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MST e Escola Nacional Florestan Fernandes: formação, comunicação e socialização política1 1 Este artigo traz uma versão revista e ampliada de trabalho apresentado no Grupo de Pesquisa Comunicação para a Cidadania no XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, realizado em São Paulo de 4 a 9 de setembro de 2016.

MST y Escola Nacional Florestan Fernandes: formación, comunicación y socialización política

Resumo

Este artigo apresenta resultados de pesquisa sobre a formação política do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) a partir da comunicação e socialização com o trabalhador urbano. Utiliza-se o método dialético e são aplicadas técnicas qualitativas, entrevistas semiestruturadas com lideranças do MST, e pesquisa antropológica na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF). A ENFF, fundada pelo MST no município de Guararema, Estado de São Paulo, em 2005, é um dos principais espaços de formação política dos movimentos sociais da América Latina. Constitui também espaço estratégico para a formação, comunicação e socialização política entre a classe trabalhadora do campo e da cidade. A ENFF possui potencial para ser espaço de construção da hegemonia popular por meio da sociabilidade entre movimentos sociais do campo e da cidade, por meio da produção simbólica comum e da educação universalizante, contudo, ainda é um espaço em que prevalecem a hegemonia política e a cultura do MST.

Palavras-chave
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); formação política; hegemonia popular; campo e cidade

Resumen

Este artículo presenta los resultados de investigación sobre la educación política del Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra – MST) a partir de la comunicación y la socialización con el trabajador urbano. Utiliza el método dialéctico y aplica técnicas cualitativas, entrevistas semiestructuradas con los líderes del MST, y la investigación antropológica en la Escola Nacional Florestan Fernandes (Escuela Nacional Florestan Fernandes – ENFF). El ENFF, fundada por el MST en municipio de Guararema, Estado de San Pablo, en 2005, es un de los principales espacios de formación política de los movimientos sociales en América Latina. También es un espacio estratégico para la formación, la comunicación y la socialización política entre la clase trabajadora del campo y la ciudad. La ENFF tiene el potencial de ser el espacio para la construcción de la hegemonía popular por medio de la sociabilidad entre los movimientos sociales del campo y la ciudad, por medio de la producción simbólica común y la educación universalizar, sin embargo, sigue siendo un lugar en el que prevalece la hegemonía política y cultura del MST.

Palabras clave
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST – Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra); educación política; hegemonía popular; campo y la ciudad

Abstract

This paper presents results of research about the political formation of the Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Movement of Landless Rural Workers - MST) from the communication and socialization with the urban worker. We used the dialectic method and applied qualitative techniques, semi-structured interviews with MST leaders, and anthropological research at the Escola Nacional Florestan Fernandes (Florestan Fernandes National School – ENFF). ENFF, founded by the MST in Guararema, State of São Paulo, in 2005, is one of the main spaces for the political formation of social movements in Latin America. It is also a strategic space for the formation, communication and political socialization between the working class from the countryside and the city. ENFF has the potential to be a space of building popular hegemony through the sociability between social movements from the countryside and the city, through common symbolic production and universalizing education, yet it is still a place where political hegemony and culture of the MST prevail.

Keywords
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Movement of Landless Rural Workers – MST); Political formation; Popular hegemony; Field and city

Introdução

Este artigo apresenta resultados de pesquisa desenvolvida, entre 2010 e 2015, com o objetivo de compreender como se desenvolve historicamente a relação e articulação política entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a cidade, entre trabalhadores rurais e urbanos na luta pela hegemonia popular, a hegemonia da classe trabalhadora (BASTOS, 2015BASTOS, Pablo N. Marcha dialética do MST: formação política entre campo e cidade. 2015. Tese (Doutorado em Interfaces Sociais da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-29062015-151022/>. Acesso em: 16 fev. 2016.
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) e o que representa esta relação para a formação, a força, a prática e luta política dos Sem Terra2 2 Sem Terra em maiúsculo, nome próprio, refere-se aos militantes do MST, enquanto sem-terra é designação genérica do trabalhador rural desprovido de terra (FERNANDES, 2000). . Isso implica compreender a capacidade dialógica do MST, a disposição e intencionalidade pedagógica e comunicativa para as alianças políticas e de classe com o trabalhador urbano.

Utilizamos o método dialético e aplicamos técnicas qualitativas, entrevistas semiestruturadas, com os dirigentes e militantes, e também realizamos pesquisa antropológica3 3 A pesquisa antropológica foi realizada entre novembro de 2013 e junho de 2014, período no qual estivemos na ENFF em oito oportunidades. nas visitas à Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF). A metodologia desenvolvida, que combina pesquisa antropológica com materialismo dialético, possibilita iluminar aspectos microssociais, práticas sociais e culturais cotidianas, reveladores da totalidade, da luta de classes4 4 Na pesquisa que originou este artigo (BASTOS, 2015) também analisamos, com referencial dialético materialista, as relações históricas entre campo e cidade, a produção capitalista do espaço e os processos de formação de classe entre campo e cidade, com foco no MST, considerando os processos econômico, social, político, cultural e comunicacional. . O principal objetivo da pesquisa realizada na ENFF, que apresentamos neste artigo, foi identificar de que maneira a formação política e comunicacional desenvolvida na Escola, a sociabilidade desenvolvida neste espaço, contribui com o processo de comunicação e socialização política entre o MST e a classe trabalhadora urbana. E, mais especificamente, de que maneira a práxis política e pedagógica da/na ENFF contribuem para as alianças de classe que podem consubstanciar a hegemonia popular.

Com o avanço da pesquisa e do conhecimento sobre o tema, a composição do corpus teórico passou a se erigir em torno de três eixos de análise: o viés dialético materialista aliado à tendência crítica dos Estudos Culturais, a perspectiva materialista sobre a produção do espaço social e os estudos de comunicação sobre o MST.

Hegemonia, contra-hegemonia e hegemonia popular

Os conceitos de contra-hegemonia e hegemonia popular podem se equivaler, mas, na compreensão aqui desenvolvida, a ênfase recai sobre o potencial emancipatório do projeto popular contido na acepção de hegemonia popular. O conceito de contra-hegemonia foi desenvolvido por Raymond Williams, em 1971. Ao analisar hegemonia como processo, que possui estruturas internas complexas e precisa ser renovado e recriado continuamente, o autor inglês destaca que a hegemonia “sofre uma resistência continuada, alterada, desafiada por pressões que não são as suas próprias pressões” (WILLIAMS, 1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p.111-118, 1979., p.115-116) e afirma adiante que temos que acrescentar ao conceito de hegemonia os conceitos de contra-hegemonia e hegemonia alternativa. Hall (2003)HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. utiliza o conceito de hegemonia popular ao se referir à centralidade da cultura, do “nacional-popular”, na análise de desenvolvimento social e prática política realizada por Gramsci.

Temos a cultura popular como a cultura do povo, do senso comum, concepções de mundo e de vida que existem de forma concreta, geralmente com elementos progressistas e reacionários, como demonstrou Gramsci (1966)GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.; e como projeto popular que existe como possibilidade histórica concreta, que brota dessa cultura para superá-la e constituir outra cultura, outra realidade. Por isso há força política do popular nas narrativas, temas e palavras de ordem do MST – poder popular, educação popular e reforma agrária popular –, porque pensam a totalidade da classe trabalhadora a partir da perspectiva de hegemonia. O caminho para a construção da hegemonia da classe trabalhadora, da hegemonia popular, está na construção do poder popular a partir da educação e da cultura populares. Ou, conforme Hall (2003 p.246, grifo do autor)HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., “a capacidade de constituir classes e indivíduos enquanto força popular – esta é a natureza da luta política e cultural: transformar as classes divididas e os povos isolados – divididos e separados pela cultura e outros fatores – em uma força cultural popular-democrática”.

Tanto Lênin (2009)LENIN, V. I. Collected works. v.8. Digital Reprints, 2009. Disponível em: <http://www.marx2mao.com/PDFs/Lenin%20CW-Vol.%208.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2016
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, que formulou o conceito de hegemonia em 1905, quanto Gramsci (1978)______. Escritos políticos Volume 4. Lisboa: Seara Nova, 1978., que o utilizou pela primeira vez em 1926, enfatizaram a estratégia da aliança política das classes populares, entre o proletariado e o campesinato eminentemente, no processo de luta pela hegemonia proletária. Com a evolução e ampliação do conceito por Gramsci, o processo de hegemonia passa a envolver as alianças de classe do bloco histórico que está no poder e não somente as estratégias de luta da hegemonia proletária. Hegemonia se torna um amplo e complexo processo político, pedagógico e comunicacional de construção e manutenção do poder, nacional e internacional, que envolve o consentimento e o conjunto das classes sociais, instituições da sociedade civil e o Estado, em equilíbrio historicamente conjuntural com possíveis instabilidades, estruturado na base econômica e na direção moral, intelectual, política e cultural da maioria dos cidadãos. A esse conjunto de equilíbrio do poder entre base e superestrutura, forças materiais e ideológicas, Gramsci (1966, p.52)GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. dá o nome de “bloco histórico”. Essa é uma contribuição fundamental do autor: a unidade de classe não ocorrerá de maneira automática pela sua posição nas relações de produção, mas terá que ser em um “sistema de alianças” (HALL, 2003HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p.295).

As instituições educacionais são os principais agentes de transmissão e incorporação da cultura dominante (WILLIAMS, 2005______. Base e estrutura na teoria cultural marxista. Revista USP, São Paulo, n.66, p.210-224, 2005., p.217). Para Gramsci (1966)GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966., a ciência também é uma categoria histórica e, entre os níveis da superestrutura, o que possui particular potencial de ação reflexa: “no estudo das superestruturas a ciência ocupa um lugar privilegiado, pelo fato de que a sua reação sobre a estrutura tem um caráter particular, de maior extensão e continuidade de desenvolvimento (...)” (GRAMSCI, 1966GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966., p.71). Nesse ínterim, a formação de novos intelectuais orgânicos, oriundos das camadas populares, é prática central na luta pela hegemonia política e conquista do dirigismo político-ideológico, para a transformação histórica e constituição de novo bloco de poder. Indubitavelmente, a luta da/na educação é o nível hegemônico primordial tanto para a reprodução da cultura dominante como para a construção da hegemonia popular para a prática da educação libertadora que possibilite, freireanamente, eticizar o mundo (FREIRE, 2000FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.).

ENFF: formação, comunicação e socialização política

O processo de construção da ENFF possui relação direta com a evolução da pedagogia, da formação política e do Setor de Educação do MST. O início da ENFF remete ao final da década de 1980 e início da década de 1990. Na segunda metade da década de 1980, criam-se outros espaços de formação e socialização política, como as escolas sindicais, cursos periódicos de formação política desenvolvidos com o movimento sindical, vinculado à Central Única dos Trabalhadores (CUT) (FERNANDES, 2000FERNANDES, Bernardo M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000., p.175).

Em 1990, surgiu a primeira oportunidade de se formar uma escola nacional. Foi a partir de uma estrutura da Igreja Católica, na cidade de Caçador-SC, que se constituiu na primeira escola de formação do MST, denominada Centro de Formação e Pesquisa Contestado (CEPATEC), considerada a primeira Escola Nacional do MST, gérmen da ENFF (FERNANDES, 2000FERNANDES, Bernardo M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000., p.44). O processo de formação foi dimensionado para atender principalmente às necessidades de qualificação dos setores.

Em 1995, surge o Instituto Técnico de Estudos e Pesquisas da Reforma Agrária (Iterra), na cidade de Veranópolis-RS, com foco maior em ensino técnico e profissionalizante, sem descuidar da formação teórica e política que caracteriza a pedagogia do MST. Em 2001, a escola passa a se chamar Instituto de Educação Josué de Castro (IEJC). O processo de formação do MST busca formar os indivíduos em diferentes níveis – formação de base, militantes, dirigentes e quadros – para que intervenham na realidade, transformando-a e construindo-se novos sujeitos, individuais e coletivos. Uma das principais preocupações do MST é a formação política e ideológica da base, por meio do estudo, trabalho e da relação com a realidade. O trabalho é elemento central da cultura e da pedagogia Sem Terra. No início da sua trajetória, quando ainda não possuía massa crítica consistente para desenvolver seus processos de formação política e ideológica, o MST desenvolvia atividades formativas em parceria e diálogos constantes com o movimento sindical, a igreja e entidades do campo popular. No início, as atividades de formação adquiriram um caráter de agitação e propaganda para mobilizar as massas contra a violência ao trabalhador rural e para motivar as bases para as ocupações (FERNANDES, 2000FERNANDES, Bernardo M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000., p.40).

Desde 1996, o MST começou a refletir sobre a necessidade de construção de uma escola nacional geograficamente central. Os militantes mais antigos contam que era muito frio nas escolas do sul do país, além de ser muito difícil o deslocamento para o pessoal das regiões Norte e Nordeste. Em 1998, é lançado o Caderno de Formação no 29, com o título “Campanha de Construção da Escola Nacional do MST”. Na apresentação do Caderno é explicado que deliberaram no VIII Encontro Nacional, ocorrido em Salvador, a proposta de fazer um desafio ao MST a cada ano. Em 1996, os MST de vários estados compraram suas sedes. Em 1997, compraram a sede da Secretaria Nacional, em São Paulo. E 1998 deveria marcar a construção da Escola Nacional, que seria o símbolo da luta pelo estudo e escolarização. A ideia central da cartilha era “transformar a Campanha em uma grande Escola” (MST, 1998MST. Campanha de Construção da Escola Nacional do MST. Caderno de Formação n.29, 1998.).

Houve duas grandes campanhas organizadas pelo MST para a construção da ENFF. A primeira foi interna, com o objetivo de conscientizar e organizar a militância para o trabalho e a arrecadação de recursos. Foram apresentados cinco grandes objetivos para a construção da ENFF, que vamos expor resumidamente: buscar a prática intelectual e científica para a transformação da sociedade; estimular a organização social, política e econômica para superar os desafios internos da reforma agrária; formar lideranças que contribuam para a construção de uma sociedade justa; capacitar tecnicamente os militantes da reforma agrária; e, finalmente, destacamos: “proporcionar o intercâmbio de conhecimentos e experiências com outras organizações de trabalhadores, rurais e urbanos” (MST, 1998MST. Campanha de Construção da Escola Nacional do MST. Caderno de Formação n.29, 1998., p.15). Esse objetivo, apresentado na cartilha como o quarto, expressa o objetivo de que a Escola seja o espaço de formação, comunicação e socialização política entre a classe trabalhadora do campo e da cidade.

A outra grande Campanha para a ENFF foi externa, a partir da exposição do “Projeto Terra”, com as fotografias de Salgado, do CD produzido por Chico Buarque e do “Livro Terra”, que contou com a contribuição do escritor português José Saramago. O “Projeto Terra” se tornou o maior símbolo da “Campanha de Construção da Escola Nacional Florestan Fernandes”. O “Projeto Terra” foi o principal elemento comunicativo da campanha nacional e internacional, que projetou mundialmente o MST e trouxe recursos de organizações, inclusive internacionais, para a construção da Escola. A maior parte dos recursos veio da solidariedade de Sebastião Salgado, que cedeu o direito de imagens ao MST. A definição e compra do terreno se deu em julho de 1998 e as obras se iniciaram em 22 de março de 2000, com a chegada da 1ª Brigada, vinda do estado do Mato Grosso do Sul. O ato de inauguração foi em 23 de janeiro de 2005, após cinco anos de muito aprendizado coletivo, cultural e político. A Escola foi construída de forma voluntária seguindo a pedagogia do MST, com alternância, estudo, mística e luta.

As visitas à ENFF

A pesquisa antropológica realizada na ENFF teve como intuito conhecer o cotidiano da escola, a consubstanciação do projeto pedagógico, os visitantes, amigos, parceiros, a comunicação e socialização política entre os militantes de diferentes movimentos sociais que frequentam, vivem e convivem no espaço. A maioria dos movimentos sociais que participam dos cursos da Escola compõe a Via Campesina Brasil, a quem eles chamam carinhosamente de “primos”. De fato, na genealogia desses movimentos podemos compreender uma “linha de parentesco”, sobretudo na relação umbilical com a terra, o território e a natureza.

As oito visitas que fizemos à ENFF, as entrevistas, a participação em rodas de conversa, rodas de violão, cursos, foram essenciais para conhecer “de perto e de dentro” o MST, como preconiza a etnografia. Os dias passados por lá proporcionaram a imersão no cotidiano da ENFF, possibilitando-nos compreender algumas características das relações ali construídas, que envolvem laços políticos e de afeto. Conhecemos e conversamos com militantes de diversas organizações. A maioria do MST, mas também gente do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), do Levante Popular da Juventude, do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), Movimento Moradia para Todos (MMPT), entre outros. Algo que marcou esse período de convivência e sociabilidade foi o caráter coletivo do espaço. Juntamente com “companheirada”, o que mais se ouve na ENFF é a palavra “organização”. Organização do MST, organizações dos trabalhadores, organização dos espaços, das tarefas e, o mais importante, o pertencimento a uma organização. Esse é o elemento central de sociabilidade na ENFF.

Todos os que realmente passam pelo tempo escola, ou seja, que ficam uma temporada na ENFF, 20 dias, um mês, dois meses, a depender do curso, são vinculados a alguma organização. Não que o indivíduo não seja importante, mas o pertencimento a algum coletivo é condição preponderante para participar das atividades da Escola, para fazer parte dela. As primeiras palavras no encontro entre sujeitos desconhecidos, depois dos tradicionais “opa” e “tudo bem”, invariavelmente são “de que organização você é?”. Ser pesquisador não cria o pertencimento ao pedaço. Sente-se um pouco estranho, deslocado, mas, aos poucos, desenvolve-se a sociabilidade, principalmente pelo característico bom humor e companheirismo que predominam. Contudo, o ambiente não é predominantemente de festa e amizade. Nos cursos exige-se muita disciplina. O ritmo do cotidiano da Escola é quase militar, sem, contudo, perder a música, a mística e o sorriso da militância. Os horários devem ser seguidos à risca: o horário da mística, do estudo, das aulas, do almoço, das aulas novamente, do café e da janta.

Os sábados são os dias abertos para os visitantes na ENFF. A programação dos dias de visita é a seguinte: 8h30 às 9h – Boas vindas; 9h às 12h – Ciclo de Debate; 12h às 14h – Almoço; 14h às 16h – Visita monitorada às instalações da ENFF. Cobra-se o valor simbólico de R$ 10,00 (dez reais) para o dia da visita, correspondente ao café da manhã e almoço. O vídeo da ENFF, exibido nas visitas, chamado “ENFF: uma escola em construção”, é o lema da Escola e reflete o espírito do espaço: pessoas em permanente construção.

Nas atividades da ENFF, há sempre um violão por perto e alguém tocando. O MST é muito musical. Além das músicas compostas pela militância, também são tocadas muitas canções da música popular brasileira e do rock nacional, de Alceu Valença, Milton Nascimento e Titãs, entre outros; e também presenciamos o rap do Veneno H25 5 Ver: BASTOS, Pablo N. Rap da roça – Diálogos políticos entre a juventude do campo e da cidade. Comunicação & Educação, São Paulo, v. 21, n. 2, p.39-47, 2016. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/comueduc/article/view/109708>. Acesso em: 18 jul. 2017. , grupo composto por jovens militantes do MST. A mística e a música estão presentes até na sala de aula. Esse foi um dos aspectos que mais nos impactou ao participarmos de cursos na ENFF. Embora exista vasta produção e fomento à produção artística, a cultura é vista principalmente como meio para implementar as estratégias de luta do movimento, para construir e consolidar valores humanistas e, em última instância, construir o Socialismo.

Ao chegar à ENFF, as imagens são impactantes. Os temas dos diversos graffiti representam a mística revolucionária latino-americana, como o que ilustra o muro de entrada da ENFF e simboliza a união das etnias e movimentos sociais latino-americanos. É um lugar muito bonito, bem cuidado, cheio de imagens e símbolos de luta, que depois fui entender serem parte da mística do MST. Não somente do MST, mas da mística revolucionária latino-americana. Essa é uma constatação importante para os objetivos da nossa pesquisa: a organicidade e o intercâmbio com organizações, entidades e movimentos populares latino-americanos e internacionais são muito maiores do que com movimentos sociais urbanos, praticamente vizinhos à Escola. João Paulo Rodrigues6 6 Fizemos a entrevista com o dirigente no dia 01 abr. 2014, na Secretaria Nacional do MST, em São Paulo. faz crítica incisiva ao uso que organizações de esquerda fazem da ENFF que, para o dirigente, ainda não souberam aproveitar o espaço politicamente.

O MST escola, cá entre nós, é mais aproveitado pela Via Campesina, pela Consulta Popular, a Marcha das Mulheres também. As organizações em muitas escolas é mais como uma casa de retiro. “Ah vou levar meu povo para conhecer a escola e ficar dois dias lá”. Aquilo ele pode fazer em qualquer hotel. Uma pousada política. Não tem nada a ver. (...) A escola não é para isso, fazer pousada barata para quem quer. Não é esse sentido. Tem uma disciplina, um processo, um método pedagógico. Não conseguimos fazer com que a escola fosse melhor aproveitada pelas esquerdas.

Na maioria das vezes em que visitei a ENFF, cheguei bem cedo, antes das 8h, para poder participar da mística e do café da manhã. Podemos dizer que todo momento de alimentação junto aos militantes, amigos e parceiros do MST constitui um ato místico e político. Místico pela consagração e consumo coletivo do alimento; e político pela constatação de que é possível outro modelo de agricultura. Os momentos de alimentação na ENFF também são grande oportunidade para a pesquisa etnográfica. Durante esses momentos, pudemos nos aproximar mais do público da Escola, participar das conversas informais, mergulhar e vivenciar junto às pessoas o espaço social, cultural e simbólico. Ao proporcionar, na prática, alimentos saudáveis a todos com preço baixo, o MST mostra ser possível concretamente o modelo de agricultura popular que defende: produção de alimentos sem veneno, com matriz tecnológica agroecológica e a preço baixo para a classe trabalhadora. Sempre há frutas, legumes, hortaliças, compotas, geleias e sucos produzidos pelas cooperativas dos seus assentamentos. Esse é um assunto que costuma fazer parte das rodas de conversa: a diferença entre o modelo proposto pelo MST, movimentos sociais campesinos e Via Campesina e o modelo hegemônico da agricultura capitaneado pelo agronegócio.

Compreendemos a mística do/no MST de três maneiras que se interpenetram na prática social: primeiramente a mística reúne todo campo sígnico, a simbologia de luta construída e apropriada durante a trajetória de luta: a bandeira, o hino, palavras de ordem, as poesias, músicas, os instrumentos e frutos do trabalho, dessa maneira, a mística também compõe os processos comunicativos e pedagógicos do MST. Mais subjetivamente, a mística é o sentimento que anima a luta, que motiva o militante a marchar, a ouvir uma história de luta, música ou poesia, portanto, nesse aspecto, a mística é a subjetivação dos estímulos sígnicos. Para finalizar, existe o espaço-tempo da mística, o ato comunicativo-pedagógico-cultural-artístico, um ritual quase litúrgico, em que a militância do MST ou de outros movimentos sociais, como ocorre na ENFF, elabora uma prática que envolve diversas linguagens: música, poesia, teatro, imagens, palavras e símbolos que se relacionam com as lutas do MST, dos movimentos campesinos e da classe trabalhadora de forma geral. O hino e a bandeira do Movimento estão sempre presentes como símbolos máximos desse momento. John7 7 Os integrantes do Veneno H2 nos concederam entrevista no dia 21 set. 2011, em imóvel que o MST alugava no bairro da Barra Funda, na cidade de São Paulo. , do grupo de rap Veneno H2, descreve assim a mística:

Muita gente não conhece. Mas no Movimento a questão cultural é muito grande. Na questão da música, da arte, o artesanato. A mística é também muito forte dentro do movimento. Não é uma representação só. A mística é aquilo que você vê e te causa indignação, você arrepia, assim, vendo aquilo. E é denúncia, faz denúncia das coisas, é legal. Na verdade, a mística foi a única coisa que a elite não conseguiu se apropriar, porque não consegue mexer lá na indignação das pessoas. Porque é o que a mística faz.

A comunicação da mística como ritual não é imediata. Pode se sentir, mas não se compreende o sentido da mística para o MST em um primeiro momento. É preciso um conjunto de mediações, o conhecimento da história, da cultura e das práticas do Movimento para a intelecção dessa prática. Por isso, nos dias de visita à ENFF, a ânsia de algumas pessoas em fotografar e filmar a mística, o encantamento demonstrado, envolve um distanciamento cultural, a exaltação da beleza do ato místico como algo exótico, folclórico, na acepção politicamente negativa do termo. Certeau, Julia e Revel (1989, p.59-60)CERTEAU, M. de; JULIA, D.: REVEL, J. A beleza do morto: o conceito de cultura popular. In: REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Lisboa: Difel, 1989. mostram como a moda das canções populares ao final do século XVIII, na França, partia da concepção elitista, do “confisco” histórico do popular. “O prazer sentido no halo ‘popular’ que envolve essas melodias ‘ingênuas’ funda justamente uma concepção elitista da cultura. A emoção nasce da própria distância que separa o ouvinte do suposto compositor”.

Todos os dias, na ENFF, às 7h45, é o momento da mística. No Iterra eles chamam esse momento de Tempo Formatura. Sempre um Núcleo Base (NB) é responsável pela preparação da mística. Para a vivência das atividades pedagógicas, os estudantes se organizam em NBs. É a maneira encontrada para se organizarem nos estudos e nas tarefas da Escola. Há momentos em que se realizam simultaneamente diversos cursos na ENFF, com turmas e movimentos sociais diversos. A mística é o momento de socialização entre todos os que estão na Escola, por isso aproveitam esta situação para darem os principais informes do dia, a organização das atividades, aulas, tarefas etc. Na maioria das místicas que presenciamos há diálogo com a data e o momento histórico. Como no dia 27 de junho de 2014, durante a Copa do Mundo no Brasil, no Encontro do Coletivo Nacional de Comunicação, Cultura e Juventude, na ENFF, quando os jovens do Coletivo fizeram uma mística em que encenaram, a partir de personagens opressores e oprimidos, as contradições históricas, sociais e culturais da realização do evento no país. Uma peça didática, brechtianamente, com o traço e a mística do MST. Esse diálogo com o momento histórico fortalece o potencial comunicativo e pedagógico da mística. Com a participação cada vez maior da juventude, o diálogo intercultural entre campo e cidade se torna mais efetivo. Dirime-se aos poucos o polêmico debate que envolve a negação absoluta de tudo o que vem da cidade, a valorização incondicional das tradições culturais camponesas e a crescente aproximação entre o rural e o urbano. Essa aproximação se deve principalmente a três processos: a espacialização do capital e do MST, que aproximam materialmente e simbolicamente o campo e a cidade, a formação teórica nos setores de comunicação, cultura e formação, com foco no conceito gramsciano de hegemonia, e as experiências comuns entre a juventude do campo e da cidade, cada vez mais próximas.

V Turma de Teoria Política e Organizações Sociais do Brasil

A V Turma de Teoria Política e Organizações Sociais do Brasil teve a seguinte configuração: MST = 17, sendo nove homens e oito mulheres; Pastoral da Juventude Rural (PJR) = uma mulher; MAB = quatro, sendo um homem e três mulheres; Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) = dois (um homem e uma mulher); MTD = dois homens; MMPT = três, sendo um homem e duas mulheres); Movimento de Trabalhadores do Campo (MTC) = um homem.

A turma foi dividida em cinco NBs. O último dia de curso, 11 de abril de 2014, iniciou-se com uma aula sobre Florestan Fernandes, ministrada por Miguel, da Editora Expressão Popular. Logo no início, destacou-se no ambiente a presença da mística do MST. Havia um violão e um rapaz do MST dedilhou algumas canções. Nesse dia, também toquei algumas músicas que falam do campo, como “Capim Guiné”, do Raul Seixas. Todos cantamos juntos e disseram que eu devia participar da mística. O comentário mostra o aspecto lúdico da mística e a experiência artística também como fruição. Os músicos do MST costumam tocar canções diversas do cancioneiro popular nacional e não apenas canções do próprio Movimento. Contudo, músicas consideradas machistas ou muito “comerciais” não são bem-vindas. No meio da sala de aula havia diversos elementos que compõem a mística.

A mística presente na sala de aula, com bandeiras, instrumentos e frutos do trabalho, reforça a identidade camponesa no processo de ensino-aprendizagem. É algo que possui seu aspecto positivo, tendo em vista a histórica supremacia da cultura citadina nas escolas brasileiras. Contudo, há o risco da cultura se sobrepor à educação universalizante e à linguagem da contradição, à linguagem da teoria crítica (DEBORD, 2003DEBORD, Gui. Sociedade do espetáculo. 2003. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html>. Acesso em: 16 fev. 2016.
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/soce...
, p.204). A mística também foi evocada de forma bastante espirituosa: quando todos pareciam cansados da aula expositiva sobre Florestan Fernandes, uma moça pegou a cartilha de música “Canta MST” e começou a puxar uma canção junto aos colegas de sala, que acompanharam alongando seus corpos, e depois a aula transcorreu normalmente. Miguel usou o método expositivo e criou um mapa conceitual a partir do diálogo e debate com os estudantes sobre a vida e a obra de Florestan Fernandes.

Após a aula sobre Florestan Fernandes, tivemos uma Oficina de Comunicação, que foi ministrada por Carlinhos, do MST de Belém. Ele é um dos 45 militantes que se formaram em Jornalismo da Terra, pela Universidade Federal do Ceará (UFC), no final de 2013. O curso foi uma parceria do MST com a UFC. Também houve a participação de militantes do MAB. A oficina aconteceu no auditório “Patativa do Assaré” e foi baseada na leitura de documento do Setor de Comunicação do MST chamado “Hegemonia, política, comunicação e cultura” (MST, 2005MST, Setor Nacional de Comunicação e Coletivo Cultura do. Hegemonia, Política, Comunicação e Cultura. Brasília, 2005.). O fato histórico exposto para a aplicação da teoria desenvolvida no documento foi a ação das mulheres da Via Campesina, no dia das mulheres de 2006, quando protestaram contra o “deserto verde” das florestas de eucalipto da Aracruz Celulose destruindo algumas mudas do horto florestal pertencente à empresa. Foi exposto um vídeo da Via Campesina para contrapor reportagem da Folha de S. Paulo divulgada na época e que trazia o título “Mulheres depredam fábrica de celulose no RS”. A repercussão desse episódio na mídia, sobretudo na Rede Globo de Televisão, prejudicou muito a imagem do MST junto à sua base e à sociedade. Na hora do debate, todos reconheceram o componente ideológico utilizado na comunicação, tanto do vídeo da Via Campesina, como do jornal “Folha de S.Paulo”. As histórias de famílias inteiras que foram expulsas de suas terras pelos “desertos verdes” foram fatores de sensibilidade que não deixaram dúvidas para os militantes de quem era o vilão da história.

O assunto mais trazido pela militância dos movimentos sociais para aplicar os conceitos de hegemonia foi a teledramaturgia. As mulheres todas criticaram a minissérie que estava em exibição pela Rede Globo, “Amor e Ódio” que, segundo elas, mostrava as mulheres como “vagabundas”. Toda a discussão foi muito fecunda. A reflexão crítica que fazemos é que poderiam ter usado mais exemplos de luta pela hegemonia popular que envolvessem os trabalhadores urbanos, com o intuito de gerar maior identificação de classe com a militância de movimentos urbanos participantes do curso.

Significativo para a comunicação e socialização política da militância que participou do curso foi o momento de avaliação da experiência do período em que estiveram na ENFF: o tempo escola (período que se dedicam para estudar), tempo trabalho (cerca de duas horas diárias em que contribuem com as tarefas da Escola) e as reflexões e orientações para os estudos durante o tempo comunidade (quando os estudantes retornam às suas bases para multiplicar o que aprenderam). Durante o período da tarde, após o almoço, a militância reunida nos NBs se comunicou acerca do período em que estiveram na Escola.

A última atividade do dia foi a comunicação e socialização das experiências a partir da fala de um militante escolhido por cada NB para relatar as reflexões do grupo. Primeiramente, foi reforçada a importância da leitura e foram entregues aos participantes do curso cópias de contos do autor Jack London, Como me tornei um Socialista, O mexicano e Fazer uma fogueira, para serem lidos e socializados com a militância dos movimentos sociais durante o tempo comunidade. A militante do MST que coordenou este momento destacou a relevância da aproximação com a linguagem da literatura. A leitura e discussão do texto devem fundamentar o trabalho de base durante o tempo comunidade. Quando retornarem para mais uma etapa de curso na ENFF, após o tempo comunidade, que dura em torno de três meses, cada militante terá a tarefa de se comunicar com o coletivo sobre as reflexões da leitura desenvolvidas durante o trabalho de base.

A segunda tarefa apresentada pela militante do MST, fazer as apresentações das organizações, veio da proposta de um dos NBs. O apontamento crítico evidencia que conquanto os diálogos entre a militância das organizações tenham ocorrido durante os cursos, o tempo trabalho e as refeições, não houve um momento do curso de fato destinado para o intercâmbio entre as estratégias e princípios políticos das organizações. Contudo, a incorporação da tarefa foi feita a tempo de aprofundarem o diálogo político. Os militantes foram orientados a estudarem a sua organização, seus elementos culturais e políticos, para posteriormente fazerem o processo comunicativo sobre este aprendizado. Foi destacado que esse é um desafio para o próprio MST: explicar o que é a organização, quais são seus objetivos e propostas políticas. Pelo próprio caráter do Movimento, esse discurso evolui conforme o momento histórico e político. Outra orientação para a próxima etapa de tempo escola foi para as organizações trazerem elementos culturais regionais para presentearem e agradecerem os professores parceiros, que vierem lecionar nos cursos, e para ornarem os espaços de aulas e místicas.

O último ponto discutido na abertura das avaliações foi sobre as escolhas dos nomes dos NBs. Geralmente, a militância propõe o nome de um histórico militante político da esquerda, principalmente da América Latina, e cria uma palavra de ordem com base na história política deste militante. Entretanto, a militância também pode nomear o NB com base em uma data ou momento histórico, como Comuna de Paris, Revolta de Canudos, Contestado etc. Dentro de cada NB, um militante fica responsável por registrar a memória do curso por meio de imagens, vídeos e relatos. Após os cursos, o setor de memória desenvolve um arquivo em mídia com esses registros.

Considerações finais

A comunicação e socialização política entre movimentos sociais do campo e da cidade são incipientes. Esse é um nível de luta pela hegemonia que se fortalece à medida que a classe trabalhadora luta em conjunto, quando se reconhecem como aliados e identificam inimigos comuns a serem combatidos. A comunicação que se desenvolve na luta e na socialização política é aquela com maior radicalidade, ou seja, que produz novos sentidos capazes de erigir novos sujeitos individuais e coletivos. Em grande medida, a comunicação do MST e dos principais movimentos populares possui função defensiva, mais intenção de descontruir o discurso da mídia associada material e ideologicamente com o bloco de poder, menos de se comunicar com outros setores e organizações populares. Dessa maneira, o potencial contra-hegemônico dessa comunicação política é limitado pelo seu caráter insular, pela circunscrição ao seu campo sígnico, território de luta e função defensiva.

A ENFF possui potencial para se constituir como espaço de construção da hegemonia popular por meio da sociabilidade entre os movimentos sociais, pela produção simbólica comum e pela educação universalizante, porém é um espaço em que ainda prevalecem a hegemonia política e a cultura do MST, com pouca participação de movimentos populares urbanos bastante representativos, sejam ligados às lutas por moradia, centrais sindicais ou organizações estudantis. Há maior diálogo entre os movimentos sociais que compõem a Via Campesina, mas estes não possuem participação massiva e comunicação junto a outros movimentos populares e instâncias representativas do ambiente urbano. A proposta de um Projeto Popular para o Brasil pode evoluir a partir de um trabalho de base consistente e se a classe trabalhadora de fato construir a consciência política no processo de luta, nas alianças, diálogos e arranjos sociais.

  • 1
    Este artigo traz uma versão revista e ampliada de trabalho apresentado no Grupo de Pesquisa Comunicação para a Cidadania no XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, realizado em São Paulo de 4 a 9 de setembro de 2016.
  • 2
    Sem Terra em maiúsculo, nome próprio, refere-se aos militantes do MST, enquanto sem-terra é designação genérica do trabalhador rural desprovido de terra (FERNANDES, 2000FERNANDES, Bernardo M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.).
  • 3
    A pesquisa antropológica foi realizada entre novembro de 2013 e junho de 2014, período no qual estivemos na ENFF em oito oportunidades.
  • 4
    Na pesquisa que originou este artigo (BASTOS, 2015BASTOS, Pablo N. Marcha dialética do MST: formação política entre campo e cidade. 2015. Tese (Doutorado em Interfaces Sociais da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-29062015-151022/>. Acesso em: 16 fev. 2016.
    http://www.teses.usp.br/teses/disponivei...
    ) também analisamos, com referencial dialético materialista, as relações históricas entre campo e cidade, a produção capitalista do espaço e os processos de formação de classe entre campo e cidade, com foco no MST, considerando os processos econômico, social, político, cultural e comunicacional.
  • 5
    Ver: BASTOS, Pablo N. Rap da roça – Diálogos políticos entre a juventude do campo e da cidade. Comunicação & Educação, São Paulo, v. 21, n. 2, p.39-47, 2016. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/comueduc/article/view/109708>. Acesso em: 18 jul. 2017.
  • 6
    Fizemos a entrevista com o dirigente no dia 01 abr. 2014, na Secretaria Nacional do MST, em São Paulo.
  • 7
    Os integrantes do Veneno H2 nos concederam entrevista no dia 21 set. 2011, em imóvel que o MST alugava no bairro da Barra Funda, na cidade de São Paulo.

Referências

  • BASTOS, Pablo N. Marcha dialética do MST: formação política entre campo e cidade. 2015. Tese (Doutorado em Interfaces Sociais da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-29062015-151022/>. Acesso em: 16 fev. 2016.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2017
  • Aceito
    07 Jul 2017
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