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A cartografia de um campo: singularidades e possibilidades nas relações entre religião e consumo nos trabalhos desenvolvidos na Comunicação 1 1 Este texto foi alterado, revisado e adaptado para a revista, tendo sido e apresentado no GT de Epistemologia da Comunicação do XXV Encontro Anual da Compós, na UFG, em junho de 2016.

Cartografía de un campo: singularidades y posibilidades en las relaciones entre lareligión y el consumo en los trabajos desarrollados en la Comunicación

Resumo

Este trabalho apresenta uma síntese cartográfica com considerações iniciais sobre quatro zonas (metáfora emprestada da cartografia da malha viária) da produção acadêmica que agrupam, no período dos últimos dez anos, artigos, dissertações e teses desenvolvidos dentro das temáticas religião e consumo na Comunicação. A proposta do texto é refletir sobre os vínculos epistemológicos e os níveis de articulação entre diferentes correntes teóricas, que por vezes se distanciam, por vezes se aproximam. Trata-se, de início, de um estudo exploratório cuja proposta central é resumir, em um mapa, as abordagens-chave dessas pesquisas em nossa área, apontando as particularidades desses estudos e o que distingue a Comunicação quando se trata de pesquisas que articulam essas temáticas.

Palavras-Chave
Pesquisas em Comunicação; Religião; Consumo; Cartografia; Produção acadêmica

Resumen

Este artículo presenta una síntesis cartográfica con la consideración inicial de cuatro zonas (metáfora tomada de la cartografía de la malla de tráfico) de la producción académica cuyo grupo, dentro de los últimos diez años, artículos, disertaciones y tesis dentro de los temas religiosos y el consumo en la Comunicación. El texto propuesto es reflexionar sobre los vínculos epistemológicos y niveles de articulación entre las diferentes corrientes teóricas que a veces se alejan y se acercan a los demás. Es, en primer lugar, un estudio exploratorio cuya principal propuesta se resume en un mapa, los enfoques clave, la investigación en nuestra área, señalando las particularidades de estos estudios y lo que distingue a la Comunicación cuando se trata de investigaciones que articular estas temas.

Palabras clave
Investigación en Comunicación; La religión; El consumo; Cartografía; Producción académica

Abstract

This work presents a cartographic summary regarding four zones (a metaphor borrowed from the cartography of road web) of the academic production which group, during the last ten years, articles, dissertations and theses developed under the thematic of religion and consumption on Communication Studies. This paper aims to debate about epistemological bonds and levels of articulation among different theoretical chains that, sometimes, get close and, sometimes, far. It is an exploratory study which proposes to sum up, through a map, the key-approaches found in the researches in Communication, indicating particularities regarding these studies and what distinguish Communication when deals with researches regarding theses thematic.

Keywords
Communication research; Religion; Consumption; Cartography; Academic production

Introdução

O aumento expressivo do interesse pelo campo religioso entre pesquisadores da área de Comunicação no Brasil fez da religião um tema cada vez mais recorrente nas discussões acadêmicas. Tal verificação resulta dos diálogos contínuos em congressos, assim como das pesquisas publicadas em formato de artigos, dissertações e teses, cada vez mais proeminentes em nossa área. A intersecção desses dois campos de estudos, mídia e religião, não é, porém, uma novidade. Diversos são os autores que têm se debruçado sobre as temáticas, explorando, por meio de pesquisas, os trabalhos desenvolvidos em Comunicação, como Martino (2012)MARTINO, Luis Mauro Sá. Mediações e midiatização da religião: um levantamento de hipóteses e problemáticas. In: MATTOS, Maria Ângela; JANOTTI JUNIOR, Jeder; JACKS, Nilda (Orgs). Mediação & Midiatizações. Salvador – Brasília: EDUFBA-COMPÓS, 2012. 239p..

O que temos verificado é que, para além das discussões sobre as mudanças promovidas por esses dois campos no funcionamento interno de suas práticas sociais e discursivas, esses trabalhos são atravessados por outras áreas de concentração e estudos fundamentais no desenvolvimento das pesquisas. Assumindo diferentes formatos e remetendo a objetos das mais distintas qualidades, o consumo parece envolver parte dos textos e apontar para uma conclusão cada vez mais evidente: a religião, assim como o consumo, são objetos quase inseparáveis na modernidade, especialmente quando estudamos o primeiro à luz dos processos midiáticos e mediatizados.

Considerando o interesse particular por consumo, mídia e religião nos trabalhos desenvolvidos no âmbito do Grupo de Pesquisa “Publicidade nas Novas Mídias e Narrativas de Consumo”2 2 Disponível em: dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/8590792395281136. Acesso em 10 jul. 2016. , desenvolvemos um projeto em conjunto com pesquisadores de graduação, mestrado e doutorado, com vistas a cartografar as pesquisas sobre religião e consumo em nossa área, cujo presente artigo é o resultado inicial.

Trata-se de um estudo exploratório cuja proposta central é resumir as abordagens chave dessas pesquisas em nossa área, apontando as particularidades dos estudos e o que distingue a Comunicação quando se trata de pesquisas que articulam tais temáticas.

Com essa ideia em mente e, a partir de uma pesquisa bibliográfica, utilizamos como recorte um corpus composto por artigos publicados em periódicos científicos qualificados pela Capes, em 2014, com extratos B1, A2 e A13 3 Textos considerados altamente qualificados. e dissertações e teses publicadas nas bases correntes dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação do país, todos dentro de um período de dez anos (2006-2015). De início, as perguntas que foram feitas ao corpus ampliado (formado por 105 – cento e cinco – trabalhos) foram: o que os pesquisadores da área pensam sobre consumo e religião? Quais são as suas bases epistemológicas e, por fim, o que dez anos de produção sobre o tema pode nos revelar de tendências para estudos no futuro?

Antes de perseguirmos as respostas, é importante situar o esforço arqueológico da pesquisa dentro de uma tradição brasileira de estudos sobre Comunicação e Religião. Nesse aspecto, como já mencionamos antes, é fundamental o trabalho de Martino (2012)MARTINO, Luis Mauro Sá. Mediações e midiatização da religião: um levantamento de hipóteses e problemáticas. In: MATTOS, Maria Ângela; JANOTTI JUNIOR, Jeder; JACKS, Nilda (Orgs). Mediação & Midiatizações. Salvador – Brasília: EDUFBA-COMPÓS, 2012. 239p. 4 4 Segundo o autor, observa-se, nesse momento, uma contribuição significativa da Comunicação com seus referenciais teóricos, mesmo que isso não tenha significado o deslocamento do viés sociológico que sempre marcou esse tipo de estudo. Interfaces com consumo, espetáculo ou entretenimento, com perspectivas teóricas da Comunicação, passam a se fazer presentes na tentativa de entender as relações entre mídia e religião. , que nos mostra que foi a partir dos anos 2000 que os estudos de mídia e religião começaram a crescer significativamente, fazendo uso tanto de aportes epistemológicos quanto de vinculação institucional à área da Comunicação.

Nessa perspectiva, o trabalho sobre mídia e consumo se legitima e aponta para uma eloquente relação entre o religioso, o material e o simbólico (MARTINO, 2012MARTINO, Luis Mauro Sá. Mediações e midiatização da religião: um levantamento de hipóteses e problemáticas. In: MATTOS, Maria Ângela; JANOTTI JUNIOR, Jeder; JACKS, Nilda (Orgs). Mediação & Midiatizações. Salvador – Brasília: EDUFBA-COMPÓS, 2012. 239p.). Essas três esferas possuem fronteiras fluidas, mas que podem ser claramente percebidas com a leitura mais criteriosa do corpus restrito. Nessa fase, excluímos trabalhos nos quais as temáticas de consumo e religião foram desenvolvidas apenas tangencialmente. Chegamos a um corpus de 36 (trinta e seis) trabalhos cuja diversidade de abordagens mostrou algumas regularidades.

Quatro grandes abordagens epistemológicas puderam ser identificadas5 5 Discorremos, detalhadamente, sobre elas no decorrer do texto. . É importante ressaltar que essas abordagens não são categorias estanques e imóveis. Muito pelo contrário: se mostraram capazes de fazer articulações e relações entre si. Recorremos, por isso, ao uso de uma metáfora.

A escolha da metáfora das “vias urbanas” se deu porque seus componentes, além de reforçarem imageticamente a nossa proposta cartográfica de mapear um determinado campo de pesquisas, ilustra de forma minimamente razoável os cruzamentos realizados nas abordagens que encontramos. Longe de uma hierarquia rígida, em termos de importância teórica ou conceitual, a ideia de metaforizar os percursos encontrados no nosso levantamento surgiu da tentativa de transferir as características de um elemento (a nomenclatura que organiza o sistema viário) para outro (os caminhos dos estudos que agrupam os temas religião e consumo), a fim de suscitar uma relação de semelhança entre ambos, na medida em que apresentamos uma cartografia de relevos móveis e em transformação. Usaremos, portanto, as figuras que são apreendidas nas formações fixas e estáveis das cartografias tradicionais, estas que ofertam representações gráficas da superfície terrestre (neste caso das vias urbanas), tendo como produto final o mapa.

Abordagens sobre consumo no viés da religião: vias, apontamentos e questões epistemológicas

Enquanto espaço ou área de saber relativamente nova, as discussões sobre a legitimidade da Comunicação como ciência e campo do saber, com suas particularidades e unicidades, sempre foram caras para nós, pesquisadores. Falar, então, da singularidade dos estudos de mídia e religião na referida área é algo desafiador e que requer um cuidado minucioso no que tange à determinação do que é específico dela e que a distingue das áreas mais tradicionais, como Ciências Humanas e Sociais, especialmente no que se refere aos estudos de mídia, religião e consumo.

Apropriando-nos dos postulados de Foucault (2008)FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. 236p., o qual entende a epistemé como conjunto de relações que articula práticas discursivas de um dado período, resultando no que ele chama de figuras epistemológicas, ciências ou sistemas formalizadores, buscamos pensar as particularidades teóricas e metodológicas do conjunto de pesquisas escolhidas. Debruçamo-nos, assim, como propõe o autor, sobre as regularidades discursivas com o intuito de encontrar o conjunto de relações que tornam esses trabalhos objetos particulares da Comunicação.

Por se tratar da fase inicial de um estudo cuja finalidade é analisar a produção bibliográfica das pesquisas que articulam os estudos de consumo e religião na área de Comunicação no Brasil, nosso objetivo neste artigo é apresentar uma análise das principais abordagens sobre consumo em sua intersecção com o campo religioso. Justamente por isso, como perspectiva inicial, a metáfora das vias nos pareceu bastante apropriada para pensarmos o “percurso” que está sendo trilhado: como um caminho que apresenta interposições, cruzamentos, desvios, atalhos, compartilhamento de espaços e fluxos em diferentes mãos, o que nos ajudou a construir analogias ilustrativas nas quais os trabalhos do nosso corpus se enquadram.

Um fator que deve ser considerado, antes de explicarmos a metáfora e promovermos qualquer aprofundamento sobre os enfoques encontrados, é que enquanto alguns trabalhos têm como abordagem central uma teoria, autor ou escola, outros são frutos do imbricamento de vários deles. Desse modo, não queremos aqui indicar categorias distintas, mas pensá-las acima de tudo como um conjunto de características, ou, nas palavras de Foucault (2008)FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. 236p., regularidades discursivas.

Acreditamos, portanto, que na falta de uma classificação delimitadora clara ou de categorias mais circunscritas no entrelaçamento dos campos religião e consumo, a metáfora sugerida nos é apropriada para descrever os “percursos” e as “vias de tráfego” nos trabalhos analisados. Usamos, como ponto de partida, a hierarquia pensada para três categorias que definem as vias públicas urbanas. Sua classificação em grupos, de forma geral, apresenta diversas variações em termos de nomenclatura e quantidade, mas, para esta reflexão basilar e introdutória, usaremos apenas três delas.

Escolhemos classificar os três percursos (que atravessam as abordagens nas pesquisas analisadas) em: 1. Vias expressas (que na malha viária compreendem as rodovias de entorno na área urbana); 2. Vias estruturais (que compõem a estrutura viária principal da cidade e, por isso, recebem a maior carga de tráfego e definem os principais acessos e ligações interurbanas); e 3. Vias perimetrais (que se constituem como um conjunto de vias para o fluxo de tráfego pesado sendo limitadas, em termos de circulação, à periferia da área central).

Antes de prosseguirmos, consideramos pertinente pontuar um dado importante: as quatro abordagens que congregam em si teorias comuns e seus respectivos percursos epistemológicos tratam do tema do consumo. Percebemos, na perspectiva horizontal da análise do corpus, que os trabalhos tendem a problematizar pouco a questão religiosa, principalmente no que diz respeito as suas reconfigurações na contemporaneidade, seja por conformação, seja por reação a ela. A reflexão do tema já viria consolidada a partir da apresentação de um objeto entendido como religioso: abordar as marchas, procissões, showmissas, padres-celebridades, produtos kosher, encontros de fiéis, correntes, objetos mágicos etc., contextualizando-os ou inserindo-os dentro de uma perspectiva histórica, econômica, culturalista ou social, já parecem preencher o gap da discussão teórica sobre o espaço que o fenômeno religioso ocupa na vida social, deixando para o aspecto do consumo uma problematização mais complexa, o que vai requerer uma ancoragem nos estudos de Comunicação muito mais enfática.

Entendemos que essa estratégia revela mais do que a mera abstenção da reflexão sobre a experiência religiosa, ou mesmo uma assimetria que precisaria ser corrigida. Ela se insere dentro do percurso histórico dos estudos de mídia e Comunicação. Em Martino (2012)MARTINO, Luis Mauro Sá. Mediações e midiatização da religião: um levantamento de hipóteses e problemáticas. In: MATTOS, Maria Ângela; JANOTTI JUNIOR, Jeder; JACKS, Nilda (Orgs). Mediação & Midiatizações. Salvador – Brasília: EDUFBA-COMPÓS, 2012. 239p., vemos que a religião ocupa um lugar privilegiado dentro das Ciências Sociais, o que possibilitava a relação com o espaço midiático apenas de maneira esporádica. Somente nos anos 1970, quando da desvinculação da Sociologia da Religião dos estudos de caráter religioso, podemos perceber a emergência de uma área “Mídia e Religião”, que se manteve marginal até meados dos anos 1980. Segundo o autor, foi nessa década que a religião, como objeto, foi apropriada pela Comunicação, sobretudo nas pesquisas sobre Comunicação Eclesiástica6 6 Um exemplo emblemático de fortalecimento da área se deu na década de 2000 com os congressos do Eclesiocom (Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial), promovidos pela Universidade Metodista em São Bernardo do Campo – SP, instituição de ensino confessional. . Paralelo a isso, cresciam as igrejas neopentecostais, grandes investidoras em estratégias midiáticas, fato que ressaltou a importância da reflexão sobre mídia e religião.

Foi no início dos anos 2000, período que cobre uma parte do corpus selecionado neste trabalho, que uma nova abordagem nasce a partir de interfaces com perspectivas teóricas oriundas da Comunicação. A mensagem religiosa ganhou importância nas pesquisas do nosso campo justamente porque passou a circular no mesmo contexto midiático que outras mensagens: ganhou status na Comunicação.

Em paralelo, os grandes temas da religião como objeto da Sociologia não encontraram guarida nos estudos a partir do consumo. São as coações e limitações que Foucault (2008)FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. 236p. indicava quando tratava das “escansões, defasagens e coincidências que se estabelecem e se desfazem” e que formam uma determinada episteme. Contudo, tais limitações e coações são, ao contrário do que se pode imaginar, produtivas, visto que “na positividade das práticas discursivas, [se] torna possível a existência das figuras epistemológicas e das ciências” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. 236p., p.215).

Objetos nas vias (ou nas vias dos objetos): uma tentativa cartográfica para mapear um campo

Como um espaço de saber atravessado por diversos campos científicos pode nos mostrar as singularidades e possibilidades para entendermos as relações entre religião e consumo? Será que a própria natureza problematizada da Comunicação já não traz objetos e questões suficientes no campo de sua epistemologia, que a tarefa de abrigar um debate sobre aqueles dois campos se mostra, à primeira vista, desnecessária?

São várias as perguntas que ecoam nas inúmeras relações possíveis que a epistemé suscita. Para deflagrar a nossa busca por respostas, tomamos como ponto de partida a produção científica que desenvolve as grandes chaves da nossa pesquisa: religião e consumo, abrigados sob os estudos de Comunicação. Numa abordagem que se pretendeu cartográfica, a busca, como bem delimita Fonseca e Costa (2013)FONSECA, Tania Maria Galli.; COSTA, Luis Artur. As durações do devir: como construir objetos-problema com a cartografia. Fractal, Revista de Psicologia, v.25, n.2, p.415-432, Maio/Ago. 2013., aguça o paradoxo do nosso olhar na intencionalidade produtiva de consistências fluidas, por meio de modulações das relações que constituem os próprios objetos-problema que nos dedicamos a revelar. Ora, nessa perspectiva, produzir investigações pelo método7 7 Pensamos aqui o método como um caminho (hodos), um percurso que nos ajudará a alcançarmos determinadas metas. Como postulado por Passos e Benevides de Barros (2009): “métahodos, o que indicaria a necessidade de uma precisão e rigor metodológicos, entendidos como obediência mecânica a procedimentos apriorísticos”. cartográfico nos faz considerar que a realidade, como resultante de modos de ver e de dizer produzidos num determinado momento histórico (FOUCAULT apud ESCÓSSIA; TEDESCO, 2012ESCÓSSIA, Liliana da; TEDESCO; Silvia. O coletivo de forças como plano de experiência cartográfica. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. Pistas do método da cartografia: pesquisa intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2012. 207p., p.95), será exposta como um mapa móvel. Mesmo que usemos a metáfora das vias e o desenho de um território que, numa primeira observação, parece fixo. Isso porque “longe de limitar seu olhar à realidade fixa, tal como propõe a abordagem da representação, a cartografia visa à ampliação de nossa concepção de mundo para incluir o plano movente da realidade das coisas” (ESCÓSSIA; TEDESCO, 2012ESCÓSSIA, Liliana da; TEDESCO; Silvia. O coletivo de forças como plano de experiência cartográfica. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. Pistas do método da cartografia: pesquisa intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2012. 207p., p.92).

A cartografia aqui proposta incidirá como um procedimento em busca do conhecimento. Não nos restringiremos, portanto, a descrever ou classificar os contornos formais dos nossos objetos de análise: a ideia é tentar revelar os movimentos e cruzamentos peculiares de um campo que se estrutura no seu intermitente processo de produção e na multiplicação das possibilidades, vias, fluxos e convivências na sua “malha viária”.

Ao buscarmos andar por essas vias, percebemos que poderíamos alegar a formação de alguns percursos teóricos, grandes eixos pelos quais os trabalhos analisados passam e em torno dos quais vão se aglutinando. Demos a esse agrupamento um perímetro, mais no interesse de perceber as transições entre eles do que criar limites propriamente ditos. Assim, constituímos quatro zonas determinadas por perímetros teóricos, sendo elas a: Zona 1: do consumo como elemento fundamental na relação entre o fiel e o Divino e a busca pela felicidade; Zona 2: do consumo como elemento norteador das estratégias de mercado das instituições religiosas; Zona 3: do culto à vedete como expressão máxima do consumismo no contexto da “Sociedade do Espetáculo”; e Zona 4: do consumo como processo cultural no contexto da “Sociedade de Consumo”.

Figura 1
Mapa dos estudos de religião e consumo nos trabalhos em Comunicação

Na cartografia apresentada, as vias expressas da religião e do consumo são os limites máximos da nossa pesquisa. Os trabalhos estudados se situam em relação a essas vias, mas não se constituem apenas em função delas. Essa é a mesma lógica aplicada dentro de um sistema viário. As vias expressas são as rodovias que ficam próximas às malhas urbanas, promovendo-lhes o acesso e permitindo um tráfego de alta velocidade. São a partir dessas duas vias expressas que as zonas estabelecem seus acessos e circulações.

Uma vez dentro de certo perímetro, são as vias estruturais os principais eixos de transporte e movimento utilizados. Promovem o acesso a uma determinada localidade e, por isso mesmo, são as usadas mais frequentemente. No caso do nosso mapa, as vias estruturais vão auxiliar na junção das características em comum de uma determinada zona. O uso recorrente de certas premissas teóricas ou posicionamentos, ou até mesmo a escolha de determinados objetos de análise, permitem perceber em qual direção as vias estruturais estão seguindo e como elas podem criar determinadas regiões de circulação. Assim, as vias estruturais admitem não só acesso a certa zona, como também são determinantes de como se deverá “circular” dentro dela.

Por fim, temos as vias perimetrais, que servem como escoamento, alternativas que desafogam o uso das estruturais. Dentro da hierarquia viária, as perimetrais “ajudam” as estruturais na condução do trânsito (que se intensificam com os diferenciais de cada trabalho e pela abundância de autores, teorias e metodologias pouco recorrentes na produção dos últimos dez anos). Pensando na analogia a partir dos estudos de Comunicação, é fácil entender, nos casos estudados, como as vias perimetrais são utilizadas: a partir delas são feitas as inter-relações. As vias perimetrais executam um papel não totalmente interdisciplinar, mas demonstram a capacidade de interlocução com teorias que vão compor a complexidade de uma determinada zona. Percebemos que as perimetrais vão permitir a ligação entre as zonas, dando ao corpus um sentido de unidade e às zonas um sentido de transição e entrelaçamento.

Na “malha viária” das nossas descobertas: as quatro zonas do campo Religião e consumo

Postulando o consumo como elemento fundamental na relação entre o fiel e o Divino e a busca pela felicidade, vemos despontar a primeira zona do nosso estudo. Encontramos alguns trabalhos que partem de teorias e conceitos calcados, primordialmente, na macrovisão da ética protestante (ou puritana) (WEBER, 2004WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2004. 336p.), que ajudou a promover o espírito do capitalismo. Poucos trabalhos, no entanto, utilizam a sua atualização pela “ética romântica”, como proposta por Campbell, que opera e viabiliza o “espírito do consumismo” (CAMPBELL, 2001CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. 400p., p.15). A racionalidade como conceito-chave, se torna um dos subsídios que circunscrevem as reflexões acerca de como o consumo dialoga com o religioso moderno8 8 Como sugere Mesquita (2007), há a atualização da antiga relação entre religião e economia proposta por Weber (2004), uma vez que a afinidade entre as esferas é mantida, mas “deslocada” da relação religião/trabalho para a relação religião/consumo. : essa relação trafega por percursos que unem o consumo ao ideal da felicidade terrena. Esta que, de acordo com Baudrillard (2011)BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70 Ltda, 2011. 272 p., se constitui como a referência absoluta da “Sociedade de Consumo” equivalente, inclusive, à salvação. Para tanto, a felicidade precisa ser mensurável, por meio de critérios visíveis.

Nesse sentido, foi possível constatar que parte dos trabalhos que envolvem consumo e religião, na primeira zona, comporta a compreensão da racionalidade na justificativa weberiana dos fins pela atuação dos meios, com as ações sociais dos indivíduos mediadas por algum tipo de interesse com um sentido subjetivo. Ancoram-se nas contribuições do racionalismo instrumental, sob um aspecto utilitarista, no qual os meios (religiosos) são justificados na procura de determinados fins (de consumo).

Como zona delimitada no mapa, a incidência dessa abordagem se constitui como elemento relevante para o agrupamento, contudo, não são todos os trabalhos que trafegam pelas mesmas vias. Identificamos acessos distintos que, no diálogo com autores como Bauman (2008)BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. 199p., Barbosa (2004)BARBOSA, Lívia. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. 68p., Beck (2011)BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011., Freire Filho (2003), Furedi (2004)FUREDI, Frank. Não quero ser grande. Folha de S. Paulo, São Paulo, 25 jul. 2004. Caderno Mais!, p. 1-6, Illouz (2011)ILLOUZ, Eva. O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011., entre outros, ampliam e fazem escoar boa parte do tráfego teórico da primeira zona.

É o caso, por exemplo, da relação entre o desenvolvimento da cultura terapêutica e as novas configurações do sagrado, ou ainda, da construção da identidade por meio do consumo de estilos de vida, ou da busca pela felicidade, esta que não é só um direito, mas torna-se um dever, uma prova de que alguém é bem-sucedido. Além disso, é notável na produção dos trabalhos que agrupamos aqui na primeira zona, a clara predominância da ética da autorrealização na modernidade. Esta que só pode ser alcançada a partir do esforço pessoal, da racionalidade (abordada anteriormente) e da atitude de “seguir” ou “imitar” os modelos (por isso a importância dada aos testemunhos e aos exemplos dos atores religiosos em diversos trabalhos) que servem de referencial para uma visível ascensão por meio da obtenção de objetos de consumo.

A segunda zona que escrutinamos abrange os trabalhos nos quais o consumo é o elemento norteador para as estratégias de mercado e comunicação das instituições religiosas. As abordagens são localizadas nas ações mercadológicas da religiosidade contemporânea, nas quais diversos sujeitos sociais se articulam com os indivíduos para a produção de sentido e estímulo aos (já existentes) anseios de consumo.

Os estudos agrupados aqui revelam as significativas transformações de inúmeras instituições religiosas que operam no mercado brasileiro, que vão desde a remodelagem dos seus discursos até as ações práticas para a conquista de mercados internacionais. Para isso, é descrita, no conjunto de textos, uma profusão de estratégias para a oferta de produtos religiosos que, como bem define Guerra (2000)GUERRA, Lemuel D. A lógica do mercado na esfera da religião: competição, demanda e a dinâmica dos discursos e práticas religiosas no Brasil. Cadernos Religare, v.1, n.2, p.25-38, UFPB, 2000., são apresentados “de maneira semelhante a dos outros bens simbólicos, tais como estilos de vida e de identidade cultural”.

Temos, portanto, nos estudos da zona 2, o consumo exposto como o expoente mercadológico de muitas instituições religiosas que objetivam criar e sustentar o vínculo com os fiéis, ou mesmo expandir-se e solidificar-se enquanto marcas em um mercado altamente competitivo.

A amplitude referencial teórica é outro fato que merece destaque nos trabalhos da segunda zona. Autores comumente usados na Administração, como Philip Kotler (o mais citado), ou pesquisadores da área de Comunicação Institucional são inseridos, com destaque, em diversas análises que primam pela descrição das ações mercadológicas na livre concorrência do mercado, que não se restringe ao religioso. Tais abordagens promovem a aproximação com a primeira zona, principalmente se pensarmos a oferta de bens de salvação, conselhos, histórias de superação e modelos de vidas exemplares por meio dos testemunhos nos seus diversos formatos.

Os trabalhos desta segunda zona expressam, em boa medida, que o consumo de produtos e bens religiosos é muito semelhante ao consumo de quaisquer outros produtos nos dias atuais: a diversidade de mercadorias é tanta, que o auge do consumir reside na própria experimentação e troca. O que gera uma grande concorrência no campo religioso e midiático. Como uma zona potencialmente forte em vias perimetrais, principalmente porque traz autores e teorias pouco usuais no campo, o que ajuda a distribuir e escoar o tráfego para a terceira zona que mapeamos.

A terceira zona explorada no mapa da religião e consumo concentra os trabalhos que dialogam com a “Sociedade do Espetáculo”. Suas vias estruturais embarcam na afinidade, bastante profícua, que se estabelece entre consumo e espetáculo. Não por acaso, essa zona se desloca um pouco em relação às zonas que lhes antecedem e se acomoda num perímetro marcado pela emergência de figuras, instituições e rituais que articulam uma cultura tanto material quanto simbólico-religiosa.

O que tratamos como espetáculo vem do trabalho de Debord (1997)DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997., no qual se propõe a onipresença do espetáculo como a forma pela qual a sociedade moderna se expressa. O autor (1997, p.18-19) argumenta que, numa fase posterior ao capitalismo mercantilista de acúmulo, aconteceu um deslizamento generalizado do ter para o parecer9 9 Na fase mercantilista, por exemplo, o que aconteceu foi uma preponderância do ser para o ter. , o que posiciona o espetáculo como capital, em níveis abundantes de acúmulo. Assim, o domínio do espetacular passa a gerar continuamente pseudonecessidades cujas falsas satisfações são atendidas pelo consumo moderno. É o que Freire Filho (2003)FREIRE FILHO, João. A sociedade do espetáculo revisitada. Revista FAMECOS. Porto Alegre, v.22, n.25, p.33-45, dez. 2003., em sua crítica à crítica espetacular do espetáculo10 10 No texto, o autor argumenta que muito das interpretações feitas sobre o conceito de espetáculo se baseiam numa leitura equivocada e até mesmo enviesada da obra de Debord, gerando, portanto, a noção de crítica espetacular. , aponta como a realização completa do fetichismo da mercadoria, no qual ondas de entusiasmo por determinados produtos se propagam pela mídia gerando tipos variados de papéis e estilos de vida com os quais se identificar (FREIRE FILHO, 2003, p.40). É nesse processo que surgem as vedetes do espetáculo, “[...] pessoas admiráveis em que o sistema se personifica” (DEBORD, 1997DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997., p.40).

Os trabalhos agrupados na terceira zona manifestam que a vedete é a grande referência. Os estudos sobre padres, pastores e celebridades religiosas sustentam essa abordagem e nos mostram como estes se constituem para serem consumidos por um público que recebe a mensagem religiosa dessas figuras dentro de uma mesma lógica, igualmente midiática e consumista. É importante ressaltar também que, dentro desse perímetro, não encontramos apenas figuras humanizadas. Os rituais, tais como showmissas, procissões e marchas também são passíveis de espetacularização, uma vez que apresentam alto potencial de consumo por meio dos fiéis.

Se o acesso a esse zoneamento se dá em função do espetáculo, é possível pensarmos também algumas perimetrais que estão ajudando a escoar essa via tão sobrecarregada. Reflexões sobre a cultura de massa, a emergência de celebridades, bem como uma cultura de consumo se fazem necessárias para suportar o tráfego mais intenso dos conteúdos espetaculares. Nessas rotas auxiliares, algumas saídas e acessos podem ser percebidos, como o atalho que nos conduz pela última via estrutural desse mapa: a que vai dar na quarta zona, a da “Sociedade do Consumo”.

No percurso dos trabalhos que configuram a quarta zona, o tema consumo emerge como processo cultural no contexto de uma “Sociedade do Consumo”, envolvendo uma série de autores que, mesmo não dialogando diretamente, convergem para um pensamento conceitual em comum e seu funcionamento na sociedade contemporânea. Entre os autores mais citados estão Garcia Canclini (2010)GARCIA CANCLINI, Nestór. Consumidores e Cidadãos. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010. 228p., Hall (2011)HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011., Martín-Barbero (2009)MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações: comunicação, cultura e hegemonia. (6ª ed.) Rio de Janeiro: Editora UFRJ 2009., Baudrillard (2011)BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70 Ltda, 2011. 272 p., Campbell (2001)CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. 400p., Lipovetsky (2007)LIPOVETSKY, Gilles. Felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., Bourdieu (2012)BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. e Barbosa (2004)BARBOSA, Lívia. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. 68p..

Compreendido como um conjunto de processos socioculturais de apropriação e usos de produtos (GARCIA CANCLINI, 2010GARCIA CANCLINI, Nestór. Consumidores e Cidadãos. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010. 228p.), o consumo surge como o elemento integrador do sujeito consigo mesmo e com o mundo, de forma que, ao mesmo tempo em que constrói sua identidade em diálogo com as comunidades nas quais transita, faz-se distinto dos demais sujeitos do grupo e de todos os outros que não fazem parte. Nesse sentido, termos e conceitos como identidade, identificação, diferenciação, distinção, cultura, comportamento, estilo de vida, práticas sociais e processos são muito comuns no decorrer das páginas dos trabalhos analisados.

Considerando sua benfazeja relação com os processos de construção identitária, o consumo é visto tanto como um elemento que “serve para pensar”, como para questionar, por isso não é uma etapa, mas como afirmado várias vezes (principal herança dos Estudos Culturais), é, antes, um processo sempre inacabado. Nesse sentido, recorremos a Martín Barbero (2009)MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações: comunicação, cultura e hegemonia. (6ª ed.) Rio de Janeiro: Editora UFRJ 2009. que, assim como muitos autores presentes nos trabalhos desse grupo, é apropriado para justificar seu principal vínculo com a religião: o consumo é um processo mediado. Instituições como igreja, estado, escola, mídia etc. são mediações culturais de profunda importância no processo e, por isso, recebem os olhares atentos do mercado. Até esse ponto já é possível perceber as interpelações com as demais zonas, o que confirma nossa tese de que são todas móveis e fluídas.

Demarca-se, dessa forma, nos trabalhos agrupados na quarta zona, o contexto no qual tais processos ganham materialidade: a “Sociedade do Consumo” (BAUDRILLARD, 2011BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70 Ltda, 2011. 272 p.; BAUMAN, 2008BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. 199p.; BARBOSA, 2004BARBOSA, Lívia. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. 68p.; BARBOSA e CAMPBELL, 2006BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin (org). Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro: Editora FGY, 2006. p.21-44.). Esta, que é permeada por vários tipos de “cultura” (do consumo, terapêutica, da autoajuda, corporativa, do selfie etc.), constitui-se, justamente, na contemporaneidade e centraliza no consumo e no sujeito todo o investimento. “O cliente tem sempre razão!” é uma frase bastante representativa dessa sociedade e permeia não apenas o universo corporativo, mas está cada vez mais presente no religioso, afinal, as instituições religiosas como promotoras de soluções para problemas e questionamentos cotidianos dos indivíduos competem agora com todo o tipo de instituição. A felicidade como prova ou meio para a salvação se funda, nesses moldes, como a referência dessa sociedade e o consumo, mais que uma forma de aprofundar a crise de identidade, se apresenta como um caminho para solucioná-la (BARBOSA; CAMPBELL, 2006BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin (org). Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro: Editora FGY, 2006. p.21-44.).

Para além das singularidades das quatro zonas mapeadas, o consumo em cada uma delas ganha, a seu modo, a tonalidade simbólica dos objetos, especialmente quando apresentado como a prova das bênçãos divinas nos testemunhos de algumas igrejas: ele distingue, define gostos, gera visibilidade, confere status, enfim, comunica algo sobre o sujeito. Revelando, por conseguinte, a própria ancoragem do campo da Comunicação em dois aspectos gerais, como postulados por Baudrillard (2011)BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70 Ltda, 2011. 272 p.: 1. Como processo de significação e comunicação; e 2. Como meios de classificação e diferenciação.

Considerações finais

Diz o bom senso que, para explorar um lugar que não se conhece, a melhor opção é consultar um mapa. Muito embora seja um instrumento útil, é preciso entender que para ler um mapa é necessário muito mais do que um sentido de localização. No caso específico do mapa que apresentamos, é preciso também compreender as transições que se operam quando acessamos uma determinada zona, ou quando saímos de uma à outra. Nessa perspectiva, quase tão importante quanto delimitar perímetros ou áreas de concentração de determinados trabalhos, é preciso considerar também as interfaces possíveis. Assim, além de nos determos ao que dá unidade, também é imprescindível pensarmos nos perímetros e nas áreas de transição, nas fronteiras que separam (e ao mesmo tempo ligam) as zonas que formam o mapa da religião e consumo.

O que o trabalho de montagem desse mapa nos mostrou é que essas fronteiras estão cada vez mais flexíveis e a circulação de objetos, teorias e abordagens pode agrupar uma mesma pesquisa em duas zonas diferentes. Os trabalhos que se estruturam a partir das problematizações da “Sociedade do Espetáculo” são um exemplo disso: são caudatários de uma tradição marxista, e (talvez por isso mesmo, pode-se argumentar) são capazes de também dialogarem com os Estudos Culturais, na medida em que abordam o objeto religioso como forma de pensar uma determinada identidade cultural. Questões relativas à identidade são também uma via movimentada. Elas levam e trazem trabalhos que lidam ora com as estratégias de mercado para produtos religiosos, ora com problematizações sobre um determinado tipo de consumo. A maior parte dos estudos, contudo, se acaudilha e trafega pelo processo de midiatização da sociedade, principalmente quando refletem sobre a transformação das relações entre instituições e sujeitos sociais, sobretudo com o foco nas denominações religiosas que passaram a operar sob as lógicas midiáticas e de consumo.

De forma geral, tendo em vista o debate epistemológico que vem sendo construído na área da Comunicação, as tensões, os diálogos e as pluralidades conceituais desenhadas no primeiro mapa que propomos, nos fazem perceber como os trabalhos distribuídos nas quatro zonas se relacionam entre si, mas igualmente têm suas próprias especificidades. Mas não apenas isso, a produção acadêmica, que une religião e consumo nos últimos dez anos, também se relaciona com zonas para além do perímetro dos trabalhos que mapeamos, como é possível constatar na cartografia apresentada aqui.

A análise desse vasto território e da sua “malha viária” nos faz concluir, a primeira incursão, com duas importantes perguntas que nos inquietam pelas respostas. Quais são, afinal, os limites (se eles existem) que a Comunicação nos impõe para que possamos trabalhar religião e consumo? A interdisciplinaridade, ao mesmo tempo em que nos permite dialogar com disciplinas e ciências diversas e complexas como a Sociologia ou a Linguística, é também um entrave na busca pela singularidade de nossos estudos? A ideia, portanto, é perseguir estas e outras respostas, ancorados no entendimento da singularidade (de uma ciência) como proposta por Moraes (2002, p.68)MORAES, Márcia. Sobre a noção de rede e a singularidade das ciências. Revista Documenta. Ano VIII, n.12/13, p.57-70, 2001-2002. de que esta só pode ser avaliada “a partir dos riscos de suas práticas (...) [que] são sempre coletivas e delas resultam a invenção do sujeito e do objeto”.

  • 1
    Este texto foi alterado, revisado e adaptado para a revista, tendo sido e apresentado no GT de Epistemologia da Comunicação do XXV Encontro Anual da Compós, na UFG, em junho de 2016.
  • 2
    Disponível em: dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/8590792395281136. Acesso em 10 jul. 2016.
  • 3
    Textos considerados altamente qualificados.
  • 4
    Segundo o autor, observa-se, nesse momento, uma contribuição significativa da Comunicação com seus referenciais teóricos, mesmo que isso não tenha significado o deslocamento do viés sociológico que sempre marcou esse tipo de estudo. Interfaces com consumo, espetáculo ou entretenimento, com perspectivas teóricas da Comunicação, passam a se fazer presentes na tentativa de entender as relações entre mídia e religião.
  • 5
    Discorremos, detalhadamente, sobre elas no decorrer do texto.
  • 6
    Um exemplo emblemático de fortalecimento da área se deu na década de 2000 com os congressos do Eclesiocom (Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial), promovidos pela Universidade Metodista em São Bernardo do Campo – SP, instituição de ensino confessional.
  • 7
    Pensamos aqui o método como um caminho (hodos), um percurso que nos ajudará a alcançarmos determinadas metas. Como postulado por Passos e Benevides de Barros (2009)PASSOS, E.; BENEVIDES DE BARROS, R. Acartografia como método de pesquisa-intervenção. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. 207p.: “métahodos, o que indicaria a necessidade de uma precisão e rigor metodológicos, entendidos como obediência mecânica a procedimentos apriorísticos”.
  • 8
    Como sugere Mesquita (2007)MESQUITA, Wania A. B. Um pé no reino e outro no mundo: consumo e lazer entre pentecostais. Horizontes Antropológicos [online], v.13, n.28, p.117-144, 2007., há a atualização da antiga relação entre religião e economia proposta por Weber (2004)WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2004. 336p., uma vez que a afinidade entre as esferas é mantida, mas “deslocada” da relação religião/trabalho para a relação religião/consumo.
  • 9
    Na fase mercantilista, por exemplo, o que aconteceu foi uma preponderância do ser para o ter.
  • 10
    No texto, o autor argumenta que muito das interpretações feitas sobre o conceito de espetáculo se baseiam numa leitura equivocada e até mesmo enviesada da obra de Debord, gerando, portanto, a noção de crítica espetacular.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2016
  • Aceito
    10 Fev 2017
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