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'Número Zero': Jornalismo zero ou mil?1 1 NE: Resenha escrita e recebida antes da morte de Umberto Eco no dia 19 de fevereiro de 2016.

ECO, Umberto. Número zero. 4.ed. Rio de Janeiro: Record, 2015. 208 p.

Umberto Eco é um nome que atravessa gerações e campos de interesse. Isto porque o professore, como é chamado na Itália, seu país natal, tem se destacado em diferentes áreas, incluindo Filosofia, Semiótica, Linguística e Literatura. Neste caso, seu maior sucesso é, sem dúvida, O nome da rosa, romance lançado em 1980, traduzido em diferentes idiomas, como alemão, francês, inglês e português, e que chegou ao cinema, 1986, dirigido por Jean-Jacques Annaud, protagonizado por Sean Connery e transformado em sucesso mundial.

Mais recentemente, no ano de 2015, lançou o "Numero zero" (titulo original em italiano), traduzido para o português por Ivone Benedetti, editado pela Record e que recebeu o título homônimo no Brasil. Assim, a obra se junta a outras renomadas – como O pêndulo de Foucault (1988) ou O cemitério de Praga (2011) – de autoria desse italiano, nascido em Alexandria, e que consegue, ao discorrer sobre temas diversificados e atualizados, na efervescência de seus 84 anos, uma atuação impecável como colaborador incansável junto a diversos títulos acadêmicos e revistas semanais, como a italiana L'Espresso.

Em Número zero, sem deixar de lado críticas recursivas ao hermetismo acadêmico, Eco monta sua trama conspiratória na redação de um jornal da capital da região da Lombardia, a bela Milão, do ano de 1992. Resistente à ideia de que "[...] quem vive cultivando esperanças impossíveis já é um perdedor" (p.19), a personagem Colonna, revisor de manuscritos em editoras de quinta categoria, e que, decerto, nunca seriam publicados, eventual tradutor, eterno candidato a escritor e a jornalista de sucesso, persiste a alimentar o sonho que todos os fracassados nutrem de algum dia conseguir escrever um livro que lhes assegure glória e fama. E diz (p.21):

[...] Para aprender a ser um grande escritor trabalhei até como nègre (ou ghost-writer, como se diz hoje para ser politicamente correto) para um autor de romances policiais, que, por sua vez, para vender assinava com nome americano [...] Era bom trabalhar à sombra, coberto por duas cortinas (o Outro e o nome do Outro).

Isto se dá até Colonna receber o convite para coordenar a redação de um jornal. Não se trata de um jornal qualquer. Trata-se, sim, de um diário que nunca será editado. Fictício desde o título meticulosamente escolhido – Amanhã. O intuito do proprietário do jornal – o comendador Vimercate – é apenas utilizá-lo contra os inimigos. E aqui entra mais uma vez um dos recursos recorrentes ao longo dos romances do escritor: lançar mão de ambientes históricos em suas obras ficcionais para favorecer a imaginação do leitor.

Isto é, o público de Número zero fica totalmente livre para associar a ambiência romanesca à presença do ex-premiê Silvio Berlusconi, considerado pela Forbes como o 194º homem mais rico do mundo e, por conseguinte, um dos empresários e políticos italianos mais poderosos. Segundo a polêmica enciclopédia colaborativa Wikipedia2 2 SILVIO Berlusconi. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Silvio_Berlusconi>. Acesso em: 5 fev.2016. , Berlusconi ocupou o cargo de presidente do Conselho de Ministros (primeiro-ministro da Itália) durante nove anos ao total, sendo o governante que por mais tempo permaneceu no cargo no período pós-guerra, e o terceiro com mais tempo desde a unificação do país, aquém somente de Benito Mussolini e Giovanni Giolitti. E mais, Berlusconi é o acionista controlador da Mediaset, poderoso conglomerado midiático da Itália e proprietário do clube de futebol A. C. Milan, lembrando que esse esporte é o mais apreciado pelos italianos.

E, então, de forma direta, sem preâmbulos, Eco desperta a desconfiança do público rumo à mídia que aí está a serviço do poder econômico e político. "Brincando", afinal se trata de obra ficcional, planta a dúvida no coração e na mente dos menos desavisados, ao afirmar, na página 43, ipsis litteris:

Os jornais mentem, os historiadores mentem, a televisão hoje mente. Você não viu nos telejornais há um ano, com a Guerra do Golfo, o pelicano coberto de óleo, agonizando no Golfo Pérsico? Depois foi apurado que naquela estação era impossível haver pelicanos no Golfo, e as imagens eram de oito anos antes, no tempo da Guerra Irã-Iraque. Ou então, como disseram outros, pegaram uns pelicanos no zoológico e lambuzaram de petróleo. O mesmo deveriam ter feito com os crimes fascistas. Veja bem, não [...] quero fazer de conta que não houve massacre de judeus [...] Mas não confio em mais nada. Os americanos foram mesmo até a lua? [...] E a Guerra do Golfo aconteceu mesmo ou nos mostraram só trechos de velhos repertórios? Vivemos na mentira e, se você sabe que lhe estão mentindo, precisa viver desconfiado. Eu desconfio [...] sempre [...].

Na esfera de um jornal inexistente, conspiração, farsa e amores aparentemente improváveis mesclam-se, sobretudo, quando um redator aparentemente paranoico, Braggadocio, conduz diálogos intermitentes com Colonna (às vezes, de extrema monotonia) sobre fatos inacreditáveis e diabólicos. Há de tudo. Loja maçônica, assassinato de papa, golpe de Estado, atuação da CIA e de serviços secretos... O ápice fica por conta da possibilidade da sobrevivência do ditador Mussolini após a Segunda Guerra Mundial. Tudo transcorre vertiginosamente por longos 20 anos até o assassinato do fantasioso Braggadocio, levando consigo o futuro de um jornal que não chegou a existir, mas deixa prever como se faz, com excelência, o mau Jornalismo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016
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