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Ação coletiva e políticas públicas: mulheres camponesas na construção da Política de Saúde das Populações do Campo, da Floresta e das Águas

Collective action and public policies: peasant women in the construction of the Health Policy of the Populations of the Countryside, the Forest and the Waters

Acción colectiva y políticas públicas: mujeres campesinas en la construcción de la Política de Salud de las Poblaciones del Campo, del Bosque y de las Aguas

Resumo:

Este artigo analisa a atuação do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) no processo de construção da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (PNSIPCFA). Configura-se como um estudo de abordagem qualitativa, embasado no reconhecimento e na valorização das ações coletivas desse grupo social na área da saúde pública. As técnicas de coleta de dados consistiram na realização de observação participante, entrevista exploratória e grupo focal. A partir dos achados empíricos e com base no conceito de ação coletiva em Alberto Melucci, considera-se que as ações dos movimentos sociais influenciam a construção da política pública e a produção da realidade social, pois os resultados evidenciam o protagonismo do MMC em espaços representativos de planejamento, elaboração e avaliação de políticas públicas, como o Grupo da Terra, o observatório de acompanhamento e avaliação da referida política e os conselhos municipais de saúde. O MMC realiza ações de enfrentamento, resistência e pressão no Estado por meio de marchas, caminhadas e atos públicos, em parceria com outras organizações, em defesa da saúde pública e efetivação da PNSIPCFA. Também é protagonista no que se refere a ações de formação/capacitação junto ao Movimento para a disseminação e compreensão do conteúdo da Política.

Palavras-chave:
movimento social; mulheres camponesas; saúde pública; política pública

Abstract:

This article analyses the performance of the Peasant Women’s Movement (MMC) in the process of constructing the National Policy for Integral Health of the Populations of the Countryside, Forest, and Waters (PNSIPCFA). It is configured as a qualitative study, based on the recognition and appreciation of the collective actions of this social group in the area of ​​public health. The techniques of data collection consisted of the accomplishment of participant observation, exploratory interview, and focal group. Based on the empirical findings and the concept of collective action in Alberto Melucci, it is considered that the actions of social movements influence the construction of public policy and the production of social reality, as the results highlight the role of the MMC in representative spaces of planning, elaboration, and evaluation of public policies, such as the Earth Group, the monitoring and evaluation observatory of the referred policy, and the municipal councils of health. The MMC carries out actions of confrontation, resistance, and pressure in the State through marches, walks, and public acts, in partnership with other organizations, in defense of public health and the implementation of PNSIPCFA. It is also a protagonist in what concerns training/capacity building actions with the Movement for the dissemination and understanding of the content of the policy.

Keywords:
social movement; peasant women; public health; public politic

Resumen:

Este artículo analiza el desempeño del Movimiento de Mujeres Campesinas (MMC) en el proceso de construcción de la Política Nacional de Salud Integral de las Poblaciones del Campo, Bosque y Aguas (PNSIPCFA). Se configura como un estudio cualitativo, basado en el reconocimiento y valorización de las acciones colectivas de ese grupo social en el área de la salud pública. Las técnicas de recolección de datos consistieron en la realización de observación participante, entrevista exploratoria y grupo focal. Con base en los hallazgos empíricos y en el concepto de acción colectiva en Alberto Melucci, se considera que las acciones de los movimientos sociales influencian la construcción de políticas públicas y la producción de la realidad social, pues los resultados destacan el papel de la MMC en espacios representativos de planificación, la elaboración y evaluación de políticas públicas, como el Grupo Terra, el observatorio de monitoreo y evaluación de dicha política y los consejos municipales de salud. El MMC realiza acciones de enfrentamiento, resistencia y presión en el Estado por medio de marchas, caminatas y actos públicos, en asociación con otras organizaciones, en defensa de la salud pública y la implementación de la PNSIPCFA. Es también protagonista en lo que se refiere a acciones de formación/capacitación con el Movimiento para la diseminación y comprensión del contenido de la política.

Palabras clave:
movimiento social; mujeres campesinas; salud pública; política pública

1 INTRODUÇÃO

A problemática deste estudo consiste em analisar a atuação de um movimento social da Região Oeste catarinense no processo de construção de uma política pública que visa atender às especificidades e peculiaridades das populações do campo, da floresta e das águas na área da saúde. Trata-se do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), que tem articulação em nível nacional. Em Santa Catarina, o MMC atua há mais de três décadas, protagonizando histórias de lutas e reivindicações importantes no que tange à conquista e garantia de direitos para as mulheres camponesas (BONI, 2012BONI, Valdete. De agricultoras a camponesas: o movimento de mulheres camponesas de Santa Catarina e suas práticas. 2012. Tese (Doutorado em Sociologia Política) − Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.; CINELLI, 2013CINELLI, Catiane. Movimento de Mulheres Camponesas: 30 anos de história na construção de novas relações. Revista Grifos, Chapecó, SC, v. 1, n. 34-35, p. 37-49, 2013.; PULGA, 2014PULGA, Vanderléia Laodete. Mulheres camponesas plantando saúde, semeando sonhos, tecendo redes de cuidado e de educação em defesa da vida. 2014. Tese (Doutorado em Educação) − Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.), com repercussões positivas na ampliação de acesso a bens e serviços públicos para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil.

Nessa perspectiva, destaca-se que os movimentos sociais são entendidos como expressão de poder da sociedade civil (GOHN, 2006GOHN, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 2006. , 2011GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais na contemporaneidade. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, v. 16, n. 47, p. 333-61, maio/ago. 2011. ), representando formas de organização que transformam significativamente a realidade em que atuam na direção da luta por direitos e exercício da cidadania. São ações sociopolíticas de diferentes atores que, unidos em torno de identidades coletivas (MELUCCI, 2001MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.), compartilham princípios e valores político-ideológicos que embasam suas práticas e influenciam a produção da realidade social.

O agir coletivo desses grupos sociais, enquanto atores da sociedade civil, é, de acordo com Melucci (2001)MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001., um fenômeno dotado de autonomia, sentido e resistência. Para o autor, é imprescindível olhar para os movimentos sociais a partir de sua heterogeneidade, e não como estruturas definidas e homogêneas presentes no pensamento do senso comum. O autor rechaça a ideia de considerar os movimentos apenas como efeitos de uma situação histórica ou produto de uma determinada conjuntura, sem observar as motivações, o sentido e outros componentes que culminam em ações coletivas, como a construção de uma identidade compartilhada pelo grupo.

Nesse sentido, Melucci (2001, p. 30)MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. refere que “somente uma teoria da ação pode fundar a análise dos movimentos sociais como objeto dotado de sentido”. Uma ação coletiva não é a expressão fidedigna de uma intenção finalizada, um fim esquematicamente delineado e aceito por todos os membros de um movimento social, mas se constrói a partir dos recursos disponíveis aos sujeitos, do sentido singular atribuído à ação por cada membro e do sentido comum produzido pelo grupo, além de se atentar para as possibilidades e os limites oferecidos na relação com o ambiente em que se opera a ação coletiva (MELUCCI, 2001MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.). A organicidade da ação “é o modo pelo qual um ator coletivo tenta dar uma unidade aceitável e durável a tal sistema, continuamente permeado por tensões” (MELUCCI, 2001MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001., p. 46).

No Brasil, um marco histórico importante no que se refere à ação coletiva dos movimentos sociais remete às décadas de 1970 e 1980, quando a sociedade civil, descontente com a situação de repressão e violência vivenciada no regime militar, protagonizou momentos intensos de mobilização e resistência, ocupando as ruas e reivindicando a transição da ditadura para um modelo de sociedade democrático (PONTE; REIS; FONSECA, 2010PONTE, Carlos Fidelis; REIS, José Roberto Franco; FONSECA, Cristina. Saúde pública e medicina previdenciária: complementares ou excludentes? In: PONTE, Carlos Fidelis (Org.). Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC: Fiocruz/EPSJV, 2010.).

Concomitante com a efervescência de organizações sociais ocorrida na época, os movimentos sociais do campo surgem no interior de diversos estados brasileiros. O sul do país e, mais especificamente, a Região Oeste catarinense são emblemáticos quando se refere aos movimentos camponeses (POLI, 2008POLI, Odilon. Leituras em movimentos sociais. Chapecó, SC: Grifos, 2008.). As profundas mudanças na realidade brasileira, advindas com a rápida urbanização e o esvaziamento do rural, que acirraram as problemáticas e desigualdades sociais, são aspectos relevantes para explicar a organização da sociedade civil e a emergência de movimentos sociais, tanto urbanos quanto rurais (AVRITZER, 2012AVRITZER, Leonardo. Sociedade civil e Estado no Brasil: da autonomia à interdependência política. Opinião Pública, Campinas, SP, v. 18, n. 2, p. 383-98, nov. 2012.).

A arena de debates promovida pelos diferentes atores sociais impulsionou a formação de um projeto de reforma baseado na ideia de um Estado social, universal e equânime, o que culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988. No campo da saúde, é importante assinalar que sua garantia como “direito de todos e dever do Estado”, anunciada no Art. 196 da Constituição - pilar central na construção do Sistema Único de Saúde (SUS) -, caracteriza-se também como uma conquista da sociedade civil organizada, principalmente por meio do Movimento da Reforma Sanitária. Articulado inicialmente por intelectuais, trabalhadores da saúde e políticos, aos poucos esse Movimento foi sendo ampliado para diferentes organizações e movimentos sociais comprometidos e sensibilizados com a causa da saúde (KLEBA, 2005KLEBA, Maria Elisabeth. Descentralização do sistema único de saúde no Brasil: limites e possibilidades. Chapecó, SC: Argos, 2005.).

Como frutos dessas intervenções da sociedade civil, além da Constituição Federal, destacam-se a Lei n. 8.080/1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção, recuperação da saúde, organização e funcionamento dos serviços de saúde, e a Lei n. 8.142/1990, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS e seu financiamento.

No que se refere à Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (PNSIPCFA), sua construção também ocorreu por meio do diálogo entre a sociedade civil e o Estado (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.866/2011. Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. ), efetivando o que se preconiza na legislação do SUS quanto à participação comunitária. Segundo Souza (2006, p. 36-7)SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, n. 16, p. 20-45, dez. 2006., a “política pública envolve vários atores e níveis de decisão [...], é uma ação intencional, com objetivos a serem alcançados [...], bem como processos subsequentes após sua decisão e proposição, ou seja, implica também implementação, execução e avaliação”.

A PNSIPCFA foi aprovada em 2011, durante a 14ª Conferência Nacional de Saúde, por meio da Portaria n. 2.866/2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.866/2011. Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. . Cabe ressaltar que a PNSIPCFA se insere no contexto das Políticas de Promoção da Equidade em Saúde2 2 Referem-se a um conjunto de políticas que contemplam as populações de acordo com suas peculiaridades. Estão articuladas à Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP), por meio do Departamento de Apoio à Gestão Participativa (Dagep) (BRASIL, 2013). , cujo objetivo principal é minimizar as desigualdades sociais e as iniquidades existentes no Sistema de Saúde.

O caráter inovador da referida Política se caracteriza pela participação de diferentes movimentos sociais − que têm seus modos de vida e reprodução social relacionados ao campo, à floresta e às águas − no seu processo de construção, implementação, acompanhamento e avaliação. Esse processo se intensificou em 2004 com a criação do Grupo da Terra, instituído pelo Ministério da Saúde por meio da Portaria n. 2.460/2005BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.460/2005. Grupo da Terra. Brasília: Ministério da Saúde, 2005. , cujo objetivo principal foi a elaboração de uma política que pudesse dar conta das especificidades dessas populações, bem como de formular estratégias para sua implantação.

Desde sua criação, o Grupo da Terra é constituído por diferentes movimentos sociais, entre os quais se destaca o MMC, que, ao longo de sua trajetória, tem atuado na defesa da saúde pública. Além de representar uma organização social diretamente implicada pelo texto da PNSIPCFA, esse Movimento tem uma história de discussões e defesa da saúde pública que é anterior a sua construção, o que o caracteriza como importante ator coletivo na reivindicação, por exemplo, de direitos vinculados à saúde das mulheres camponesas. Devido a essa trajetória, aliada ao fato de fazer parte da composição do Grupo da Terra, o Movimento contribuiu com o processo de elaboração da Política, bem como vem desenvolvendo ações e participando de espaços representativos que podem potencializar sua efetivação.

Para compreender repercussões da atuação do MMC, enquanto ator integrante do Grupo da Terra na construção da PNSIPCFA, destacam-se as reflexões de Melucci (2001)MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001., Gohn (2006)GOHN, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 2006. e Avritzer (2012)AVRITZER, Leonardo. Sociedade civil e Estado no Brasil: da autonomia à interdependência política. Opinião Pública, Campinas, SP, v. 18, n. 2, p. 383-98, nov. 2012., ao enfatizarem o papel dos movimentos sociais como expressão de poder da sociedade civil em diferentes processos sociais. Nesse sentido, segundo Melucci (2001)MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001., um movimento social como ator coletivo atua na perspectiva de construir uma identidade coletiva a partir de crenças, decisões e intercâmbios em um campo sistêmico de “‘activación’ de relaciones sociales que conectan a los actores” (MELUCCI, 1999MELUCCI, Alberto. Teoria da acción colectiva. In: MELUCCI, Alberto. Acción colectiva, vida cotidiana y democracia. México: El Colegio de México, 1999. p. 25-54., p. 34). Portanto, ao fazer parte do Grupo da Terra, o MMC, juntamente dos demais movimentos sociais integrantes, constroem e negociam com o Estado demandas coletivas, mediante processos contínuos de “ativação”, no intuito de reivindicar e garantir a construção de uma política pública específica que contemple as necessidades e especificidades em saúde para o público referido em seu texto.

Essa investigação, de natureza qualitativa, utilizou como técnicas a interação com as mulheres camponesas por meio de observação participante, entrevista exploratória e grupo focal. Nas técnicas de entrevista e grupo focal, o número total de sujeitos participantes foram sete, vinculados a seis regionais do MMC, com destaque para a Região Oeste de Santa Catarina.

As 16 regionais do MMC no estado de Santa Catarina abrangem atualmente 114 municípios. Desse total, identificou-se grande representatividade do Movimento na Região Oeste catarinense, perfazendo um total de 10 regionais, sendo que a maioria dos municípios desse espaço geográfico caracteriza-se como de pequeno porte e com características peculiares relacionadas a pequenas propriedades familiares. A presença histórica do MMC, assim como de outros movimentos sociais do campo nesse território, desvela o que alguns autores costumam referenciar como o “berço” ou “celeiro” da emergência desses grupos sociais de forma organizada (POLI, 2008POLI, Odilon. Leituras em movimentos sociais. Chapecó, SC: Grifos, 2008.).

Entre os sujeitos da pesquisa, a entrevista foi realizada em setembro de 2016, com uma das dirigentes estaduais do MMC e residente no município de Palma Sola, pertencente à Regional de São José do Cedro. A entrevistada tem papel estratégico no debate sobre saúde integral no Movimento, sendo a representante do MMC no Grupo da Terra e no Observatório de Saúde das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (Obteia). Participou ativamente de todo o processo de construção da PNSIPCFA, juntamente de representantes de outros movimentos sociais.

O grupo focal foi realizado com seis participantes dos municípios de Planalto Alegre (Regional de Chapecó), Quilombo (Regional de Quilombo), Dionísio Cerqueira e Palma Sola (Regional São José do Cedro), Irani (Regional de Concórdia) e Xanxerê (Regional de Xanxerê). Com apoio da direção estadual, o grupo focal foi realizado no Centro de Formação Maria Rosa, sede do MMC estadual, em Chapecó, SC, em horário reservado para essa finalidade na programação da reunião de planejamento ocorrida em outubro de 2016, aproveitando o momento em que as mulheres já estariam reunidas. Essa definição demarcou a escolha aleatória das participantes da pesquisa, à medida que o convite foi realizado durante a reunião, possibilitando que as mulheres interessadas em compor a amostra do estudo se voluntariassem para participar do grupo.

Este artigo está estruturado em três partes, sendo que a primeira trata da PNSIPCFA, incluindo seu processo de elaboração, objetivo, público-alvo, eixos orientadores, instrumentos de execução e controle e desafios. Na segunda parte, destacam-se as ações desenvolvidas pelo MMC, tanto individualmente quanto em parceria com outros atores sociais coletivos no que se refere à PNSIPCFA. Na última parte, são apresentados os espaços e as formas de participação do MMC na defesa da política em questão, evidenciando-se o protagonismo do Movimento em instâncias representativas de planejamento, elaboração e avaliação, como o Grupo da Terra, observatório desenvolvido para avaliar a Política e os conselhos municipais de saúde.

2 A POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE INTEGRAL DAS POPULAÇÕES DO CAMPO, DA FLORESTA E DAS ÁGUAS (PNSIPCFA)

A PNSIPCFA, assim como outras políticas direcionadas para populações específicas, faz parte das Políticas de Promoção da Equidade em Saúde, que, por sua vez, compõem ações da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (Sgep), por meio do Departamento de Apoio à Gestão Participativa (Dagep), ambos vinculados ao Ministério da Saúde. Essas ações visam reduzir as desigualdades sociais no campo da saúde coletiva, com a implementação de políticas específicas para determinados grupos populacionais, objetivando:

[...] diminuir as vulnerabilidades a que certos grupos populacionais estão mais expostos e que resultam de determinantes sociais da saúde como os níveis de escolaridade e de renda, as condições de habitação, acesso à água e saneamento, à segurança alimentar e nutricional, a participação da política local, os conflitos interculturais e preconceitos como o racismo, as homofobias e o machismo, entre outros. (BRASIL, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Políticas de promoção da equidade em saúde. 1. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2013., p. 6).

O objetivo principal das Políticas de Promoção da Equidade é contribuir com a consolidação do SUS, no sentido de garantir acesso resolutivo às ações e aos serviços de saúde em tempo oportuno. Nota-se que o conceito de saúde que orienta essas políticas está em consonância com a concepção ampliada de saúde, emergente na 8ª Conferência Nacional de Saúde, a qual foi realizada em 1986, sendo determinante para a configuração do atual modelo de atenção à saúde que constitui o SUS.

São consideradas populações do campo, da floresta e das águas, no âmbito dessa política, todos os povos e comunidades que têm seu modo de vida, sua produção e reprodução social relacionados com a terra, floresta e/ou águas. Enquadram-se nesse contexto os camponeses, sejam eles agricultores familiares, sejam eles trabalhadores rurais assentados ou acampados, assalariados e temporários, que residam ou não no campo; comunidades tradicionais, como as ribeirinhas, quilombolas e as que habitam ou usam reservas extrativistas em áreas florestais ou aquáticas; e as populações atingidas por barragens (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.866/2011. Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. ).

Em 2012, após a aprovação da PNSIPCFA, o documento inicial de criação do Grupo da Terra foi revogado e substituído pela Portaria n. 3.071, que redefiniu sua composição e as atribuições no âmbito do Ministério da Saúde, enfatizando sua importância na formulação, no monitoramento e na avaliação das ações de implantação e implementação da Política, tendo em vista a garantia da equidade na atenção à saúde dessa população. Ao Grupo também compete articular e monitorar as ações acordadas entre Ministério da Saúde e movimentos sociais organizados, participar de iniciativas intersetoriais e integrar saberes técnico-políticos para ampliar o conhecimento sobre a situação de saúde desse segmento populacional. Com a alteração proposta na composição e atribuições do Grupo da Terra, identifica-se o fortalecimento desse espaço à medida que acolhe a transversalidade de temas priorizados pelos movimentos e reflete a negociação compartilhada entre os diferentes atores na construção de uma demanda coletiva, qual seja, as atribuições relacionadas à PNSIPCFA, caracterizando os aspectos que definem uma ação coletiva: fins, meios e ambiente no qual se realiza a ação (MELUCCI, 2001MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.).

O Grupo foi e é o responsável pela elaboração, implementação e avaliação da PNSIPCFA em nível nacional e “se constitui como um espaço de diálogo entre os movimentos sociais e Governo Federal, buscando dar consequência às suas demandas e necessidades de saúde” (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.866/2011. Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. ). Ou seja, o processo de construção dessa Política é de caráter participativo e pautado nas evidências das desigualdades e necessidades em saúde de grupos específicos, caracterizando novas e diferentes institucionalidades entre Estado e sociedade civil (AVRITZER, 2012AVRITZER, Leonardo. Sociedade civil e Estado no Brasil: da autonomia à interdependência política. Opinião Pública, Campinas, SP, v. 18, n. 2, p. 383-98, nov. 2012.).

Conforme destacado, é imprescindível reconhecer algumas especificidades desse segmento populacional, marcado por vivências em realidades distintas. Exemplificando o que se entende por realidades diferentes, Santos (2011)SANTOS, Júlio César Borges dos. O movimento dos trabalhadores rurais sem-terra e as relações entre saúde, trabalho e ambiente em um assentamento rural no estado do Rio de Janeiro. 2011. Dissertação (Mestrado em Ciências) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2011. aponta para o problema do acesso aos serviços e programas de saúde. A população rural tem piores condições de acesso aos serviços assistenciais no campo da saúde se comparada à população urbana, devido à localização geográfica das famílias, com consequente dificuldade de locomoção, em relação às unidades de saúde, em sua maioria localizadas nas áreas urbanas.

Em relatório sistematizado por Soares (2014)SOARES, Rackynelly Alves Sarmento. Caracterização da população do campo, floresta e águas: quem são, como vivem e de quê adoecem. Brasília, DF: UnB: Obteia, 2014., é possível compreender algumas das vulnerabilidades das populações do campo, da floresta e das águas. Apesar de o relatório evidenciar que em 70% dos municípios brasileiros a população urbana ultrapassa a população rural em número de habitantes, nos locais em que a população rural é preponderante, os índices de desigualdade social são elevados quando comparados à população urbana. Outra variável a ser considerada é a questão do saneamento básico deficitário, um elemento analisado pela autora como um dos maiores responsáveis pelo surgimento de doenças de veiculação hídrica, que aumentam os índices de mortalidade infantil.

Alguns dados apontados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) ratificam essa questão, mostrando que muitos casos de doenças que surgem na área rural estão relacionados à falta de saneamento básico. Também, destaca-se que a falta de investimentos e de políticas específicas direcionadas à população rural fez com que a situação se agravasse, aumentando os gastos com a saúde pública (SOUZA, 2013SOUZA, Maria do Socorro. Questão agrária e direito à saúde: o lugar da saúde no projeto político do Movimento Sindical de Trabalhadores(as) Rurais. 2013. Dissertação (Mestrado em Política Social) − Universidade de Brasília, Brasília, 2013.).

Com a formulação da PNSIPCFA, vários objetivos foram delineados no intuito de refletir sobre esses dados e promover a transformação da realidade. Entre esses, destacam-se: garantir o acesso aos serviços de saúde; reduzir as vulnerabilidades com ações integrais de saúde; reduzir os acidentes e agravos relacionados aos processos de trabalho, particularmente o adoecimento decorrente do uso de agrotóxicos e mercúrio; melhorar a qualidade de vida; reconhecer e valorizar os saberes e as práticas tradicionais de saúde dessas populações (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.866/2011. Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. ).

Com base nos objetivos, diretrizes e princípios descritos, vincula-se à estrutura da Política o plano operativo, que objetiva subsidiar as ações dos três níveis de gestão (federal, estadual e municipal) no sentido de enfrentar as iniquidades e desigualdades em saúde, com foco nas populações do campo, floresta e águas. A operacionalização do plano foi prevista para o período de 2012-2015, atentando para a necessidade de ações intersetoriais e transversais no âmbito das políticas públicas, orientando-se por quatro eixos: acesso das populações do campo, floresta e águas na atenção à saúde; ações de promoção e vigilância em saúde; educação permanente e educação popular em saúde; e monitoramento e avaliação do acesso a ações e serviços de saúde (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.866/2011. Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. ).

Garantida a Política em lei, o passo seguinte foi a criação de um instrumento de acompanhamento das ações de implementação por meio dos subsídios fornecidos no plano operativo. Para isso, desenvolveu-se um observatório da PNSIPCFA, o Obteia, que tem como base a constituição de uma Teia de Saberes e envolve pesquisadores, especialistas, lideranças de movimentos sociais e gestores/trabalhadores do SUS engajados na proposta de colocar a Política em prática3 3 Dados disponíveis em http://www.saudecampofloresta.unb.br/nosso-portal/o-observatorio/. .

A estruturação do Obteia tem três instâncias: 1) o comitê gestor, coordenado pela Universidade de Brasília (UnB) e composto por membros do Ministério da Saúde, pela Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (Sgep), por outras secretarias com interesse na temática, por três representantes dos movimentos sociais, membros do Grupo da Terra (MMC), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Fetraf); 2), equipe executiva, constituída pelos movimentos sociais e profissionais/pesquisadores da área, responsáveis por operacionalizar as atividades planejadas pelo projeto de implantação do Obteia; 3) Teia de Saberes e Práticas, que está sendo tecida por meio da sensibilização de diferentes agentes sociais, movimentos sociais e gestores/profissionais do SUS, pesquisadores nacionais e internacionais engajados na temática foco do Obteia (CARNEIRO et al., 2014CARNEIRO, Fernando Ferreira et al. Teias de um observatório para a saúde das populações do campo, da floresta e das águas no Brasil. Tempus Actas de Saúde Coletiva, Brasília, v. 8, n. 2, p. 275-93, jun. 2014. ).

O Obteia foi construído a partir de algumas questões norteadoras, sendo identificados cinco desafios para seu funcionamento: 1) avaliação da Política e contribuição para sua implantação em uma perspectiva emancipatória; 2) promoção da visibilidade da situação de saúde das populações do campo, da floresta e das águas; 3) utilização de referenciais teóricos críticos para subsidiar a constituição da Teia; 4) articulação do conhecimento e de metodologias oriundos da saúde coletiva (epidemiologia, planejamento, gestão e avaliação em saúde, ciências sociais, saúde e ambiente e trabalho) com os saberes e as práticas das populações do campo, da floresta e das águas; 5) implementação de metodologias participativas no observatório, a fim de proporcionar o diálogo entre movimentos sociais, pesquisadores e gestores/trabalhadores do SUS (CARNEIRO et al., 2014CARNEIRO, Fernando Ferreira et al. Teias de um observatório para a saúde das populações do campo, da floresta e das águas no Brasil. Tempus Actas de Saúde Coletiva, Brasília, v. 8, n. 2, p. 275-93, jun. 2014. ).

Nessa perspectiva de construção participativa, o presente estudo traz subsídios para analisar a atuação do MMC no processo de construção da PNSIPCFA, caracterizando as ações coletivas do Movimento na Região Oeste de Santa Catarina relacionadas à Política e apontando espaços e formas de participação do MMC em ambientes de gestão pública.

3 ATUAÇÃO DO MMC NA CONSTRUÇÃO E DEFESA DA PNSIPCFA

A PNSIPCFA, em suas diretrizes, estratégias e ações, caracteriza-se como um mecanismo compartilhado entre governo e sociedade civil, orientado por um processo participativo em que diferentes atores sociais contribuem na implementação, no acompanhamento e na defesa da efetivação dessa Política. Scherer Warren (2006)SCHERER-WARREN, Ilse. Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Sociedade e Estado, Brasília, v. 21, n. 1, p. 109-30, jan./abr. 2006. contribui para pensarmos na relação que se estabelece entre movimentos sociais e atores governamentais quando postula a noção de movimento cidadão crítico, em que os movimentos sociais - e, neste caso específico, o MMC − ocupam espaços e canais de participação que possibilitam maior aproximação da população com os representantes políticos, visando negociar suas demandas e reivindicações.

Nesse sentido, compreende-se que o papel do MMC no Grupo da Terra contemplou sua participação em todo o processo de elaboração da Política, incluindo sua apresentação para o Conselho Nacional de Saúde (CNS), sua reestruturação em acordo com os apontamentos do referido Conselho e os encaminhamentos para que o Ministério da Saúde aprovasse, publicasse e incluísse na agenda pública o plano operativo anexo à Política.

É perceptível, nesse sentido, que a sociedade civil organizada, nesse caso representada pela ação coletiva dos movimentos sociais que compuseram o Grupo da Terra, participaram e continuam participando de atividades que estão relacionadas ao seu papel nessa responsabilidade compartilhada de efetivação da Política. Em relação ao papel dos municípios, de acordo com fala da entrevistada,

“[...] essa Política, hoje, ela é uma realidade... no papel. Ela é uma realidade porque ela está escrita, está sancionada. Mas, aí, na prática é que está o grande desafio de fazer ela, de fato, acontecer junto aos gestores municipais, pois é lá que ela tem que acontecer”. (N. K, dirigente estadual do MMC).

Esta fala ratifica o conteúdo do Art. 196 da Constituição Federal de 1988 e o Art. 2º da Lei 8.080/1990, que definem a saúde como direito de todos e dever do Estado, o qual consiste na formulação e execução de políticas públicas que deem conta de atender às necessidades da população, assegurando acesso universal e igualitário às ações e aos serviços de saúde (BRASIL, 1990BRASIL. Ministério da Saúde. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília-DF: MS, 1990.). Dever esse que não exime a responsabilidade cidadã da sociedade, evidenciada no inciso VIII, artigo 7º da Lei 8.080, em participar no processo de consolidação da política de saúde, incluindo seu papel na fiscalização das ações públicas na área, especialmente aquelas desenvolvidas no âmbito do Estado. Ao se apropriar de espaços representativos e decisórios, os movimentos sociais contribuem para o controle social da política pública, impulsionando sua efetivação por parte do poder público.

Dessa forma, a atuação do MMC relacionada à PNSIPCFA não se refere à execução de ações assistenciais de responsabilidade dos entes federativos, mas tem se concentrado em sua responsabilidade cidadã na defesa de que suas demandas sejam colocadas em pauta e acolhidas no processo decisório da política. O primeiro passo que refere essa responsabilidade compartilhada em participar e ser protagonista na conquista da Política diz respeito à elaboração coletiva e participativa, protagonizada pelo Grupo da Terra, que contemplou as características peculiares das populações implicadas pelo seu texto.

Para a elaboração da Política, o Grupo da Terra debateu e defendeu as demandas e necessidades das populações específicas, observando a diversidade de situações e as possibilidades de atuação dos profissionais de saúde junto a esse público. Nesse sentido, muitas bandeiras vinculadas ao MMC, como as especificidades da saúde da mulher, o cultivo e consumo de plantas e ervas medicinais, a valorização do conhecimento popular em saúde, a defesa do SUS, entre outras, foram contempladas na Política e podem ser observadas ao relacionarmos seu conteúdo e do Plano Operativo com ações desenvolvidas pelo MMC, tanto individualmente quanto em parceria com outros atores sociais coletivos, ou com as ações promovidas por outras entidades, nas quais a participação do Movimento foi garantida.

O primeiro conjunto de ações refere-se a atividades realizadas pelo MMC que denotam o comprometimento do Movimento com o tema da saúde e com a PNSIPCFA, quais sejam: encontros sobre a PNSIPCFA; oficinas de debate sobre saúde das populações do campo - eixos saúde da mulher, saúde da pessoa idosa e sexualidade; oficinas de plantas e ervas medicinais.

Os encontros sobre a PNSIPCFA foram mencionados durante entrevista com a dirigente estadual do MMC, que os caracterizou como iniciativas do Movimento em Santa Catarina que objetivaram orientar as lideranças de diferentes municípios sobre a PNSIPCFA, para posteriormente realizar um processo de multiplicação desse saber nas regionais. O primeiro encontro, realizado em 2015, contou com aproximadamente 50 mulheres do estado de Santa Catarina que debateram o tema durante três dias, no Centro de Formação Maria Rosa, em Chapecó, SC (Sede da Secretaria Estadual do MMC). O objetivo em trabalhar com as lideranças é de que essas se tornem multiplicadoras do conhecimento produzido no encontro e que possam disseminar o tema nas reuniões das regionais, municipais e/ou de base.

Os conteúdos dos encontros têm sido relacionados aos eixos da PNSIPCFA, contemplando: as vulnerabilidades das populações descritas na Política; as dificuldades no acesso aos serviços de saúde, a necessidade de garantir a saúde integral; as incidências de adoecimento da população decorrente dos processos de trabalho, entre outros temas relacionados à realidade vivenciada no campo, na floresta e nas águas, que são determinantes nos processos de saúde e doença.

A segunda atividade citada se refere a oficinas de debate sobre saúde das populações do campo, com ênfase nos eixos: saúde da mulher; saúde da pessoa idosa e saúde e sexualidade, para contemplar a discussão com as participantes de diferentes faixa-etárias do Movimento. Destaca-se aqui que esses temas acompanham e atravessam a trajetória do MMC, como aponta Boni (2012)BONI, Valdete. De agricultoras a camponesas: o movimento de mulheres camponesas de Santa Catarina e suas práticas. 2012. Tese (Doutorado em Sociologia Política) − Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012., quando afirma que, em determinado momento, ideias feministas ganham eco nos debates do movimento e acentuam o interesse das mulheres em discutir questões relacionadas à saúde sexual e reprodutiva, planejamento familiar e violência doméstica.

Em relação às oficinas sobre plantas e ervas medicinais, não é demasiado afirmar que se trata de um tema e prática fundamentais para a luta e a constituição da história das mulheres camponesas, caracterizando, portanto, dimensão importante na construção da identidade coletiva do MMC. Para Melucci (1999, p. 38)MELUCCI, Alberto. Teoria da acción colectiva. In: MELUCCI, Alberto. Acción colectiva, vida cotidiana y democracia. México: El Colegio de México, 1999. p. 25-54., “Una identidad colectiva no es sino una definición compartida del campo de oportunidades y constricciones ofrecidas a la acción colectiva”. O autor complementa ainda que “Compartida quiere decir construida y negociada mediante procesos continuos de activación de relaciones sociales que conectan a los actores” (MELUCCI, 1999MELUCCI, Alberto. Teoria da acción colectiva. In: MELUCCI, Alberto. Acción colectiva, vida cotidiana y democracia. México: El Colegio de México, 1999. p. 25-54., p. 38).

Ao postular a noção de identidade coletiva, Melucci (1999MELUCCI, Alberto. Teoria da acción colectiva. In: MELUCCI, Alberto. Acción colectiva, vida cotidiana y democracia. México: El Colegio de México, 1999. p. 25-54., 2001)MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. entende que sua construção é definida e negociada nas relações sociais entre os atores, implicando densas interações com a presença das dimensões afetivas e emocionais. A identidade coletiva é o que une os sujeitos em torno de um corpo coletivo, um “nós”. Não é entendida como essência, mas como produto de trocas, negociações, solidariedade, decisões e conflitos entre os atores, ocorridos no cotidiano das relações, ou seja, em nível micro. A constituição da identidade coletiva, para Melucci, é a base do processo de construção de um sistema de ação coletiva dos movimentos sociais.

A dimensão da identidade coletiva do MMC, nesse aspecto, refere-se à valorização do conhecimento popular em saúde, enfatizando o resgate e a partilha do conhecimento tradicionalmente repassado de geração para geração. Todas as participantes da pesquisa de campo mencionaram ter participado de oficinas e/ou outras formas de capacitação ofertadas pelo MMC em relação a plantas e ervas medicinais. Encantam-se e encantam ao falar do tema e compartilham suas experiências individuais ou coletivas de cultivo, manejo e consumo do que carinhosamente intitulam “remédios naturais”. Essa perspectiva está presente também em documento produzido pelo Movimento: “Acreditamos que ampliar o conhecimento sobre as plantas medicinais é uma forma de resistir e fortalecer a luta das mulheres camponesas na construção do Projeto de Agricultura Camponesa na perspectiva agroecológica e feminista” (ARTICULAÇÃO DE MULHERES TRABALHADORAS RURAIS [AMTR-SUL], 2008ARTICULAÇÃO DE MULHERES TRABALHADORAS RURAIS (AMTR-SUL). Mulheres camponesas em defesa da saúde e da vida. Passo Fundo, RS: Passografic, 2008., p. 47).

Percebe-se o atravessamento de temáticas nas bandeiras de luta defendidas pelo MMC, o que sugere que são interdependentes entre si. Por exemplo, não há como falar em saúde sem se referir à relação das pessoas com a natureza, com a forma de produzir, com a alimentação saudável. Da mesma forma, negar a existência do conhecimento popular das mulheres no cuidado em saúde, como o conhecimento biomédico muitas vezes impõe, é negar a história e o conhecimento popular como saberes válidos e valiosos. Na contramão dessa perspectiva, a Política prevê o resgate do conhecimento acumulado e a proposta de educação popular em saúde, de forma a reconhecer e valorizar os saberes tradicionais desse segmento populacional - outra bandeira defendida pelo MMC (KREFTA, 2014KREFTA, Noemi Margarida. A mulher camponesa e suas lutas pelo direito à saúde. Tempus Actas de Saúde Coletiva, Brasília, v. 8, n. 2, p. 295-6, jun. 2014. ; PULGA, 2014PULGA, Vanderléia Laodete. Mulheres camponesas plantando saúde, semeando sonhos, tecendo redes de cuidado e de educação em defesa da vida. 2014. Tese (Doutorado em Educação) − Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.).

Alguns desafios relacionados à efetivação da PNSIPCFA foram explicitados na pesquisa de campo. A entrevistada contextualiza que na atualidade há uma dificuldade financeira que não permite que avancem mais na discussão sobre a Política e os temas que a atravessam. A falta de recurso se torna um limitador para o processo de informação, fazendo com que se trabalhe na medida do possível, buscando garantir a participação das mulheres do estado e da Região Oeste Catarinense em atividades promovidas em parceria com outras entidades e organizações sociais, como no “I Encontro Nacional de Saúde das Populações do Campo, da Floresta e das Águas − cuidar, promover, preservar: saúde se conquista com luta popular”, que ocorreu quatro anos após a aprovação da PNSIPCFA e que aconteceu concomitante à 15ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em Brasília de 1º a 4 de dezembro de 2015.

Como produto final do evento ocorreu a elaboração coletiva, o lançamento e a publicização de um manifesto4 4 Disponível em: https://issuu.com/comunicacaompa/docs/manifesto_de_sa__de_das_popula____e. , reafirmando o posicionamento dos movimentos sociais, entre eles o MMC, em relação à saúde pública. Intitulado “Manifesto de Saúde das Populações do Campo, da Floresta e das Águas − cuidar, promover, preservar: a saúde se conquista com luta popular”, o documento contempla três questões principais: reafirmar os posicionamentos e contrapontos dos movimentos sociais em relação ao modelo de sociedade e a forma como os governantes conduzem a política de saúde; denunciar situações que incidem diretamente nos processos de saúde/doença da população brasileira; e realizar proposições no sentido de avançar a consolidação do SUS e a implementação da PNSIPCFA.

A garantia de participação do MMC no I Encontro Nacional de Saúde das Populações do Campo, da Floresta e das Águas, que teve como foco dos debates as peculiaridades dessas populações, remete à discussão de Scherer-Warren (2012) sobre a perspectiva do movimento cidadão crítico, em que esses grupos buscam qualificar a relação e as negociações com o Estado. Os espaços de formação/capacitação representam estratégias de fortalecimento dos coletivos na direção de alcançar seus objetivos e demandas.

De acordo com as informantes, em torno de 10 mulheres do MMC participaram desse encontro nacional, das quais duas compuseram o grupo focal deste estudo. A metodologia do evento pode ser entendida como uma forma de qualificar a possibilidade de negociação dos movimentos sociais com o Estado, a partir da formação dos diferentes atores sociais participantes nos grupos de estudos sobre os diversos temas que atravessam a PNSIPCFA. Além das oficinas e outras atividades formativas que possibilitaram a articulação entre os movimentos sociais, foram realizadas mobilizações, por meio de atos públicos e marchas em defesa da saúde pública e em defesa da efetivação da PNSIPCFA. Integrante do MMC e participante do grupo focal descreve como foi o evento:

[...] a gente ficou acampado seis dias, fazendo vários estudos sobre a saúde. Teve palestras que era com todos juntos, e tinha trabalhos separados, onde eram debatidos temas sobre a saúde da população do campo. Eu, por exemplo, numa das tardes, fiquei no grupo que falava da saúde e da soberania alimentar. Tinha vários grupos, daí a gente tinha que se dividir para cada uma ficar em um diferente e depois a gente tinha que se reunir para conversar sobre cada tema. (E. R., integrante do MMC município de Dionísio Cerqueira, regional de São José do Cedro).

A estratégia desse encontro exemplifica duas formas de articulação do MMC em relação à política: 1) articulação com outros movimentos sociais, na medida em que o evento foi construído pelos diferentes grupos organizados, sendo que as integrantes do MMC foram direcionadas a diferentes grupos de estudo para debater o tema com representantes de outros movimentos sociais do campo, da floresta e das águas; 2) articulação interna do Movimento, que optou pela divisão do grupo de mulheres que participaram do evento para a inserção no máximo de atividades propostas naquele espaço, objetivando posteriormente o compartilhamento de informações sobre as atividades para as demais integrantes do MMC que não puderam estar presentes.

No primeiro dia da Conferência Nacional de Saúde, em 1º de dezembro de 2015, os movimentos sociais que participavam do Encontro Nacional se envolveram também com uma ação em parceria com trabalhadores do SUS, entidades governamentais, representantes políticos e sociedade civil em geral. Agregaram a Marcha em Defesa do SUS, que mobilizou cerca de dez mil pessoas, com o objetivo de demonstrar o posicionamento contrário às ameaças que a saúde pública vem sofrendo, além de dar visibilidade à luta pela saúde das populações do campo, da floresta e das águas.

A última ação mencionada pela entrevistada se refere a um projeto nacional de Formação de Lideranças para a Gestão Participativa da PNSIPCFA, com vistas à redução das vulnerabilidades em saúde e ao fortalecimento da participação de camponesas no controle social do SUS. O projeto foi desenvolvido para atender quatro metas e contou com a participação e responsabilização de diferentes organizações sociais − Meta 1) Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag): formação conjunta de 250 agricultores(as), trabalhadores(as) e gestores(as) do SUS; Meta 2) MMC: formação de 900 mulheres camponesas; Meta 3) Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST): sistematização de experiências de formação; Meta 4) Movimento de Luta pela Terra (MLT): formação de 588 camponeses e camponesas. Assim, a segunda meta destinou-se a formar um número expressivo de mulheres camponesas vinculadas ao MMC, indo ao encontro dos Artigos 2 (§ XV) e 3 (§ VI, VIII) da Portaria 2.866/20115 5 Art. 2º, § XV - articulação de redes de solidariedade entre atores governamentais e não governamentais para integração e desenvolvimento de políticas públicas promotoras de equidade; Art. 3º, § VI, VIII - promoção de planejamentos participativos para identificar demandas de saúde das populações do campo e da floresta; apoiar processos de educação das populações (BRASIL, 2011). .

4 ESPAÇOS E FORMAS DE PARTICIPAÇÃO DO MMC NA DEFESA DA EFETIVAÇÃO DA PNSIPCFA

Os principais espaços e formas de participação do MMC que permitem a defesa da Política, conforme identificado em pesquisa de campo, são: 1º) representação no Grupo da Terra e no Obteia. Na composição do Grupo e do Observatório, o MMC tem uma vaga, assumida por integrante do Movimento residente na Região Oeste catarinense; 2º) representação em conselhos municipais de saúde (CMS). As entrevistadas referem vagas assumidas pelas mulheres camponesas em municípios das regionais a que essas pertencem; 3º) ocupação de vagas no Poder Legislativo de alguns municípios da Região Oeste catarinense, nos quais as mulheres foram eleitas pelo voto popular.

O MMC teve representação no Grupo da Terra desde sua fundação em 2004, com duas mulheres camponesas vinculadas ao Movimento: uma do Rio Grande do Sul e uma de Santa Catarina. O processo de construção da PNSIPCFA incluiu encontros, debates e estudos entre os diferentes segmentos que compunham o Grupo da Terra, envolvendo desde o conhecimento das especificidades de cada população até a produção de um consenso entre todos os participantes, valorizando os movimentos sociais.

Além da participação no Grupo da Terra, o MMC ocupa uma vaga na comissão executiva do Obteia. Esses espaços são instâncias de participação que possibilitam a atuação dos movimentos sociais de forma articulada, o que remete pensar na perspectiva de redes de movimentos sociais (SCHERER-WARREN, 2006SCHERER-WARREN, Ilse. Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Sociedade e Estado, Brasília, v. 21, n. 1, p. 109-30, jan./abr. 2006. ). De acordo com a autora, a saúde é um tema transversal priorizado pelos movimentos na direção da luta por direitos humanos, pois, apesar de os movimentos defenderem bandeiras específicas, existem lutas e enfrentamentos que se fortalecem quando ocorrem de forma articulada, o que demanda ações conjuntas e estratégicas a fim de garantir visibilidade e produzir impactos na esfera pública.

Baseando-se em Scherer-Warren (2006)SCHERER-WARREN, Ilse. Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Sociedade e Estado, Brasília, v. 21, n. 1, p. 109-30, jan./abr. 2006. , pode-se considerar que a participação dos diversos movimentos sociais no Grupo da Terra e no Obteia atribui, por um lado, maior legitimidade das ações dos movimentos quando das negociações de suas demandas com o Estado, ao mesmo tempo que a organização nos moldes usualmente utilizados pelos grupos, por meio de encontros, formações, assembleias etc., garantem relativa autonomia em relação às instâncias governamentais.

A participação em conselhos municipais de saúde indica a mesma linha de raciocínio: o MMC, ao participar desses espaços, pode conferir maior visibilidade à questão da saúde da população que representa, levantando a discussão sobre as dificuldades vivenciadas no cotidiano e estimulando a inserção do tema na agenda pública dos municípios.

Em relação à participação em conselhos municipais de saúde, a qual representa a possibilidade de levar para os espaços de gestão as demandas em saúde das mulheres camponesas, N. M. K. aponta alguns obstáculos para a inserção de um número maior de integrantes do MMC em conselhos gestores nos municípios6 6 O MMC tem ocupado a vaga de outras entidades, pois, para participar de conselhos gestores, necessita estar formalizado legalmente enquanto pessoa jurídica. :

[...] a gente tem esses espaços, mas, nem em todos as mulheres − por mais que sejam lideranças do Movimento − estão no Conselho como vaga do Movimento de Mulheres Camponesas, [...] porque nos municípios não tem formalizado uma associação do Movimento. Tem, por exemplo, em Palma Sola: a gente está no Conselho, tanto eu como a minha suplente; somos duas lideranças do Movimento, mas a gente está na vaga que é do Sindicato. O Sindicato da Agricultura Familiar que tem a vaga, mas que aí passou para a gente estar participando do Conselho. (N. M. K., dirigente estadual do MMC/SC).

Essa mesma situação é, de acordo com a entrevistada, uma realidade em grande parte dos municípios da Região e até mesmo do Estado. Outras duas participantes do grupo focal reafirmam essa situação:

[...] eu participo do Conselho de Saúde. Mas eu participo pelo Sindicato, porque pelo MMC não tem vaga. Mas nem por isso eu deixo de representar e defender os direitos das mulheres camponesas. (D. N. T., integrante do MMC município de Irani, dirigente da regional de Concórdia).

Nós também! O Sindicato deu as duas vagas para nós representar tanto das mulheres como da Fetraf. (I. M., liderança do MMC município de Palma Sola, regional de São José do Cedro).

No grupo focal, as mulheres demonstraram interesse nesse aspecto, abrindo espaço para o debate e levantamento de questionamentos sobre o fato de o Movimento não ter vaga efetiva nos conselhos municipais de saúde. Apenas uma das participantes do grupo focal não soube informar se o Movimento ocupava vaga no Conselho de Saúde em seu município. No caso das outras três participantes, elas informaram que nos municípios de Dionísio Cerqueira, Planalto Alegre e Quilombo há representatividade de mulheres do MMC nos conselhos de saúde. Dessas, nenhuma soube informar se a vaga é pelo próprio Movimento ou pelo Sindicato, como nos outros três casos apresentados anteriormente.

Para o MMC, ocupar espaços como esses é uma estratégia importante, não apenas por possibilitar a inclusão de direitos específicos como parte efetiva do planejamento e implementação da política de saúde no município, mas também para dar maior visibilidade aos desafios e às conquistas incorporadas pela PNSIPCFA junto aos demais segmentos envolvidos nos conselhos gestores.

Para além desses espaços, o estudo apontou para a importância registrada pelo Movimento em relação à inserção de mulheres camponesas na política. Apesar de ainda em número reduzido, mulheres camponesas têm se desafiado e concorrido ao Poder Legislativo, sendo em alguns casos eleitas para o cargo de vereadoras nos municípios da Região. Para elas, esse espaço é relevante à medida que as parlamentares podem apresentar e defender projetos voltados às necessidades e aos interesses das mulheres camponesas, como propor ações que representem a visibilidade da PNSIPCFA.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo parte do princípio e da constatação de que a ação coletiva dos diversos movimentos sociais, em diferentes épocas e contextos, produz mudanças significativas na realidade social, revelando uma alteração na relação entre Estado e Sociedade Civil na busca e garantia de direitos sociais e cidadania. É a constituição de uma identidade coletiva, negociada, pactuada, construída e reconstruída pelos atores sociais, a qual os unifica em torno de uma ação social que ao mesmo tempo produz e é produzida pelas mudanças provenientes da dinâmica social.

Os direitos reivindicados pelos movimentos sociais contemplam temas transversais defendidos por diferentes grupos, o que demonstra que, independentemente das bandeiras específicas, há uma tendência de articulação para o fortalecimento das lutas coletivas, em uma perspectiva de rede de movimentos. Esse fato pode ser observado no que diz respeito ao tema da saúde, pauta defendida por diversas organizações sociais e que culminou, no caso dos movimentos sociais do campo, da floresta e das águas, na conquista de uma política pública específica para atender a suas demandas e necessidades.

A organização do debate sobre saúde no interior do MMC conta com uma bagagem acumulada ao longo da sua história, representativa no que se refere à atuação do MMC no processo de construção da PNSIPCFA. O arranjo organizativo do Movimento na área da saúde visa à formação das mulheres a esse respeito, de forma que se articule com o projeto de sociedade idealizado pelo grupo. Constata-se que esse modo de organização é uma estratégia que orienta a ação coletiva do MMC nessa temática, por meio de formações, capacitações e mobilizações que ocorrem nas diferentes instâncias da sua estrutura (grupos de base, municípios, regionais, estadual e nacional).

No processo de construção da Política, verifica-se a realização de ações, promovidas pelo Movimento e/ou em parceria com outros atores sociais, que estão alinhadas a suas diretrizes e princípios, como encontros, oficinas, marchas etc. Essas ações coletivas relacionam-se com a política no que concerne aos processos de educação e informação das populações do campo, da floresta e das águas sobre o direito à saúde; da identificação de demandas de saúde dessas populações; do reconhecimento e valorização dos saberes e das práticas em saúde que utilizam ao longo do tempo; e da articulação de redes de solidariedade entre atores governamentais e não governamentais para a efetivação da PNSIPCFA, que se pretende uma política promotora da equidade em saúde.

A atuação do Movimento nesse processo é representada também por meio dos espaços e formas de participação do MMC para a defesa da Política. A participação no Grupo da Terra, que articula diversas organizações sociais na perspectiva de um trabalho em rede de movimentos, representa o primeiro espaço de inserção do Movimento na defesa da Política, iniciando com a elaboração de seu texto, que demandou estudo aprofundado das condições de vida das populações a que se destina, visibilizando suas principais necessidades. Em seguida, a participação no Obteia reforça o compromisso do MMC com o processo de construção, que, além da elaboração, abre caminhos para a avaliação e o monitoramento de ações e experiências de implantação da Política em nível nacional.

Em nível local, identificou-se a participação em conselhos municipais de saúde, conquista importante da sociedade civil organizada no sentido de exercer o controle social das políticas públicas e dialogar com o Estado em um espaço garantido na legislação. Entretanto constatou-se a necessidade de expandir o debate sobre a importância da participação e do controle social no SUS, visto que, muitas vezes, as mulheres camponesas enfrentam dificuldades em ocupar espaço em conselhos gestores de alguns municípios. O grande desafio do MMC é garantir vagas nessas instâncias para sensibilizar os governos municipais e demais segmentos representados nesses espaços, de modo que sejam incluídos nos planos plurianuais investimentos e metas que efetivamente possam viabilizar a execução da Política.

A participação das mulheres em espaços representativos formais (conselhos, conferências, Grupo da Terra, Poder Legislativo) ou não formais (formações, capacitações, seminários e congressos realizados pelo próprio Movimento e por outras iniciativas) denota que, apesar de vivenciarmos um momento histórico, econômico e social diferente da época de promulgação da Constituição, em que a mobilização e a articulação da sociedade contribuíram para conformar um ideal de democracia para conduzir as políticas no país, a organização social continua sendo importante e necessária, pois demonstra que, por meio de coletivos organizados, é possível pressionar o Estado para garantir a efetivação de direitos negligenciados ou até então inexistentes. Destaca-se, ainda, a atuação do MMC para além da construção e efetivação da Política, expressando uma compreensão ampliada sobre o conceito da saúde, da mesma forma que o Movimento da Reforma Sanitária, como algo que requer transformações profundas na sociedade, o que implica não apenas mudanças nos modos de vida de pessoas e coletivos, mas também o fortalecimento do papel do Estado na garantia de direitos e na efetivação de políticas públicas que promovam justiça e equidade.

  • 2
    Referem-se a um conjunto de políticas que contemplam as populações de acordo com suas peculiaridades. Estão articuladas à Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP), por meio do Departamento de Apoio à Gestão Participativa (Dagep) (BRASIL, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Políticas de promoção da equidade em saúde. 1. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.).
  • 3
  • 4
  • 5
    Art. 2º, § XV - articulação de redes de solidariedade entre atores governamentais e não governamentais para integração e desenvolvimento de políticas públicas promotoras de equidade; Art. 3º, § VI, VIII - promoção de planejamentos participativos para identificar demandas de saúde das populações do campo e da floresta; apoiar processos de educação das populações (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.866/2011. Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. ).
  • 6
    O MMC tem ocupado a vaga de outras entidades, pois, para participar de conselhos gestores, necessita estar formalizado legalmente enquanto pessoa jurídica.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2018
  • Revisado
    06 Maio 2019
  • Aceito
    19 Jun 2019
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