. 1, p. 5-19, 1989.), ou seja, com a hipótese de que a sintaxe atua restringindo já nos primeiros momentos os possíveis antecedentes da anáfora. Com base nesses modelos, no entanto, não é possível afirmar com clareza como esta interferência aconteceria com base em nossos resultados.

Em relação ao modelo proposto por McElree e colaboradores (MCELREE, 2000MCELREE, B. Sentence comprehension is mediated by content addressable memory structures. Journal of Psycholinguist Research. v. 29, p. 111–123, 2000.; MCELREE et al, 2003MCELREE, B.; FORAKER, S.; DYER, L. Memory structures that subserve sentence comprehension. Journal of Memory and Language. v. 48, p. 67–91, 2003.; MARTIN & MCELREE, 2011MARTIN, A. E.; MCELREE, B. Direct-access retrieval during sentence comprehension: evidence from sluicing. Journal of Memory and Language. v. 64, p. 327–343, 2011.), os resultados encontrados aqui não parecem ir ao encontro desta abordagem, uma vez que este autor propõe que o tempo de leitura da anáfora inicialmente seria igual para todas as condições com ou sem interferência, e que a diferença ocorreria numa provável releitura, uma vez que o parser precisaria fazer uma reanálise ao recuperar um antecedente incorreto. Em nossa investigação, tanto para o grupo de sujeitos intermediários quanto os avançados, encontramos diferenças significativas nos tempos de leitura já do segmento crítico, o que contraria tal hipótese de tempo de recuperação igual para condições com interferência e condições sem interferência.

Olhando a partir do modelo ACT-R, proposto e investigado por Lewis e colaboradores (LEWIS & VASISHTH, 2005LEWIS, R. L.; VASISHTH, S. An activation-based model of sentence processing as skilled memory retrieval. Cognitive Science. v. 29, n. 3, p. 375–419, 2005.; LEWIS et al, 2006LEWIS, R. L.; VASISHTH, S.; AND VAN DYKE, J. A. Computational principles of working memory in sentence comprehension. Trends in Cognitive Sciences. v. 10, n. 10, p. 447–454, 2006.), buscando investigar a partir dos efeitos propostos por Patil, Vasishth e Lewis (2016)PATIL, U.; VASISHTH, S.; LEWIS, R. L. Retrieval interference in syntactic processing: the case of reflexive binding in English. Frontiers in Psychology. v. 7, n. 329, 2016., encontramos resultados distintos para cada grupo de participantes. Para uma melhor compreensão, reproduzimos as previsões dos efeitos propostos por Patil et al (2016)PATIL, U.; VASISHTH, S.; LEWIS, R. L. Retrieval interference in syntactic processing: the case of reflexive binding in English. Frontiers in Psychology. v. 7, n. 329, 2016., alterando os nomes das condições utilizadas pelos autores pelas condições utilizadas neste trabalho:

    (6)
  • a. Os erros de recuperação6 6 Entendemos como "erro de recuperação" o índice de acertos das perguntas de compreensão no final de cada sentença. para a condição II serão maiores que aqueles da condição CI.

  • b. Os erros de recuperação para as condições CC e IC serão maiores que aqueles das outras condições.

  • c. Os tempos de recuperação7 7 Entendemos como "tempo de recuperação" o tempo de leitura do segmento contendo a anáfora. para a condição II serão maiores que aqueles da condição CI.

  • d. Os tempos de recuperação para a condição CC serão maiores que aqueles da condição CI.

  • e. Os tempos de recuperação para a condição IC serão menores que aqueles da condição II.

Inicialmente, não podemos afirmar que encontramos os efeitos descritos em (6a) e (6b), uma vez que não houve diferença no índice de acerto da pergunta de compreensão entre as condições para os dois grupos investigados. Em relação aos outros efeitos, podemos afirmar que nenhum deles foi encontrado para o grupo dos intermediários, ocorrendo o oposto do previsto para o efeito descrito em (6d) no segmento crítico.

Para o grupo dos avançados, encontramos efeitos semelhantes aos descritos em (6c) e (6e) no segmento crítico, porém não encontramos efeito semelhante ao descrito em (6d) em nenhum dos segmentos investigados. Desta forma, não é possível afirmar com convicção que este modelo também reflete o que acontece com os sujeitos bilíngues, uma vez que houve grande diferença entre o que foi previsto para ele, e os resultados aqui descritos.

Ainda sobre estas previsões, nos questionamos até que ponto os achados de Yaday e colaboradores (2022)YADAV, H.; PAAPE, D.; SMITH, G.; DILLON, B. W.; VASISHTH, S. Individual differences in cue weighting in sentence comprehension: an evaluation using approximate Bayesian computation. Open Mind: Discoveries in Cognitive Science. v. 6, p. 1–24, 2022. sobre como diferenças individuais atuam na existência de interferências de recuperação em bilíngues. Como os autores afirmaram, para anáforas reflexivas alguns participantes atribuem pesos diferentes às pistas estruturais, o que fez com que para alguns destes não houvesse efeito de interferência uma vez que a recuperação destas pistas seria algo que faria com que as restrições do Princípio A fossem efetivadas no processamento on-line. Em participantes bilíngues avançados poderia ocorrer que essas diferenças individuais também estejam atuando, porém ao analisarmos o grupo como um todo perdemos este refinamento de informações, o que se mostra como um possível caminho de investigação futuro, especialmente em relação à previsão (6d). Caso estas diferenças individuais encontradas por Yaday et al (2022) estivessem disponíveis para o processamento em L2, teríamos participantes em que as condições CC e CI possivelmente seriam diferentes, pelo favorecimento de pistas estruturais, fazendo com que o processamento fosse mais rápido.

Ainda sobre estes tipos de interferência, ressaltamos que a língua inglesa não se mostra como uma língua ideal para essa investigação, uma vez que não há uma forma anafórica em que não haja a marcação do gênero. Línguas como o português e o russo, por exemplo, se mostram como opções para melhor investigar e distinguir os dois tipos de efeito, uma vez que possuem formas anafóricas que permitem a marcação de gênero ou não necessitam dela. Estas pesquisas, com este foco de investigação nos modelos de interferência na memória de trabalho, ainda são muito restritas na literatura Psicolinguística.

Por fim, levantamos o fato de que o efeito descrito em (6d) por Patil et al (2016)PATIL, U.; VASISHTH, S.; LEWIS, R. L. Retrieval interference in syntactic processing: the case of reflexive binding in English. Frontiers in Psychology. v. 7, n. 329, 2016. é algo descrito também por Cunnings (2017)CUNNINGS, I. Parsing and Working Memory in Bilingual Sentence Processing. Bilingualism: Language and Cognition. v. 20, n. 4, p. 659-678, 2017., através de sua explicação para interferência inibitória, e que não é encontrado em nossa pesquisa em momento algum, chegando a ocorrer o oposto dessa previsão na leitura do segmento crítico para o grupo dos intermediários, em consonância com o observado por Luna (2017)LUNA, L. P. D. As restrições do Princípio A da Teoria da Ligação no processamento de pronomes reflexivos por Brasileiros falantes de Inglês como L2. 85 f. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017.. Apesar de não haver concordância entre as previsões desses autores com os resultados aqui encontrados, aparentemente há algo de significativo nos traços propostos por Cunnings (2017)CUNNINGS, I. Parsing and Working Memory in Bilingual Sentence Processing. Bilingualism: Language and Cognition. v. 20, n. 4, p. 659-678, 2017. como os que seriam levados em conta no momento da recuperação de itens da memória por falantes bilíngues. No entanto, para afirmar com mais veemência como estes traços seriam aplicados, mais pesquisas dentro da área de Psicolinguística experimental precisam ser desenvolvidas, para entender como e quando a integração desses traços atua, e em qual medida.

O experimento descrito nesta seção buscou investigar questões relacionadas ao processamento anafórico por brasileiros falantes de inglês como L2. De modo geral, os resultados mostraram uma vantagem quantitativa no processamento em tempo real de sujeitos com nível de proficiência avançado sobre os intermediários. Apesar desta vantagem, tanto os sujeitos com nível avançado, quanto os com nível intermediário demonstraram ser capazes de fazer a ligação de forma correta, como podemos inferir pelos resultados encontrados na estatística da pergunta de compreensão. Embora diferentes, os tempos de leitura dos sujeitos investigados nesta pesquisa mostraram ser compatíveis com a Hipótese da Estrutura Rasa (CLAHSEN & FELSER, 2006CLAHSEN, H.; FELSER, C. Grammatical processing in language learners. Applied Psycholinguistics. v. 27, p. 3-42, 2006., 2017CLAHSEN, H.; FELSER, C. Some notes on the Shallow Structure Hypothesis. Studies in Second Language Acquisition. https://doi.org/10.1017/S0272263117000250. 2017.
https://doi.org/10.1017/S027226311700025...
), que advoga por um favorecimento de integração de informações de natureza semântico-lexicais e pragmáticas e uma dificuldade na integração de informações sintáticas por falantes bilíngues processando sua L2. Sobre esta hipótese, é importante salientar que os autores ressaltam que não se trata de uma visão impeditiva sobre o acesso às informações sintáticas por falantes bilíngues, mas uma tendência, durante o processamento on-line, a melhor integrar informações de natureza não estrutural.

6. Considerações finais

Através deste artigo, procuramos melhor entender como ocorre o processamento anafórico por falantes bilíngues de Português Brasileiro e inglês, com base nos modelos de interferência na memória de trabalho baseada em semelhanças. Para alcançar este objetivo, conduzimos um experimento de leitura automonitorada com sujeitos de níveis de proficiência intermediário e avançado.

Os resultados encontrados mostraram evidências de que os bilíngues processam as anáforas inicialmente se guiando por informações que vão além da sintaxe, mais especificamente por traços semântico-lexicais dos antecedentes. Num momento posterior, os resultados indicam uma ação da sintaxe, pela ligação da anáfora com o seu antecedente disponível. Apesar de todas as frases poderem ser consideradas gramaticais, há uma forte tendência para que esta ligação ocorra mais fortemente quando o gênero da anáfora combina com o gênero estereotípico do antecedente disponível.

Com base nestes resultados, devemos considerar que, de fato, ocorrem interferências na recuperação de antecedentes com base nas semelhanças de traços existentes entre estes, porém não é possível precisar exatamente um modelo que se enquadre nos resultados encontrados.

É importante ressaltar que, dentre os estudos que investigam estes modelos com base no processamento anafórico, há uma problemática ao se utilizar da língua inglesa, uma vez que, para as anáforas, é obrigatória a marcação de gênero, o que não possibilita a investigação mais acurada sobre as interferências na codificação. Com isto, este estudo também apresenta esta limitação.

Aliada a esta, há o fato de que não há como claramente distinguir possíveis efeitos de um acesso superficial à sintaxe de efeitos exclusivos de acesso às informações codificadas e armazenadas na memória de trabalho. Isto porque, apesar de alguns autores acreditarem que estes efeitos na memória não são específicos para algumas línguas, mas que parecem ser efeitos gerais (LAURINAVICHYUTE et al, 2017LAURINAVICHYUTE, A.; JÄGER, L. A.; AKININA, Y.; ROß, J.; DRAGOY, O. Retrieval and Encoding Interference: Cross-Linguistic Evidence from Anaphor Processing. Frontiers in Psychology. v. 8, n. 965, 2017.), o grupo estudado neste artigo demonstrou resultados pertinentes com teorias que lidam com o processamento linguístico específico de falantes de mais de uma língua, no caso, o uso de informações de natureza semântico-lexical em um primeiro momento (CLAHSEN & FELSER, 2006CLAHSEN, H.; FELSER, C. Grammatical processing in language learners. Applied Psycholinguistics. v. 27, p. 3-42, 2006., 2017CLAHSEN, H.; FELSER, C. Some notes on the Shallow Structure Hypothesis. Studies in Second Language Acquisition. https://doi.org/10.1017/S0272263117000250. 2017.
https://doi.org/10.1017/S027226311700025...
).

Numa possibilidade futura, acreditamos que seria frutífero investigar como os mesmos grupos aqui investigados processariam anáforas em diferentes sentenças, como por exemplo, sentenças em que o antecedente indisponível fosse o mais proeminente no discurso. Além disso, também nos valeríamos de boas comparações através da investigação de sujeitos monolíngues de inglês, bem como a investigação de diferenças individuais em populações bilíngues.

Por fim, acreditamos que este artigo cumpre seu papel em expandir as discussões sobre processamento anafórico em L2, bem como sobre como as informações armazenadas na memória de trabalho são recuperadas. Através do experimento aqui relatado, percebemos diferenças específicas entre os grupos estudados, porém que ultimamente levam à mesma interpretação, mostrando que parece haver um continuum na forma como os bilíngues processam a sua L2, de acordo com a sua progressão na proficiência desta. Também, ressaltamos a necessidade de outras investigações serem conduzidas com outras populações bilíngues, observando outros fenômenos linguísticos, de modo a auxiliar com maior profundidade e clareza na compreensão dos processos envolvidos no processamento linguístico deste grupo.

  • 1
    Entendemos por "anáfora" neste trabalho os reflexivos e recíprocos, de acordo com a Teoria da Regência e Ligação de Chomsky (1981)CHOMSKY, N. Lectures on government and binding. Dordrecht: Foris, 1981., mais especificamente o que trata o Princípio A desta teoria.
  • 2
    Brown (1958)BROWN, J. Some tests of the decay theory of immediate memory. Quarterly Journal of Experimental Psychology. v. 10, p. 12–21, 1958. fala sobre memória imediata (immediate memory), que possuiria características semelhantes à memória de trabalho utilizada nas pesquisas atuais, que seria um repositório de informações distinto da memória de longo prazo, e que funcionaria como uma memória disponível imediatamente, isto é, em prazo curtíssimo, para armazenar informação disponível de maneira imediata.
  • 3
    A sobrescrita de traços também é uma explicação para uma possível interferência no momento da manutenção dos itens na memória de trabalho, uma vez que ela poderia acontecer na codificação de novos itens na memória de trabalho, mas também poderia acontecer durante a manutenção destes até que eles fossem recuperados. De todo modo, a literatura é consensual em assumir que na prática é difícil distinguir a interferência na manutenção da interferência na codificação, uma vez que ambas só podem ser verificadas no momento da recuperação.
  • 4
    Verificar Patil, Lewis e Vasishth (2016)PATIL, U.; VASISHTH, S.; LEWIS, R. L. Retrieval interference in syntactic processing: the case of reflexive binding in English. Frontiers in Psychology. v. 7, n. 329, 2016. para referências.
  • 5
    Tradução nossa das sentenças apresentadas em (5) para o Português Brasileiro:
    1. O bombeiro dedicado que o Henry recomendou para o novo emprego cortou a si mesmo no vidro quebrado no chão. O HENRY CORTOU A SI MESMO NO VIDRO QUEBRADO?

    2. O bombeiro dedicado que a Linda recomendou para o novo emprego cortou a si mesmo no vidro quebrado no chão. O BOMBEIRO RECOMENDOU A LINDA PARA O NOVO EMPREGO?

    3. A bombeira dedicada que a Linda recomendou para o novo emprego cortou a si mesma no vidro quebrado no chão. A LINDA CORTOU A SI MESMA NO VIDRO QUEBRADO?

    4. A bombeira dedicada que o Henry recomendou para o novo emprego cortou a si mesma no vidro quebrado no chão. A BOMBEIRA RECOMENDOU O HENRY PARA O NOVO EMPREGO?

  • 6
    Entendemos como "erro de recuperação" o índice de acertos das perguntas de compreensão no final de cada sentença.
  • 7
    Entendemos como "tempo de recuperação" o tempo de leitura do segmento contendo a anáfora.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2023
  • Aceito
    18 Ago 2023
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