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A Festa de São Benedito da rua da Barra em Rosário Oeste, MT

The Party of St. Benedict from rua da Barra in Rosario Oeste, MT

La Fiesta de São Benedito de rua da Barra en Rosário Oeste, MT

Resumo

Este artigo tem como objeto a Festa de São Benedito da Rua da Barra em Rosário Oeste, MT. Objetiva analisar sua história, seu ritual e a devoção da festa considerando a necessidade de registros desse evento cultural de caráter religioso, que acontece há mais de 100 anos e ainda não havia sido pesquisado como prática cultural. O referencial teórico, norteador da análise dos dados empíricos, foi fundamentado nas categorias cultura (Alves, 2021) e festa religiosa (Queiroz, 1976; Claval, 2007). Os dados foram levantados por meio de fontes primárias, em entrevistas semiestruturadas com descendentes da família festeira Oliveira e pessoas que vivenciam ou vivenciaram a festa. Também foi realizado levantamento documental, complementado por imagens do evento. Dados obtidos por meio de fontes secundárias foram buscados em trabalhos escritos como livros, artigos, capítulos de livros, revistas, teses e dissertações de autores que abordam o tema. A Festa de São Benedito da Rua da Barra é um evento de devoção e fé, que nasceu na família Oliveira, na zona rural da cidade, e, na atualidade, é um acontecimento de grande magnitude, visitada pelos habitantes rosarienses e de outras cidades do estado. Todavia, a continuidade da festa como tradição com as características atuais não é alvissareira, tendo vista que os costumes mudam ao sabor das transformações das relações sociais. E, como as transformações são contínuas, será necessário ajustar a festa às transformações em curso.

Palavras-chave
Rosário Oeste; desenvolvimento regional; Festa de São Benedito; prática cultural

Abstract

This article has as its object the party of St. Benedict from Rua da Barra in Rosario Oeste, MT. It aims to analyze its history, its ritual and the devotion of the party, considering the need for records of this cultural event of a religious nature, which has been happening for over 100 years and had not yet been researched as a cultural practice. The theoretical framework, guiding the analysis of empirical data, was based on the categories of culture (Alves, 2021) and religious festival (Queiroz, 1976; Claval, 2007). Data were collected through primary sources, in semi-structured interviews with descendants of the Oliveira party family and people who experience or have experienced the party. A documentary survey was also carried out, complemented by images of the event. Data obtained through secondary sources were sought in written works such as books, articles, book chapters, magazines, theses and dissertations by authors who address the subject. The Festa de São Benedito da Rua da Barra is an event of devotion and faith, which was born in the Oliveira family, in the rural area of the city, and, nowadays, it is an event of great magnitude, visited by the inhabitants of Rosario and other cities of the state. However, the continuation of the festival as a tradition with its current characteristics is not auspicious, considering that customs change at the whim of transformations in social relations. And, as the transformations are continuous, it will be necessary to adjust the party to the ongoing transformations.

Keywords
Rosario Oeste; Regional development; Feast of São Benedito; Cultural Practice

Resumen

Este artículo se centra en la Fiesta de São Benedito en la Rua da Barra en Rosario Oeste, MT. Tiene como objetivo analizar su historia, su ritual y la devoción de la fiesta, considerando la necesidad de registros de este evento cultural de carácter religioso, que viene ocurriendo desde hace más de 100 anos y aún no había sido investigado como práctica cultural. El marco teórico, que oriento el análisis de los datos empíricos, se basó en las categorías de cultura (Alves, 2021) y fiesta religiosa (Queiroz, 1976; Claval, 2007). Los datos fueron recolectados a través de fuentes primarias, en entrevistas semiestructuradas con descendientes de la familia fiestera Oliveira y personas que viven o han vivido la fiesta. También se realizó un levantamiento documental, complementado con imágenes del evento. Los datos obtenidos a través de fuentes secundarias se buscaron en trabajos escritos como libros, artículos, capítulos de libros, revistas, tesis y disertaciones de autores que abordan el tema. La Fiesta de São Benedito en la Rua da Barra es un evento de devoción y fe, que nació en la familia Oliveira, en la zona rural de la ciudad, y, hoy en día, es un evento de gran magnitud, visitado por los habitantes de Rosario y otras ciudades del estado. Sin embargo, la continuación de la fiesta como tradición con sus características actuales no es auspiciosa, considerando que las costumbres cambian al capricho de las transformaciones en las relaciones sociales. Y, como las transformaciones son continuas, habrá que ajustar el partido a las transformaciones en curso.

Palabras clave
Rosario Oeste; desarrollo regional; Fiesta de São Benedito; práctica cultural

1 INTRODUÇÃO

A pesquisa que deu origem ao presente artigo teve como objeto a Festa de São Benedito da Rua da Barra em Rosário Oeste, MT, realizada todos os anos nos sábados de aleluia. A primeira delas aconteceu na sesmaria do Pae Caetano, município de Rosário Oeste, MT, no começo do século XX, quando Manoel Cipriano de Oliveira e sua esposa Maria Joaquina de Oliveira e familiares realizaram uma reza em agradecimento e pagamento de promessa feita ao Santo.

Seu objetivo foi o de analisar historicamente o evento, seu ritual e a devoção da festa, considerando a necessidade de registros desse evento cultural/religioso, que acontece desde o começo do século passado e ainda não havia sido pesquisado como prática cultural.

O referencial teórico que norteou a análise dos dados empíricos foi ancorado nas categorias cultura e festa religiosa, tendo como suporte teórico obras de Alves (2021)ALVES, Gilberto Luiz. Cultura e singularidades culturais. Curitiba: CRV, 2021. 104 p., Queiroz (1976)QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. 242 p. e Claval (2007)CLAVAL, Paul. A geografia cultural. 3. ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2007. 453 p..

Atualmente, na cidade de Rosário Oeste acontecem muitas festas de santos religiosos, chamadas tradicionalmente de “festas de santo”. São realizadas anualmente. Algumas são famosas por reunirem quantidades expressivas de devotos e de festeiros para homenagear o santo e buscar diversão.

As mais famosas são a festa da Rua da Barra (São Benedito), a festa da Igrejinha (Nossa Senhora da Guia), a festa do Taboão (Nossa Senhora da Piedade), a festa do sítio do Sales (Nossa Senhora da Conceição) e a festa do Barreiro Vermelho (Divino Espírito Santo). Essas festas são envoltas em rituais que expressam fé e devoção, externadas em agradecimento pelo atendimento de uma promessa e/ou em respeito, consideração e fé.

A festa de São Benedito da Rua da Barra faz parte da singularidade local, mas possui características semelhantes às de outras realizadas no estado e no país. Ao apresentar características universais, ela evidencia relevância na sua singularidade. O que ela revela de comum permite, também, desvendar o que a diferencia e especifica.

A busca da especificidade enfatiza o que nos diferencia e singulariza. Mas o singular é sempre uma forma de realização universal. “O singular é a forma singular de realização do universal, só iluminado pelo universal e através dele pode conter elementos que contribuam para cimentar a unidade entre os povos” (Alves, 2021, p. 52ALVES, Gilberto Luiz. Cultura e singularidades culturais. Curitiba: CRV, 2021. 104 p.).

Alves (2014, p. 41)ALVES, Gilberto Luiz. Arte, artesanato e desenvolvimento regional: temas sul-mato-grossenses. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2014. 103p. ainda enfatiza que “a singularidade de certo espaço definido não exclui o universal, a sociedade capitalista, nem a adaptação de tradições passadas de seus habitantes ou as imposições do meio geográfico aos ditames do capital, que se amalgamaram numa forma única de ser”. Desse modo, a importância do conhecimento está na captação da condição humana, naquilo que nos aproxima, em sua relação com os singulares nos quais a humanidade vem se expressando, em diferentes momentos e espaços.

Os trabalhos de pesquisa e levantamento de dados ocorreram no período de outubro de 2021 a março de 2022. No plano de trabalho, constavam algumas atividades que não foram realizadas, como a observação in loco, registros fotográficos e conversas ou entrevistas com pessoas da comunidade local durante a festa. Seriam realizadas em abril de 2022. Todavia, em decorrência de novo surto do coronavírus, os festeiros acharam por bem suspender a realização do evento, também nesse ano, a fim de evitar possíveis contaminações durante a sua realização.

2 MATERIAL E MÉTODOS

A metodologia utilizada para levantar dados empíricos sobre a Festa de São Benedito de Rosario Oeste foi lastreada em fontes primárias e secundárias.

Quanto às fontes primárias, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com alguns descendentes da família Oliveira, festeiros e colaboradores nos trabalhos do evento, como cozinheiras, auxiliares diversos e assadores de churrasco. Essas entrevistas foram gravadas, transcritas e posteriormente analisadas.

As entrevistas semiestruturadas foram essenciais para revelar a historicidade da festa. Exploraram todos os aspectos envolvidos em sua realização, desde a chegada dos festeiros no dia do evento, o ambiente interno e externo da casa da festa, o levantamento do mastro, a dança do cururu, a comida e a bebida; a reza (ladainha); o baile; o “tchá co bolo”4 4 Pronúncia típica na região da baixada cuiabana e ribeirinha para a expressão chá com bolo. e a escolha dos festeiros do próximo ano.

Foram realizados também levantamentos em fonte primária, num documento que a família Oliveira denomina de “livro da irmandade”, que traz anotações das principais doações para a realização da festa a partir de 2014. De acordo com a Dona Lurdinha5 5 Lourdezer Oliveira de Souza, funcionária pública lotada na Secretaria de Educação Municipal de Rosário Oeste, filha de Dona Benedita Teodora de Oliveira (Dona Dudu) e bisneta de Manoel Cipriano de Oliveira e Maria Joaquina de Oliveira. (2021), havia um livro de registro mais antigo, que se encontra desaparecido. Nele, foram feitos registros durante muitos anos, até acabarem as páginas disponíveis para anotações.

Não foi possível a verificação de outros documentos da festa, como autorizações, alvarás e ofícios encaminhados para as autoridades e para a segurança pública, uma vez que não há arquivos para esses documentos, e eles são descartados pelos festeiros do ano, após a realização da festa.

Dados de fontes secundárias foram levantados em livros, revistas, teses e dissertações que abordam cultura, festa, festa de santo e, especificamente, a festa de São Benedito. Esse material foi recolhido, lido, organizado, analisado e, posteriormente, interpretado para a construção do relatório da pesquisa.

A revisão de literatura foi um processo importante na estruturação da pesquisa, pois proporcionou maior conhecimento e embasamento teórico sobre o tema pesquisado. A partir dela, foram direcionadas as ações da pesquisa, principalmente na construção do roteiro da entrevista semiestruturada e, depois, como suporte e orientação na análise dos dados.

As atividades de levantamento de dados foram realizadas para revelar tanto as especificidades singulares das produções humanas na realização da festa quanto suas características comuns e universais, permitindo aproximações com outras festas de santo, realizadas em outras regiões e países.

3 A FESTA DE SÃO BENEDITO DA RUA DA BARRA EM ROSÁRIO OESTE

A Festa de São Benedito da Rua da Barra em Rosário Oeste teve início há mais de 100 anos, quando o casal Maria Joaquina de Oliveira e Manoel Cipriano de Oliveira fizeram um pedido ao Santo. O motivo de tal pedido se deu pela ameaça de invasão dos índios pareci ao município de Rosário Oeste. O casal, temeroso de que os selvagens se dirigissem à localidade onde habitavam, no Sítio Pae Caetano, abundante de pescados e alimentos, fizeram um pedido a São Benedito, para que desse proteção a todas as famílias que ali moravam.

Os índios desviaram o percurso e, como agradecimento, Dona Maria Joaquina e seu Manoel reuniram a comunidade e rezaram ao Santo. Após a reza, serviram chá com bolo e, como era sábado de aleluia, ela disse ao filho e aos presentes que a reza deveria ter sequência pelas gerações da família sempre aos sábados de aleluia (Dona Izabel6 6 Izabel Maria de Oliveira. Professora aposentada. Filha do Sr. Aristides Pedro de Oliveira e bisneta do Sr. Manoel Cipriano de Oliveira e Dona Maria Joaquina de Oliveira. , 2022).

A origem dessa prática cultural é típica do que alguns chamam de cultura popular7 7 O termo “cultura popular” é utilizado por Souza e Pereira para diferenciar algumas práticas culturais da humanidade. Defendem cultura, na sua condição de todo complexo, como algo que abrange o conhecimento do ser humano, sua forma de pensar, de agir e de sentir. . Seu nascimento ocorre por adaptação dos homens ao ambiente em que vivem, envolvendo várias áreas de conhecimento, como artes, artesanato, crenças, hábitos e costumes. Nasce, portanto, de uma necessidade do grupo e se transforma em prática cultural. Na condição de tradição, é repassada para as novas gerações, principalmente de forma oral (Souza; Pereira, 2014, p. 17SOUZA, Gerson Martins; PEREIRA, Tarcísio José. Cultura popular. Brasília: Projeção, 2014. 144 p.).

Tradição inventada é um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado (Hobsbawn, 2008, p. 9HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. In. HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence (Org.). A invenção das tradições. 6. ed. São Paulo: Editora Paz e terra S.A., 2008. 316p. p. 9-24.).

A devoção a São Benedito é uma prática cultural que teve início na sociedade feudal, difundindo-se rapidamente em razão da quantidade de casas de religiosos franciscanos espalhadas pelo mundo inteiro. Com apenas dez anos após sua morte, já lhe prestavam culto nos reinos de Portugal e Espanha. Em 1609, também foi criada uma irmandade de São Benedito instituída em Portugal e, no ano seguinte, 1610, sua devoção chegou à Nova Espanha, México, no convento de São Francisco da cidade dos Anjos (Paula e Silva, 2002PAULA E SILVA, Dom Francisco de. Vida de São Benedito, o preto. Machado, MG: Gráfica Editora Folha Machadense, 2002. 75 p.).

A festa de São Benedito da Rua da Barra, desse modo, como uma prática cultural específica e singular dos festeiros e habitantes devotos de Rosário Oeste, expressa a materialização de algo mais geral, do universal, trazido do além-mar para nosso país.

Dona Maria Joaquina e Seu Manoel Cipriano tiveram quatro filhos: Benedito Ângelo de Oliveira, Pedro Alcebíades de Oliveira, Francisco Rosa de Oliveira e Fontelina de Oliveira. A festa de São Benedito foi assumida por Benedito Ângelo de Oliveira, que, na época, tinha apenas 17 anos de idade (Dona Izabel, 2022). Depois da morte de “Seu Dito Ângelo”, a festa teve continuidade com sua filha Abgail Antônia de Oliveira (Dona Bêga). Com o seu falecimento na década de 1980, as festividades do santo passaram a ser realizadas na residência de Benedita Teodora de Oliveira (Dona Dudu), na Rua Coronel Botelho, mais conhecida como Rua da Barra (Dona Marjorie, 2021)8 8 Marjorie Benedita de Oliveira Santos, professora aposentada, filha de Dona Benedita Teodora de Oliveira (Dona Dudu) e bisneta de Manoel Cipriano de Oliveira e Maria Joaquina de Oliveira. .

Após o falecimento de Dona Dudu, os filhos e netos dela, de Seu “Dito Ângelo”, de Dona Maria Cristina e do Sr. Aristides Pedro de Oliveira deram continuidade aos festejos até os dias atuais (Dona Izabel, 2022).

Os envolvidos com as festas populares ou com o catolicismo popular, assim chamado por Souza e Pereira (2014)SOUZA, Gerson Martins; PEREIRA, Tarcísio José. Cultura popular. Brasília: Projeção, 2014. 144 p., compõem grupos de fiéis que realizam seus cultos e devoções à margem da igreja ou, pelo menos, com uma margem maior de autonomia em relação a ela. Seus costumes e suas práticas são tradicionais, passados de geração a geração.

A Festa de São Benedito, nessa condição, é uma prática cultural transmitida pelos mais velhos aos mais novos.

[...] a festa é antiga. Os costumes, a crença e a fé são transmitidas dos mais velhos para os mais novos. As pessoas mais velhas sabem mais do que as mais novas (Dona Eliza9 9 Eliza Faustina de Almeida, dona de casa, filha de Dona Abgail Antônia de Oliveira (Dona Bêga), bisneta de Manoel Cipriano de Oliveira e Maria Joaquina de Oliveira. , 2021).

Para mim vejo a festa como uma cultura nossa de costume e fé, que é passada entre as gerações. É uma forma de vivermos na nossa sociedade (Dona Marjorie, 2021).

Os entrevistados adjetivam São Benedito como “um santo milagroso”, “é vida”, “é um Santo que ajuda”, “é protetor da família”, “é um santo que não teve estudos, mas é muito milagroso”, “São Benedito é tudo” e “é um Santo Padroeiro, milagroso para quem tem fé”.

Essa demonstração de afeto representa a devoção para com o Santo e é reforçada quando os devotos informam que sentem a proximidade do Santo em suas vidas:

Para mim ele é muito próximo. Eu acho que a gente acredita tanto, que a fé tão grande que parece que ele está presente na celebração e nas comemorações (Sr. Joildo10 10 Joildo Jovino de Oliveira, professor da Educação Básica da Rede Estadual de Educação do Estado de Mato Grosso, filho do Sr. Benedito Luís de Oliveira e bisneto de Manoel Cipriano de Oliveira e Maria Joaquina de Oliveira. , 2021).

Eu falo, eu converso, eu peço, eu agradeço, eu choro (Dona Marjorie, 2021).

Sim! Eu converso com ele. Ele está sempre comigo (Dona Euraides11 11 Euraides de Oliveira Silva, funcionária pública aposentada, filha de Dona Maria Cristina de Oliveira e bisneta de Manoel Cipriano de Oliveira e Maria Joaquina de Oliveira. , 2022).

Eu sinto que ele é da família. Eu faço muitos pedidos para São Benedito (Dona Eliza, 2021).

Eu sinto a presença dele, converso com ele. Ele está sempre próximo (Dona Fiona12 12 Ádila Maria da Silva, funcionária pública aposentada, colabora na cozinha da Festa. , 2022).

Para mim ele é um membro da família que já fez e faz milagres (Dona Izabel).

Há, entre os participantes da festa, a noção de que o santo é um tipo familiar. “A ideia que o sitiante forma a respeito dos santos é também de tipo familiar. O Santo não é um ser longínquo, impessoal, invisível; sob forma da imagem, habita o oratório ou a capela. A imagem não é um símbolo, ela é o próprio Santo” (Queiroz, 1976, p. 60QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. 242 p.). A autora complementa, ainda, que o Santo participa do mundo natural pela representação que está no altar e do mundo sobrenatural por sua essência. Como participa do mundo natural, é possível agir por intermédio da imagem; ladainhas são cantadas para agradá-lo ou para conseguir graças, ou para agradecer os dons recebidos (Queiroz, 1976QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. 242 p.).

Os devotos de São Benedito acreditam que ele é um Santo que deve ser tratado com cuidado e respeito, pois castiga quando desrespeitado.

São Benedito é o Santo que atende quando os devotos precisam, mas também pune quando as promessas não são cumpridas (Sr. Joildo, 2021).

Não brinca com São Benedito, gente! Não brinca com São Benedito, que ele não dá castigo depois, o castigo dele é na hora (Dona Euraides, 2022).

São Benedito castiga, não se pode brincar com ele (Sr. Benedito13 13 Benedito Luis de Oliveira, aposentado rural, filho do Sr. Benedito Ângelo de Oliveira e neto de Manoel Cipriano de Oliveira e Maria Joaquina de Oliveira. , 2021).

Acredita-se que os santos intervenham na vida quotidiana; estão sempre presentes, prontos a auxiliar ou a impedir as atividades dos fiéis. Cada santo tem suas peculiaridades; alguns são mais caprichosos do que outros, porém todos manifestam mudanças de humor imprevisíveis (Queiroz, 1976, p. 60QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. 242 p.).

No cotidiano, há um estreito relacionamento entre o santo e seus devotos, especialmente entre um padroeiro doméstico e a família que o elegeu como patrono. Os devotos não imaginam um santo longe no paraíso, mas como um ser humano presente representado pela sua imagem. Por isso, o santo tudo vê e está disposto a auxiliar quando é solicitada sua ajuda. Também pode castigar os fiéis quando estes o desagradam (Queiroz, 1976QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. 242 p.).

No passado, a festa

[...] era organizada pela família e a comunidade no sítio Pae Caetano. Os devotos se reuniam em forma de mutirão, faziam a limpeza do local, ajudavam na realização do evento, rezavam, serviam chá com bolo, almoço, jantar (Dona Izabel, 2022).

No passado, o contingente de pessoas era bem menor e a festa de São Benedito era realizada pelo sistema de doação, onde cada família doava um pouco (Sr. Joildo, 2021).

O mutirão toma em geral aspectos festivos. [...] À noite, reúnem-se todos para jantar e a festa começa: cantigas, danças, desafios, etc. A função social do mutirão é patente: é um fator de reunião e, assim, reforça a coesão social (Queiroz, 1976, p. 56QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. 242 p.).

A família que organizará a festa do próximo ano é escolhida na festa atual. “São escolhidos festeiros para os vários cargos, como juiz, juíza, rei, rainha, capitão do mastro, alferes de bandeira e, às vezes, juizinhos de promessa, cada qual com suas responsabilidades” (Dona Marjorie, 2021; Dona Izabel, 2022; Sr. Joildo, 2021; Dona Lurdinha, 2021). Por toda parte, no Brasil tradicional, a festa do padroeiro ou da padroeira se estrutura do mesmo modo. Cada ano é escolhido um festeiro ou dono da festa, encarregado de organizá-la... (Queiroz, 1976QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. 242 p.).

Na atualidade, a organização da festa começa dias ou mesmo semanas antes do sábado de aleluia. É unânime, entre os entrevistados, o reconhecimento da necessidade de organização do espaço, da limpeza, da procura da lenha, da feitura dos biscoitos e doces, das autorizações e alvarás. “Os participantes executam em comum certas tarefas (construção de ranchos, abate de animais para as refeições, corte de árvores para a lenha), assim como ritos religiosos (procissões, novenas, ladainhas)” (Queiroz, 1976, p. 58QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. 242 p.).

Também é muito antes da Festa que começa a arrecadação dos alimentos entre aqueles que prometeram doações no ano anterior ou no decorrer do ano.

É um trabalho de formiguinha porque a festa é muito grande. O que acho lindo é a colaboração de todos dentro daquilo que podem colaborar. Uns trazem uma cabeça de alho, outro traz um pacote de sal, um outro traz meio saco de feijão, outro um boi. Tudo aqui é de graça para a comunidade... (Dona Marjorie, 2021).

No decorrer da festa, as comidas são oferecidas de graça, a única coisa que é vendida é a cerveja (Sr. Joildo, 2021).

No sábado de aleluia, a festa começa com uma procissão que parte da praça.

A gente reúne na praça e vem rezando o terço e cantando em procissão com a imagem do santo. Os festeiros vêm trazendo doces, biscoitos etc. e entregam na chegada. Na hora que chegam tem uma recepção com fogos (Dona Valdirene14 14 Valdirene Cardoso de Moraes, professora aposentada da Secretaria Estadual de Educação, moradora da Rua da Barra e colaboradora nas atividades da festa. , 2022).

Hoje em dia a festa já começa às cinco horas da manhã com a procissão que sai da praça. Agora tem uma procissão com andor e tudo. Chegando na festa, reza o terço, tomam tchá co bolo (Euraides, 2022).

O espaço da festa é todo enfeitado. Recebe todos, com exceção dos locais reservados às cozinheiras e da cantina para venda de bebidas. “A responsabilidade em decorar o mastro e o altar é do alferes de bandeira. A decoração e os enfeites externos não há ninguém designado, na hora alguém organiza e faz” (Dona Marjorie, 2021).

A abertura oficial da festa é realizada pelo levantamento do mastro. Até alguns anos atrás, ele era levantado no dia da festa. Na atualidade, o mastro da festa de São Benedito da Rua da Barra é levantado antes do sábado de aleluia. “O capitão de mastro é responsável pela sua retirada na mata. Ele reúne os ‘mastreiros’ seus amigos, saem para a mata e escolhem o melhor deles. Quando o encontram, soltam fogos, derrubam a árvore e trazem carregando nos ombros” (Dona Lurdinha).

Quando chegam ao local da festa, o alferes de bandeira recebe o mastro e o enfeita para que seja levantado. Há um ritual para o cumprimento dessa operação: inicia-se com a saudação do santo pelos cururueiros e os presentes. Depois acontece uma procissão iluminada por velas. O rei e a rainha da festa carregam a imagem do Santo. O Capitão do mastro, a coroa. O alferes carrega a bandeira (um estandarte quadrado com a figura do santo). Os juízes e demais devotos seguem atrás. Os cururueiros vão na frente, tocando viola de cocho e cantando trovas conhecidas ou de autoria própria. Quando chegam junto ao mastro, o capitão prende a coroa e o alferes fixa a bandeira. O mastro deve ser levantado com o estandarte voltado para o sol nascente. Após a subida do mastro, a procissão dá três voltas ao seu redor, e os festeiros se despedem. A descida do mastro segue o mesmo ritual (Loureiro, 2006LOUREIRO, Roberto. Cultura Mato-Grossense: festas de santos e outras tradições. Cuiabá, MT: Entrelinhas, 2006. 239p.). De acordo com Dona Izabel (2022), “não existe nenhum motivo aparente para a posição do bandô voltado para o sol nascente, quando do levantamento do mastro. Isso faz parte apenas de um costume”.

A festa, iniciada no sábado de aleluia, atravessa o domingo e termina na segunda-feira. Nesse período, os cantos e as danças dos cururueiros em frente do altar são imprescindíveis para homenagear ao santo e, também, para a condução das atividades de levantamento do mastro. “Os cantos no cururu são sobre passagens da bíblia, para saudar os donos da casa ou festeiros, ou ainda pessoas presentes na festa ou não. Podem também entrar em desafios para ver quem faz versos mais bonitos ou mesmo responder a provocação do outro” (Dona Marjorie, 2021; Dona Nica15 15 Domingas Vitalina Pereira, dona de casa e moradora da Rua da Barra, colabora na cozinha da festa. , 2022; Sr. Benirdo16 16 Benirdo Emanoel Conrado, aposentado e casado com Dona Nica, colabora na festa como churrasqueiro. , 2022).

O Sr. Damião (2022), cururueiro e artista artesanal, fabricante de violas de cocho, informou que

[...] não tem uma quantia certa para se fazer uma rodada de cururu, mas para um cururu bem-feito é necessário de 8 a 10 cururueiros que cantam em duplas. O cururu serve para louvar o santo e saudar o dono da casa. São cantados quatro versos trovados, mas o estribilho é saudando o dono da casa.

No caderno de Folclore Mato-Grossense da Prefeitura Municipal de Cuiabá, Ferraz (1990, p. 10)FERRAZ, Ana Maria Borges. Caderno de folclore mato-grossense, n. 2. Cururu: Prefeitura Municipal de Cuiabá; Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, 1990. 97 p. informa que “o cururu consiste em, no mínimo, dois cantadores sempre do sexo masculino: um tocando a viola de cocho e o outro o ganzá ou os dois tocando viola. Quando o número do grupo é grande, cantam em duplas, mas o número de violas tem que ser sempre maior, pois o som do ganzá é muito alto”.

Os jovens têm demonstrado desinteresse tanto em aprender a arte de construir a viola de cocho, como tocá-la e cantar o cururu.

As violas são construídas de vários tipos de madeira, como o sarã, a ximbuva, o cedro e pinho cuiabano, mas os jovens não se interessam em aprender a fazer violas ou de cantar o cururu, não sei por quê. Os artesãos de viola de cocho normalmente são aposentados, até porque sua comercialização é demorada, o dinheiro não entra rápido. Nas rodadas de cururu, o que a gente vê são pessoas mais velhas (Sr. Damião17 17 Sr. Damião da Rua Nova, cururueiro e artesão. ).

O conhecimento do cururu vem sendo transmitido por gerações através da linguagem oral. Mas, devido ao desinteresse dos jovens, à modernização, aos meios de comunicação e ao grande número de migrantes chegados à região, corre o risco de desaparecer (Ferraz, 1990FERRAZ, Ana Maria Borges. Caderno de folclore mato-grossense, n. 2. Cururu: Prefeitura Municipal de Cuiabá; Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, 1990. 97 p.).

A comida servida durante a festa é abundante, desde o sábado até o almoço da segundafeira. No sábado de manhã, é oferecido chá-mate com bolo; no almoço, a comida é ensopadão de costela com mandioca, arroz e feijão. Na janta, tem almôndegas, leitoa frita, frango com macarrão, carne laminada e salada. Também são servidas sobremesas como o doce de leite, de mamão ou furrundu, entre as mais comuns. No domingo de manhã, a partir das seis e meia, é servido o “tchá co bolo”; no almoço, são oferecidos farofa de carne, sarapatel, feijão, mandioca cozida e churrasco. Doces compõem as sobremesas. À noite, é servida carne com arroz. Na segunda-feira, ao meio-dia, é oferecida uma feijoada (Dona Nica, 2022; Dona Valdirene, 2022; Dona Marjorie, 2021; Dona Lurdinha, 2021; Dona Izabel, 2022).

As comidas, na atualidade, não são muito diferentes das antigas. A única modificação foi a introdução do churrasco no cardápio de domingo. Quanto aos utensílios utilizados, mudaram muito.

Lá no sítio, por exemplo, as comidas eram feitas em panelas de barro, usava-se gamelas de madeira e os pratos, bules e xícaras eram de alumínios esmaltados. Na atualidade, as panelas são de alumínio, os pratos de louças, utilizam-se de mesas e cadeiras de plástico e copos e xícaras descartáveis. Antigamente lá no sítio, como havia poucos recursos, não havia mesas para servir a comida. Então, estendia um couro de boi no chão, colocava as travessas no centro, com pratos e garfos. As pessoas ajoelhavam, serviam a comida e comiam (Sr. Joildo, 2021).

As informações do Sr. Joildo são corroboradas por Dona Nica (2022):

Muito bem antes lá no sítio, a comida era servida num couro estendido no chão. Arrumava o couro no chão com as travessas ou panelas no meio. As pessoas chegavam e serviam ali a comida. Os pratos não eram de louça nem descartados, eram esmaltados! As panelas eram de barro, todas de barro. As xícaras e bules também eram daqueles esmaltados. Os doces eram servidos numa vasilhinha, xícara ou pires de café. Mudou muito mesmo. Não tinha mesas, cadeiras que agora tem. Agora ficou chique até demais.

Na festa, as bebidas oferecidas gratuitamente são pinga e licores.

As pingas podem ser as ‘branquinhas’ [puras], pinga com amburana, pinga com fedegozo, pinga com raiz de bugre, pinga com quina etc. O principal licor da festa é o de leite, mas tem licor de lima, de jabuticaba, depende dos festeiros. A única coisa que é vendida na festa é a cerveja, para auxiliar nas despesas (Dona Marjorie, 2021).

A reza constitui um dos momentos mais importantes das festividades devotadas ao santo. Na Festa de São Benedito, ela é realizada na noite de sábado. De acordo com Dona Izabel (2022), a ladainha é o ritual mais solene da festa. Constitui-se de orações e cantorias realizadas pelos participantes presentes em frente ao altar, num misto de português e latim. São puxadas por uma dupla de rezadores(as) chamados de capelões ou capelãs. As rezas são respondidas em coro, em várias vozes e tonalidades pelos participantes. “O capelão é o conhecedor de ritos, orações, ladainhas, de práticas enfim que são peculiares ao catolicismo rústico” (Queiroz, 1976, p. 86QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. 242 p.).

Há preocupação entre os entrevistados sobre a falta de interesse dos mais jovens em aprender as tarefas de um capelão e, também, em participar e aprender as respostas às ladainhas. A maioria dos jovens não estão nem aí em aprender as rezas, que é uma tradição nossa. Tem alguns, mas são poucos” (Dona Marjorie, 2021).

Falta nós mesmos, a família pegar eles e arrumar na frente para aprender. A gente reza e os nossos filhos estão andando por aí e nem se preocupam com que está acontecendo, não vem nem para prestigiar (Dona Lurdinha, 2021).

Na ladainha há a participação de pessoas mais velhas. Os jovens são poucos que participam, mas tem muitos que sabem e acompanham (Joildo, 2021).

Se continuar assim essa tradição vai acabar, precisamos incentivar os jovens a darem continuidade a essa tradição tão bonita (Dona Marjorie, 2021).

Essa preocupação dos entrevistados é bastante significativa, uma vez que, se os mais novos não se apropriarem dos conhecimentos de seus pais e do entorno social, não se sentirão parte da comunidade em que vivem. “A cultura é indispensável ao indivíduo no plano de sua existência material. Ela permite sua inserção no tecido social. Dá uma significação à sua existência e à dos seres que o circundam e formam a sociedade da qual se sente membro” (Claval, 2007, p. 89CLAVAL, Paul. A geografia cultural. 3. ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2007. 453 p.). O autor ainda complementa com a ideia de que a “cultura só existe através dos indivíduos aos quais é transmitida e que, por sua vez, a utilizam, a enriquecem, a transformam e a difundem”.

A festa de São Benedito da Rua da Barra, pelas peculiaridades de sua origem e desenvolvimento, caracteriza-se como o que Hobsbawn e Ranger (2008)HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. In. HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence (Org.). A invenção das tradições. 6. ed. São Paulo: Editora Paz e terra S.A., 2008. 316p. p. 9-24. chamaram de tradição inventada. Para os autores, a tradição inventada é um série de práticas reguladas por regras aceitas, com o intuito de instituir comportamentos e estabelecer valores, embasados na repetição, com vistas à manutenção de condutas fundadas no passado.

Na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições ‘inventadas’ caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas são reações a situações novas ou que assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória (Hobsbawn, 2008, p. 10HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. In. HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence (Org.). A invenção das tradições. 6. ed. São Paulo: Editora Paz e terra S.A., 2008. 316p. p. 9-24.).

A tradição inventada inspira ações que devem ter continuidade. São instituídas com propósitos de transmissão de costumes pela repetição, que passam a ser aceitos como legítimos. Contudo, manter costumes e tradições imobilizadas podem levar ao engessamento do natural processo de evolução (Flores, 1997FLORES. Maria Bernadete Ramos. Oktoberfest: turismo, festa e cultura na estação do chopp. Florianópolis, SC: Letras contemporâneas, 1997. 188 p.).

Após a reza, a festa tem sua continuidade com o baile. O senhor Benedito (2021), filho do Sr. Benedito Ângelo, informou que, no começo, a festa se resumia às comidas, à reza e à dança do cururu.

Nós crescemos, eu e compadre Chiquinho começamos a fazer o baile. O baile era num ranchão que fizemos e era animado por sanfona. O primeiro a tocar no baile foi o acordeonista Joaquinzinho cego. Na atualidade, a música é diferente demais, tocam mais esse tal de lambadão, música de conjunto.

Dona Marjorie (2021) complementou informando que “lá no sítio dançavam também ‘siriri’ na festa. Quando dançavam, o baile era com um conjunto de violão e pandeiro”.

Na atualidade, para “o baile é contratado um conjunto que tocam músicas tradicionais, rasqueado, lambadão, tocam o que o povo gosta. Geralmente contrata-se aquele conjunto que o povo mais gosta” (Dona Valdirene, 2021).

A escolha dos festeiros é rotativa entre os descendentes da família Oliveira. “Cada ano é uma família Oliveira que assume a responsabilidade de realizar a festa” (Dona Izabel, 2022). “Na atualidade a festa é organizada por festeiros descendentes da família Oliveira: 1) Minha família – Papai e Tio Chiquinho, 2) Família de tia Dudu, 3) Família de Tia Maria Cristina, 4) Família de Tio Aristides, e 5) Família de Tia Bêga” (Joildo, 2021). Dona Euraides (2021) inclui a Família da Dona Elaine Cardoso, que, junto dos Oliveira, completa as seis famílias festeiras.

A devoção a São Benedito foi clara e bastante explícita em muitas situações durante o levantamento de dados. No site da Canção Nova da Igreja Católica, a palavra devoção tem raiz no latim devotione e significa afeição, dedicação, sacrifício e culto. Na teologia e na espiritualidade católica, devoção é um ato de religião.

Quando os devotos entrevistados adjetivam São Benedito como milagroso, vida e protetor da família, demonstram sua devoção, confiança, afeição e intimidade para com o protetor. Além disso, os esforços físicos, tempo, recursos financeiros, fé e crença demonstram também devoção ao santo. “A devoção, o acreditar, faz com que as pessoas depositem toda confiança no santo protetor” (Moreira, 2019, p. 24MOREIRA, Ana Cristina de Lima. Religiosidade popular: devoção e cultura. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro: padroeira da Serra da Mandioca em Palmeira dos Indios – Alagoas. 2. ed. Maceió: Editora Olyver, 2019. 134p.).

A devoção leva à confiança e a confiança leva a pedidos. É na relação de reciprocidade entre o santo e o devoto que acontecem as promessas.

Ele pra mim é um Santo que tem devotos demais. É um Santo Milagroso. Santo Forte. É um Santo que te pune. Tem muita gente que faz promessas e vem cumprir. Quando você ver alguém que não é do grupo fazendo trabalhos como lavar louça, rachar lenha etc. ou durante a ladainha com várias velas acesas, estão pagando alguma promessa (Sr. Joildo, 2021).

No Brasil, as devoções encontram “um solo fértil, tomando os santos como protetores em todas as situações. Mas são as questões de saúde que exigem mais dos santos. As promessas aparecem nesse contexto de forma mais acentuada, sendo diversificada a forma de pagamento” (Moreira, 2019, p. 24MOREIRA, Ana Cristina de Lima. Religiosidade popular: devoção e cultura. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro: padroeira da Serra da Mandioca em Palmeira dos Indios – Alagoas. 2. ed. Maceió: Editora Olyver, 2019. 134p.).

Os devotos acreditam que é pelas promessas que se estabelece uma relação de devoção com os santos. É nas dificuldades que comunicação com o santo aumenta, com a intenção de obter milagres (Oliveira, 1985OLIVEIRA, Pedro Ribeiro. Catolicismo popular e mudança social. Religiosidade Popular, (suplemento), Petrópolis, n. 12, p. 3-11, set. 1985.).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A festa de São Benedito da Rua da Barra, na sua singularidade, por meio de atividades como as ladainhas, rezas, procissões, promessas, homenagens ao santo, comidas, bebidas etc., oportuniza aos fiéis, durante três dias, uma vida compartilhada especial e festiva, indiferente a tudo mais que os cerca.

É importante ressaltar que os festeiros ou são descendentes de Manoel Cipriano de Oliveira e sua esposa Maria Joaquina de Oliveira ou são de famílias com laços de amizade, residentes em sua maioria no município de Rosário Oeste. Alguns poucos moram em cidades próximas como Cuiabá, Nova Mutum e Lucas do Rio Verde, mas têm vínculos familiares em Rosário Oeste.

A festa, na atualidade, começa a ser preparada com bastante antecedência. Os festeiros são escolhidos num ano para organizarem a festa do ano seguinte. As doações da irmandade e devotos permitem que os alimentos na festa sejam oferecidos à população sem custos. Para que a festa aconteça, muitas ações são realizadas com antecedência pelos festeiros, como a organização do espaço, a limpeza, a procura de lenha para cozinhar, a confecção de bolos e doces, as retiradas de autorizações e alvarás, bem como a arrecadação dos alimentos.

O levantamento de dados da pesquisa evidenciou que a festa de São Benedito da Rua da Barra em Rosário Oeste é uma prática cultural que passa por transformação tanto quanto as relações sociais. Os entrevistados apontaram que a primeira delas refere-se ao local da festa, antes realizada na zona rural. Na atualidade, a festividade acontece na zona urbana.

Outras mudanças ocorreram no decorrer dos tempos. No passado, o contingente de pessoas era bem menor. Hoje a festa cresceu e recebe grande número de pessoas durante a sua realização. A procissão dos festeiros, que começa na praça em direção à casa da festa, é algo recente. Além disso, as comidas servidas nos dias atuais, com pequenas adaptações, não são diferentes das antigas. Houve adaptação importante com a assimilação e introdução do churrasco no almoço do domingo. O ritual de levantamento do mastro era realizado no dia da festa; na atualidade, é realizado antes do sábado de aleluia.

Os utensílios utilizados na festa de antigamente eram compostos de panelas de barro, gamelas de madeira, pratos, bules e xícaras de metal esmaltado. Atualmente, são utilizadas panelas de alumínio, pratos de louça, mesas e cadeiras de plástico e copos e xícaras descartáveis.

Além disso, num passado não tão remoto, quando a festa era realizada no sítio, não existia baile. A festividade se resumia a comidas, reza e algumas bebidas. Quando os filhos do Sr. Benedito Ângelo cresceram, na década de 1960, começaram a realizar os bailes e a dança do siriri. Nesse tempo, os bailes eram animados por um conjunto de violão e pandeiro e, depois, com sanfona. As músicas tocadas eram as chamadas sertanejas. Hoje, o baile é animado por bandas conhecidas ou conjuntos musicais que tocam lambadão, rasqueados e músicas que estão da moda.

Também é expressivo evidenciar que um cururueiro entrevistado tem explorado sua habilidade de artesão para fazer violas de cocho e ganzás. Assim, o que eram seus utensílios musicais tornaram-se mercadorias que lhe permitem complementar sua renda.

A falta de interesse dos mais novos em aprender as tarefas de um capelão ou responder à ladainha é um fator considerável e bastante preocupante para a continuidade da festa. Eles também têm demonstrado desinteresse em aprender a arte de construir violas de cocho, tocálas e de cantar o cururu. O desinteresse pela continuidade de uma tradição é uma crítica que trai a vontade do engessamento de costumes que se quer perpetuar. Todavia, os costumes e as tradições mudam, porque tudo muda ao sabor das transformações das relações sociais.

Vale perguntar sobre como será possível conservar a realização da festa. A continuação dela com as características atuais não é promissora. As transformações são contínuas. Logo, será necessário ajustar a festa às transformações em curso. Uma possibilidade sistematicamente explorada nos mais diferentes recantos do universo tem sido a de assumir qualquer prática cultural na condição de mercadoria e associá-la estreitamente ao turismo. Nesse rumo, ela poderá ser conservada e poderá gerar condições para que inúmeras atividades desabrochem no seu entorno, a exemplo do próprio artesanato.

  • 4
    Pronúncia típica na região da baixada cuiabana e ribeirinha para a expressão chá com bolo.
  • 5
    Lourdezer Oliveira de Souza, funcionária pública lotada na Secretaria de Educação Municipal de Rosário Oeste, filha de Dona Benedita Teodora de Oliveira (Dona Dudu) e bisneta de Manoel Cipriano de Oliveira e Maria Joaquina de Oliveira.
  • 6
    Izabel Maria de Oliveira. Professora aposentada. Filha do Sr. Aristides Pedro de Oliveira e bisneta do Sr. Manoel Cipriano de Oliveira e Dona Maria Joaquina de Oliveira.
  • 7
    O termo “cultura popular” é utilizado por Souza e Pereira para diferenciar algumas práticas culturais da humanidade. Defendem cultura, na sua condição de todo complexo, como algo que abrange o conhecimento do ser humano, sua forma de pensar, de agir e de sentir.
  • 8
    Marjorie Benedita de Oliveira Santos, professora aposentada, filha de Dona Benedita Teodora de Oliveira (Dona Dudu) e bisneta de Manoel Cipriano de Oliveira e Maria Joaquina de Oliveira.
  • 9
    Eliza Faustina de Almeida, dona de casa, filha de Dona Abgail Antônia de Oliveira (Dona Bêga), bisneta de Manoel Cipriano de Oliveira e Maria Joaquina de Oliveira.
  • 10
    Joildo Jovino de Oliveira, professor da Educação Básica da Rede Estadual de Educação do Estado de Mato Grosso, filho do Sr. Benedito Luís de Oliveira e bisneto de Manoel Cipriano de Oliveira e Maria Joaquina de Oliveira.
  • 11
    Euraides de Oliveira Silva, funcionária pública aposentada, filha de Dona Maria Cristina de Oliveira e bisneta de Manoel Cipriano de Oliveira e Maria Joaquina de Oliveira.
  • 12
    Ádila Maria da Silva, funcionária pública aposentada, colabora na cozinha da Festa.
  • 13
    Benedito Luis de Oliveira, aposentado rural, filho do Sr. Benedito Ângelo de Oliveira e neto de Manoel Cipriano de Oliveira e Maria Joaquina de Oliveira.
  • 14
    Valdirene Cardoso de Moraes, professora aposentada da Secretaria Estadual de Educação, moradora da Rua da Barra e colaboradora nas atividades da festa.
  • 15
    Domingas Vitalina Pereira, dona de casa e moradora da Rua da Barra, colabora na cozinha da festa.
  • 16
    Benirdo Emanoel Conrado, aposentado e casado com Dona Nica, colabora na festa como churrasqueiro.
  • 17
    Sr. Damião da Rua Nova, cururueiro e artesão.

REFERÊNCIAS

  • DIZARÓ, Paula. Adoração, devoção e veneração: existe diferença? Portal Canção Nova, Cachoeira Paulista, 2006. Disponível em: https://formacao.cancaonova.com/igreja/doutrina/adoracao-devocao-e-veneracao-existe-diferenca/ Acesso em: 3 maio 2022.
    » https://formacao.cancaonova.com/igreja/doutrina/adoracao-devocao-e-veneracao-existe-diferenca/
  • ALVES, Gilberto Luiz. Arte, artesanato e desenvolvimento regional: temas sul-mato-grossenses. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2014. 103p.
  • ALVES, Gilberto Luiz. Cultura e singularidades culturais. Curitiba: CRV, 2021. 104 p.
  • CLAVAL, Paul. A geografia cultural. 3. ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2007. 453 p.
  • FERRAZ, Ana Maria Borges. Caderno de folclore mato-grossense, n. 2. Cururu: Prefeitura Municipal de Cuiabá; Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, 1990. 97 p.
  • FLORES. Maria Bernadete Ramos. Oktoberfest: turismo, festa e cultura na estação do chopp. Florianópolis, SC: Letras contemporâneas, 1997. 188 p.
  • GRANDO, Beleni Saléte. Cultura e dança em Mato Grosso: catira, curussé, folia de reis, siriri, cururu, São Gonçalo, rasqueado e dança cabocla. Cuiabá, MT: Central de texto; Cáceres, MT: UNEMAT Editora, 2005. 87 p.
  • HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. In. HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence (Org.). A invenção das tradições. 6. ed. São Paulo: Editora Paz e terra S.A., 2008. 316p. p. 9-24.
  • LOUREIRO, Roberto. Cultura Mato-Grossense: festas de santos e outras tradições. Cuiabá, MT: Entrelinhas, 2006. 239p.
  • MOREIRA, Ana Cristina de Lima. Religiosidade popular: devoção e cultura. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro: padroeira da Serra da Mandioca em Palmeira dos Indios – Alagoas. 2. ed. Maceió: Editora Olyver, 2019. 134p.
  • OLIVEIRA, Pedro Ribeiro. Catolicismo popular e mudança social. Religiosidade Popular, (suplemento), Petrópolis, n. 12, p. 3-11, set. 1985.
  • QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. 242 p.
  • PAULA E SILVA, Dom Francisco de. Vida de São Benedito, o preto. Machado, MG: Gráfica Editora Folha Machadense, 2002. 75 p.
  • SOUZA, Gerson Martins; PEREIRA, Tarcísio José. Cultura popular. Brasília: Projeção, 2014. 144 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2023
  • Revisado
    26 Jun 2023
  • Aceito
    19 Jul 2023
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