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Rede tecnopolítica de extrema direita e democracia no Brasil

Red tecnopolítica de extrema derecha y su acción en Brasil

Resumo

Quais são as determinações que podem orientar a nossa investigação para analisar o avanço da extrema direita no mundo? Para tanto, a questão proposta considera as relações entre tecnologia e política e tem por objeto a análise da Rede Tecnopolítica Global de Extrema Direita. O desafio proposto é desvendar as diferentes articulações que definem a formação da rede tecnopolítica, sendo seu objetivo identificar seus agentes, examinar a divisão do trabalho, analisar suas articulações e as narrativas que nela circulam, para demonstrar que seus vetores de comunicação produzem uma subjetividade coletiva de extrema direita. Destacamos a participação da indústria da influência que, por meio de seus algoritmos, produz a análise de dados capaz de reconhecer os grupos sociais-alvo, que se identificam pelo modo de pensar, fazer e ser compartilhado, para os quais são direcionadas as fakes news, que produzem uma “realidade paralela” e “dissonância cognitiva”. Transforma as relações de poder no mundo em benefício de valores autoritários e conservadores. A metodologia tem por ponto de partida a interdisciplinaridade, que associa conhecimentos de ciência política, da comunicação, da computação e geografia. O levantamento de dados foca na estrutura de ação da rede de extrema direita global e sua representação no Brasil. Os procedimentos estão apoiados num banco de dados que documenta a informação e aplicação de programas de informática para representação das redes. Os resultados analíticos identificam os atores e agentes, examinam a divisão do trabalho na rede tecnopolítica para analisar suas narrativas, os processos e estratégias do poder de direita, e demonstrar a ampliação da participação política para além dos partidos políticos. Não menos importante é revelar as articulações entre a extrema direita global com a extrema direita do Brasil e seus desdobramentos sobre a democracia no mundo.

Palavras-chave
Rede tecnopolítica; Extrema direita; Indústria da influência; Fake News; Democracia

Resumen

¿Cuáles son las determinaciones que pueden guiar nuestra investigación para analizar el avance de la extrema derecha en el mundo? Para ello, la pregunta propuesta considera la relación entre tecnología y política, y pretende analizar la Red Tecnopolítica Global de la Extrema Derecha. El desafío propuesto es develar las diferentes articulaciones que definen la formación de la red tecnopolítica. Su objetivo es identificar a sus agentes, examinar la división del trabajo, analizar sus articulaciones y las narrativas que circulan en ella, para demostrar que sus vectores de comunicación producen una subjetividad colectiva de la extrema derecha. Destacamos la participación de la industria de la influencia que, a través de sus algoritmos, produce análisis de datos capaces de reconocer grupos sociales objetivo, que se identifican por su forma de pensar, hacer y ser compartido. A quién se dirigen las fake news, que producen una “realidad paralela” y una “disonancia cognitiva”. Transforma las relaciones de poder en el mundo en beneficio de los valores autoritarios y conservadores. El punto de partida de la metodología es la interdisciplinariedad, que combina conocimientos de ciencias políticas, comunicación, informática y geografía. La recopilación de datos se centra en la estructura de acción de la red global de extrema derecha y su representación en Brasil. Los procedimientos están respaldados por una base de datos que documenta la información y aplicación de programas informáticos para representar las redes. Los resultados analíticos identifican a los actores y agentes, examinan la división del trabajo en la red tecnopolítica para analizar sus narrativas, los procesos y estrategias del poder de derecha, y demuestran la expansión de la participación política más allá de los partidos políticos. No menos importante es revelar las conexiones entre la extrema derecha global y la extrema derecha en Brasil y sus consecuencias para la democracia en el mundo.

Palabras clave
Red tecnopolítica; Más a la derecha; Influir en la indústria; Fake News; Democracia

Abstract

What are the determinations that can guide our research to analyze the advance of the extreme right in the world? To this end, the proposed question considers the relationship between technology and politics, and aims to analyze the Global Technopolitical Network of the Far Right. The proposed challenge is to unveil the different articulations that define the formation of the technopolitical network. Its objective is to identify its agents, examine the division of tasks, analyze its articulations and the narratives that circulate within it, to demonstrate that its communication vectors produce a collective subjectivity of the extreme right. We highlight the participation of the influence industry which, through its algorithms, produces data analysis capable of recognizing target social groups which identify themselves by their way of thinking, doing, and being shared to whom fake news is directed, thus producing a “parallel reality” and “cognitive dissonance”. It transforms power relations in the world to benefit authoritarian and conservative values. The methodology’s starting point is interdisciplinarity, which combines knowledge of political science, communication, computing and geography. The data collection focuses on the action structure of the global far-right network and its representation in Brazil. The procedures are supported by a database that documents the information and application of computer programs to represent the networks. The analytical results identify the actors and agents, examine the division of labor in the technopolitical network to analyze their narratives, the processes and strategies of right-wing power, and demonstrate the expansion of political participation beyond political parties. No less important is revealing the connections between the global extreme right and the extreme right in Brazil and their consequences for democracy in the world.

Keywords
Technopolitical network; Far right; Influence industry; Fake News; Democracy

Introdução

A questão proposta é examinar o avanço da extrema direita que vem ganhando importante poder no mundo e no Brasil. O objeto de investigação é a Rede Tecnopolítica de Extrema Direita, sendo o nosso desafio identificar seus agentes e atores, examinar a divisão do trabalho, ler suas narrativas, representar a sua formação e analisar sua ação política para demonstrar sua importância na ampliação do poder de extrema direita no mundo. Para tanto, se identifica a concepção, financiamento, análise de dados, formação de públicos-alvo, produção e difusão de narrativas que produzem desinformação. Para fazer a nossa demonstração, é necessário analisar como essa rede tecnopolítica transcende os estados e nações, para atuar sobre o espaço híbrido global. A rede conforma um novo ator político, que produz mutações sobre os processos políticos, atinge a democracia e o território, transformando as relações de poder no mundo.

Nosso ponto de partida é a verificação de como se deu a unificação de diferentes agentes que atuam a partir de uma estrutura de valores tradicionalista, de extrema direita. Esses agentes concebem, produzem e difundem narrativas fictícias nas plataformas e contam com a participação ativa de agentes financeiros e indústria de influência. Além disso, eles produzem um conjunto de vetores que se difundem nas redes sociais e manipulam as mentes das pessoas, transformando suas emoções e sua ação política.

Trata-se, outrossim, de analisar como o processo de inovação tecnológica promove a digitalização das relações espaciais e temporais, mediante as quais as corporações de informática criam plataformas que, por sua vez, permitem a formação de coletivos em rede, e a ampliação das possibilidades de enunciação de narrativas e difusão rizomática. Essa estratégia possibilita a conexão de diferentes agentes em diferentes localidades no espaço-mundo. Por meio da ciência dos dados e de algoritmos, identificam-se os grupos sociais que se pretende atingir e que deverão ser alvo da divulgação maciça de narrativas direcionadas. Visa-se, assim, e de forma muito clara, manipular indivíduos em benefício de interesses que, ao defender a transformação da subjetividade coletiva, produzem um consenso coletivo voltado para a implantação de uma estrutura de valores de extrema direita e a transformação da cultura das nações, com o intuito de estabelecer seu poder em escala global. A transformação das relações espaciais enseja formas de articulação política, econômica e social nunca imaginadas, que exigem uma nova análise, amparada na interdisciplinaridade, para a interpretação do mundo em que vivemos.

Nossa hipótese é que essa Rede Tecnopolítica Global de Extrema Direita, que se forma partir da participação de agentes – ao associar atores financeiros, ideólogos analistas de dados, influenciadores midiáticos –, promove a enunciação de narrativas manipuladas, fictícias, descoladas da realidade e seu objetivo é manipular a ação política. A difusão dessas narrativas se realiza pela aplicação de algoritmos que configuram subgrupos na rede, que se coesionam por formas de pensar, fazer e agir compartilhadas, penetram na mente humana e transformam a subjetividade coletiva, envolvendo práticas políticas que impedem o exercício do livre-arbítrio. Lançando mão de sistemas de comunicação e informação complexos, os algoritmos interligam fortemente a tecnologia e as práticas humanas. Têm o poder de controlar os dados, identificar os alvos e direcionar as mensagens, abrindo espaço para a emergência de redes de extrema direita que ampliaram suas raízes pelo mundo.

A circulação da informação na rede corresponde a uma estratégia que observa a arquitetura na qual se valorizam os atores que concentram maior capital político, ou seja, maior número de likes1 1 São esses likes que representam o número de pessoas que o seguem. . A Rede Tecnopolítica de Extrema Direita Global está fundamentada precisamente nessa estratégia, que seria, aparentemente, uma resposta a uma necessidade que emana da sociedade, de baixo para cima. Na prática, porém, é uma ação que transcendente, que vem de cima para baixo, dos donos das redes, para impor sua dominação sobre os grupos sociais mais ignorantes, ali onde a pobreza econômica, o pequeno poder da resistência social e a fragilidade intelectual tomaram conta do tecido social.

Toda essa intrincada operação só se torna possível pela existência de um espaço híbrido, que articula o espaço construído, vital ao espaço digital, virtual, e condensa vitalidades e virtualidade. Permite a fluidez da comunicação e a transversalidade e transescalaridade das pessoas, das instituições, esferas e nações. Dito de outra forma, esse espaço híbrido possibilita formas de organização econômica, política e social na transversalidade e na transescalaridade, que transcendem os territórios das nações, os Estados, os capitais e os partidos políticos.

No espaço híbrido se digitaliza as relações sociais, o que redefine a hegemonia do poder que os grupos dominantes exercem sobre a sociedade. Gramsci (1979)GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. ensina que as funções dos grupos são organizativas e conectivas, sendo historicamente datadas. Se na modernidade eram os intelectuais que cumpriam essas funções, na sociedade em rede podemos dizer que esse papel cabe às redes tecnopolíticas, organizando, conectando, influenciando e coesionando uma parcela significativa das sociedades.

A invenção de plataformas, como um desdobramento de pesquisas e tecnologias concebidas e desenvolvidas pelas corporações de tecnologias, desencadeou um processo de privatização do espaço híbrido e inaugurou formas de acumulação capitalista ancoradas na ciência dos dados (Zuboff, 2021ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.). O espaço híbrido daí resultante permite a formação de redes tecnopolíticas de comunicação fluida e a associação de coletivos, dando origem a um novo sujeito político, uma organização política em rede (Empoli, 2020EMPOLI, G. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2019.).

A investigação e a análise do papel desempenhado por essa rede de extrema direita são fundamentais para podermos desvendar a tecnopolítica da extrema direita, a partir da qual acontece o avanço da extrema direita no mundo, que vem reunindo condições para determinar o alcance dos seus objetivos autoritários, violentos e ditatoriais e suas consequências efetivas sobre a democracia.

Método e metodologia

O desafio epistemológico que temos pela frente é promover uma interação de categorias e conceitos originários das ciências da computação, da ciência da comunicação e das ciências humanas. Desse modo, respaldados pela interdisciplinaridade, acreditamos poder enfrentar com êxito os desafios cognitivos e metodológicos exigidos pelo presente contexto histórico. Não podemos, de modo algum, prescindir do diálogo entre as ciências humanas, as “novas ciências” – entre as quais a Psicologia Social –, e a ciência de dados, porque é esse diálogo que vai permitir a indexação da experiência coletiva dos recursos materiais e simbólicos, absorvidos em sistemas autorregulados, como as redes sociais.

A estruturação deste artigo está ancorada em dois eixos: o primeiro compreende a rede propriamente dita, seus principais atores e funções e estratégias de ação política; o segundo consiste em tecer os fios que articulam essa rede de extrema direita com a rede bolsonarista, para apresentar as relações que as articulam. Com essa perspectiva, foram elaboradas as seguintes perguntas:Quais são os objetivos da rede de extrema direita?

  • Quais são os principais atores que participam de suas operações?

  • Como se organiza a divisão do trabalho na rede?

  • Qual é a narrativa dominante?

  • Em que países se desenvolveram os projetos da indústria da influência?

  • Quais são os projetos da indústria da influência e suas consequências sobre a democracia no mundo

Para respondê-las, foram adotados os seguintes procedimentos:

  • a identificação dos atores;

  • o levantamento e a análise de dados;

  • a observação e análise da indústria de influência;

  • a representação da rede por grafos de atores e funções, mediante a utilização do programa GEPHI;

  • análise dos impactos sobre a democracia.

Examinar os vínculos e os fluxos de informação e de comunicação existentes entre os diferentes agentes é um procedimento que se impõe. Sabemos que as redes são formadas por subgrupos, campos2 2 Para usar a categoria de Bourdieu (1998; 2004). que se coesionam pela mesma forma de pensar, fazer e ser, cada qual com sua liderança, e levar isso em conta é fundamental para compreender o significado das narrativas, sua circulação nos fluxos das redes, como elas são divulgadas e como é produzida a integração dos subgrupos que formam a totalidade da rede.

Figura 1
Subgrupos da rede Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (ABONG)

Agentes e estratégias de ação

Para fazer a demonstração de nossa hipótese, centramos nossos esforços na busca da origem dessa rede visando assim identificar os campos e representar a sua articulação. Quando a Cambridge Analytica foi denunciada3 3 Documentário Privacidade hackeada, disponível na plataforma Netflix. e amplamente divulgada, foi possível observar que estávamos diante de uma rede com diferentes funções, composta por diferentes empresas, então localizadas numa rede de territórios espalhada por diferentes países da Europa e da América do Norte. Para fazer sua análise, identificamos as organizações, suas lideranças, funções e projetos de intervenção e sua localização nas diferentes cidades do mundo. Não menos importante foi examinar sua estratégia de ação política, que se explicitou por intermédio de uma divisão do trabalho, cada qual com sua ação, como: concepção, financiamento, análise de dados por algoritmos, influenciamento, representação, circulação e difusão de narrativas conservadoras. Trata-se de reunir numa mesma totalidade agentes e pessoas que compartilham da mesma estrutura de valores e de interesses. Sua representação pode ser visualizada na figura 2.

Figura 2
Divisão do trabalho na rede global

Como podemos perceber na descrição das agências, existe uma estratégia política e econômica comum, que unifica as seguintes funções dessa complexa totalidade:

  • ideológica – destinada a conceber e manter viva a estrutura de valores conservadores;

  • fundo de investimento – cabe-lhe financiar as operações da rede tradicionalista, o que deixa patente as articulações da extrema direita com a indústria dos fundos financeiros (Pessanha, 2019PESSANHA, R. M. A indústria dos fundos financeiros. Potência, estratégia e mobilidade. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.);

  • análise de dados – sua missão é analisar os dados, integrar os grupos sociais para identificar os grupos-alvo;

  • produção de narrativas – a empresa de produção de imagens é responsável pela elaboração de vídeos e textos que sustentam sua estrutura de valores;

  • difusão de conteúdo – responsável por difundir as narrativas de forma rizomática na rede e garantir a circulação da informação e o direcionamento das mensagens fictícias para os grupos- alvo, difusão de narrativas para persuadir a mudança do comportamento político.

Essa divisão do trabalho articula as diferentes funções necessárias para o desenvolvimento desse conjunto de tarefas – concepção, agentes de financiamento, análise de dados, formação de grupos-alvo, produção de narrativas. Organiza sua totalidade em rede tecnopolítca para reproduzir a mesma estratégia em diferentes países do mundo. Essa articulação, por sua vez, engendra uma difusão rizomática de narrativas que circula pelo espaço híbrido e manipula a opinião de milhões de pessoas em todo o mundo.

Isso nos permite entender parte do discurso de extrema direita que propõe atacar as instituições democráticas ou, melhor dizendo, que defendem uma outra forma de poder que emana da sociedade. No lugar do Estado e das suas instituições, preconiza a organização de um exército de seguidores, associando um número considerável de pessoas em torno dessa forma de pensar e, com isso, mudar a cultura das nações liberais, capitalistas e globalistas.

Como podemos ler na Figura 3, essa rede orquestra uma divisão do trabalho pelo conjunto de agências que desempenham diferentes funções. A exemplo de uma fábrica taylorista, que fragmenta as funções da produção, a circulação da informação corresponde à estrutura que está representada no grafo. Nela podemos identificar: concepção ideológica, fundo de investimento, análise de dados por algoritmos, produção de conteúdo, narrativas por vídeos e textos, e difusão por redes sociais, até a realização de cursos e o marketing para publicizar a organização.

Figura 3
Divisão do trabalho entre membros da rede

Os dados levantados permitiram-nos identificar seus principais artífices: Steve Bannon, como sabemos foi presidente da Cambridge Analytica até a sua dissolução em 2018, e Robert Mercer, um dos presidentes da Strategic Communication Laboratories (SCL). A Cambridge Analytica reúne um conjunto de organizações que se articulam na rede e sua responsabilidade principal é fazer a gestão dessa articulação. Já a SCL responde pela análise dos dados mediante a aplicação de Inteligência Artificial (IA), para influenciar o comportamento das pessoas e transformar a sua ação política em benefício de interesses próprios da rede global.

Na Figura 3 estão representadas as agências, as lideranças e a circulação da informação que configuram a rede global e que se dedicam a tarefas específicas. A centralidade de Steve Bannon nessa rede pode ser explicada, pelo menos em parte, por sua movimentada história de vida. Sabemos que a experiência de cada indivíduo forma um acervo de conhecimento que nos permite elaborar o pensamento e produzir uma ação. Foi esse caminho que nos permitiu reunir, numa mesma análise, sua experiência de vida e sua ação política. Se, como militar, fez treinamento de combate e defesa, na direção da Breitbart News Bannon assumiu um discurso de ódio, fanatismo e violência. Sua passagem pelo Goldman Sachs ampliou sua capacidade de lidar com dinheiro e conhecer as práticas do processo de acumulação financeira. Presente também no mundo do entretenimento, financiou a série televisiva Seinfeld e foi diretor de cinema, o que lhe permitiu conhecer profundamente a linguagem imagética, reconhecendo sua importância na formação da subjetividade coletiva.

Portador de uma ideologia de extrema direita, enuncia uma justificativa que compreende o capitalismo como um sistema de dominação que transforma os seres humanos em mercadoria, sendo necessário o retorno a uma estrutura de valores associada às tradições judaico-cristãs. Com o apoio do casal de milionários americanos – o conhecido Robert Mercer e sua esposa Rebeca –, foi possível unificar o conhecimento associado ao conglomerado de mineração de dados e ciências da computação com a própria Social Communication Laboratory (SCL). Forma a totalidade cognitiva que permite tornar possível conceber a estratégia política para a formação de uma rede de extrema direita.

A Rede Tecnopolítica Global de Extrema Direita, capitaneada por Steve Bannon e Robert Mercier, reuniu 20 milhões de dólares e os investiu na criação da Cambridge Analytica4 4 Documentário Privacidade hackeada, disponível na plataforma Netflix. para realizar o plano de ação. O objetivo final de Bannon era reunir todas as agências em rede tecnopolítica, ampliar os processos de comunicação e ocultar suas atividades do controle dos governos. Por isso elas estavam localizadas em diferentes nações do mundo, sob a égide de diferentes legislações. E foi o que ele logrou fazer.

A partir do levantamento de dados nas redes sociotécnicas como, por exemplo, Facebook, e aplicando a técnica de influenciamento, que deriva dos algoritmos desenvolvidos por Robert Mercier, define públicos-alvo a serem bombardeados por narrativas fictícias, vale insistir, que guardam pouca ou nenhuma relação com a realidade e formam uma realidade paralela para produzir uma dissonância cognitiva. Sua experiência como militar, investidor, empresário, comunicador, e de sua percepção da importância das redes tecnopolíticas, ele produziu uma ação política que interferiu nas práticas democráticas de importantes países do mundo. Foi capaz de interagir na cultura de algumas nações do mundo e definir o seu rumo político.

As agências estão elencadas abaixo:

  • Breitbart News: site de extrema direita especializado em fake news, produzido por uma organização de jornalistas ideologicamente associados a um pensamento misógino, xenófobo e racista. Cumpre a função ideológica e sustenta a ação política. Está localizada em Nova York. Steve Bannon foi seu vice-presidente até 2018.

  • Renaissance Technologies LLC5 5 WEBSITE SEEKING ALPHA. Hedge Fund Portfolio Tracking: Renaissance Technologies (Jim Simmons), Q3 2008. 2009. Disponível em: <https://seekingalpha.com/article/114021-hedge-fund-portfolio-tracking-renaissance-technologies-jim-simons-q3-008?external=true&gclid=CjwKCAjwlcaRBhBYEiwAK341jeUmHmmgNSYHHgBTvDYap0hU3s0iZjYWfsaUFvjqmoKfHmov3VmLkRoC2EMQAvD_BwE&utm_campaign=14926960698&utm_medium=cpc&utm_source=google&utm_term=127894704186%5Edsa-1427141793820%5E%5E552341146729%5E%5E%5Eg.> : fundo financeiro criado em 1982 pelo premiado matemático James Simons6 6 Foi decifrador de códigos durante a Guerra Fria. , considerado o melhor gerente de dinheiro do mundo. Especializado em modelos quantitativos derivados de cálculos matemáticos e estatísticos, esse fundo de investimentos emprega especialistas em sistema financeiro, cientistas da computação, matemáticos, físicos, especialistas em processamento de sinais e estatísticos. O seu fundo Medallion de aposentadoria, altamente lucrativo, possuía, em 2021, US$165 bilhões em ativos discricionários sob sua gestão, tendo produzido um retorno de investimento da ordem de 33% entre 1988 e 2018. Foi presidido, entre outros, pelo já citado Robert Mercer e por Peter Brown, ambos cientistas de computação especializados em linguística computacional. Sediado em Nova York.

  • A Strategic, Communication Laboratories (SCL)7 7 https://sclgroup.online/. : liderada por Roger Mercer, desempenha uma função-chave nisso tudo. Em Londres, no escritório da organização, cientistas compilam e analisam bilhões de informações sobre os indivíduos, com o objetivo de determinar o que motiva os comportamentos humanos e, a partir daí, concebem discursos de persuasão. Para cada grupo humano é direcionada uma mensagem específica com o objetivo de influenciar os alvos/humanos.

  • Glittering Steel8 8 https://projects.propublica.org/trump-town/organizations/glittering-steel-llc. : sociedade de produção audiovisual de pequeno porte, cuja função é representar, em vídeos e textos, as narrativas propostas pelos ideólogos e influenciadores. Instalada em Londres.

  • Pas de Limite9 9 Traduzido do francês, quer dizer “sem limites”. : empresa de publicidade cuja função é responder pela difusão digital das narrativas. Sediada em Paris.

  • Tracts10 10 Idem. : seu significado pode ser lido como partes de um sistema que atuam em conjunto para alcançar um objetivo comum. Essa empresa tem por foco a gestão do marketing, como a produção de eventos, conferências, exposições, seminários, cursos, entre outros11 11 Não foi possível identificar sua localização. .

Vale destacar a presença e atuação de Robert Mercer como presidente dos diferentes grupos que compõem a rede, porque revela a sua importante participação na sua concepção, formação e financiamento. Esse entrelaçamento exige o reconhecimento das relações que associam o poder político da rede global e os fundos de financiamento em torno de interesses compartilhados. Essa relação entre corporações de informática e fundos de financiamento pode informar sobre o seu poder no mundo (Pessanha, 2019PESSANHA, R. M. A indústria dos fundos financeiros. Potência, estratégia e mobilidade. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.). Os fundos de financiamento têm como meta financiar projetos e alto rendimento que permitem o pagamento dos seus contribuintes. Para isso as corporações de informática precisam produzir lucros extraordinários para garantir o pagamento devido de juros aos mercados de capitais.

Damos uma importância especial à SCL, visto que ela rege um conjunto de organizações em rede, a saber: a Behavioural Dynamics Institut, a própria Cambridge Analytica, a Influencie Advisory Panel, a Iota Global, Iota Trade, Iota Defense, Iota Elections, Iota India e Iota Training – que atuam em diversos campos, monitorando e manipulando a inteligência e a subjetividade humanas. A partir do rastreamento, da disseminação e do consumo de narrativas online nas mídias sociais, a SCL direciona suas atividades de consultoria de comunicação estratégica para governos, partidos políticos e organizações militares em todo o mundo.

Sua complexa metodologia envolve três categorias – descrição do fenômeno, prognóstico e transformação – e associa um conjunto de variáveis, retiradas da política, da economia, da história, da cultura e da psicologia. Lançando mão de conceitos de diferentes disciplinas, essa agência é capaz de produzir indicadores que são armazenados em banco de dados, o que permite sua análise por mediação de algoritmos que identificam como os seres humanos se organizam e qual conteúdo lhes deve ser direcionado. Seus quase 9.000 funcionários, em sua maioria especialistas em Inteligência Artificial (IA) já realizaram 400 mil avaliações em todo o mundo. Através da indústria da influência e de metodologias de ampliação do conhecimento do comportamento das pessoas, ela se dedica a ampliar o consumo de toda e qualquer mercadoria. Apoiada por cientistas sociais e comportamentais, tem por objetivo orientar a ação dos governos e suas organizações militares globalmente12 12 https://sclgroup.online. Acesso em: 6/03/2022. .

Essa chamada indústria da influência acarreta importantes transformações na economia e na política. Em sua extensa pesquisa, Shoshana Zuboff ilumina o fenômeno e o denomina de “capitalismo de vigilância”, para revelar como a experiência humana se transforma em dados comportamentais que são analisados como “superávit comportamental”. Os dados, ao alimentarem processos de fabricação conhecidos como inteligência de máquina, geram produtos de “predição” – i. e., antecipam o comportamento das pessoas – denominados de mercado de comportamento futuro. Aplicando essas categorias à indústria da influência, torna-se possível fazer uma predição comportamental e, assim, prever a preferência dos eleitores no futuro. Desse modo, a direita mundial descobre como as fontes preditivas provocam um superávit comportamental, que representa vozes, personalidades e emoções. Isso lhe faculta intervir no jogo, no sentido de incentivar, persuadir e produzir comportamentos políticos. A análise de dados não só permite conhecer, mas também moldar o comportamento humano, tanto para comprar mercadorias, quanto para eleger governantes (Zuboff, 2021ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.).

Essa doutrinação, que captura milhões de pessoas no mundo, destrói a capacidade de pensamento dos seguidores e delega ao Outro a responsabilidade de atribuir sentido à existência, destrói e subordina a atividade de compreensão. Reserva para si própria a análise dos fatos e produz governos autoritários que se constituem com agressividade e tirania (Arendt, 1999ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.). Para tal, a Rede Global de Extrema Direita deve produzir um discurso que seja aceito por parte da sociedade, constituído por um conjunto de notícias falsas e tecido por vulgarizações complexas para aparecer como senso comum. É assim que os donos das redes conquistam o consentimento da sociedade, buscando derrubar uma ordem antiga e produzir uma nova ordem intelectual.

Rede bolsonarista de extrema direita

Não são poucas as evidências que articulam a rede de extrema direita no Brasil a essa rede global. São amplamente apresentadas pela imprensa as íntimas relações entre Donald Trump e a família Bolsonaro, que a teoria das redes denomina betwenees, que quer dizer “entre dois grupos”. A nossa contribuição é analisar a estratégia de ação e observar como ela se reproduziu no Brasil.

Essa mesma organização por funções em rede pode ser reconhecida no exame da Rede Bolsonarista, capitaneada por Jair, Carlos e Eduardo Bolsonaro, e que conta com ideólogos, influenciadores, produtores de conteúdo digital e difusores. Abaixo representamos a rede do ódio, o que nos autoriza a dizer que a estratégia concebida por Steve Bannon e Roger Mercer foi aplicada com sucesso no Brasil, tendo cumprido com o seu objetivo de eleger Jair Bolsonaro presidente do país. Para compreender a estratégia de ação, a pesquisa se desenvolve a partir da separação entre lideranças e seguidores. Para fazer isso foi possível examinar (os) a divisão do trabalho a partir do depoimento de Joice Hasselmann, na CPI das Fake news, lidas nas conversas do WhatsApp, o que nos permitiu representar a rede (figura 4).

Figura 4
Rede bolsonarista no WhatsApp.

No grafo apresentado na figura 4 fica evidente como a estratégia de ação corresponde à mesma divisão do trabalho da rede de extrema direita. O mesmo princípio de organização taylorista que divide a fábrica em ideólogos, produtores de conteúdo digital e difusores. Embora não tenha sido possível identificar a importante indústria da influência que faz a análise dos dados por mediação de algoritmo, tudo indica que a análise dos grupos-alvo está presente. Essa certeza resulta da pesquisa realizada no Facebook, que analisamos a seguir; nela foi possível observar que as narrativas são direcionadas para diferentes grupos sociais.

Para fazer essa pesquisa – que estava disponível na plataforma a ferramenta Netfizz – foram contabilizadas 980 páginas e 9 milhões de seguidores. Para alcançar sua análise aplicamos a teoria dos campos, de Bourdieu (1998, 2004), quando decupamos a rede em nove campos, associados por uma forma compartilhada de pensar, fazer e ser. Os dados aparecem na figura 5.

Figura 5
Rede bolsonarista no Facebook

Essa representação (figura 5) nos permitiu identificar os chamados seguidores; podemos ler na legenda como a grande maioria é formada por ativistas digitais de extrema direita, nacionais e internacionais. Nela foi possível identificar importantes atores da direita internacional e nacional. O campo político com a presença de atores de extrema direita como Donald Trump, Mitt Romney, Jair e Eduardo Bolsonaro, Movimento Brasil Livre (MBL). Não menos importantes são os membros da Defesa e Segurança que reúnem militares, policiais, clubes de tiro e indústria armamentista. No campo cultura foram incluídos religiosos e artistas conservadores. A identificação por campos revela os grupos sociais-alvo, que foram identificados e atraídos para a importante rede internacional de extrema direita, que atua no Brasil e no mundo (Egler; Pereira, 2021EGLER, T. T. C.; PEREIRA, T. C. A (in)visibilidade da rede bolsonarista. Revista Ar@cne Digital, Barcelona, v. 25, n. 25, p. 202, 2021.).

Sabemos que Olavo de Carvalho foi um dos principais artífices dessa organização no Brasil. De ideologia nazista, orientava sua ação política ancorada no ódio. Organizada de forma centralizada e autoritária, dela emana ódio contra tudo e todos que se opõem às suas posições de extrema direita, quando fica patente a violência da necropolítica que sustenta sua ação. São esses ideólogos que propagam a destruição da ciência e da tecnologia, dos meios da comunicação, o apagamento das ciências sociais, a perseguição e o emprego de todo tipo de violência contra todos os opositores.

Os produtores de conteúdo são os designers, videastas, escritores, aqueles que transformam os sentidos propostos pelos ideólogos na produção de conteúdo digital, quando aplicam IA, que adaptam o movimento da boca à fala das pessoas, modificam o rosto dos personagens, trocam a voz de uns pela voz de outros. Eles manipulam o movimento dos olhos e da boca, quando não chegam mesmo a substituir o rosto por inteiro, inventam cenários, atribuem qualquer sentido que se queira documentar. Conseguem, em resumo, produzir uma representação simbólica, fictícia, fake news, desinforma e produz uma ação política em benefício de valores autoritários e conservadores, produz um novo sentido na ação política das nações alvo (Egler; Pereira, 2021EGLER, T. T. C.; PEREIRA, T. C. A (in)visibilidade da rede bolsonarista. Revista Ar@cne Digital, Barcelona, v. 25, n. 25, p. 202, 2021.).

Sabemos, desde Freud, que podemos ler o pensamento do sujeito a partir de três registros – o real, o simbólico e o imaginário –, que formam uma totalidade indivisível. Lacan ensina como o simbólico remete simultaneamente à linguagem que condensa as relações sociais entre homens, como o imaginário designa a relação com a imagem que o indivíduo pode produzir sobre si mesmo e sobre o Outro, e como o real, que deve ser distinguido da realidade, é um efeito do simbólico, o que o simbólico não é capaz de representar (Chaves, 2009CHAVES, W. C. Las consideraciones con respecto al concepto de real en Lacan. Psicologia em Estudo, Maringá, 14, n. 1, p. 41-46, jan./mar. 2009, p. 42-64. Disponível em: file:///C:/Users/tamar/OneDrive/2022/artigos%20em%20processo%20de%20produ%C3%A7%C3%A3o/rede%20global/UV/biblioteca/transferir.pdf. Acesso em 12 ago. 2022.
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).

Para entender o significado de real em Lacan é necessário perceber a diferença que ele estabelece em relação à realidade. Se o real pode ser lido na relação do sujeito com o seu analista no ato da psicanálise, a realidade está associada à dimensão do social em si mesma. Que podemos ler na totalidade das relações humanas que são analisadas pelas Ciências Humanas, e podem ser mensuradas, examinadas e compreendidas. Essa distinção é importante porque a narrativa de extrema direita, pautada por uma personalidade doentia, egocêntrica e perversa confunde a enunciação do real da liderança, com a realidade social.

Desde Freud, conhecemos a importância do discurso do líder, que produz um contágio mental e determina as manifestações que permitem um sentimento de invencibilidade e produz um ser coletivo que age na direção do sentido indicado pelo líder, quando o indivíduo sacrifica seu interesse pessoal pelo interesse coletivo. Podemos imaginar como esse fenômeno é potencializado pela invenção das redes tecnopolíticas que permitem a enunciação de todos para todos (Freud, 2011FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.).

A vida humana não pode ser reduzida ao imaginário de uma organização política de extrema direita que assume para si mesma a representação da realidade. Tudo que pode ser analisado e compreendido é da ordem do simbólico. É nele que se dá a constituição do sujeito, porque está referido ao objeto que existe na realidade. O simbólico cumpre essa função, a de conferir significado no tempo e no espaço, preservando o homem na sua própria existência. Garante que o sujeito carregue o pensamento para além de sua própria imaginação, focando no mundo social (Chaves, 2009CHAVES, W. C. Las consideraciones con respecto al concepto de real en Lacan. Psicologia em Estudo, Maringá, 14, n. 1, p. 41-46, jan./mar. 2009, p. 42-64. Disponível em: file:///C:/Users/tamar/OneDrive/2022/artigos%20em%20processo%20de%20produ%C3%A7%C3%A3o/rede%20global/UV/biblioteca/transferir.pdf. Acesso em 12 ago. 2022.
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). Todo e qualquer discurso originário da imaginação conduz para uma realidade ilusória e destituída de significado, remetendo a uma subjetividade coletiva doentia e destituída de sentido social. Esse discurso, que individualiza e ignora a dimensão social da existência, está amparado numa estratégia política na qual se produz uma “realidade paralela”13 13 Para usar a categoria de Rocha (2021). que guarda pouca ou nenhuma relação com a existência social.

Os difusores das narrativas enunciadas pelas lideranças, estão associados a essa ideologia e sua função é inundar rizomaticamente a rede, tendo por meta ampliar o alcance de suas narrativas. Direcionadas aos grupos sociais vulneráveis, de pequeno capital intelectual, produzem a fragmentação e a polarização em dois grupos do tecido social. Um primeiro polo que faz a defesa de uma estrutura valórica civilizatória e democrática, e um segundo em defesa de valores tradicionais de extrema direita. O que resulta numa profunda mudança de nossa cultura.

O que exige o exame do significado das narrativas do presidente Bolsonaro, que fluíram pelas redes sociais. Foi possível ler todo tipo de falsas acusações, desde mentiras sobre a sexualidade, sobre o corpo, acusação de fatos que nunca existiram, ou das narrativas de valorização do kit Covid e de sua cloroquina como proteção ao vírus. Não menos importante é a destruição de instituições como o Superior Tribunal Federal (STF), o Superior Tribunal Eleitoral (STE), que dão sustentação ao regime democrático. Na enunciação de um discurso contra a esquerda, contra o STF, o STE e o Congresso Nacional, Lula, Dilma, Haddad e Moro. Até os juízes do STF foram alvo de fake news que tinham por objetivo a destruição dos princípios constitucionais que fundamentam a democracia.

Lembramos ainda o bombardeamento de sites opositores e a perseguição a políticos, artistas, professores, entre outros. Têm por objetivo aniquilar o opositor pela enunciação de uma narrativa que faz todo tipo de inversão, produz medo e imobiliza a ação política. A sua crueldade tem por propósito impedir qualquer ação discursiva que possa colocar em risco o seu poder hegemônico. Na sociedade em rede os discursos da extrema direita são enunciados a partir de uma lógica muito simples: pessoas possuidoras de uma capacidade técnica e discursiva assumem a condição de liderança, são reconhecidos como influenciadores. Apenas se formula um discurso persuasivo associado a um sentimento, lida com as emoções, sendo capaz de produzir um exército de seguidores, é totalmente desprovido de lógica da racionalidade. Para examinar essa enorme quantidade de seguidores e preciso considerar a fragilidade intelectual e econômica do grupo social. A universalização do acesso aos celulares e a participação em redes sociais, no debate político, permite formular a hipótese que considera como esse grupo acessa apenas a informação que circula na rede, e ela passa a ser a “realidade paralela” na qual se acredita. Essas pessoas passam a fazer parte de um coletivo e essa coesão forma um sentimento de identidade e pertencimento.

Para conhecer seus efeitos sobre a vida humana, há que se considerar o ecossistema complexo de produção de fake news, produção contínua de narrativas mentirosas (Salmon, 2007), descolada dos fenômenos que acontecem na existência e derivam da desinformação que toma conta do tecido social, o que vem a produzir uma realidade que não existe no presente, não tem fatos. Seu objetivo é consolidar a instauração de um Estado de extrema direita, totalitário, conservador e tradicionalista no Brasil.

Hegemonia do discurso mediático: convencimento para estabelecer uma nova ordem mundial

Essa combinação é que torna a hegemonia um conceito central (Gramsci,1979GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.). A acessibilidade e a conectividade à informação e à comunicação ampliaram a possibilidade de participação política, abrindo espaço para que os grupos sociais destituídos de qualquer categoria de capital – cultural, político, econômico ou social – viessem a constituir o objeto privilegiado do processo de desinformação, fraudando o livre-arbítrio dos indivíduos e a cultura das nações como um todo. Em nome de uma legitimidade produzida pelo convencimento, a extrema direita busca estabelecer uma nova ordem mundial, ancorada no retrocesso ético, moral e político. Uma ordem que destrói os princípios da democracia, fundada no poder da ação coletiva e resultante do consenso que orquestra o tecido social em direção ao bem comum.

Existe uma diferença entre o sentido imanente, de baixo para cima, da democracia e o sentido imanente proposto pela rede de direita, uma vez que este último traz em seu bojo um discurso criminoso centrado na produção de uma massa maleável, sem desejo nem discernimento próprios. Essa massa subordina-se completamente ao desejo do líder, cujo objetivo é produzir a dominação do outro, mediante atos políticos perpetrados por processos criminosos. Um impulso de lideranças que só pode ser descrito como o mal radical (Arendt, 1999ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.).

É uma ilusão pensar que essa rede de extrema direita perdeu seu poder diante da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência do Brasil em 2022. Ela está bem consolidada e sua ação política continua ativa. É preciso reconhecer que o mundo mudou e que as redes sociotécnicas tomaram conta da comunicação no espaço digital. Sendo que hoje estamos diante de uma ampla rede de comunicação que permite a ampla participação social, está além dos partidos políticos. Trata-se de valorizar o poder imanente das redes sociais em benefício do bem comum.

Não menos importante é observar que a eleição de Lula se deu pela forte participação do campo progressista nas redes sociais. Desde logo, os diferentes campos identitários se organizaram de forma auto-organizada, para fazer circular narrativas ancoradas na ciência e nos fatos. Não foram poucas as ações que fizeram a defesa da democracia. Para relembrar aqui o lugar da mídia alternativa que podemos ler nos tantos blogs, ou da sociedade civil progressista que logo passou a usar o WhatsApp e Facebook, nos artistas gráficos e seus memes, dos músicos que nos alegraram com suas paródias. Todos os dias em toda a rede foi possível observar um contrapoder que alcançou a possibilidade de colaborar firmemente com a eleição de Lula, e com isso colocar o país no caminho da democracia.

O desafio do presente é colocar limites à manipulação da subjetividade humana. Para isso será necessário levar adiante a categoria campo de Bourdieu, que dá significado às formas de organização do tecido social. Isso porque podemos observar um conflito que se estabelece entre as redes tecnopolíticas que fazem a defesa da democracia e as redes de extrema que fazem a defesa do autoritarismo. Considera-se possível reconhecer as oportunidades para a formação de redes tecnopolíticas que lutam e resistem ao poder de extrema direita. As redes de extrema direita representam um poder hegemônico e, ao mesmo tempo, as redes de defesa da democracia representam um contrapoder, lido como forma de expressão e de ação democrática. Esse é o sentido de nossa análise, reconhecer como a política se transforma, sendo que as redes tecnopolíticas devem ser examinadas como movimentos sociais de resistência no espaço digital. Por isso se propõem à formação de redes de defesa da democracia dentro do governo e fora dele, para a difícil tarefa de colocar limites ao ininterrupto processo de inundar fake news, que produzem desinformação nas pessoas que participam das redes sociais, e minam a democracia.

A única contraposição possível ao autoritarismo é a democracia, aquela que propõe a prioridade da vontade coletiva sobre a vontade individual. A radicalização da democracia (Habermas, 2003HABERMAS, J. Direito e democracia: entre a facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.) subordina e absorve o poder autoritário para defender um projeto de igualdade e justiça social. Trata-se de lutar por uma ordem social fundada no consenso, no qual o poder resulte da ação coletiva organizada de forma autônoma. Aí reside a importância das redes tecnopolíticas que façam valer um projeto democrático e promovam um trabalho terapêutico voltado para o combate da “realidade paralela” (Rocha, 2021ROCHA, J. C. C. Guerra cultural e retorica do ódio. Goiânia: Caminhos, 2021.). É tarefa de todos divulgar a informação do que existe na vida social, de modo a produzir o sentido de realidade e livrar as pessoas da ilusão. Trata-se, em outras palavras, de contrapor ao discurso ilusório as condições objetivas da existência social, de produzir informação para combater a desinformação.

Este é o nosso alerta: trata-se de incluir na estratégia política democrática o poder das redes auto-organizadas, imanentes no exercício da política. No sentido de articular os campos que compõem a sociedade democrática, incluindo diferentes atores, tais como os partidos políticos, as instituições da sociedade política, da cultura, acadêmico, a mídia corporativa e a mídia alternativa, os movimentos sociais, as organizações não governamentais, as igrejas de todas as religiões, para citar os mais importantes. As redes tecnopolíticas democráticas, imanentes e auto-organizadas devem ser capazes de fazer o enfrentamento da desinformação das redes da extrema direita e, assim, promover a resistência social e defender a democracia.

Referências

Editoras responsáveis:

Marialva Barbosa e Sonia Virgínia Moreira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2023
  • Aceito
    26 Out 2023
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