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Do fato à narrativa: a produção da notícia e os efeitos sobre o sentido de realidade

Del hecho a la narrativa: la producción de la noticia y los efectos sobre el sentido de la realidad

Resumo

Neste artigo, discuto a relação entre jornalismo, acontecimento e realidade, analisando as operações de produção das notícias que o portal do diário argentino La Nación fez do Caso da Cocaína de Puerta 8, em 2 de fevereiro de 2022, em Buenos Aires. Busco responder como o jornalismo opera a produção das notícias sobre o acontecimento e que efeitos de sentido produz sobre o sentido de realidade. Assumindo que a realidade é uma construção social (Berger; Luckmann, 1985) e que o acontecimento é simultaneamente fato e narrativa (Quéré, 2006; 2011), adoto quatro categorias analíticas: sujeitos e objetos – implicados no fato em seu caráter indicial; e conceito e estratégia – que concernem à narrativa como produção de sentido. Resulta que é na articulação destas categorias em operações de reconhecimento e produção que o jornalismo participa de modo peculiar na reiteração e estabilização de um sentido comum sobre a realidade.

Palavras-chave
Jornalismo; Acontecimento; La Nación; Cocaína; Produção-reconhecimento

Resumen

En este artículo discuto la relación entre periodismo, acontecimiento y realidad analizando las operaciones de producción de las noticias que el portal del diario argentino La Nación hizo del Caso de la Cocaína de Puerta 8, el 2 de febrero de 2022, en Buenos Aires. Busco responder cómo el periodismo opera la producción de las noticias sobre el acontecimiento y qué efectos de sentido produce sobre el sentido de realidad. Asumiendo que la realidad es una construcción social (Berger; Luckmann, 1985) y que el acontecimiento es simultáneamente hecho y narrativa (Quéré, 2006; 2011), adopto cuatro categorías analíticas: sujetos y objetos –implicados en el hecho en su carácter indicial; y concepto y estrategia –que se refieren a la narrativa como producción de sentido. Resulta que es en la articulación de estas categorías en operaciones de reconocimiento y producción que el periodismo participa de modo peculiar en la reiteración y estabilización de un sentido común sobre la realidad.

Palabras clave
Periodismo; La Nación; Acontecimiento; Cocaína; Producción-reconocimiento

Abstract

In this article I discuss the relationship between journalism, occurrence, and reality from the analysis of the news production operations that the portal of the Argentine daily La Nación made of the Cocaine Case of Puerta 8, on February 2, 2022, in Buenos Aires. I seek to answer how journalism operates the production of news about the event and what effects of meaning it produces on the sense of reality. Assuming that reality is a social construction (Berger; Luckmann, 1985) and that the event is simultaneously fact and narrative (Quéré, 2006; 2011), I adopt four analytical categories: subjects and objects -- implicated in the fact in its indicial character; and concept and strategy -- which concern the narrative as a production of meaning. It is in the articulation of these categories in recognition and production operations that journalism participates in a peculiar way in the reiteration and stabilization of a common sense about reality.

Keywords
Journalism; La Nación; Event; Cocaine; Production-recognition

Introdução

Em um texto de 2010, Meditsch aponta o equívoco da consagrada noção assumida pelos estudos de comunicação de que o jornalismo constrói a realidade. Ele afirma que “a relação entre jornalismo e acontecimento se dá dentro de um processo maior de construção social da realidade e é condicionada por este processo maior que é preciso compreender previamente” (Meditsch, 2010MEDITSCH, E. Jornalismo e construção social do acontecimento. In: Benetti, M.; Fonseca, V. (orgs.). Jornalismo e acontecimento: mapeamentos críticos. Florianópolis: Insular/Capes, 2010, p. 19-42., p. 20). Em outras palavras, a realidade é construída discursivamente em distintos lugares e o jornalismo participa, com outros atores, da sua produção simbólica e da socialização do conhecimento sobre o que acontece. Nesta perspectiva, jornalismo, acontecimento e realidade estão enlaçados na produção da notícia, mas é o acontecimento que promove este enlace.

Acontecimento é algo que irrompe no cotidiano e afeta alguém, produzindo uma diferença. É um fato passível de ser compreendido num quadro de referências, e, simultaneamente, uma narrativa em busca de sentido (Quéré, 2006QUÉRÉ, L. Entre fait et sens, la dualité de l’événement. Réseaux, vol. 139, n. 5, 2006, p. 183-218. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-reseaux1-2006-5-page-183.htm?contenu=article>. Acesso em: 23 jan. 2023.
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). Esta dupla vida do acontecimento é o que conecta a realidade com o jornalismo, ou seja, faz da produção da notícia o resultado de uma leitura da realidade que articula complementarmente fato e sentido. Esta prática consiste na seleção de acontecimentos a partir do mais singular (Genro Filho, 1987GENRO FILHO, A. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre: Tchê, 1987.) que se apresenta como uma diferença na complexa realidade do mundo e sobre a qual o jornalismo atua discursivamente em direção à redução das incertezas, produzindo como seu efeito o sentido de que o que aí se diz é a própria realidade apreendida e reproduzida.

É a partir desta hipótese que busco examinar, neste artigo, a cobertura que o portal do diário La Nación (Argentina) faz do Caso da Cocaína de Puerta 8, que ocorreu em Buenos Aires, em 2 de fevereiro de 2022, e que trata da morte de 24 pessoas e mais de 80 hospitalizações por consumo de cocaína. A análise recobre um conjunto de 14 notícias publicadas por La Nación naquele dia, buscando responder às seguintes questões: como o jornalismo opera a produção discursiva das notícias sobre o acontecimento e que efeitos de sentido produz sobre o sentido de realidade?

Adoto quatro categorias analíticas1 1 Estas categorias são adaptadas da proposta de Foucault (2008) em Arqueologia do Saber. a partir das quais busco demonstrar as operações de reconhecimento e produção realizadas pelo jornalismo em torno do acontecimento em sua dupla vida:

  1. objeto (do que se fala);

  2. sujeito (quem, de quem e para quem se fala);

  3. conceito (o que se fala);

  4. estratégia (como se fala e por que meio).

As duas primeiras se relacionam ao fato enquanto uma ação que acontece na realidade da vida ordinária e tem caráter indicial. As duas últimas apontam para as operações que visam dar sentido ao acontecimento noticiado. Assinalo que estas categorias estão implicadas umas nas outras enquanto operações que dão forma para a narrativa jornalística do Caso e que a distinção que aqui faço visa evidenciar esta articulação para reconhecer as lógicas que condicionam a atividade jornalística de produção das notícias.

Sustento que as notícias se organizam internamente em um nível referencial a partir do caráter indicial dos acontecimentos (os fatos), ou seja, tomando as ações e seus protagonistas (sujeitos e objetos) em sua singularidade e os transformando em informação sobre a realidade (o que aconteceu a quem, quando e onde); e em um nível de sentido, em que se articulam os conceitos e as estratégias para a interpretação dos fatos segundo as condições de produção do periódico. É na articulação destes dois níveis que o jornalismo participa como uma instância peculiar na reiteração da realidade, realizando operações de reconhecimento e de produção. Assim, embora as notícias não alcancem a totalidade da realidade de um acontecimento, o efeito de sentido que delas deriva é de que tudo o que se pode saber a seu respeito está nelas contido.

Realidade e acontecimento

Berger e Luckmann (1985)BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 1985. consideram que a realidade é o resultado de uma construção social que tem início na primeira infância, quando a criança internaliza o mundo a partir da aquisição da língua materna. Para eles, esta socialização primária é seguida de outras formas de socialização secundárias que oferecem outros parâmetros de realidade. Estes processos de socialização podem ser definidos em termos de uma formação de quadros de referência com os quais apreendemos o mundo e lhe damos sentido, ou, como afirmam os autores, como realidade construída na interação com os demais. Na sociologia de Bourdieu, este enquadramento se constitui como um habitus, esquemas de estruturas estruturadas e estruturantes que condicionam as ações e os modos de distinção.

Diante disso, Meditsch (2010, p. 26)MEDITSCH, E. Jornalismo e construção social do acontecimento. In: Benetti, M.; Fonseca, V. (orgs.). Jornalismo e acontecimento: mapeamentos críticos. Florianópolis: Insular/Capes, 2010, p. 19-42. assinala que não se pode atribuir ao jornalismo a construção da realidade, mas, sim, a sua conservação, como uma forma de socialização terciária:

o jornalismo só poderia ser visto como uma forma de socialização ainda mais tênue em termos de construção da realidade, talvez denominada adequadamente de “terciária” se confrontada com os níveis anteriores. Teria o papel de ‘conservação’ e de ‘atualização’ das realidades internalizadas nas socializações primária e secundária.

Este papel do jornalismo de atualização e conservação de realidades internalizadas não se desenvolve a partir da simples reiteração da regularidade ordinária da vida, mas a partir dos acontecimentos que rompem essa rotina, ou seja, a partir do acontecimento como uma diferença que provoca diferenças. Acontecimento é um fenômeno que, em maior ou menor grau, abala o nosso construto da realidade. Ele se constitui como uma experiência que instala uma ruptura na vida ordinária, que nos afeta, seja como provocação, aflição, ou sofrimento, seja como satisfação, alegria ou encantamento (Quéré, 2006QUÉRÉ, L. Entre fait et sens, la dualité de l’événement. Réseaux, vol. 139, n. 5, 2006, p. 183-218. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-reseaux1-2006-5-page-183.htm?contenu=article>. Acesso em: 23 jan. 2023.
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). Ele pode ser inesperado ou planejado, mas sempre tem um caráter inaugural, “o que significa que, quando ocorre, não é apenas o culminar de um processo, mas também marca o fim de uma era e o início de outra” (Quéré, 2006QUÉRÉ, L. Entre fait et sens, la dualité de l’événement. Réseaux, vol. 139, n. 5, 2006, p. 183-218. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-reseaux1-2006-5-page-183.htm?contenu=article>. Acesso em: 23 jan. 2023.
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, p. 189, tradução minha). Como fim de um processo, ele nos conduz ao entendimento ao percebê-lo como resultado de uma sequência que culmina o que o precedeu. Como começo, ele se inscreve na ordem do sentido, implicando-nos numa ação que responda ao que nos aconteceu.

O acontecimento, então, sempre é uma descontinuidade que se relaciona a um passado e a um devir, a um antes e a um depois. Contudo, esse passado se manifesta unicamente em razão do próprio acontecimento, pois, “deve ter acontecido para ter um passado. Esse passado é completamente relativo ao acontecimento e à maneira como ele é percebido, identificado e descrito” (Quéré, 2006QUÉRÉ, L. Entre fait et sens, la dualité de l’événement. Réseaux, vol. 139, n. 5, 2006, p. 183-218. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-reseaux1-2006-5-page-183.htm?contenu=article>. Acesso em: 23 jan. 2023.
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, p. 191, tradução minha). O mesmo vale para o futuro. Mas tanto o passado como o futuro são relativos ao acontecimento de duas maneiras distintas, segundo Quéré (2006)QUÉRÉ, L. Entre fait et sens, la dualité de l’événement. Réseaux, vol. 139, n. 5, 2006, p. 183-218. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-reseaux1-2006-5-page-183.htm?contenu=article>. Acesso em: 23 jan. 2023.
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. Numa perspectiva, o acontecimento se explica como resultado de uma sequência, de um processo que o constitui e que, simultaneamente, já inaugura um novo começo. Em outra, o acontecimento explica o passado, ou seja, aquilo que até então se constituía como uma realidade ordinária, agora é iluminada pelo acontecimento. E em relação ao futuro, ele configura um conjunto de respostas que performam as ações que devem ser realizadas a partir do que aconteceu. Quéré (2006, p. 192)QUÉRÉ, L. Entre fait et sens, la dualité de l’événement. Réseaux, vol. 139, n. 5, 2006, p. 183-218. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-reseaux1-2006-5-page-183.htm?contenu=article>. Acesso em: 23 jan. 2023.
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resume da seguinte maneira:

O acontecimento não é apenas um alvo a ser compreendido, por meio da contextualização e reconstrução da sequência causal que o conduziu; é também uma fonte de compreensão. A compreensão então se dá de acordo com o acontecimento. Em um caso, a busca pela continuidade doma a novidade e a descontinuidade; no outro, explora-se o poder hermenêutico da descontinuidade

(tradução minha).

É com base nestes dois possíveis status do acontecimento (alvo e fonte) que Quéré (2006QUÉRÉ, L. Entre fait et sens, la dualité de l’événement. Réseaux, vol. 139, n. 5, 2006, p. 183-218. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-reseaux1-2006-5-page-183.htm?contenu=article>. Acesso em: 23 jan. 2023.
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; 2011)QUÉRÉ, L. A individualização dos acontecimentos no quadro da experiência pública. Caleidoscópio Revista de Comunicação e Cultura, n. 10, 2011, p. 13-37. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10437/6050 >. Acesso em: 23 jan. 2023.
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postula a dupla vida do acontecimento a partir de duas modalidades de experiência. De um lado, ele é apreendido como um fato ocorrido num contexto e para o qual lhe imputamos um passado e o inserimos em sequências causais. Ele produz um efeito sobre nossa vida, nós somos afetados por ele, para o bem ou para o mal. Esta experiência é, assim, inscrita num quadro de referências a partir do qual o acontecimento é apreendido. Na outra modalidade de experiência, segundo o autor, o acontecimento cria seu próprio contexto de significado:

Em vez de ser o contexto em que o acontecimento ocorreu que o ilumina, agora é o acontecimento que ilumina seu contexto e seu passado, modifica a inteligência de acontecimentos ou experiências anteriores, revela uma situação com sua estrutura e seus horizontes, descobre “uma paisagem inesperada de ações e paixões” (Arendt), revela possibilidades e eventualidades insuspeitadas, e projeta sua luz sobre o que pode tê-la precedido como sobre o que pode vir a seguir. Em suma, dá um novo sentido a uma história e a um ambiente, sentido do qual é fonte, por sua descontinuidade

(Quéré, 2006QUÉRÉ, L. Entre fait et sens, la dualité de l’événement. Réseaux, vol. 139, n. 5, 2006, p. 183-218. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-reseaux1-2006-5-page-183.htm?contenu=article>. Acesso em: 23 jan. 2023.
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, p. 198, tradução minha).

Em decorrência disso, a primeira vida do acontecimento é o fato que nos acomete e que apreendemos a partir das nossas referências para enquadrá-lo num contexto como uma diferença que produz diferença. A segunda vida se constitui como narrativa. Quer dizer, falamos sobre o que aconteceu para performar o seu sentido, para reduzir as incertezas que o fato gera. Como resume França (2012, p. 14)FRANÇA, V. O acontecimento e a mídia. Galaxia (São Paulo, Online), n. 24, p. 10-21, dez. 2012. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/12939/9406>. Acesso em: 23 jan. 2023.
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, a primeira vida é da ordem do existencial, porque afeta nossas sensações, nos toca, já “a segunda vida é o acontecimento tornado narrativa, tornado um objeto simbólico”. É neste contexto que o jornalismo se inscreve como uma instância que apreende os fatos que irrompem na realidade cotidiana e como produtor de uma das narrativas que conferem sentido aos acontecimentos.

Acontecimento e jornalismo

França (2012)FRANÇA, V. O acontecimento e a mídia. Galaxia (São Paulo, Online), n. 24, p. 10-21, dez. 2012. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/12939/9406>. Acesso em: 23 jan. 2023.
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assinala que os fatos não têm lugar determinado para acontecerem, assim como a produção da narrativa que realiza a segunda vida do acontecimento ocorre em qualquer esfera da vida. Contudo, considerando que “a mídia é a instituição central pela qual a sociedade fala de si mesma, a si mesma, forçoso é constatar que é principalmente neste domínio que os acontecimentos são revividos e ganham sua existência simbólica” (França, 2012FRANÇA, V. O acontecimento e a mídia. Galaxia (São Paulo, Online), n. 24, p. 10-21, dez. 2012. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/12939/9406>. Acesso em: 23 jan. 2023.
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, p. 16). De fato, a mídia é um lugar de referência para a produção de sentidos, mas a generalização que o termo mídia envolve escamoteia as especificidades de cada instituição midiática na produção simbólica. Aqui interessa demarcar o que caracteriza o jornalismo.

Para Genro Filho (1987), a especificidade do jornalismo está em capturar um acontecimento pelo ângulo da singularidade, cujo conteúdo emula a particularidade e a universalidade que nele se propõem. O singular, para o autor, “é a forma do jornalismo, a estrutura interna através da qual se cristaliza a significação trazida pelo particular e o universal que foram superados. O particular e o universal são negados em sua preponderância ou autonomia e mantidos como o horizonte do conteúdo” (Genro Filho, 1987GENRO FILHO, A. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre: Tchê, 1987., p. 164).

Esperado ou não, o acontecimento é sempre da ordem do extra-ordinário. Ele é um fato que identificamos como tal, pois que abala a realidade particular que nos constitui e que constituímos na socialização, e é uma narrativa, que o inscreve num quadro de sentido. Quando o jornalismo se encontra diante de um acontecimento, ele o apreende em sua singularidade, realizando duas operações simultâneas. A primeira é a inserção do acontecimento num quadro de referências que o identifica como singular (explicita o que aconteceu, a quem, quando e onde). Portanto, trata de apreendê-lo como indício (secundidade em Peirce), atendendo à necessidade informativa da sociedade. A segunda é a elaboração da narrativa, inscrevendo-o na ordem do sentido (atribui-lhe um conceito e elabora as estratégias para sua circulação). O jornalismo, assim, apreende a singularidade do acontecimento, corroborando o quadro de referência com o qual os fatos são apreendidos e inserindo-o na circulação midiatizada como sentido que se oferece à interpretação pelas audiências.

Esta perspectiva recoloca a questão da relação do jornalismo com a realidade. Não se trata, como bem alerta Meditsch (2010)MEDITSCH, E. Jornalismo e construção social do acontecimento. In: Benetti, M.; Fonseca, V. (orgs.). Jornalismo e acontecimento: mapeamentos críticos. Florianópolis: Insular/Capes, 2010, p. 19-42., de uma construção da realidade, propriamente, mas do trabalho de reiteração e estabilização de uma realidade factual num quadro de referências e de sentidos postos em circulação. Como sustenta Verón (1993VERÓN, E. La semioses social: fragmentos de una teoria de la discursividad. Barcelona: Editoral Gedisa, 1993.; 2004)VERÓN, E. Fragmentos de un tejido. Barcelona: Editoral Gedisa, 2004., a construção social do real se estabelece discursivamente a partir de um emaranhado de discursos que são apropriados infinitamente por meio de uma produção histórica e colaborativa de sentido. Trata-se de um trabalho coletivo de interpretação que se constitui na circulação social de discursos a partir de operações de produção e reconhecimento que engendram negociações de sentidos. Delas o jornalismo participa tomando os acontecimentos em sua singularidade, e as audiências relacionam esses acontecimentos aos seus processos históricos de socialização. Estas operações se manifestam por meio de distintas gramáticas que são contingenciadas, cada qual, por dadas condições que, de um lado são de produção e, de outro, de reconhecimento. Neste contexto, o real se impõe condicionado pelos esquemas que nos constituem e pela interação negociada de sentidos que fazemos com os demais a partir de nossas percepções.

Jornalismo e realidade: o Caso da Cocaína de Puerta 8

Nas primeiras horas da manhã do dia 2 de fevereiro de 2022, hospitais da região noroeste do conurbano de Buenos Aires, nos municípios de Hurlingham e Tres de Febrero, começaram a receber os primeiros pacientes que haviam consumido cocaína supostamente alterada. Sem demora, os agentes da saúde informaram às autoridades policiais, que iniciaram as diligências para apuração do ocorrido. Já no final da manhã, o acontecimento ingressava no noticiário da televisão argentina, começando pela TV Canal 5 Noticias (C5N), às 11h28min, passando por La Nación Más (LN+), às 12h05min, e por Todo Noticias (TN), às 13h08min, e seguindo pelos demais meios de imprensa nacionais e internacionais ao longo do dia e nos dias seguintes.

Apesar de pertencer ao mesmo grupo do diário La Nación e da TV LN+, o portal de notícias La Nación fez a sua primeira publicação sobre O Caso da Cocaína de Puerta 8 apenas às 14h35min, duas horas e meia mais tarde do que noticiado na emissora do próprio grupo. Nesse momento, o acontecimento já estava em pleno desenrolar, e as informações sobre as mortes e hospitalizações, com atualização constante, já circulavam em quase toda imprensa argentina e em redes sociais.

Neste contexto, aquilo que era singular no acontecimento já não mais se constituía como novidade, de modo que, para inserir-se no fluxo informativo que se expandia, o portal La Nación dá a notícia apreendendo uma singularidade derivada do acontecimento principal, a saber, a advertência que a justiça faz sobre a alta toxidade da droga, conforme lemos no título: “Cocaína adulterada: a Justiça alertou sobre a circulação de uma substância de ‘altíssima toxicidade’ diante da morte de oito pessoas” (COCAÍNA adulterada: la Justicia…, 2 fev. 2022COCAÍNA adulterada: desde Rusia Kicillof encabezo la reunión del comité emergencia. Política. La Nación. Buenos Aires, 2 fev. 2022. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/politica/cocaina-adulterada-desde-rusia-kicillof-encabezo-la-reunion-del-comite-emergencia-nid02022022/>. Acesso em: 23 jan. 2023.
https://www.lanacion.com.ar/politica/coc...
, tradução minha). Aqui, o acontecimento é tomado como razão para uma ação, e o fato torna-se causa e contexto desta ação. No lide da notícia isto fica evidente:

Diante da morte de oito pessoas no município de Buenos Aires depois de ter consumido cocaína, que se investiga se estava adulterada ou envenenada [contexto], a Procuradoria-Geral de San Martín emitiu um comunicado para advertir a população [Ação] sobre a circulação desta substância que qualificaram como de “altíssima toxicidade”

(COCAÍNA adulterada: la Justicia…, 2 fev. 2022COCAÍNA adulterada: emitieron una alerta epidemiológica para siete partidos del conurbano. Sociedad. La Nación. Buenos Aires, 2 fev. 2022. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/sociedad/cocaina-adulterada-emitieron-una-alerta-epidemiologica-para-siete-partidos-del-conurbano-nid02022022/>. Acesso em: 23 jan.. 2023.
https://www.lanacion.com.ar/sociedad/coc...
, tradução e grifo meus).

Na sequência, o portal dá detalhes das medidas preventivas que se busca com o comunicado da segurança, para, em seguida, circunscrever o acontecimento no quadro de referência que, ao longo do dia, foi sendo mobilizado por distintas fontes. Alerta, inicialmente, que não há ainda condições de se determinar causas e consequências porque “a investigação desta causa é preliminar” (COCAÍNA adulterada: la Justicia…, 2 fev. 2022COCAÍNA adulterada: desde Rusia Kicillof encabezo la reunión del comité emergencia. Política. La Nación. Buenos Aires, 2 fev. 2022. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/politica/cocaina-adulterada-desde-rusia-kicillof-encabezo-la-reunion-del-comite-emergencia-nid02022022/>. Acesso em: 23 jan. 2023.
https://www.lanacion.com.ar/politica/coc...
, tradução minha). Contudo, a partir da leitura que o portal faz do que dizem as fontes – médicos que conversaram com pacientes, um detetive judicial vinculado à causa e o próprio comunicado – elabora a notícia que informa sobre o que se pode saber até o momento:

Tudo começou esta manhã [quando], com as primeiras quatro mortes [o que], que ocorreram no Hospital Municipal San Bernardino, em Hurlingham [onde] (. ...) os médicos consultaram os pacientes [quem] (. ...) e eles contaram (. ...) que haviam tomado cocaína [o que].

LA NACION pode saber que outras quatro pessoas estão internadas em terapia intensiva na Unidade de Pronta Atenção (UPA) 9 de Hurlingham, com quadros que parecem responder à mesma causa. Além disso, haveria outros hospitalizados em Tres de Febrero e San Martín.

“Nunca vimos nada parecido”, disse a LA NACION um detetive judicial vinculado à causa”

(COCAÍNA adulterada: la Justicia…, 2 fev. 2022COCAÍNA adulterada: fentanilo la droga del escándalo que causa estragos en Estados Unidos. Seguridad. La Nación. Buenos Aires, 2 fev. 2022. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/seguridad/cocaina-adulterada-fentanilo-la-droga-del-escandalo-que-causa-estragos-en-estados-unidos-nid02022022/>. Acesso em: 23 jan. 2023.
https://www.lanacion.com.ar/seguridad/co...
, tradução minha).

Cada uma das fontes da notícia relata o fato a partir de seus próprios quadros de referência, buscando explicar o que aconteceu e a quem, mas também revelando o modo como o acontecimento as afeta, seja para mobilizá-las a uma ação – consultar, falar – seja para pô-las perplexas – “nunca vimos algo parecido”. O jornalismo de La Nación faz a leitura dessa produção discursiva das fontes e a organiza para enquadrar as informações na lógica do inesperado e ainda aparente sem sentido do acontecimento. E ao finalizar, o portal inscreve a sua produção significativa no âmbito da indeterminação que caracteriza o acontecimento em processo de seu acontecer. Diz que, apesar do trabalho coordenado das polícias, ainda é desconhecida a causa da alta toxidade da droga consumida: “(...) poderia ter “cortado” a cocaína com veneno ou com alguma outra substância tóxica. (...) ainda não foi possível estabelecer o contexto em que esta adulteração ocorreu” (COCAÍNA adulterada: la Justicia…, 2 fev. 2022COCAÍNA adulterada: la Justicia advirtió por la circulación de una sustancia de altísima toxicidad. Seguridad. La Nación. Buenos Aires, 2 fev. 2022. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/seguridad/cocaina-adulterada-la-justicia-advirtio-por-la-circulacion-de-una-sustancia-de-altisima-toxicidad-nid02022022/>. Acesso em: 23 jan. 2023.
https://www.lanacion.com.ar/seguridad/co...
, tradução minha).

Considerando as categorias que adotei para distinguir na notícia as operações que revelam as duas vidas do acontecimento (a apreensão do fato em sua indicialidade – sujeito/objeto numa ação – e a produção da narrativa que lhe dá sentido – conceito/estratégia), esta notícia se constitui, de um lado, como texto que recobre a primeira vida do acontecimento. Mas, de outro, ao submeter a matéria jornalística à cartola “segurança”, ou seja, ao tratar o fato como questão policial, o portal já encaminha, estrategicamente, o acontecimento para sua segunda vida, quando ele se inscreve como narrativa que lhe dá sentido. Ainda lhe faltam elementos para isso, mas o conceito que se imiscui nos termos adotados por La Nación apontam como efeito de sentido que a realidade das drogas é assunto de polícia, mesmo que o singular trazido na notícia aponte para um informe de saúde pública.

Na tabela 12 2 Nota: A tabela mostra, em ordem cronológica, as editorias e os títulos correspondentes às notícias sobre o Caso da Cocaína de Puerta 8 publicadas pelo portal de notícias La Nación, em 2 de fevereiro de 2022. reproduzo a sequência de notícias publicadas no portal em ordem cronológica, indicando a hora da sua publicação, a editoria e seus títulos. Não trarei aqui a análise detalhada de cada uma das notícias do corpus, mas assinalo que a lógica produtiva que observei na notícia acima se revela operativa nas demais, assim como o efeito de sentido mencionado parece predominar, uma vez que das 14 notícias analisadas, nove estão identificadas como “Segurança”, três como “Política” e duas como “Sociedade”.

Tabela 1
O Caso da Cocaína de Puerta 8 no Portal La Nación, em 2 de fevereiro de 2022

À medida que o acontecimento se desenvolve e novas ações vão se desenhando ao longo do dia, o portal vai agregando informações, buscando entender o acontecimento a partir de um quadro de referências que têm no relato das fontes o ponto de inflexão desta leitura da realidade. Assim é que, na matéria seguinte, publicada pouco mais de uma hora depois da primeira, aparecem como fontes familiares das vítimas, que têm a sua realidade particular afetada pelo acontecimento e singularizada na notícia: “a mãe de um dos internados (…) disse que encontrou a seu filho ‘deitado na cozinha’” (ES..., 2 fev. 2022ES veneno de rata: el testimonio de los familiares de una de las victimas envenenadas con cocaína. Seguridad. La Nación. Buenos Aires, 2 fev. 2022. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/seguridad/es-veneno-de-rata-el-testimonio-de-los-familiares-de-una-de-las-victimas-envenenadas-con-cocaina-nid02022022/>. Acesso em: 23 jan. 2023.
https://www.lanacion.com.ar/seguridad/es...
, tradução minha) Esta descrição está inscrita no contexto de uma tensão entre moradores e policiais: “Nas imediações do Hospital Municipal San Bernardino de Hurlingham, onde há cercas e policiais para conter a tensão dos vizinhos (...)” (ES..., 2 fev. 2022ESTIMAN que pueden aparecer mas fallecidos en las próximas 48 horas. Seguridad. La Nación. Buenos Aires, 2 fev. 2022. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/seguridad/estiman-que-pueden-aparecer-mas-fallecidos-en-las-proximas-48-horas-nid02022022/> Acesso em: 23 jan. 2023
https://www.lanacion.com.ar/seguridad/es...
, tradução e grifo meus).

Nesta notícia também há informações sobre a prisão de pessoas, a causa da intoxicação e o que ainda se espera e, como na anterior, também está sob a editoria “segurança”, reforçando o efeito de “caso de polícia” que impulsiona o acontecimento para este sentido:

Dez pessoas foram detidas esta tarde em buscas realizadas no assentamento de Puerta 8.

Maria, cunhada de Leonardo Guevara assegurou que ‘a parte oficial confirma que é veneno de rato’.

Ele garantiu, também, que a investigação está ‘em andamento’. (. ...) sugeriu que poderia haver mais vítimas que ainda não foram reconhecidas

(ES..., 2 fev. 2022ES veneno de rata: el testimonio de los familiares de una de las victimas envenenadas con cocaína. Seguridad. La Nación. Buenos Aires, 2 fev. 2022. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/seguridad/es-veneno-de-rata-el-testimonio-de-los-familiares-de-una-de-las-victimas-envenenadas-con-cocaina-nid02022022/>. Acesso em: 23 jan. 2023.
https://www.lanacion.com.ar/seguridad/es...
, tradução minha).

A maior parte das notícias é publicada a partir das 18h20min, conforme a tabela 1. Em todas elas há a referência ao acontecimento inaugural, seja como atualização, contexto ou pretexto para outras produções. A regularidade que caracteriza as operações de leitura do acontecimento, seu enquadramento como fato singular numa realidade particular e seu encaminhamento como narrativa, porém, não escondem alguns deslocamentos que observei neste processo de sua inserção na circulação midiatizada.

Veja-se as duas notícias que estão sob a editoria de “sociedade”, publicadas às 18h30min e às 19h11min. Na primeira destaca-se o sentimento de injustiça que acometeu os moradores por causa da ação policial (noticiada às 15h39min): “‘Não é justo que levem presas pessoas inocentes e trabalhadoras’” (NO…, 2 fev. 2022NO es justo que se lleven presa a gente inocente: el reclamo en Puerta 8 la villa donde se vendió la droga. Sociedad. La Nación. Buenos Aires, 2 fev. 2022. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/sociedad/no-es-justo-que-se-lleven-presa-a-gente-inocente-el-reclamo-en-puerta-8-la-villa-donde-se-vendio-la-nid02022022/>. Acesso em: 22 jan. 2023.
https://www.lanacion.com.ar/sociedad/no-...
, tradução minha). A partir daí, o portal passa a traçar o perfil do bairro e de sua gente: “O bairro, que ocupa apenas um quarteirão, está repleto de casas baixas (....). ‘Aqui somos todos humildes, gente trabalhadora. Somos muito unidos (. ...) A polícia sabe quem são os que vendem e não são daqui...’” (NO…, 2 fev. 2022NO es justo que se lleven presa a gente inocente: el reclamo en Puerta 8 la villa donde se vendió la droga. Sociedad. La Nación. Buenos Aires, 2 fev. 2022. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/sociedad/no-es-justo-que-se-lleven-presa-a-gente-inocente-el-reclamo-en-puerta-8-la-villa-donde-se-vendio-la-nid02022022/>. Acesso em: 22 jan. 2023.
https://www.lanacion.com.ar/sociedad/no-...
, tradução minha). Ou seja, o fio que conecta a notícia é a tensão que se estabeleceu entre a polícia e os moradores em razão da prisão de pessoas da comunidade. Ao relevar a vida ordinária do bairro, o portal não enquadra o acontecimento como caso de segurança pública, mas como afetação sobre uma singular comunidade de pessoas honestas, trabalhadoras e solidárias, estabelecendo, assim, uma diferença entre o problema das drogas como caso policial e as pessoas “de bem” que sofrem as consequências deste “mal”.

A outra notícia trata de alerta epidemiológico do Ministério da Saúde da Província de Buenos Aires, para que estabelecimentos de saúde atentem sobre certos sintomas que podem estar relacionados ao consumo da cocaína adulterada: “Cocaína adulterada: emitiram um alerta epidemiológico para sete municípios do conurbano” (COCAÍNA adulterada: emitieron…, 2 fev. 2022COCAÍNA adulterada: emitieron una alerta epidemiológica para siete partidos del conurbano. Sociedad. La Nación. Buenos Aires, 2 fev. 2022. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/sociedad/cocaina-adulterada-emitieron-una-alerta-epidemiologica-para-siete-partidos-del-conurbano-nid02022022/>. Acesso em: 23 jan.. 2023.
https://www.lanacion.com.ar/sociedad/coc...
, tradução minha). Mesmo que a editoria seja a mesma, o efeito de sentido de “sociedade” aqui é outro, pois agora se refere a um conceito mais geográfico do que comunitário, mais genérico do que particular, mais político do que afetivo. Neste sentido, esta notícia parece estar mais próxima das editorias de saúde ou de política, na medida em que se refere a ações de governo nesta área.

Para o portal, no entanto, nenhuma notícia se enquadra como saúde, e política tem um sentido bastante restrito, como demonstro nas três notícias relacionadas ao caso da Cocaína de Puerta 8, publicadas às 18h20min, às 21h55min e às 23h30min, sob a editoria de “política”. Na primeira, informa que o Ministério de Segurança do Governo Federal está à disposição da polícia bonaerense e comenta uma das hipóteses de investigação sobre o caso: “No governo afirmam que é precipitado falar de uma guerra entre narcotraficantes” (EN…, 2 fev. 2022EN el gobierno afirman que es apresurado hablar de una guerra entre narcos. Política. La Nación. Buenos Aires, 2 fev. 2022.Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/politica/en-el-gobierno-afirman-que-es-apresurado-hablar-de-una-guerra-entre-narcos-nid02022022/>. Acesso em: 23 jan. 2023.
https://www.lanacion.com.ar/politica/en-...
, tradução minha). A segunda traz o caso para o cerne mesmo das disputas de poder, valorizando as posições da oposição: “A ex-governadora e atual deputada María Eugenia Vidal, e a presidenta do PRO, Patricia Bullrich, criticaram as gestões de Aníbal Fernández e de Sergio Berni por sua política em torno do narcotráfico” (COTO…, 2 fev. 2022COTO de caza: la critica de Patricia Bullrich por el caso de cocaína adulterada y su duro pronostico. Política. La Nación. Buenos Aires, 2 fev. 2022. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/politica/coto-de-caza-la-critica-de-patricia-bullrich-por-el-caso-de-cocaina-adulterada-y-su-duro-pronostico-nid02022022/>. Acesso em: 23 jan. 2023.
https://www.lanacion.com.ar/politica/cot...
, tradução minha). E a terceira revela o que seria a principal preocupação da administração provincial de Axel Kicillof em relação ao caso: “O que temos que alcançar é que todo mundo esteja alertado de que circula cocaína envenenada para que não se consuma” (COCAÍNA adulterada: desde…, 2 fev. 2022COCAÍNA adulterada: desde Rusia Kicillof encabezo la reunión del comité emergencia. Política. La Nación. Buenos Aires, 2 fev. 2022. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/politica/cocaina-adulterada-desde-rusia-kicillof-encabezo-la-reunion-del-comite-emergencia-nid02022022/>. Acesso em: 23 jan. 2023.
https://www.lanacion.com.ar/politica/coc...
, tradução minha). E informa sobre as medidas governamentais e a situação do governador que se encontra em viagem à Rússia.

As três notícias estão referenciadas no acontecimento e é ele que mobiliza para a solidariedade, para a crítica ou para a ação. Nestas notícias, o portal desloca o acontecimento da editoria de “polícia” para a de “política”, ainda que as questões ali tratadas estejam relacionadas com a segurança pública. Parece-me que esta escolha editorial está relacionada às fontes ou aos protagonistas das ações noticiadas; os agentes políticos em atuação em suas respectivas instituições: Aníbal Fernandez e Axel Kicillof (governo) e Eugênia Vidal e Patrícia Bullrich (oposição). Na notícia sobre o alerta epidemiológico acima, o protagonista é uma instituição, e, por isso, ela não se enquadraria sob a editoria de “política”.

Considerações sobre a relação entre jornalismo, realidade e acontecimento

Na análise das notícias do portal La Nación sobre o Caso da Cocaína de Puerta 8, procurei demonstrar as operações que o jornalismo empreendeu em torno do acontecimento. De um lado observei as operações de reconhecimento, sustentadas numa leitura que distingue a singularidade de uma ocorrência que envolve sujeitos, objetos e ações; uma leitura que enquadra o fato num conjunto de referências que são a informação. Nesse sentido, as notícias contaram que, em um determinado tempo e em um lugar definido, pessoas morreram por intoxicação após consumir um certo tipo de droga.

Mas a notícia não traz apenas informações sobre o mundo. Ela também é a produção de uma narrativa que encaminha o acontecimento para um sentido. Este sentido é coerente com as condições de produção, ou seja, ele é condicionado por uma dada realidade que o portal La Nación constrói para si a partir de certos esquemas – um habitus – que o constitui e que o coloca em disputa com outras realidades. Assim é que, ao enquadrar o acontecimento na editoria de “segurança”, por exemplo, La Nación corrobora e reforça uma realidade internalizada de que o consumo de drogas é caso de polícia. O resultado da produção jornalística, no entanto, está sujeito a leituras distintas, de modo que as notícias que são postas em circulação se inserem num processo de disputa, em que o sentido do acontecimento e da realidade que ele expõe se consolida apenas no fluxo histórico e colaborativo de emaranhados de discursos.

Em síntese, o jornalismo descreve os fatos e lhes dá sentido. Condicionado por suas gramáticas de reconhecimento, ele os apreende em sua singularidade realizando uma leitura singular da produção discursiva dos protagonistas ou pacientes do acontecimento. E ao fazê-lo, o jornalismo já encaminha dialeticamente o acontecimento para um sentido, mobilizando suas gramáticas de produção, articulando uma lógica em que o acontecimento ora é fato, ora sentido, ora centro, ora contexto, ora pretexto... Neste processo, o jornalismo corrobora um sentido de realidade, atuando na sua estabilização (Meditsch, 2010MEDITSCH, E. Jornalismo e construção social do acontecimento. In: Benetti, M.; Fonseca, V. (orgs.). Jornalismo e acontecimento: mapeamentos críticos. Florianópolis: Insular/Capes, 2010, p. 19-42.). Produz, a partir de fragmentos de um acontecimento, o efeito de um real pleno, que recoloca o cotidiano ordinário da vida (Heller, 2002HELLER, A. Sociologia de la vida cotidiana. Barcelona: Península, 2002.) em seu curso até que outro acontecimento irrompa para continuar enlaçando o jornalismo e a realidade.

Para concluir, assinalo dois pontos que derivam deste estudo. O primeiro é o reconhecimento de que a notícia não pode prescindir de um conjunto de elementos indiciários que referenciam o acontecimento como “fato da vida real”. Isso se relaciona ao efeito de verdade e de objetividade no jornalismo. Ao mesmo tempo, e este é o segundo ponto, este efeito escamoteia as estratégias que o jornalismo coloca em operação para ofertar a narrativa que enquadra o acontecimento num feixe de sentidos coerente com uma realidade de senso comum internalizada na sociedade.

  • 1
    Estas categorias são adaptadas da proposta de Foucault (2008)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4070132/mod_resource/content/1/FOUCAULT.pdf>. Acesso em: 01 nov. 2023.
    https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
    em Arqueologia do Saber.
  • 2
    Nota: A tabela mostra, em ordem cronológica, as editorias e os títulos correspondentes às notícias sobre o Caso da Cocaína de Puerta 8 publicadas pelo portal de notícias La Nación, em 2 de fevereiro de 2022.

Referências

Editoras responsáveis:

Marialva Barbosa e Sonia Virgínia Moreira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Jan 2023
  • Aceito
    25 Out 2023
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