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A importância dos espaços territoriais e as potencialidades das governanças

Ao trazermos à baila esta reflexão sobre a importância dos espaços territoriais, trazemos o pensamento de Raffestin (1993)RAFFESTIN, C. Por uma Geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993. para quem o território como construção social se torna um “campo de poder”, ou seja, um campo de forças sociais aliado a capacidades e competências de realizações coletivas para não só transformar como gerenciar cada ambiente de vida. “O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático em qualquer nível” (Raffestin, 1993, p. 2RAFFESTIN, C. Por uma Geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.).

Amplia este pensamento Santos (1996, p. 51)SANTOS, M. Por uma geografia nova. 4. ed. São Paulo: HUCITEC, 1996. (Originalmente publicada em 1978)., ao afirmar que “a configuração territorial é dada pelo conjunto formado pelos sistemas naturais existentes em um dado país ou numa dada área e pelos acréscimos que os homens superpuseram a esses sistemas naturais”.

A contribuição sobre o entendimento desse conceito de território cabe a Haesbaert (2004)HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004., quando estabelece de forma analítica três aspectos de construção territorial em suas concepções política, cultural e econômica. Em termos da política, o autor se refere às relações de espaço- poder institucionalizados – espaço este delimitado, controlado e relacionado ao poder político do Estado.

No sentido cultural ou simbólico cultural, segundo o autor, o território é visto em uma visão de apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido.

Já na concepção econômica, enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas, o território como fonte de recursos e/ou incorporado no embate entre classes sociais e na relação capital/trabalho, como produto da divisão “territorial” do trabalho, por exemplo (Haesbaert, 2001, p. 40HAESBAERT, R. Identidades territoriais. In: ROSENDAHL, Z.; CORRÊA, R. L. (Org.). Religião, identidade e território. Rio de Janeiro: EDUERG, 2001.).

O que podemos refletir é que esses atributos, em suas dimensões política, cultural, econômica e natural, de transformação do espaço, manifestadas nos territórios, constituem a sua individualidade, estabelecendo, assim, a sua singularidade e distinguindo-o, por conseguinte, de outros territórios.

Importante também são as contribuições conceituais de Albagli (2004)ALBAGLI, S. Territórios e territorialidade. In: LAGES, V.; BRAGA, C.; MORELLI, G. Territórios em movimento: cultura e identidade como estratégia de inserção competitiva. Brasília: Relume, 2004. P. 25–32. ao situar a territorialidade como atributo humano condicionado a normas sociais e valores culturais, variando de sociedade para sociedade, como processos de socialização e interações humanas, mediadas pelo espaço e pelas relações de poder. Reforça a autora a territorialidade como elemento de coesão social, de sociabilidade e solidariedade, não excluindo ser também espaço para o estímulo de hostilidade e exclusão social.

Nesse contexto, a palavra governança, na concepção de Hermet et al. (2014)HERMET, G.; BADIE, B.; BIRNBAUM, P.; BRAUD, P. Dicionário de Ciência Política e das Instituições Políticas. Lisboa: Escolar Editora, 2014. e Le Galés (2003)LE GALÈS, P. Le retour des villes européennes: sociétés urbaines, mondialisation, gouvenement et governance. Paris: Presses de Sciences-Po, 2003., é definida como um processo de coordenação de atores de diferentes áreas, sejam públicas, sejam privadas, de instituições sociais que regem a ação política a fim de atingir objetivos discutidos e definidos coletivamente nos diferentes espaços territoriais.

É nesse contexto que o v. 25, n. 2, abr./jun. 2024 apresenta os artigos que, em seus espaços discursivos, apresentam temáticas importantes, as quais emergem com enfoques diferenciados voltados à cultura, natureza, empreendedorismo, agricultura familiar, recursos territoriais e desenvolvimento em suas múltiplas abordagens.

O artigo “Contribuições do empreendedorismo cultural para o desenvolvimento regional” investiga as contribuições de microempreendimentos do ramo da cultura para o desenvolvimento regional na região metropolitana do Rio de Janeiro que corroboram para o equilíbrio econômico e social do território, potencializando recursos culturais existentes e ofertando pertencimento e renda para a comunidade local.

Em “Velejar e observar: percepções sobre os serviços ecossistêmicos culturais de acordo com os participantes do projeto ‘Escolinha de Vela Rio São João’ (RJ)”, avaliam-se os serviços ecossistêmicos culturais do Rio São João por meio da ótica dos integrantes de projeto social relacionado ao lazer, à estética, e ao aprendizado de herança cultural, criados com o objetivo de mudar a realidade de crianças, adolescentes e até adultos em situação de vulnerabilidade social; assim, a preservação do ambiente em que este projeto desempenha as suas atividades é crucial para cumprir sua função.

O artigo “A festa de São Benedito da Rua da Barra em Rosário Oeste, MT” analisa sua história, seu ritual e a devoção da festa considerando a necessidade de registros desse evento cultural de caráter religioso, que acontece há mais de 100 anos e ainda não havia sido pesquisado como prática cultural.

Já “Memórias gustativas: um estudo sobre idosos residentes em instituições de longa permanência” nos conduz para o espaço analítico das memórias gustativas de idosos residentes em instituições de longa permanência e em seu aspecto cultural, voltando-se aos lugares vivenciados e aos aromas, texturas e sons vivenciados nas memórias alimentares.

No artigo “Oficinas estéticas do Morro da Queimada: memórias em processo”, investigam- se as memórias de oficinas de arte oferecidas em um território periférico de Florianópolis, constatando-se que algumas aprendizagens persistiram e foram transmitidas de geração em geração, assim como a compreensão da importância dada às oficinas como locais de concretização de encontros e de compartilhar experiências de vida.

Em “Para além do papel: estudo das unidades de conservação brasileiras”, o artigo discute as Unidades de Conservação na perspectiva conservacionista como instrumentos de proteção da natureza, garantindo a manutenção da biodiversidade e dos biomas brasileiros, no sentido de construir um meio ambiente ecologicamente equilibrado nos termos da Constituição Federal de 1988, concluindo que, na prática, mais da metade das unidades de proteção integral nem sequer passaram pelo processo de regularização fundiária.

O artigo “Conhecimento e perfil de consumo de frutos nativos do Cerrado e do Pantanal de Mato Grosso do Sul” objetiva verificar o conhecimento e o perfil de consumo de frutos nativos do Cerrado e do Pantanal de Mato Grosso do Sul, MS, pela população. Os participantes demonstraram conhecimento moderado e um baixo consumo dos frutos nativos do Cerrado e Pantanal de MS, destacando-se, assim, a importância da valorização das práticas alimentares regionais como forma de fortalecer a cultura local e fomentar o consumo de frutos nativos ampliando sua divulgação para a população.

Como espaços de produção da agricultura familiar, o volume 25 possibilita a leitura dos artigos: “Produção pecuária e desafios ambientais: agricultura familiar no Vale do Taquari, RS”, o qual analisa a evolução histórica da produção pecuária que sustenta a matriz produtiva desenvolvida nessa região, em especial, pela agricultura familiar, e os desafios ambientais decorrentes da atividade; “As práticas inovadoras da agricultura familiar agroecológica: o contramovimento em Santana do Livramento, RS”, em que se estudam as práticas inovadoras fomentadas, as quais se relacionam com o aproveitamento dos recursos naturais, promoção, fortalecimento e valorização do conhecimento local, mediante a colaboração para a segurança alimentar, autonomia e autogestão produtiva; “Aquisições da agricultura familiar via Programa Nacional de Alimentação Escolar: avaliação dos efeitos econômicos para os municípios mineiros”, o qual avalia que as aquisições da agricultura familiar, por meio do PNAE, exercem efeitos econômicos positivos sobre esses setores e, principalmente, sobre o PIB total.

Ainda trazendo importantes discussões sobre a agricultura familiar, o artigo “Agricultura familiar em Nova Friburgo: caracterização da gestão social e promoção da transição agroecológica” caracteriza o município de Nova Friburgo nos aspectos territorial, ambiental, histórico, produtivo e organizacional, assim como destaca a presença de dinâmicas camponesas e empresariais nos sistemas de produção locais.

O artigo “Desenvolvimento local e possibilidades de uma economia circular a partir de uma cooperativa de catadores de materiais recicláveis” investiga a interface entre a organização territorial e o desenvolvimento local juntamente de uma cooperativa de reciclagem, concluindo que, da viabilidade de relações dentro do território, podem surgir cenários que garantam a circularidade e transformação do resíduo, englobando aspectos voltados para sustentabilidade social, ambiental e econômica.

Em “Desenvolvimento socioeconômico municipal: um estudo da região Norte do Brasil”, analisam-se relações de pesquisa existentes na literatura científica entre Commons e turismo, identificando quais recursos turísticos são adequados à prática do bem comum. Já o artigo “A teoria de redes de Mark Granovetter e o debate sobre o fenômeno migratório” apresenta um ensaio teórico sobre movimentos migratórios no uso dessa teoria, buscando entender como as redes sociais podem influenciar na tomada de decisão e no processo de migração dos indivíduos.

Tendo como objetivo a compreensão do território feminino, o artigo “Em busca de si: construindo agência e autonomia feminina em contextos de pobreza” propõe recursos teóricos e conceituais úteis para compreender formas de agência e de autonomia feminina entre mulheres pobres e negras, moradoras de grandes centros urbanos no Brasil. Ao tematizar a questão da educação ambiental, o artigo “Educação ambiental no Brasil e reflexões sobre a Lei n. 9.795/1999” demonstra que a educação ambiental deve estar inserida no ensino formal; ademais, direcionada à comunidade, pois a defesa e preservação do equilíbrio do meio ambiente é valor inseparável do exercício da cidadania.

O artigo “Desenvolvimento Turístico Sustentável pela perspectiva da Teoria do Commons: uma revisão integrativa da literatura” analisa as relações de pesquisa referentes aos aspectos ambiental, econômico e social, tendo como foco o turismo e a teoria de Commons baseada em ações coletivas. Já “Impactos das práticas culturais e religiosas sobre a biodiversidade em comunidades tradicionais do Semiárido brasileiro” apresenta uma indicação sobre biodiversidades de práticas culturais e religiosas das comunidades da Ilha do Massangano, povoado rural negro pertencente ao município de Petrolina, PE, e Lage dos Negros, quilombo pertencente ao município de Campo Formoso, BA.

Em “Contribuições metodológicas para os estudos sobre indicações geográficas: Valorizar os recursos territoriais segundo as chaves de ação do Guia da EPAGRI, 2020, e do Guía Uniendo Personas, Territorios y Productos para Fomentar la Calidad Vinculada al Origen y las Indicaciones Geográficas Sostenibles, da FAO, 2011”, objetivou-se traçar os principais pontos constantes na cartilha Metodológica da EPAGRI, Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina, enquanto referencial no campo das indicações geográficas, num olhar em relação à proposta do círculo virtuoso da FAO, Agência de Alimentação e Agricultura da ONU.

O estudo concluiu que a valorização e o desenvolvimento territorial local são frutos de conhecimentos locais, tácitos e implícitos, que foram construídos e adquiridos com o passar dos anos em determinada região e comunidade, consistindo em verdadeiros bens e ativos intangíveis e passíveis de exploração via ecoturismo.

Por fim, temos uma entrevista em Língua Portuguesa, Espanhola e Inglesa, intitulada “Governança por múltiplos atores sociais e engajamento da comunidade no verde urbano”, feita com o líder da Divisão Florestal da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO-ONU), Simone Borelli. Esta entrevista foi concedida após o término do “Congresso Brasileiro e Ibero-Americano de Arborização Urbana. Arborização Urbana na Década da Restauração dos Ecossistemas”, em setembro-outubro de 2021.

O alinhamento da diversidade temática das abordagens nos artigos publicados neste v. 25, n. 2, abr./jun. 2024, tem uma relação direta com o Desenvolvimento Local e suas interfaces interdisciplinares, assim como com as linhas de pesquisa do nosso Programa de Mestrado e Doutorado.

O nosso agradecimento especial para a nossa equipe editorial, que não tem medido esforços para a publicação dos números da Interações.

O nosso agradecimento também especial aos nossos avaliadores do Comitê Editorial e aos nossos avaliadores ad hoc pelo pronto atendimento e pela qualidade de suas avaliações.

REFERÊNCIAS

  • ALBAGLI, S. Territórios e territorialidade. In: LAGES, V.; BRAGA, C.; MORELLI, G. Territórios em movimento: cultura e identidade como estratégia de inserção competitiva. Brasília: Relume, 2004. P. 25–32.
  • HAESBAERT, R. Identidades territoriais. In: ROSENDAHL, Z.; CORRÊA, R. L. (Org.). Religião, identidade e território Rio de Janeiro: EDUERG, 2001.
  • HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
  • HERMET, G.; BADIE, B.; BIRNBAUM, P.; BRAUD, P. Dicionário de Ciência Política e das Instituições Políticas Lisboa: Escolar Editora, 2014.
  • LE GALÈS, P. Le retour des villes européennes: sociétés urbaines, mondialisation, gouvenement et governance. Paris: Presses de Sciences-Po, 2003.
  • RAFFESTIN, C. Por uma Geografia do poder São Paulo: Ática, 1993.
  • SANTOS, M. Por uma geografia nova 4. ed. São Paulo: HUCITEC, 1996. (Originalmente publicada em 1978).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024
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