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Em busca de si: construindo agência e autonomia feminina em contextos de pobreza

In search of oneself: building agency and female autonomy in contexts of poverty

En busca del uno: construción de agencia y autonomia femenina en contextos de pobreza

Resumo

O objetivo deste trabalho é propor recursos teóricos e conceituais úteis para compreender formas de agência e de autonomia feminina entre mulheres pobres e negras, moradoras de grandes centros urbanos no Brasil. Em seu desenvolvimento, realizamos escolhas teórico-conceituais do feminismo, da sociologia do sujeito e da sociologia da agência e as mobilizamos no desafio de interpretar sociologicamente a trajetória de Rosa, mulher negra de 67 anos, residente em Belém do Pará e beneficiária do Bolsa Família. Com uma descrição densa da narrativa de Rosa, interessa-nos apreender as interações entre as limitações que constrangem a ação e as oportunidades que resultam em realizar seus próprios interesses. Buscamos, com isso, localizar, em sua narrativa, a rede de solidariedade na qual se ancora e que fortalece a tessitura de escolhas, agenciamentos e oportunidades, ao mesmo tempo que a impulsiona a driblar obstáculos.

Palavras-chave
mulheres negras; desenvolvimento; Programa Bolsa Família; gênero; reflexividade

Abstract

This work proposes theoretical and conceptual resources helpful in understanding forms of agency and female autonomy among poor and black women living in large urban centers in Brazil. In its development, we made theoretical-conceptual choices of feminism, the sociology of the subject, and the sociology of agency. We mobilized them in the challenge of sociologically interpreting the trajectory of Rosa, a 67-year-old black woman, resident in Belém do Pará and a beneficiary of the Bolsa Família. With a dense description of Rosa’s narrative, we are interested in apprehending the interactions between the limitations that constrain action and the opportunities that result in the pursuit of realizing their interests. With this, we seek to locate in her narrative the network of solidarity in which the fabric of choices, agencies, and opportunities is anchored and strengthened simultaneously as it drives her to dribble obstacles.

Keywords
black women; development; Bolsa Família Program; gender; reflexivity

Resumen

El objetivo de este trabajo es proponer recursos teóricos y conceptuales que sean útiles para comprender formas de agencia y autonomía femenina entre mujeres pobres y negras que viven en grandes centros urbanos de Brasil. En su desarrollo, hicimos elecciones teórico-conceptuales del feminismo, la sociología del sujeto y la sociología de la agencia y las movilizamos en el desafío de interpretar sociológicamente la trayectoria de Rosa, una mujer negra de 67 años, residente en Belém do Pará y beneficiario de la Bolsa Família. Con una descripción densa de la narrativa de Rosa, nos interesa aprehender las interacciones entre las limitaciones que constriñen la acción y las oportunidades que resultan en la búsqueda de la realización de los propios intereses. Con ello, buscamos ubicar en su narrativa la red de solidaridad en la que se ancla y fortalece el tejido de elecciones, agencias y oportunidades, al mismo tiempo que la impulsa a driblar obstáculos.

Palabras clave
mujeres negras; desarrollo; Programa Bolsa Familia; género; reflexividad

1 INTRODUÇÃO

As teorias sociológicas e feministas têm explorado meios de explicar e compreender as condições de ação dos indivíduos. A análise situacional e, consequentemente, a valorização do contexto são estratégias cruciais para desvelar a capacidade de ação dos indivíduos, condicionada por um conjunto de fatores estruturais, subjetivos e institucionais atravessados pelas condições de gênero, de classe e de raça, entre outros fatores que conformam cada contexto.

Pode causar estranhamento utilizarmos teorias feministas para compreender as experiências de mulheres brasileiras em situação de pobreza urbana e, no entanto, iniciarmos a empreitada recorrendo a Alain Touraine (2007)TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres. Tradução de Francisco Moras. Petrópolis: Vozes, 2007. e Touraine e Farhad Khosrokhavar (2004)TOURAINE, Alain; KHOSROKHAVAR, Farhad. A busca de si: diálogo sobre o sujeito. Bertrand Brasil, 2004. para dar o título a este artigo. Fazemos isso porque queremos nos beneficiar das aproximações entre teorias sociológicas e teorias feministas. Partindo do nosso lugar disciplinar, é a sociologia quem primeiro nos oferece as explicações e as chaves interpretativas sobre as relações sociais concretas. As teorias feministas surgiram como opção produtiva para questionar e descontruir os cânones sociológicos e para reelaborar estruturas epistemológicas, teóricas e metodológicas para conhecer o mundo social. Teorizações sobre indivíduo, sujeito e agência foram fartamente beneficiadas pelas contribuições das feministas (Souza; Mariano; Ferreira, 2021SOUZA, Marcio Ferreira; MARIANO, Silvana Aparecida; FERREIRA, Lina Penati. Tecendo fios entre interseccionalidade, agência e capacidades na teoria sociológica. Civitas-Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 21, p. 423-33, 2021. Doi: https://doi.org/10.15448/1984-7289.202L3.40509
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). Alain Touraine foi um dos sociólogos que prestou certa atenção às teorias feministas, portanto nossa segunda razão é o fato de que a sociologia do sujeito de Touraine é, em parte, tributária de debates sobre o sujeito no campo da sociologia em que as teorias feministas intercederam. O encontro da sociologia do sujeito com teorias feministas é explicitado, por exemplo, na visão de Patricia Hill Collins (2016)COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, Brasília-DF, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006
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ao formular sua visão de agência e de self. Desse encontro, extraímos uma abordagem sobre agência das mulheres negras e a “busca de si”.

Teorias feministas de diferentes matrizes, como o pós-estruturalismo, o feminismo negro, as teorias interseccionais e as decoloniais elaboraram consistentes críticas ao binarismo, à separação entre público e privado e às diversas formas de determinismos e de essencialismos. Essas formulações contribuem para leituras sociológicas mais ajustadas à compreensão de como agimos em um mundo social hierarquizado, patriarcal e racista, e como acionamos a autonomia em termos de capacidade e de limitações para a elaboração e o exercício de preferências. Essas inquietações, portadoras de conteúdos sociológicos, políticos e filosóficos, dialogam diretamente com o tema do desenvolvimento, uma vez que tratam de dinâmicas sociais das desigualdades, configuradas por assimetrias de poder que intervém no acesso às oportunidades e à distribuição de bens e riquezas. Tratar indivíduos como agentes, isto é, pessoas dotadas da capacidade de agir, permite a formulação de uma agenda de desenvolvimento vinculada às possibilidades de mudanças sociais. Quando esse debate é dirigido por perspectivas feministas, encontramo-nos com o tema sobre gênero e desenvolvimento.

O debate sobre gênero e desenvolvimento tem permitido considerar as desigualdades sociais em suas múltiplas escalas, isto é, como gênero, mas também raça, funcionam como mecanismos produtores de desigualdades em níveis globais e locais. Autoras como Martha Nussbaum (2002)NUSSBAUM, Martha C. Las mujeres y el desarrollo humano. 2. ed. Spain: Herder, 2002. destacam a persistente desigualdade entre homens e mulheres em diferentes nações, motivada, especialmente, pelo trabalho de cuidado não remunerado exercido majoritariamente pelas mulheres. Por outro lado, pesquisas na América Latina demonstram como o reduzido sistema público de socialização do cuidado resulta no aprofundamento das desigualdades de gênero que, nessa região, somam-se à persistente pobreza em que vive parte da população (Rodríguez Enríquez, 2015). Nessas discussões, o feminismo decolonial tem sido um importante contraponto no debate sobre desenvolvimento, ao insistir na necessidade de considerar a agência e o status de sujeito das mulheres do “Terceiro Mundo”, atentando para a pluralidade das estruturas econômicas, legais, familiares e religiosas que caracterizam as diversas práticas sociais e culturais do Sul global (Souza; Mariano; Ferreira, 2021SOUZA, Marcio Ferreira; MARIANO, Silvana Aparecida; FERREIRA, Lina Penati. Tecendo fios entre interseccionalidade, agência e capacidades na teoria sociológica. Civitas-Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 21, p. 423-33, 2021. Doi: https://doi.org/10.15448/1984-7289.202L3.40509
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).

Sujeito, agência, autonomia e preferências são conceitos produzidos em diversos contextos do Brasil e dos grandes bolsões de pobreza. Reputamos que esses conceitos, ponderados com abordagens feministas situadas, são úteis para visibilizar a capacidade de ação e de resistência de mulheres pobres vivendo em centros urbanos. Chandra Talpade Mohanty (2020)MOHANTY, Chandcra Talpade. Feminismo sin fronteras. Descolonizar la teoría, practicar la solidaridad. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2020. denunciou o olhar ocidental, colonizador, sobre o que se construiu como “mulheres do Terceiro Mundo”, tomadas como grupo homogêneo, vitimizadas e inferiorizadas tanto por concepções feministas ocidentais quanto por políticas de desenvolvimento oriundas do Norte, denominado Ocidente. Essa visão, contudo, faz-se presente mesmo no interior de uma sociedade localizada fora dos países centrais do Ocidente, como o Brasil. Partindo de um meio social, político e acadêmico em que frequentemente as mulheres em situação de pobreza são consideradas estritamente como passivas, impotentes e desprovidas de vontade própria, nesta investigação problematizamos as noções de agência e de autonomia para interpretar biografias de mulheres pobres. Ao reunir e mobilizar esse arcabouço, o objetivo deste trabalho é propor recursos teóricos e conceituais úteis para compreender formas de agência e de autonomia feminina entre mulheres pobres e negras, moradoras de grandes centros urbanos no Brasil.

Como dimensão empírica, o trabalho é desenvolvido com um estudo de caso, selecionado a partir da base de dados do projeto coletivo intitulado “Gênero e interseccionalidades na questão do desenvolvimento: os desafios do Programa Bolsa Família para a quebra do ciclo intergeracional da pobreza”, o qual, no ano de 2018, entrevistou 97 (noventa e sete) mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família em seis capitais, contemplando todas as regiões do Brasil: Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Porto Alegre (RS), Salvador (BA), São Paulo (SP). Os dados foram construídos com uso da técnica de entrevista narrativa, com base nas orientações de Uwe Flick (2009)FLICK, Uwe. Introdução a pesquisa qualitativa. Tradução de Joice Elias Costa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.4 4 Para mais detalhes sobre os aspectos metodológicos da pesquisa coletiva onde se insere este estudo, ver: MARIANO, Silvana A.; FERREIRA, Lina Penati; SOUZA, Márcio Ferreira. Metodologia e ética feministas em pesquisa social com mulheres em situação de pobreza. Revista Pesquisa Qualitativa, São Paulo, v. 10, n. 24, p. 192-212, 2022. .

Para o estudo de caso, selecionamos a narrativa de Rosa (nome fictício), por se tratar de um caso destacadamente ilustrativo e produtivo para a discussões envolvidas no objetivo do estudo. Negra, pobre e com 67 anos, Rosa é moradora de Belém (PA). A partir da sua trajetória, podemos apreender a relação entre estruturas de oportunidades e agenciamentos, explorando não apenas a ação do sujeito, mas também os processos de escolha, as reflexões e as concepções mobilizadas por ela diante dos obstáculos e das possibilidades que permearam sua biografia. Além disso, a trajetória de Rosa oferece um interessante percurso entre as organizações formais e informais em nível local, pelas quais ela transita, mobilizando diferentes recursos em seu favor.

Para refletir sobre a trajetória de Rosa, adotamos a proposta de retratos sociológicos de Bernard Lahire (2004)LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos Reuillard e Didier Martin. Porto Alegre: Artmed, 2004., segundo a qual, além das perguntas previamente elaboradas para a entrevista, deve-se considerar o modo como a interlocutora constrói sua própria narrativa, isto é, como e quando determinados elementos, personagens e cenários são mobilizados. Para Lahire (2004, p. 315)LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos Reuillard e Didier Martin. Porto Alegre: Artmed, 2004., as interlocutoras tendem a fornecer o que julgam ser as “chaves de compreensão” de sua vida, proporcionando uma “grade de análise que lhes parece a mais pertinente para compreender seu ‘caso’”. Embora tenhamos feito uma única entrevista com Rosa, diferentemente de como Lahire conduziu sua pesquisa, temos elementos suficientes para retratar sua trajetória, especialmente porque ela foi capaz de fornecer detalhadamente os elementos e as ênfases sobre o que julgava ser importante para entendermos “seu caso”. Ainda que uma sociologia que se pretende objetivista alimente certa desconfiança em relação à validade dos relatos pessoais, estamos de acordo com Lahire que uma relação de confiança e de certa intimidade é possível ser construída entre a entrevistadora e a entrevistada, como momento único de confidencialidade que se desfaz posteriormente5 5 Autoras como Tania Salem (1978) e Tavares (2010), ao refletirem sobre o trabalho de campo, reforçam que o uso da técnica de entrevistas favorece o estabelecimento de um clima de confiabilidade propício para a troca de confidências. . As histórias, os sentimentos e as reflexões compartilhadas por Rosa em sua entrevista reforçam esse argumento.

Para o desenvolvimento deste artigo, discutimos as concepções de autonomia e de agência, considerando perspectivas feministas e, após, construímos um ensaio de retrato sociológico com base na biografia de Rosa. Ao reconstruir sua narrativa, identificamos as experiênciaschave para a compreensão de como a busca por autonomia, por um tipo de autodefinição, é permeada por constrangimentos generificados e racializados, mas também por agenciamentos e por reflexividade. Acompanhando essa trajetória, compreendemos como os fatores culturais e econômicos se interconectam na configuração das barreiras como também das oportunidades com as quais Rosa se deparou e se confrontou ao longo da vida.

2 AUTONOMIA EM CONTEXTOS DE PRIVAÇÃO

Parte considerável dos estudos sobre pobreza enfatizam os aspectos estruturais do fenômeno. Como consequência, os pobres raramente são descritos como sujeitos de sua própria trajetória, capazes de interferir no curso da ação. É possível que alguns dos estudos façam isso como forma de evitar argumentos que culpabilizem o indivíduo pela sua própria situação de pobreza, o que está interligado com as críticas aos estudos da “cultura da pobreza”6 6 Segundo Oscar Lewis, a pobreza consiste em um estado de privação econômica, de desorganização social e de carência generalizada que, ao mesmo tempo, instiga nos indivíduos pobres a construção de mecanismos de defesa e estratégias de sobrevivência. O autor defende, portanto, a existência entre os de uma cultura própria decorrente das contingências do seu sistema de vida, que é transmitida de uma geração para outra, de pais para filhos através do convívio familiar, que envolve saber-fazeres, técnicas de sociabilidade, de crenças e de sobrevivência (Silva; Sguissardi, 2021). ou com as abordagens neoliberais que ganharam força no século passado. No entanto, entre as críticas à abordagem culturalista ou neoliberal e a ausência de pesquisas sobre os níveis de autonomia dos sujeitos que vivem em contexto de pobreza, uma lacuna tem se formado na literatura brasileira. Essa seção levanta pontos que ajudam a compreender essa questão.

Ao caracterizar o contexto social da pobreza, é incontornável que nos deparemos com a necessidade de fazer escolhas quanto à sua conceituação. Há diversas formas de definir e mensurar a pobreza. Podemos entendê-la como restrição de um mínimo para suprir as necessidades básicas humanas (absoluta), ou como escassez daquilo que está dado para a maioria da população (relativa), ou, ainda, em referência a um sentimento de insuficiência na realização de certos desejos (subjetiva). Apesar das especificidades, o que essas diferentes concepções

incluem é a noção de que a pobreza “refere-se a algum tipo de privação, que pode ser somente material ou incluir elementos de ordem cultural e social, em face dos recursos disponíveis de uma pessoa ou família” (Kageyama; Hoffmann, 2006, p. 79KAGEYAMA; Angela; HOFFMANN, Rodolfo. Pobreza no Brasil: uma perspectiva multidimensional. Economia e Sociedade, Campinas, v. 15, n. 1 (26), p. 79-112, jan./jun. 2006.).

No que diz respeito à mensuração, o debate opõe as definições que acentuam o aspecto econômico (renda) àquelas que tratam de múltiplos aspectos (multidimensional). Entre as perspectivas que versam sobre a pobreza de forma multidimensional, destaca-se a abordagem das capacidades (Sen, 2012SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Tradução e apresentação de Ricardo Doninelli Mendes. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.; Nussbaum, 2002NUSSBAUM, Martha C. Las mujeres y el desarrollo humano. 2. ed. Spain: Herder, 2002.). Essa concepção diverge tanto das perspectivas que enfatizam o aspecto econômico como das que priorizam apenas um aspecto não econômico (a educação, por exemplo). Portanto, ao utilizar a noção de capacidades, essa abordagem propõe o entendimento de que a pobreza é um conjunto de privações que impede um indivíduo de ter, na gramática da teoria, uma “boa vida”. Nesse sentido, a abordagem defende que, embora garantir rendimentos seja relevante para o combate à pobreza, é necessário considerar as condições reais que os indivíduos têm para gerar e para escolher como utilizar essa renda (aspectos que envolvem desde a nutrição até a participação política). Desse modo, essa teoria pressupõe que a ação do indivíduo é o ponto chave para entender e, ao mesmo tempo, superar a condição de pobreza. Por outro lado, a abordagem também entende que essa ação está social, econômica, política e culturalmente contextualizada, o que pode interferir no grau de capacidade de ação do indivíduo.

A importância da renda para a autonomia das mulheres é tema de relativo consenso acadêmico e político, a despeito de algumas controvérsias entre feministas de diferentes orientações teóricas. As divergências ocorrem a depender do modo como é considerada a relação entre opressão e autonomia. Análises desenvolvidas pelo feminismo negro e pelo feminismo decolonial contribuíram para o entendimento de que essa relação não pode ser tratada como uma relação de oposição. Por outro lado, o relativo consenso sobre a importância da renda é ampliado com as indicações de forte correlação entre desigualdades de gênero e pobreza, bem como diante da constatação de que as desigualdades entre os sexos são um fenômeno global (Nussbaum, 2002NUSSBAUM, Martha C. Las mujeres y el desarrollo humano. 2. ed. Spain: Herder, 2002.) que afetam o desenvolvimento humano. O cruzamento das agendas sobre gênero e pobreza e gênero e desenvolvimento humano fortalece esse relativo consenso.

Na esteira dessas discussões, deparamo-nos também com as relações estabelecidas entre autonomia feminina e as políticas de transferência de renda que foram disseminadas pela América Latina, desde a década de 1990, como principal política de combate à pobreza desses países. Essas políticas são concebidas, em certas perspectivas, como a principal estratégia para obtenção de renda entre as mulheres em situação de pobreza, especialmente aquelas encarregadas das responsabilidades com crianças e adolescentes. Para parte da literatura, essas políticas favorecem o acesso a ganhos econômicos e simbólicos que ultrapassam o valor monetário recebido do Programa, contribuindo para a redução da dependência feminina à renda masculina. Outra parte da literatura, porém, evidencia as limitações dos enfoques familistas e maternalistas que tomam as mulheres em um sentido instrumental nessas políticas (Sacchet; Mariano; Carloto, 2020SACCHET, Teresa; MARIANO, Silvana; CARLOTO, Cássia Maria (Ed.). Women, gender and conditional cash transfers: Interdisciplinary Perspectives from Studies of Bolsa Família. New York, London: Routledge, 2020.).

De acordo com a literatura que foca nas análises feministas dessas experiências, entre as características comuns aos programas de transferência de renda latino-americanos, destacam-se: i) a focalização; ii) o direcionamento do benefício às famílias; iii) a prioridade da transferência do recurso às mulheres; e iv) a exigência de condicionalidades (Fonseca; Roquete, 2018FONSECA, Ana Maria Medeiros; ROQUETE, Claudio. Proteção Social e Programas de Transferência de Renda: Bolsa-Família. In: MONTALI, Lilia (Org.). Cadernos de Pesquisa do NEPP: proteção social e transferência de renda, edição especial em homenagem à Ana Fonseca, Campinas, n. 86, 2018. p. 9-31. [Unicamp, NEPP].).

Enquanto a sociologia tendeu a evitar as dimensões culturais nos estudos sobre a pobreza, as políticas públicas não dispensaram o uso de referenciais culturais, sobretudo as políticas de combate à pobreza. No contexto brasileiro, a exemplo do que se encontra na América Latina e nos Estados Unidos, frequentemente o combate à pobreza se apoia em expectativas governamentais em torno de mudanças dos padrões de comportamento da população em situação de pobreza, assumindo um desenho paternalista e moralista.

Silvana Mariano (2013)MARIANO, Silvana Aparecida. Estrategias de las usuarias de la asistencia social: una lectura relacional en torno de las relaciones de poder. Estudios Sociológicos, v. XXXI, p. 141-166, 2013., ao investigar os micropoderes nas interações cotidianas entre assistentes sociais e beneficiárias do Programa Bolsa Família, revela a constituição dessas mulheres como agentes na prática da política, em divergência com perspectivas que, sendo paternalistas, tomam-nas como objetos e não sujeitos da política de assistência. Valores, comportamentos e narrativas das mulheres em situação de pobreza são mobilizados por Mariano (2013)MARIANO, Silvana Aparecida. Estrategias de las usuarias de la asistencia social: una lectura relacional en torno de las relaciones de poder. Estudios Sociológicos, v. XXXI, p. 141-166, 2013. para desvendar o modo como os sujeitos processam o uso das regras e constroem relações hierárquicas, de cooperação e de conflito. Esse processo revela o que Anthony Giddens (2009)GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. Tradução de Alvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2009. denominou como “dialética do controle”, isto é, todas as formas de dependência oferecem recursos por meio dos quais aqueles que são subordinados podem influenciar nas atividades de seus superiores. Não se trata apenas de acentuar a resistência de quem está na posição de dominado ou subordinado, mas de, para além disso, perceber igualmente a capacidade da pessoa subordinada de interferir no curso da ação de quem exerce a dominação.

3 A AUTONOMIA COMO FORMA DE AGENCIAMENTO

Vera Soares (2011, p. 281)SOARES, Vera. Mulher, autonomia e trabalho. Autonomia e empoderamento da mulher. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2011. definiu a autonomia das mulheres como “a capacidade de tomar decisões livres e informadas sobre sua própria vida, de maneira a poder ser e fazer em função de suas próprias aspirações e desejos, num determinado contexto histórico”. Nesse entendimento, há três esferas fundamentais da autonomia: a física, a econômica e a de decisões (Soares, 2011SOARES, Vera. Mulher, autonomia e trabalho. Autonomia e empoderamento da mulher. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2011.). Formulando a questão em outros termos, interessada na abordagem das capacidades e nos desafios para o desenvolvimento humano, Nussbaum (2002)NUSSBAUM, Martha C. Las mujeres y el desarrollo humano. 2. ed. Spain: Herder, 2002. considera os aspectos econômicos, institucionais e emocionais como fundamentais para a autonomia das mulheres. Pelo legado histórico das experiências das mulheres e dos estudos sobre sua participação no mundo do trabalho, filiamo-nos àquelas interpretações, comuns a essas autoras, de que a autonomia econômica não é suficiente, porém é fundamental para o empoderamento7 7 O termo empoderamento tem sido compreendido e utilizado de diferentes formas, por conseguinte, sugere interpretações variadas. Conforme destaca Sardenberg (2006), para as agências e órgãos financeiros internacionais (BM, BIRD etc.), o empoderamento das mulheres é concebido como um instrumento para o desenvolvimento, para alcance da democracia e erradicação da pobreza, ou seja, não é um fim em si próprio. Já para a perspectiva feminista, que adotamos neste artigo, o empoderamento de mulheres consiste no processo de conquista da autonomia, da autodeterminação, pois tanto é um instrumento/meio como um fim em si próprio. Em outras palavras, o empoderamento torna-se força que liberta as mulheres das amarras da opressão de gênero, da opressão patriarcal. Para um breve histórico do termo empoderamento, ver Berth (2019), que nos provoca a refletir sobre como o termo empoderamento, sob uma perspectiva étnico-racial, deve envolver a conscientização e o fortalecimento do coletivo na luta contra o racismo estrutural ainda fortemente presente em nossa sociedade. das mulheres.

Essa visão envolve dois entendimentos cruciais para nosso argumento: a condição social das mulheres deve ser analisada nas interdependências entre as esferas pública e privada, considerando, por exemplo, as combinações entre Estado, mercado, família e comunidade; as desigualdades entre homens e mulheres não universalizam as experiências das mulheres, cuja análise e enfrentamento refletem a trama diversa de assimetrias sociais, notadamente gênero, classe e raça.

A abordagem das capacidades (Nussbaum, 2002NUSSBAUM, Martha C. Las mujeres y el desarrollo humano. 2. ed. Spain: Herder, 2002.; Sen, 2012SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Tradução e apresentação de Ricardo Doninelli Mendes. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.) contribui para um olhar mais atento sobre o contexto material e simbólico das mulheres pobres e vincula o tema da autonomia das mulheres ao tema do desenvolvimento humano. Considerando a constatação de que as desigualdades entre os sexos são um fenômeno global, bem como as indicações das fortes correlações entre desigualdades de gênero e pobreza, Nussbaum (2002)NUSSBAUM, Martha C. Las mujeres y el desarrollo humano. 2. ed. Spain: Herder, 2002. incita que o pensamento político e econômico internacional deve ser feminista. Não se pode ignorar os problemas enfrentados pelas mulheres em quase todas as nações do mundo devido à sua condição de sexo, caso se pretenda enfrentar acertadamente os temas da pobreza e do desenvolvimento humano.

A asserção de Nussbaum é importante nesse contexto, porque, historicamente, a relação das mulheres com o Estado envolve o deslizamento entre mulher e maternidade, o que caracteriza também o caso brasileiro. Enquanto os homens adentram o espaço público com o status de indivíduo, cidadão e trabalhador (todas qualidades da esfera pública), as mulheres frequentemente são incluídas a partir de questões do mundo doméstico, associadas às tarefas de cuidado, o que lhes confere estatuto político inferior. O direito social, expresso nos sistemas de proteção social, caracteriza o modo ambíguo de conceber a cidadania das mulheres no Brasil. As misturas entre direito e favor, entre direito e obrigação e a fixação da mulher à maternidade definem os contornos dessa cidadania fragilizada e sexuada.

A autonomia é um fenômeno social relacional, isto é, será sempre relativa. Sua extensão depende de complexa trama sociológica, na qual, resumidamente, operam construções sociais e capacidade de agência do indivíduo. Para Margareth Archer (2000, p. 52), “o problema central ao se teorizar sobre agência diz respeito a como conceituar o agente humano como alguém que é parcialmente formado por sua socialidade (sociality), mas que também tem a capacidade de transformar parcialmente sua sociedade”. A abordagem dessas questões, da perspectiva feminista que adotamos, deve acontecer levando-se em consideração os contextos material e simbólico em que os agentes atuam.

Nesse sentido, quando tratamos da agência e das capacidades de mulheres pobres e negras que vivem nos grandes centros urbanos do Brasil, tratamos também de como elas são circunscritas pelas desigualdades de gênero, de raça e de classe, dentre outras, que conformam suas experiências. Para explicar o que chama de agentes imperfeitas, Flávia Biroli (2012)BIROLI, Flávia. Agentes imperfeitas: contribuições do feminismo para a análise da relação entre autonomia, preferências e democracia. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília-DF, n. 9, p. 7-38, set./dez. 2012. Doi: https://doi.org/10.1590/S0103-33522012000300001
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destaca dois processos que aqui também nos parecem importantes para a compreensão da relação entre autonomia, agência e capacidades: i) as estruturas de dominação e de opressão restringem as oportunidades e as capacidades dos indivíduos, ii) e, além disso, indivíduos são socializados e internalizam essas estruturas de opressão, por vezes, agenciando mecanismos de reprodução da subordinação.

Reconhecer essas condições, no entanto, não significa negar a capacidade e a agência de sujeitos que foram considerados, em determinadas análises, como subalternizados em sistemas de opressão. De outro modo, significa reconhecer a capacidade e a agência mesmo em contextos desfavoráveis. O feminismo negro tem sido uma interlocução importante para esse debate. Patricia Hill Collins (2016)COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, Brasília-DF, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006
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argumenta que pouca atenção tem sido dada à relação entre estruturas de oportunidades e escolhas das mulheres negras. Para a autora, análises que se centrem no âmbito cultural das experiências vividas pelas mulheres negras podem revelar os encaixes e desencaixes da relação entre opressão, consciência e ativismo.

Collins (2016)COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, Brasília-DF, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006
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, dialogando com a sociologia do sujeito, destaca a necessidade de as análises darem mais atenção ao âmbito da consciência. Segundo a autora, “a consciência das mulheres negras - a sua perspectiva analítica, emocional e ética de si mesmas e do seu lugar na sociedade - torna-se uma parte crítica da relação entre o mecanismo da opressão e a ação das mulheres negras” (Collins, 2016, p. 115COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, Brasília-DF, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006
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). O foco na reflexividade dos agentes (Giddens, 2009GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. Tradução de Alvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2009.; Archer, 2000) é importante para compreendermos suas ações, bem como suas escolhas, desejos, preferências e concepções. Além disso, considerar as reflexividades das mulheres negras é pressupor sua condição de sujeito ou, como argumenta Collins (2016)COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, Brasília-DF, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006
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, é considerar sua condição humana, tantas vezes negada.

Ademais, como reforça bell hooks (2015)HOOKS, Bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193-210, 2015. Doi: https://doi.org/10.1590/0103-335220151608
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, grupos de mulheres, entre elas as negras, cujo cotidiano é permeado por situações de opressão tornam-se conscientes da política patriarcal a partir de sua própria experiência de vida, que as impele a construir estratégias de resistência frente à natureza multifacetada e interligada da opressão que vivenciam. Isso se coaduna com o pensamento de Collins (2016)COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, Brasília-DF, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006
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, para quem negar à mulher negra agência enquanto sujeito e tratá-la como o “outro” objetificado é naturalizar sua condição de subalternidade e seu lugar à margem, ignorando que, sob uma aparente passividade e conformismo, são engendradas outras formas de ativismo e resistência às múltiplas estruturas de dominação. Em suma, se a margem é lugar de controle e repressão, é também de luta e resistência, pois a opressão, ao invés de entorpecer, torna-se centelha que forja as condições de resistência.

4 ROSA E A BUSCA DE SI

Essas reflexões sobre sujeito, agência, consciência e autonomia, balizadas por desigualdades, assimetrias e subordinação, oferecerem um enquadramento sociológico produtivo para a interpretação da biografia de Rosa, uma mulher em situação de pobreza.

A entrevista com Rosa, de 67 anos, aconteceu em Belém, em uma central de atendimento do Cadastro Único, no primeiro semestre de 2018. A entrevista durou aproximadamente 80 minutos. Rosa tinha uma necessidade insaciável de contar sua história e conduziu o rumo da entrevista quase o tempo inteiro. Ela queria ser ouvida. Respondia brevemente o que a entrevistadora perguntava de modo direto e voltava à sua narrativa, conforme o percurso que ela própria definia. Na maior parte do tempo, Rosa retratou sua vida como uma história de superação e de conquistas, frutos de seu esforço e determinação, mas também destacou momentos cruciais de sua trajetória nos quais ela contou com a ajuda de diferentes pessoas. Em alguns momentos, essas ajudas envolveram quebrar as regras, que eram sempre em desfavor de Rosa. Trata-se da “dialética do controle” (Giddens, 2009GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. Tradução de Alvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2009.), quando a pessoa submetida às normas exerce agência em favor de seus interesses e percepções.

Rosa nasceu em uma comunidade ribeirinha do Pará, onde viveu até, aproximadamente, os 24 anos de idade, quando se mudou para Belém. Ao longo da entrevista, enfatizou os dramas e os traumas com a mãe, desde sua infância. Sua mãe se casou com um homem que a maltratava e ela o deixou quando estava grávida da Rosa. Ela rejeitou a menina, que foi criada pelos avós até os 7 anos de idade, quando o avô, doente, levou-a para sua mãe. O avô morreria no dia seguinte. A vida de Rosa a partir daí se tornaria muito dura. A mãe tinha duas meninas pequenas, e Rosa se tornou a cuidadora das irmãs menores, passando, portanto, por um processo precoce de adultização, ao assumir o cuidado com as crianças mais novas e os afazeres domésticos, o que é bastante comum em famílias pobres e chefiadas por mulheres8 8 Ver, por exemplo, Saffioti (1997), que, ao estudar o processo de socialização de meninas e meninos das classes . populares, observa que, desde muito pequenas, as meninas são introduzidas nos afazeres domésticos e cuidados dos irmãos menores, tornando-se jovens mulherzinhas, com muito pouco tempo para viver a infância, ao contrário dos meninos, que ganham a rua e, entre jogos e brincadeiras, supostamente aprendem a enfrentar os desafios que irão encontrar quando adultos.

Ainda sobre a infância, Rosa relatou o trabalho desde os 7 anos de idade no plantio de mandioca e na produção de farinha de mandioca. Falou da escassez de comida e de todos os tipos de produtos: dormia em redes bem desgastadas; roupas e calcinhas eram produzidas com o tecido de sacos de açúcar; as refeições eram feitas em cuia; quando compravam enlatados, as latas eram aproveitadas como utensílios de cozinha. Entre 11 e 12 anos, ainda morando com a mãe, Rosa passou a administrar sua própria roça, ao separar um pedaço da terra que ficaria para seu uso no tempo que lhe restava após trabalhar na roça da mãe. Desde essa idade, Rosa assumiu a responsabilidade por seus próprios gastos. As transações econômicas eram realizadas por escambo, isto é, Rosa trocava farinha de mandioca por outros itens alimentícios, roupas, calçados e utensílios domésticos.

De acordo com Joel Marin (2018), nas unidades agrícolas familiares, o trabalho exercido por crianças tem um importante papel educativo e de disciplinamento no processo de socialização das novas gerações, ao mesmo tempo que se constitui em estratégia para complemento da força de trabalho nas atividades agrícolas e domésticas. Talvez por isso, sob a perspectiva dos agricultores familiares, o trabalho infanto-juvenil não seja interpretado como exploração, mas sim classificado pelos membros do grupo familiar enquanto mera “ajuda”. Podemos inferir, portanto, que, para Rosa, a atividade agrícola, enquanto é realizada na roça da mãe, configura-se como “ajuda”, o que difere legal e sociologicamente do que se estabelece como trabalho assalariado, objetivado sob relações fundadas na precarização e exploração do trabalho infantil, conforme lembra Marin (2018).

O casamento é também um capítulo especial de sua história. Cansada dos maus tratos da mãe, aos 16 anos, Rosa resolveu “fugir” com um homem para tentar uma vida melhor. Ele tinha 35 anos de idade. Rosa foi morar com a família do marido. Um tempo depois, quando estava grávida, Rosa ficou sabendo que sua mãe também estava grávida de seu marido. Ela se separou e forçou o marido a ir viver com a mãe dela, pois, na sua visão, a mãe precisava de mais apoio, com várias crianças pequenas e agora grávida. A mãe e o marido de Rosa viveram juntos durante muitos anos, e sua mãe teve três filhos com ele.

O casamento, para as mulheres pobres, consiste em rota de fuga, não apenas de maus tratos, mas também do papel que lhes é designado desde muito jovens - cuidadoras de irmãos mais novos e responsáveis por afazeres domésticos. Desse modo, o homem, principalmente quando mais velho, é visto como fonte de segurança, alguém que pode lhes oferecer estabilidade, prover seu sustento econômico e assegurar a possibilidade de cuidarem de sua própria casa e filhos. A união é, portanto, forjada sob bases utilitário-pragmáticas e, sem o ethos do amor romântico que enleia os casais de classe média, desfaz-se sem grande comoção e alarido (Tavares, 2010TAVARES, Márcia Santana. Com açúcar e sem afeto: a trajetória de vida amorosa de mulheres das classes populares em Aracaju/SE. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 101, p. 121-45, mar. 2010. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282010000100007
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).

Depois de muitas adversidades ao longo da sua infância e adolescência, e depois da tragédia da morte de seu primeiro filho, com 8 anos de idade, por causas desconhecidas, Rosa resolveu deixar a comunidade ribeirinha, se mudar para Belém e “trabalhar em casa de família”. Em Belém, o trabalho doméstico “em casas de família” foi marcado por jornadas extensas, sem salários, e pelo temor da violência sexual por parte dos homens que habitavam a casa. Esse temor era ainda acompanhado por outro: o medo de ficar grávida. Angela Figueiredo (2011, p. 92)FIGUEIREDO, Angela. Condições e contradições do trabalho doméstico em Salvador. In: MORI, Natalia; FLEISCHER, Soraya; FIGUEIREDO, Angela; BERNARDINO-COSTA, Joaze; CRUZ, Tânia (Org.). Tensões e experiências: um retrato das trabalhadoras domésticas de Brasília e Salvador. Brasília: CFEMEA: MDG3 Fund, 2011. p. 89-131., ao refletir sobre as condições do trabalho doméstico em Salvador, argumenta:

A maioria das trajetórias narradas pelas trabalhadoras mostra que elas tiveram o afeto familiar negado, o acesso à escola impossibilitado, a infância negligenciada e explorada pelo trabalho infantil doméstico e o direito à cidadania não assegurado pelo Estado. Acrescenta-se a este conjunto de elementos, a pertença étnicorracial da maior parte das trabalhadoras domésticas e as representações sobre os corpos das mulheres negras, sempre associados ao servir.

A autora, reportando-se às reflexões de Lélia Gonzalez (1984)GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Rio de Janeiro, Anpocs, p. 223-44, 1984. sobre o racismo e sexismo à brasileira, observa que nossa cultura erigiu representações sobre as mulheres negras centradas na submissão, docilidade e erotização exacerbada, que se materializam através de três modelos ilustrativos: a mãe-preta, a mulata e a trabalhadora doméstica. Em suma, os corpos das mulheres são propícios para servir e, no caso das trabalhadoras domésticas, segundo Gonzalez (1984, p. 234)GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Rio de Janeiro, Anpocs, p. 223-44, 1984., “complementa o que a gente já sabe sobre a vida sexual da rapaziada branca até não faz muito: iniciação e prática com as crioulas”, ou seja, as trabalhadoras domésticas são consideradas objetos sexuais dos quais alguns patrões – de pais a filhos – se utilizam para satisfazer sua lascívia.

Com efeito, entre as trabalhadoras domésticas entrevistadas por Figueiredo (2011)FIGUEIREDO, Angela. Condições e contradições do trabalho doméstico em Salvador. In: MORI, Natalia; FLEISCHER, Soraya; FIGUEIREDO, Angela; BERNARDINO-COSTA, Joaze; CRUZ, Tânia (Org.). Tensões e experiências: um retrato das trabalhadoras domésticas de Brasília e Salvador. Brasília: CFEMEA: MDG3 Fund, 2011. p. 89-131., os relatos sobre assédio sexual cometido por patrões são frequentes, ao mesmo tempo que revelam o receio de contarem à patroa e perderem o emprego e a amizade. Afinal, conforme destaca a autora, a socialização distinta entre os gêneros faz com que o trabalho doméstico seja concebido como destino natural das mulheres negras e pobres, pois a maioria tem baixa escolaridade e não tem qualificação profissional, restando apenas os afazeres domésticos aprendidos em casa, juntamente com os cuidados com a família e os irmãos mais novos, especificidade que não se pode ignorar quando o trabalho doméstico é comparado com outras categorias profissionais9 9 Faria, Ferreira e Paula (2020, p. 23) reforçam que, “No Brasil, é muito comum a cooptação das jovens do meio rural para se empregarem em «casas de famílias» nas cidades com várias justificativas, tais como: «estudar», «comprar suas coisinhas», «apadrinhar», «fazer companhia», «ajudar a olhar as crianças», etc.” .

Certo tempo depois de viver em Belém, Rosa “arranjou um senhor” com quem teve seis filhos. Sair da casa dos patrões e ter sua própria casa foi um momento de conquista. Esse “senhor” tinha outra família e não reconheceu a paternidade dos filhos que teve com Rosa. Por um período, Rosa parou de trabalhar como doméstica (“ele me dava as coisas; não queria que eu trabalhasse e ele tinha muito ciúme de mim”). Os filhos foram posteriormente registrados por Rosa no nome do pai, sem o consentimento dele. Essa relação durou até que esse “senhor” perdeu a capacidade de trabalhar e manter a família de Rosa: “Quando chegou numa certa idade, ele perdeu a visão e não podia mais trabalhar pra me dar nada”. Rosa se viu sozinha, grávida, com cinco filhos e sem amparo do pai das crianças. Voltou a trabalhar lavando roupas, viveu de favor na casa de um amigo e depois construiu um quartinho para ela e as crianças em uma área ocupada. Saiu do aluguel e “aí tudo melhorou”.

Mais um momento de conquista, principalmente se levarmos em conta um levantamento sobre o déficit habitacional no Brasil (FJP, 2021FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO [FJP]. Déficit habitacional no Brasil – 2016-2019. Belo Horizonte: FJP, 2021.), que revela dados preocupantes sobre a desigualdade de gênero entre as famílias pobres: o número de famílias chefiadas por mulheres é crescente, atualmente corresponde a 60% das famílias em situação de déficit, e mais, entre as 3 milhões de famílias que arcam com o ônus de aluguel, 62,2% delas são chefiadas por mulheres.

Assumir sozinha a responsabilidade pela família se torna um fardo pesado, o que, por sua vez, se reverte em maior vulnerabilidade. Para mulheres como Rosa, entretanto, as condições de vulnerabilidade aumentaram, pois tinha filhos pequenos, estava grávida e não detinha de autonomia pessoal e econômica. Nesse sentido, as redes de solidariedade10 10 Ver, por exemplo, Gueiros (2010), que enfatiza a importância exercida pelas redes sociais na reprodução familiar e, em especial, destaca o papel desempenhado pela solidariedade familiar para assegurar a subsistência do grupo doméstico nos estratos mais baixos da população. De acordo com a autora, “As famílias de camadas populares, que são organizadas em rede (participação de outros parentes e de pessoas da comunidade no convívio e em prol da sobrevivência) e que têm como foco o sistema de obrigações, diferenciam-se das de camadas médias, que se organizam em núcleos centrados no parentesco...” (Gueiros, 2010, p. 128). formadas por vizinhos e amigos foram fundamentais para que ela encontrasse alternativas, enfrentasse as privações vivenciadas e conseguisse superá-las, seja por meio da reinserção no mercado informal, como lavadeira, seja através da construção de um quarto para se abrigar com os filhos, o que configura como uma conquista própria.

Rosa novamente se vale dessa rede de solidariedade, que se alimenta através da troca de pequenos favores, para ter acesso a serviços de saúde, como um tratamento fisioterápico após sofrer um atropelamento. Nessa rede que funciona mediante um sistema de trocas, os vizinhos compartilham com Rosa alimentos; ela prepara almoço e leva para as funcionárias da clínica, que, por sua vez, permitem que Rosa utilize os aparelhos e faça os exercícios de recuperação no intervalo do almoço, quando não há clientes. Em resumo, Rosa ensaia o princípio comum da dádiva maussiana que rege as trocas: a obrigação de dar, sob a certeza de receber e, por conseguinte, retribuir (Mauss, 2013MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Tradução de Paulo Neves. São Paulo / Cosac & Naify, 2013. (Coleção Portátil, n. 25).).

No momento da entrevista, Rosa vivia com uma neta, cujo pai estava em liberdade condicional. Sobre esse filho, a história de Rosa ilustra a preocupação dessas mulheres com a violência urbana e a violência policial. Rosa foi chantageada pelo policial que prendeu seu filho e lhe ofereceu a possibilidade de deixá-lo em liberdade, mediante pagamento de propina. Segundo Rosa, sua experiência lhe mostrara que esse caminho não teria fim e que só adiaria os problemas do filho. Com sua recusa de pagar propina ao policial, seu filho foi preso, julgado e condenado a 7 anos de prisão. No momento da entrevista, o filho estava livre e procurando trabalho, o que se tornou mais difícil de conseguir após o histórico prisional. Segundo Rosa, há policiais que extorquem muitas mulheres cujos filhos estão envolvidos com drogas, e elas se veem forçadas a usar o benefício do Programa Bolsa Família para pagar os subornos policiais. Ela conseguiu lidar com a situação sem entrar nessa trama de corrupção policial.

De acordo com Vera Telles e Daniel Hirata (2010)TELLES, Vera da Silva; HIRATA, Daniel Veloso. Ilegalismos e jogos de poder em São Paulo. Tempo Social – Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 39-59, dez. 2010. https://doi.org/10.1590/S0103-20702010000200003
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, na periferia dos centros urbanos, é usual encontrar homens e mulheres que trabalham durante o dia, forma precária, ou mesmo informal, e, à noite ou finais de semana, para complementarem a renda, recorrem a algum tipo de “viração”, isto é, realizam de modo costumeiro ou episódico atividades que vão desde enrolar papelotes de cocaína para venda, comercializar CDs piratas e outros produtos de origem desconhecida. Tais atividades, cuja fronteira entre o legal e o ilegal se revela tênue, são consideradas pelos moradores das comunidades parte da economia local e asseguram o sustento das famílias em situação de pobreza. Todavia, os autores ressaltam o papel da polícia nessa relação:

Transversal a tudo isso, o pesado jogo da extorsão policial, sempre no fio da navalha, no limiar de desacertos violentos acionados por algum curto circuito [sic] sempre prestes a explodir em algum ponto dessas redes superpostas e embaralhadas nas fronteiras incertas entre o informal, o ilegal e o ilícito (Telles; Hirata, 2010, p. 52TELLES, Vera da Silva; HIRATA, Daniel Veloso. Ilegalismos e jogos de poder em São Paulo. Tempo Social – Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 39-59, dez. 2010. https://doi.org/10.1590/S0103-20702010000200003
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).

Rosa contou sua história construindo uma narrativa que exibe constrangimentos decorrentes de sua condição generificada, racializada e estratificada. No entanto, sua narrativa é atravessada também pelas decisões que ela tomou, localizando os vários momentos de ruptura ou de bifurcação biográfica, nos termos de Lahire (2004)LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos Reuillard e Didier Martin. Porto Alegre: Artmed, 2004.. Como resultado, Rosa relata sua história de uma perspectiva que combina com o que Collins (2016)COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, Brasília-DF, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006
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chamou de autoavaliação e autodefinição. Por isso, tomamos a narrativa de Rosa como uma ilustração emblemática da combinação entre existencialismo e reflexividade: o que eu faço com aquilo que a sociedade fez de mim? A busca de si é uma resposta cotidiana a essa indagação.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho iniciou-se com uma visão que defende o sujeito como agente, entrelaçada com o chamamento que Collins (2016)COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, Brasília-DF, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006
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nos faz quando invoca que devemos não apenas valorizar o sujeito, mas, antes, compreender como os indivíduos se constituem como sujeitos, dado que não é uma condição natural alçar o status de sujeito. Para isso, Collins (2016)COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, Brasília-DF, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006
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destaca como a construção da consciência que as mulheres negras têm de si mesmas pode servir como um instrumental sociológico para desvelar as relações entre opressão e autonomia. Somamos a esse arcabouço teórico conceitual as teorias do desenvolvimento que colocam no centro do problema a capacidade dos indivíduos de gerar uma “boa vida”, especialmente em contextos de privação (Sen, 2012SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Tradução e apresentação de Ricardo Doninelli Mendes. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.; Nussbaum, 2002NUSSBAUM, Martha C. Las mujeres y el desarrollo humano. 2. ed. Spain: Herder, 2002.). Com isso, atingimos nosso objetivo inicial de propor recursos teóricos e conceituais que auxiliam na compreensão de formas de agenciamento e autonomia entre mulheres pobres e negras no Brasil.

Ao analisar a narrativa de Rosa, reconhecemos fortes dimensões de sua agência, ainda que atravessada, como não poderia deixar de ser, por suas relações conflituosas com a mãe, as patroas, os filhos e os homens com quem se relacionou ao longo da vida. A comunidade figura como uma das fontes de apoio onde se organiza um sistema de solidariedade feminina. Essa rede de solidariedade fundada na interdependência construída entre mulheres é um suporte fundamental para pessoas de grupos marginalizados. A história de Rosa é repleta de constrangimentos, de agência e de reflexividade. No entanto, sua agência não envolve um repertório autocentrado; é uma agência contextualizada e, enquanto tal, transcorre em meio às constrições sociais. Através da sua reflexividade, ela expõe o modo como identifica o peso das tradições culturais, o peso da estrutura de classes e dos padrões de gênero. Fatores culturais e econômicos se interconectam tanto na configuração das barreiras como das oportunidades encontradas por Rosa.

Trajetórias como as de Rosa são sociologicamente relevantes para tratar do tema da autonomia porque nos possibilitam visualizar, como argumenta Lahire (2004)LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos Reuillard e Didier Martin. Porto Alegre: Artmed, 2004., o social individualizado, isto é, quando as estruturas e os padrões culturais se corporificam e se materializam nas relações intraindividuais. Por outro lado, ela nos mostra também como esses indivíduos, através da reflexividade, respondem aos poderes estruturais e culturais. Entre as estruturas de oportunidades e os padrões culturais disponíveis a uma mulher pobre e negra do Norte do Brasil, observamos processos de reflexividade que revelam sua capacidade de agência e a construção de uma autonomia, que, embora cerceada e a despeito de todas as adversidades enfrentadas, não desiste e engendra estratégias de superar as intercorrências, o que se constitui elemento fundamental para a compreensão do quanto as trajetórias de vida são dinâmicas e nada têm de inertes. Olhando para histórias como esta, podemos melhor compreender como os indivíduos se constituem como sujeitos, isto é, como as mulheres se autoavaliam e se autodefinem como sujeitos.

Os desafios colocados pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) demandam visões sobre o desenvolvimento comprometidas com o fim das desigualdades de gênero e de raça. Uma sociedade livre da pobreza, de todas as formas de violência contra mulheres e meninas e do racismo, é condição para o desenvolvimento sustentável, como afirmam, por exemplo, o ODS 1, Erradicação da pobreza, o ODS 5, Igualdade de Gênero, e o ODS 10, Redução das Desigualdades. Considerando as aprendizagens com as críticas decoloniais que denunciaram as limitações e as contradições dos programas de desenvolvimento orientados do Norte para o Sul, destinados às “mulheres do Terceiro Mundo” tomadas como beneficiárias passivas ou beneficiárias úteis (uma vez instrumentalizadas), as demandas atuais são por programas de desenvolvimento orientados por conhecimentos situados, localizados, contextualizados. Nessa empreitada, compreender como os sujeitos se constituem em contextos de pobreza localizados fornece bases para interpretar a pobreza para além da renda, apreendendo suas múltiplas dimensões materiais e simbólicas. Captar as vivências das mulheres subalternizadas, compreendendo seus agenciamentos, como constroem redes de solidariedade e o papel da intersubjetividade fornece lentes analíticas que contribuem para tratar dos desafios multidimensionais do desenvolvimento sustentável. Olhares mais aproximados das experiências localizadas fornecem melhores possibilidades de êxito a programas locais para o desenvolvimento sustentável com justiça de gênero.

  • 4
    Para mais detalhes sobre os aspectos metodológicos da pesquisa coletiva onde se insere este estudo, ver: MARIANO, Silvana A.; FERREIRA, Lina Penati; SOUZA, Márcio Ferreira. Metodologia e ética feministas em pesquisa social com mulheres em situação de pobreza. Revista Pesquisa Qualitativa, São Paulo, v. 10, n. 24, p. 192-212, 2022.
  • 5
    Autoras como Tania Salem (1978)SALEM, Tania. Entrevistando Famílias: Notas sobre o Trabalho de Campo. In: NUNES, Edson de Oliveira (Org.). A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 47-64. e Tavares (2010)TAVARES, Márcia Santana. Com açúcar e sem afeto: a trajetória de vida amorosa de mulheres das classes populares em Aracaju/SE. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 101, p. 121-45, mar. 2010. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282010000100007
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    , ao refletirem sobre o trabalho de campo, reforçam que o uso da técnica de entrevistas favorece o estabelecimento de um clima de confiabilidade propício para a troca de confidências.
  • 6
    Segundo Oscar Lewis, a pobreza consiste em um estado de privação econômica, de desorganização social e de carência generalizada que, ao mesmo tempo, instiga nos indivíduos pobres a construção de mecanismos de defesa e estratégias de sobrevivência. O autor defende, portanto, a existência entre os de uma cultura própria decorrente das contingências do seu sistema de vida, que é transmitida de uma geração para outra, de pais para filhos através do convívio familiar, que envolve saber-fazeres, técnicas de sociabilidade, de crenças e de sobrevivência (Silva; Sguissardi, 2021SILVA, Alberto; SGUISSARDI, Valdemar. A cultura do silêncio: cultura de pobreza, dominação e pedagogia da libertação. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 961-85, maio/ago., 2021. Doi: https://doi.org/10.21573/vol37n22021.114387
    https://doi.org/10.21573/vol37n22021.114...
    ).
  • 7
    O termo empoderamento tem sido compreendido e utilizado de diferentes formas, por conseguinte, sugere interpretações variadas. Conforme destaca Sardenberg (2006)SARDENBERG, Cecília M. B. Conceituando “Empoderamento” na Perspectiva Feminista. Salvador: NEIM/UFBA, 2006. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/6848/1/Conceituando%20 Empoderamento%20na%20Perspectiva%20Feminista.pdf. Acesso em: 16 jun. 2022.
    https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri...
    , para as agências e órgãos financeiros internacionais (BM, BIRD etc.), o empoderamento das mulheres é concebido como um instrumento para o desenvolvimento, para alcance da democracia e erradicação da pobreza, ou seja, não é um fim em si próprio. Já para a perspectiva feminista, que adotamos neste artigo, o empoderamento de mulheres consiste no processo de conquista da autonomia, da autodeterminação, pois tanto é um instrumento/meio como um fim em si próprio. Em outras palavras, o empoderamento torna-se força que liberta as mulheres das amarras da opressão de gênero, da opressão patriarcal. Para um breve histórico do termo empoderamento, ver Berth (2019)BERTH, Joice. Empoderamento. São Paulo: Pólen, 2019., que nos provoca a refletir sobre como o termo empoderamento, sob uma perspectiva étnico-racial, deve envolver a conscientização e o fortalecimento do coletivo na luta contra o racismo estrutural ainda fortemente presente em nossa sociedade.
  • 8
    Ver, por exemplo, Saffioti (1997)SAFFIOTI, Heleieth I. B. No fio da navalha: violência contra crianças e adolescentes no Brasil atual. In: MADEIRA, Felícia Reicher. Quem mandou nascer mulher? estudos sobre crianças e adolescentes pobres no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. p. 137-211., que, ao estudar o processo de socialização de meninas e meninos das classes
  • 9
    Faria, Ferreira e Paula (2020, p. 23)FARIA, Guélmer Júnior Almeida; FERREIRA, Maria da Luz Alves; PAULA, Andrea Maria Narciso Rocha. “Nós, as meninas da minha família, sempre vamos muito cedo para lá”: Trajetórias migracionais, redes sociais e espaços de vida das domésticas migrantes. Cidades, Comunidades e Territórios, Lisboa, n. 40, p. 15-32, jun. 2020. reforçam que, “No Brasil, é muito comum a cooptação das jovens do meio rural para se empregarem em «casas de famílias» nas cidades com várias justificativas, tais como: «estudar», «comprar suas coisinhas», «apadrinhar», «fazer companhia», «ajudar a olhar as crianças», etc.”
  • 10
    Ver, por exemplo, Gueiros (2010)GUEIROS, Dalva Azevedo. Família e trabalho social: intervenções no âmbito do Serviço Social. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 126-32, jan. 2010. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-49802010000100015
    https://doi.org/10.1590/S1414-4980201000...
    , que enfatiza a importância exercida pelas redes sociais na reprodução familiar e, em especial, destaca o papel desempenhado pela solidariedade familiar para assegurar a subsistência do grupo doméstico nos estratos mais baixos da população. De acordo com a autora, “As famílias de camadas populares, que são organizadas em rede (participação de outros parentes e de pessoas da comunidade no convívio e em prol da sobrevivência) e que têm como foco o sistema de obrigações, diferenciam-se das de camadas médias, que se organizam em núcleos centrados no parentesco...” (Gueiros, 2010, p. 128GUEIROS, Dalva Azevedo. Família e trabalho social: intervenções no âmbito do Serviço Social. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 126-32, jan. 2010. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-49802010000100015
    https://doi.org/10.1590/S1414-4980201000...
    ).

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2022
  • Revisado
    02 Jun 2023
  • Aceito
    15 Jun 2023
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