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O ser humano e a política

Desde os filósofos gregos, germinais da filosofi a ocidental, o ser humano é definido como um ser social. Aqui não cabe questionar sobre quem nasceu primeiro, se a pessoa ou a organização. O que é mais importante saber é quando essa organização começou. Segundo Sloterdijk (1999)SLOTERDIJK, Peter. No mesmo barco – ensaio sobre hiperpolítica, São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1999., viver em sociedade é algo que aconteceu antes mesmo dos grandes impérios, com as hordas. A partir do momento em que passou a se organizar de forma coletiva, a sociedade pôde ser definida como um grande parque humano, no qual a diversidade se instalou e permitiu que clãs, etnias, povos pudessem viver, mesmo que em meio a conflitos de interesses individuais e coletivos, com um mínimo de harmonia. O império, o governo e a organização social passaram então a ser administrados pela política.

O ser humano é, assim, o único ser que constrói formas e modos de regular a ação, seja ela tomada em seu aspecto de relação do homem com a natureza, seja em seu aspecto de relação homem-homem, isto é, em seu aspecto social. O segredo para se construir uma sociedade mais justa, mais humana e mais fraternal é pelo fortalecimento das relações não somente com a natureza, mas também homem-homem. As formas dessas relações não são naturais, como entre os animais; na verdade, são mediadas pela razão.

De todo modo, pode-se afirmar que não há humanidade, homem, sociedade sem política. A interpretação da realidade social, a capacidade de atuação do homem sobre a natureza e a criação de novas condições de existência são importantes para se compreender as relações sociais e por que pessoas, grupos e instituições se deixam enfronhar pela política. Seu guarda-chuva está aberto a todos, desde que se subordinem às suas regras.

Em “A Política”, Aristóteles (2018)ARISTÓTELES. Política. Tradução de Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo: Edipro, 2018. afirma que o Homem é um animal político. A razão pela qual ele pode afirmar isso é que, segundo a sua observação, somente ele possui a linguagem e a linguagem é o fundamento da comunicação. Em relação aos demais animais, estes, segundo Aristóteles, são singulares. Eles só exprimem dor e prazer. Quanto ao homem, este utiliza a palavra (lógos), o que lhe dá a capacidade de processar o julgamento entre o bem e o mal, o certo e o errado. Desse germinal, a palavra Política passou a ser empregada durante séculos, para indicar a participação dos indivíduos na vida social ligada à cidade-estado grega, o que era algo apenas redutível à pólis, para assumir a dinâmica de um conceito substantivo, qualitativo e superlativo.

A política, no seu germinal grego, surgiu como uma forma de rompimento com os ditames das hordas, com o poder patriarcal, isto é, exercido pelo patriarca ou pelo chefe político. O que o ser humano queria era proteção econômica, militar e familiar. Assim, foram criados os laços de dependência e também de lealdade dos súditos em relação ao soberano.

Quando Roma capturou Atenas pelas armas (146 a.C), Atenas capturou Roma pela sabedoria. Essa união de forças levou à separação da autoridade pessoal privada do chefe de família do poder impessoal público, pertencente à coletividade. Em certo sentido, o passo mais importante nesse processo foi o fato de que até o soberano tivesse de se submeter às leis, sendo seu cargo vitalício (reinos e impérios) ou temporário (regimes presidenciais e parlamentares).

Da Antiguidade Clássica (século VIII a.C.-V d.C.), passando para os séculos XVII e XVIII, com as revoluções liberais, em especial as inglesas, do século XVII, mais especificamente a Revolução Puritana (Guerra Civil Inglesa, entre 1842 e 1851) e a Revolução Gloriosa (patrocinada pela religião, entre 1688 e 1689, na Inglaterra), a humanidade deu mais um passo visando à libertação do autoritarismo e do despotismo. Se antes sobressaía a figura do soberano, naquele então surgiu um novo elemento que se lançou na política, conquistando o seu status via riqueza. Com as revoluções burguesas, mormente a independência dos Estados Unidos (1776), as revoluções inglesas, a Revolução Francesa (1789) e a Revolução Industrial (1760-1840), a política ganhou mais um elemento no composto da mediação social, ou seja, o burguês.

Mas outro elemento também surgiu nesse estado de coisas. Com o Constitucionalismo, a partir de 1787, nos Estados Unidos, o princípio do governo do povo para o povo, pelo povo e com o povo ganhou uma nova dimensão. O povo passou a ser contado no processo político e deixou de ser um simples súdito, para ascender ao estado de cidadão. Assim, a política passou a ser entendida, nos dias atuais, como um meio de resolver os conflitos (entre o governo e o povo, entre o governo e os donos do capital, e entre o povo e as relações trabalhistas e sociais), surgindo daí a necessidade de serem criadas leis para regular a vida em sociedade. É dentro desse espectro que, neste princípio de século XXI, propugnam-se e se processam direitos políticos, serviços públicos de qualidade, qualidade de vida e acesso a direitos humanos e sociais.

Deste exposto, surgiram dois polos importantes em âmbito social: o da política e o do Estado. A política, então, tornou-se o meio como a coletividade se organiza e o espaço em que se exerce ou se conquista o poder. O Estado deixou de ser um instrumento para assumir o papel de instituição que busca um meio específico de exercer o poder sobre a sociedade. Para Bobbio (2004)BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004., o consenso social surge do fato de que aqueles que detêm o poder político podem fazer valer sua vontade sobre a coletividade. Então, as formas como se exerce o poder são pelo uso da força, que pode levar à coerção física e às imposições de determinados grupos sobre outros; a outra forma é pelo consenso, ou seja, as vontades são fruto do diálogo. Daí a necessidade de mediação das leis.

Isso é necessário porque existe uma diferença entre poder legítimo e formas de dominação. Para Weber (1997)WEBER,Max. Ciência e política duas vocações. São Paulo: Cultrix„1997., sociólogo alemão do final do século XIX e início do XX, o poder é legítimo quando a influência exercida é concedida por parte daqueles que se submetem à vontade do outro, independentemente de se fazer parte de um sistema vitalício (monarquia) ou de sufrágio (regimes presidenciais ou parlamentares). O contrário é o poder exercido com o uso da força. Para ele, a dominação não é legítima. A prática política tem por fim controlar a distribuição do poder, seja entre Estado, seja entre grupos dentro do Estado.

Para Marx (1978)MARX, Karl. O capital. São Paulo: Editora Ciências Humanas. 1978., a dominação econômica e a dominação política estão relacionadas, os meios de produção levam ao controle político. Já Emile Durkheim sugeriu que o Estado deveria funcionar como agente para garantir a organização moral da sociedade e deveria atuar como centro de organização mental dos grupos secundários, ou seja, aqueles grupos que refletiam os objetivos da coletividade (BELLAMY, 1994BELLAMY, Richard, Liberalismo e sociedade moderna. São Paulo: Unesp, 1994.).

Do exposto, passando da horda ao império, do soberano à burguesia, até chegar ao governo do povo, pelo povo, como o povo, conclui-se que a política é a forma de atuação cidadã no mundo, ramificando sua influência para o âmbito doméstico, local, regional, nacional e global. Nesse sentido, também o espaço, o território e o lar são assumidos pela política e seu guardachuva de possibilidades. Daí a necessidade de cidadãos atentos plenamente ao seu protagonismo individual e coletivo, que se expressa pelo voto, pelos movimentos sociais, pelos partidos, e a harmonia se dá pela devolução ao povo de serviços públicos de qualidade. Em certo sentido, todos os aspectos familiares sociais são decisões políticas individuais e coletivas. Isso é o que Aristóteles já captava e traduzia em fatos no século IV a.C.

O Brasil, além de país de formação relativamente recente (a partir de 1500) e integrado ao sistema global, é um país em construção social (em busca de uma identidade em meio à diversidade humana que o compõe); com muita razão, as prioridades de atuação do Estado devem seguir, em linhas gerais, as necessidades básicas humanas dos cidadãos. É dentro desse espectro que entram em cena as chamadas políticas públicas. Em certo sentido, a política pública entra na arena diferenciada de conflitos e vai encontrar diferentes formas de apoio e de rejeição, mas deve transitar dentro do sistema político. Daí a importância do governo num país em construção como o Brasil e da participação cidadã, individual, coletiva e empresarial.

As chamadas políticas públicas, nesta acepção, tornam-se as ações de governo nas áreas de educação, habitação, saúde, segurança, meio ambiente e distribuição de renda, atingindo diretamente a vida de um conjunto de cidadãos.

Este exposto teve como objetivo mostrar que a política é a forma que o cidadão atualmente encontra de se expressar. Quanto às instituições – em especial aquelas afetas diretamente à política –, estas estão a serviço do cidadão. Isso quer dizer que uma política que não respeite os direitos do cidadão, que defenda a vida e proteja instituições como a família pode se tornar um verdadeiro império de atrocidades, porque pode estar tentando estabelecer, nos dias atuais, o que nem as hordas, que antecederam à organização política do império e do Estado, conseguiram romper.

Também é preciso reafirmar que a política é um serviço ao cidadão, que se sujeita ao império, em especial no cumprimento de suas leis, e assume obrigações perante o Estado. Neste sentido, é importante lembrar a Constituição Federal de 1988, que estabeleceu os principais direitos dos cidadãos no Art. 5º, dizendo que o Estado é o primeiro protetor desses direitos.

Por fim, em se tratando de políticas públicas, elas são afetas a necessidades brutas da sociedade, em que nem todos os sujeitos de direitos encontram seus direitos garantidos. O Estado não necessariamente precisa criar cidadãos “acabrestados”, mas abrir caminho para que eles assumam o destino de sua vida enquanto lhes abre os caminhos de possibilidades. As políticas públicas surgem, então, do fato de que o Estado lê as necessidades dos cidadãos e procura dar uma resposta não pontual, mas definitiva, a uma realidade que pode ser solucionada.

Este número da Interações – Revista Internacional de Desenvolvimento Local, da UCDB, trabalha diversas temáticas. Uma primeira diz respeito a pessoas e está presente nos artigos intitulados “Redes sociais de trabalho entre agricultores de um município do estado do Ceará”, “Impactos das mudanças climáticas na produção agrícola e medidas de adaptação sob a percepção de atores e produtores rurais de Nova Friburgo, RJ”, “Percepções de paisagismo: uma análise de parte da população de Campo Grande, MS”, “Teorias e práticas de desenvolvimento local nas comunidades tradicionais rurais e indígenas: revista Interações (2000-2010)”, “Empreendimentos solidários e sua capacidade de promover a agricultura familiar” e “Produção de leite de cabra e ovelha e seus derivados em Goiás e no Distrito Federal: análise dos direcionadores de competitividade”.

Outro grupo temático apresenta a questão de resíduos na perspectiva do Desenvolvimento Local. Neste grupo, estão os artigos intitulados “Gerenciamento de resíduos de serviço de saúde pelos cirurgiões-dentistas no Planalto Serrano Catarinense”, “O aproveitamento energético do biogás como ferramenta para os objetivos do desenvolvimento sustentável” e “O estado da arte da ciência da felicidade e o desenvolvimento local”.

Um terceiro grupo temático é o da internacionalização, em que está adscrito o artigo “A efetividade das decisões de organizações internacionais sob a perspectiva da soberania: uma proposta para o Brasil”.

Por outro lado, há um quarto grupo temático, constituído pela questão hidrográfica. A este grupo pertencem os artigos intitulados “Análise multitemporal da cobertura vegetal na Bacia Hidrográfica do Córrego Ceroula-Mato Grosso do Sul”, uma área de interesse ambiental, “Pegada Hídrica Virtual das exportações de Mato Grosso versus os repasses federais Lei Kandir e FEX: uma análise do período de 2013 a 2017”, além de “Análise Multicritério para identificação de áreas prioritárias para irrigação, por meio de indicadores socioeconômicos, no contexto da Bacia Tocantins-Araguaia, Região Centro-Oeste do Brasil”.

Um quinto grupo temático pode ser definido como questões rurais. A este grupo estão ligados os artigos “Termos de ajustamento de conduta em áreas rurais de Goiás e a falsa sensação de recomposição do dano ambiental” e “Ocupação, produção e resistência: terras quilombolas e o lento caminho das titulações”.

Um sexto grupo temático é sobre serviços públicos e questões locais e regionais, que tem como artigos “Estratégias municipais e serviços públicos com tecnologia da informação no contexto de cidade digital estratégica: caso de Goiânia, GO”, “Efeitos da segmentação regional nos salários dos trabalhadores do Nordeste e Sudeste do Brasil”, “Turismo de Experiência: relações entre territorialidade e desenvolvimento local em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil”, além de “Fiscal limits and local public expenditure in Brazil” e “A pandemia da covid-19 e seus reflexos na cadeia produtiva do algodão orgânico”.

REFERÊNCIAS

  • ARISTÓTELES. Política. Tradução de Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo: Edipro, 2018.
  • BELLAMY, Richard, Liberalismo e sociedade moderna. São Paulo: Unesp, 1994.
  • BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
  • MARX, Karl. O capital. São Paulo: Editora Ciências Humanas. 1978.
  • SLOTERDIJK, Peter. No mesmo barco – ensaio sobre hiperpolítica, São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1999.
  • WEBER,Max. Ciência e política duas vocações. São Paulo: Cultrix„1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022
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