Resumo
Introdução: O rastreio da doença renal crônica (DRC) em pacientes com diabetes (DM) possibilita o diagnóstico precoce e ajuda a estabelecer um tratamento adequado, evitando possíveis danos à saúde pela progressão da doença. O objetivo deste trabalho foi verificar se o rastreio da DRC está sendo feito de maneira adequada entre diabéticos acompanhados na atenção primária à saúde.
Métodos: Estudo descritivo com 265 pacientes com DM atendidos nas Unidades Básicas de Saúde de Divinópolis, MG. A coleta de dados clínicos e laboratoriais foi realizada por meio de consulta ao Sistema Integrado de Saúde. Foram calculadas a frequência de realização dos exames de avaliação da função renal nos últimos 12 meses e a frequência de pacientes com excreção urinária de albumina (EUA) aumentada e a taxa de filtração glomerular (TFG) reduzida, e assim determinada a frequência de pacientes com comprometimento renal.
Resultados: Foi observado que 41,2% dos pacientes têm comprometimento renal; dentre esses, 61,2% utilizam algum medicamento nefroprotetor. Apenas 21,9% realizaram o exame de albuminúria isolada, dos quais 46,5% apresentaram albuminúria aumentada. O exame de relação albumina/creatinina (RAC) foi realizado por 12,1% dos pacientes, dos quais 43,8% apresentaram RAC aumentada. Foi observado que 89,0% dos pacientes realizaram o exame de creatinina sérica, dos quais 33,1% apresentaram TFG reduzida.
Conclusão: Foi observado maior índice de rastreio da DRC por meio da TFG em relação ao rastreio por meio da EUA, o qual foi realizado por pequeno número de pacientes. Portanto, o rastreio da DRC não está sendo realizado adequadamente na atenção básica ao diabético.
Descritores: Insuficiência Renal Crônica; Diabetes Mellitus Tipo 2; Albuminúria; Taxa de Filtração Glomerular; Nefropatias diabéticas
Abstract
Introduction: Screening patients with diabetes mellitus (DM) for chronic kidney disease (CKD) enables early diagnosis and helps to establish adequate treatment and avoid possible damages to health associated with disease progression. This study aimed to verify whether screening for CKD has been properly conducted in populations with diabetes mellitus seen at primary care clinics.
Methods: This descriptive study included 265 individuals with DM seen at Basic Healthcare Clinics in Divinópolis, MG, Brazil. Clinical and laboratory data were collected from the Integrated Health System. Frequency of testing and kidney function evaluations performed within the last 12 months were calculated along with the proportion of patients with increased urinary albumin excretion (UAE) and decreased glomerular filtration rate (GFR) to determine the proportion of patient with kidney involvement.
Results: We found that 41.2% of the patients had kidney involvement and that 61.2% of the individuals with kidney involvement were on nephroprotective medication. Of the 21.9% tested for isolated albuminuria, 46.5% had increased UAE. The albumin-to-creatinine ratio (ACR) was measured in 12.1% of the patients, with 43.8% having an increased ACR. We found that 89.0% of the patients had their serum creatinine levels measured, and that 33.1% had a decreased GFR.
Conclusion: CKD screening was more frequently performed via the GFR than UAE, a parameter analyzed only in a small proportion of patients. Therefore, CKD screening for patients with diabetes is not being performed properly in primary care.
Keywords: Renal Insufficiency; Chronic; Diabetes Mellitus; Type 2; Albuminuria; Glomerular Filtration Rate; Diabetic Nephropathies
Introdução
A doença renal crônica (DRC) é uma anormalidade da estrutura e/ou função renal com complicações para saúde do indivíduo que persiste por um período maior que três meses relacionada a elevadas taxas de morbidade e mortalidade1. Uma das suas principais causas é o controle inadequado do diabetes mellitus (DM), o qual leva a complicações microvasculares, destacando-se o desenvolvimento da DRC2.
A DRC pode ser definida pela taxa de filtração glomerular (TFG) diminuída (< 60 mL/min/1,73m2), pelo aumento da excreção urinária de albumina (EUA) [relação albumina/creatinina (RAC) ≥ 30 mg/g ou albuminúria na urina de 24 horas ≥ 30 mg/24 horas], ou por exames de imagem anormais. A DRC pode ser classificada em três estágios, de acordo com a albuminúria, e em cinco estágios, de acordo com a TFG, sendo o último estágio o de falência renal3.
Cerca de 30% a 50% dos pacientes com DM2 desenvolvem DRC. Além disso, o diabetes mellitus (DM) é a segunda principal causa de DRC em pacientes no estágio de falência renal3. Segundo o inquérito Brasileiro de Diálise, no ano de 2019, 32% dos pacientes em diálise apresentavam DM como causa primária4.
Em função do início assintomático da DRC, o rastreio da DRC deve ser realizado assim que houver o diagnóstico de DM2 e repetido anualmente para detecção precoce da DRC, sendo extremamente importante que o rastreio da DRC seja realizado em 100% dos pacientes com DM2 que tenham mais de 5 anos de história de DM. Como uma porcentagem significativa de pacientes com DRC pode apresentar albuminúria normal, mas TFG diminuída, é necessário realizar a avaliação da EUA em conjunto com a TFG para o rastreio da DRC dos pacientes com DM5.
Os pacientes com DRC apresentam sintomas somente nos estágios mais avançados, quando surgem complicações associadas, tais como anemia, acidose metabólica, desnutrição, alterações do metabolismo de cálcio e fósforo, podendo evoluir para doença renal terminal e óbito5.
Portanto, o rastreio da DRC dos pacientes com DM é extremamente importante, já que pode auxiliar no diagnóstico precoce da DRC, diminuindo o seu impacto na sociedade e no sistema de saúde público, pois pode ajudar a estabelecer um tratamento adequado, por meio da utilização de fármacos nefroprotetores, diminuindo a ocorrência de complicações e atenuando os casos de pacientes que necessitam de terapia renal substitutiva3.
Considerando a escassez de estudos observacionais sobre o rastreio da DRC em pacientes com DM2, este estudo teve como objetivo verificar se o rastreio da DRC nos pacientes com DM2 atendidos nas Unidades Básicas de Saúde de Divinópolis, MG, está sendo realizado adequadamente.
Metodologia
O presente trabalho é um estudo descritivo. No município de Divinópolis, MG, há 32 Equipes de Saúde da Família (ESF) e 11 Equipes de Atenção Básica (EAB), as quais atendem em torno de 10.800 pacientes com DM2. O cálculo amostral foi realizado considerando uma população de 10.800 pacientes com DM2, com erro amostral de 5% e nível de confiança de 95%, resultando em 241 pacientes. A este valor foi adicionado 10%, para possíveis perdas, resultando em um total de 265 pacientes.
Em cada uma das 6 regiões de saúde da cidade foram sorteadas duas ESF ou EAB para coleta de dados dos pacientes. Foram coletados os dados de 265 pacientes, sendo o número de pacientes em cada ESF ou EAB proporcional ao número de pacientes atendidos e cadastrados nas Equipes. Os critérios de inclusão foram: diagnóstico clínico e laboratorial de DM26 e possuir dados clínicos e laboratoriais cadastrados no Sistema Integrado de Saúde. Não houve critérios de exclusão.
A coleta de dados clínicos e laboratoriais dos pacientes foi realizada por meio de consulta a uma fonte secundária de informação, o Sistema Integrado de Saúde. Para analisar o rastreio da DRC, foi calculada a frequência de realização do exame hemoglobina glicada (HbA1c) nos últimos seis meses e a frequência de realização dos exames de avaliação da função renal albuminúria isolada, RAC, creatinina sérica e TFG estimada por meio da equação CKD-EPI no último ano.
Além disso, foram calculadas a frequência de pacientes com controle glicêmico inadequado (HbA1c ≥ 7,0%), EUA moderadamente aumentada (albuminúria isolada ≥ 14 e < 174 mg/L ou RAC ≥ 30 mg/g e < 300 mg/g), EUA intensamente aumentada (albuminúria isolada ≥ 174 mg/L ou RAC ≥ 300 mg/g) e TFG reduzida (< 60 mL/min/1,73m2)2. Também foi determinada a frequência de pacientes com comprometimento renal, o qual foi definido pela presença de albuminúria isolada ≥ 14 mg/mL e/ou RAC ≥ 300 mg/g e/ou TFG < 60 mL/min/1,73m2,3 e a frequência de pacientes que utilizam algum medicamento nefroprotetor (inibidor da enzima conversora de angiotensina ou bloqueador do receptor de angiotensina).
Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de São João del Rei - Campus Centro-Oeste (CEP CCO - nº 2.433.578). Foi obtida dispensa do Termo de Consentimento Livre de Esclarecido (TCLE).
Resultados
Observou-se predominância de pacientes idosos, sendo em sua maior parte do sexo feminino. Com relação aos parâmetros corporais de altura, peso e o cálculo do índice de massa corporal (IMC), foi demonstrada a presença de sobrepeso nessa população7. Quanto à idade de diagnóstico do DM2, obteve-se média de 48 anos, com uma duração mediana de 10 anos (Tabela 1).
Características sociodemográficas e clínicas dos pacientes com diabetes mellitus tipo 2 atendidos nas Unidades Básicas de Saúde de Divinópolis, MG no período de 1 ano
Nos dados cadastrados no Sistema Integrado de Saúde, foi observado que pouco mais da metade dos pacientes utiliza algum medicamento nefroprotetor e que 98 pacientes (41,2%) estão com EUA aumentada e/ou TFG reduzida, indicando a presença de comprometimento renal. Dentre os pacientes com comprometimento renal, pouco mais de 60% utilizam algum medicamento nefroprotetor.
Na Tabela 2 estão apresentados os dados laboratoriais dos pacientes com DM2. Foi observado que 239 pacientes (90,2%) realizaram a monitorização dos níveis de HbA1c nos últimos 6 meses, resultando em um valor médio de HbA1c de 8,3%. Ainda em relação aos resultados do exame de HbA1c, foi evidenciada a prevalência de um mau controle glicêmico pela população estudada3.
Dados laboratoriais e frequência de realização dos exames para rastreio da doença renal crônica de pacientes com diabetes mellitus tipo 2 atendidos nas Unidades Básicas de Saúde de Divinópolis, MG
Foi verificado que apenas 58 pacientes (21,9%) realizaram o exame de albuminúria isolada no último ano e que a mediana da albuminúria isolada desses pacientes foi igual a 5,3 mg/L. Dentre esses pacientes, evidenciou-se que aproximadamente a metade apresentou EUA moderadamente aumentada ou EUA intensamente aumentada6. Além disso, foi observado que apenas 8 pacientes realizaram o exame de albuminúria isolada mais de uma vez no último ano.
Quanto ao exame para estimar RAC, foi verificado que 32 pacientes (12,1%) o realizaram no último ano e obteve-se uma mediana de 11,2 mg/g. Dentre esses pacientes, os resultados indicam a presença de EUA moderadamente aumentada ou EUA intensamente aumentada em parte dos pacientes1. Além disso, foi observado que apenas 4 pacientes realizaram mais de um exame RAC no último ano.
Foi observado que, no último ano, 236 pacientes (89%) realizaram exame de creatinina sérica, a partir da qual é possível estimar a TFG. A mediana encontrada para creatinina sérica foi igual a 1,0 mg/dL e a média para a TFG foi de 67 mL/min/1,73m2. Dentre esses pacientes, houve uma frequência considerável de pacientes com TFG inferior a 60 mL/min/1,73m2, indicando o comprometimento da função renal1. Não houve diferença significativa entre as regiões de saúde com relação ao rastreio de DRC, seja por meio da EUA seja por meio da TFG.
Ao se avaliar os três exames utilizados para rastreio da DRC (albuminúria isolada, RAC e TFG), foi verificado que 236 pacientes (89,8%) realizaram pelo menos um desses exames no último ano e apenas 57 pacientes (21,5%) realizaram o exame EUA (albuminúria isolada ou RAC) e a TFG no último ano. Os resultados apontaram que 98 pacientes (41,2%) obtiveram albuminúria isolada ≥ 14 mg/mL e/ou RAC ≥ 30 mg/g e/ou TFG < 60 mL/min/1,73m2, indicando comprometimento renal6.
Discussão
No presente estudo, exames para rastreio da DRC, por meio de exames isolados, no último ano foram realizados com alta frequência (89,8%) pelos pacientes com DM2, sendo que o rastreio por meio da TFG foi mais executado em relação aos exames de albuminúria isolada e RAC. O resultado encontrado pode ser justificado pela estimativa de a TFG ser considerada um dos melhores parâmetros para avaliar a função renal, em pacientes com DM ou não, por avaliar a função excretora renal e esta apresentar mais correlação com os desfechos clínicos do que a creatininemia, que não deve ser utilizada isoladamente1.
Estudos demonstram que há diferentes grupos de pacientes com DRC e que um desses se constitui de pacientes com redução da TFG sem a presença de albuminúria8. Em contrapartida, há grupos de pacientes que apresentam EUA elevada e TFG normal3. Portanto, somente a TFG não é suficiente para um diagnóstico precoce da DRC, sendo a albuminúria um importante preditor do risco de desenvolvimento da DRC, de modo que o rastreio por meio da realização de ambos os parâmetros apresenta mais benefícios para identificação precoce da DRC9. Por isso, as diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes sugerem a realização dos exames para avaliar tanto EUA quanto TFG para a triagem da DRC3.
Apesar de uma pequena parcela de pacientes ter realizado o exame de albuminúria isolada no último ano, o valor obtido foi maior em relação à realização de RAC. O resultado obtido difere de outros estudos que avaliaram a prevalência de doença renal em diferentes regiões, nos quais a avaliação da função renal por meio de RAC foi predominante10-11, o que vai de encontro à orientação do KDIGO de optar pela determinação da RAC em relação à albuminúria isolada, devido à interferência da diluição da amostra de urina no exame de albuminúria isolada, enquanto na RAC a creatinina e a albumina estão diluídas em mesma proporção, o que normaliza o resultado1. Os dados encontrados no presente estudo podem ser justificados pela recomendação das Diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes de se determinar a albuminúria isolada em vista de seu menor custo e boa acurácia3. Ademais, um estudo e meta-análise demonstrou que não há diferença significativa entre ambos os exames para detecção da albuminúria moderadamente aumentada12.
Foi observado que 41,2% dos pacientes apresentam comprometimento renal (pacientes com albuminúria isolada ≥ 14 mg/mL e/ou RAC ≥ 30 mg/g e/ou TFG < 60 mL/min/1,73m2). O resultado encontrado pode ser justificado de forma multifatorial e um desses fatores pode estar relacionado ao mau controle glicêmico desses pacientes (HbA1c ≥ 7,0%), visto que a exposição crônica à hiperglicemia é considerada um importante fator para o início e a evolução de complicações vasculares, tais como a DRD, e os resultados obtidos demonstram mau controle glicêmico por parte dessa população13. Além disso, o desenvolvimento da DRD também se atribui a fatores como idade avançada, longo tempo de convivência com o DM e sobrepeso/obesidade observados nos pacientes do estudo que apresentaram idade média de 62 anos, convivência com DM2 há 10 anos em média e IMC que os classifica com sobrepeso11. É importante enfatizar que a frequência de DRD poderia ser ainda maior se os exames de RAC ou albuminúria isolada fossem realizados com maior periodicidade pelos pacientes, já que alguns pacientes podem apresentar aumento da albuminúria isolada ou RAC na presença de uma TFG normal3.
Em relação à estimativa da albuminúria isolada, 46,5% dos pacientes que realizaram o exame apresentaram valores de diagnóstico para a DRD (concentração ≥ 14 mg/L). Quanto aos valores de RAC, exame realizado com menor frequência, 43,8% dos pacientes que fizeram o exame obtiveram albuminúria aumentada1. Os achados são semelhantes ao estudo de Alves et al., que obtiveram quantidade considerável de pacientes com RAC moderadamente ou intensamente aumentada, sendo possível constatar um risco de aumento da EUA em pacientes com DM210. A avaliação da albuminúria é importante para o diagnóstico da DRD e seus níveis deveriam ser estimados com maior frequência na população do presente estudo, já que a detecção e o tratamento precoces da DRC são importantes para impedir a progressão da doença renal e a necessidade de terapia renal substitutiva9.
Um estudo realizado por Vanelli et al. (2018), com o objetivo de rastrear a DRC por meio da utilização do instrumento de Triagem da Doença Renal Oculta, verificou que a presença de albuminúria foi referida por um pequeno número de indivíduos, sugerindo que esse exame tem sido subutilizado na atenção primária à saúde para o rastreio da DRC14. Em outro estudo, conduzido por Dumont et al. (2021), em que foram analisados os prontuários de 177 pacientes de um centro de diálise, foi observado que 20,3% dos pacientes foram diagnosticados com DRC no dia do início da terapia renal substitutiva. Diante da evolução assintomática da DRC, esses dados demonstram que é imprescindível o rastreio da DRC na população de risco, tal como os portadores de DM215.
Apesar de o exame de creatinina sérica isolada não ser aconselhado para o rastreio da DRC devido à baixa especificidade e sensibilidade para o diagnóstico da DRD, a frequência alta da realização desse exame no último ano está relacionada ao fato de esse marcador ser necessário para se estimar a TFG. A mediana de creatinina sérica está dentro dos valores desejáveis estabelecidos pelo KDIGO, 2012. Contudo, em um estudo sobre a prevalência da doença renal crônica no sudeste brasileiro, alguns pacientes com valores aceitáveis de creatinina sérica apresentaram alterações na TFG. Fato que também pode ser observado no presente estudo, já que a mediana da creatinina sérica foi de 1,0 mg/dL, enquanto que 33,1% apresentaram TFG reduzida, o que corrobora a maior sensibilidade da TFG para diagnóstico precoce da DRD10.
Em relação a esses pacientes, a prevalência considerável do uso de medicamentos nefroprotetores (53,6%) corrobora as estratégias de tratamento de pacientes com DRD, medida tomada para mitigar a progressão da DRD para estágios mais avançados3,16. Apesar da frequência significativa encontrada do uso de nefroprotetores, cerca de 40% dos pacientes com comprometimento renal ainda não estão em uso desses medicamentos. Um estudo que incluiu 177 pacientes de um centro de diálise observou que 63,2% dos pacientes não realizaram o tratamento conservador com medicamentos nefroprotetores15. Os medicamentos nefroprotetores promovem vasodilatação das arteríolas aferentes, com consequente redução inicial da filtração glomerular e diminuição da pressão de filtração glomerular, o que implica efeito nefroprotetor em longo prazo. O uso de fármacos nefroprotetores é associado ao retardo da história natural da doença renal e pode normalizar os níveis de EUA em alguns pacientes. Nesse sentido, é necessário que a equipe de saúde realize intervenções farmacológicas em pacientes com comprometimento da função renal com maior periodicidade, o que é fundamental para a minimização da evolução para os estágios mais avançados da DRC17-18.
Quanto a um todo dos pacientes, com ou sem comprometimento renal, há elevada frequência de uso de medicamentos nefroprotetores, o que vai de encontro a um estudo que avaliou a prevalência de doença renal em um município do sudeste do Brasil, no qual nenhum dos pacientes que apresentavam somente DM realizava o uso de fármacos nefroproterotes. Todavia, no mesmo estudo, boa parte da população que apresentava DM e hipertensão arterial estava em uso de fármacos nefroprotetores. A frequência alta de pacientes que não apresentaram comprometimento renal e fazem tratamento com medicamentos nefroprotetores pode ser explicada pela possibilidade dessa população apresentar DM2 e hipertensão arterial10.
No que diz respeito aos dados clínicos dos pacientes, o sexo feminino foi mais frequente, o que corrobora outros estudos que também obtiveram maior número de pacientes do sexo feminino, o que pode ser explicado pelo fato de as mulheres buscarem mais os serviços de saúde do que os homens10. Com relação à duração média da doença de 10 anos, pode-se ressaltar que a convivência com o DM é um fator relacionado ao surgimento de complicações vasculares, como a DRD13. Além disso, a idade também é um fator de risco para o desenvolvimento da DRC devido à diminuição progressiva da TFG no decorrer das décadas11. Os resultados obtidos quanto à peso, altura e ao IMC indicam a presença de sobrepeso nessa população. O IMC aumentado está relacionado ao aumento do risco de se desenvolver DM2 e da chance de ocorrerem complicações microvasculares19. Ademais, tem sido demonstrado um elo entre a perda de peso e um bom controle glicêmico, o que pode prevenir o desenvolvimento de complicações nos pacientes com DM23.
Quanto ao monitoramento do controle glicêmico por meio da HbA1c, houve alta prevalência na realização desse exame. Esses dados podem ser explicados pela avaliação de os níveis de HbA1c serem um exame frequentemente recomendado pelas diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes para monitoramento do controle glicêmico do paciente com DM2. Os resultados indicam a necessidade de melhora do perfil glicêmico dessa população, visto que a Sociedade Brasileira de Diabetes estabelece que níveis de HbA1c inferiores a 7% auxiliam no retardo da progressão da albuminúria em pacientes com DM2 e que a hiperglicemia é um fator de risco para o desenvolvimento da DRD e de outras complicações crônicas relacionadas ao DM3.
Uma limitação do trabalho é que a amostra foi obtida em apenas uma cidade e não pode ser imediatamente extrapolada para o Brasil. Contudo, a distribuição de sexo, etnia e idade da população de Divinópolis, MG, é semelhante à do Brasil como um todo. Além disso, a realização de um único exame de albuminúria isolada ou RAC pode gerar resultados falso-negativos ou falso-positivos devido às variações fisiológicas de cada indivíduo, o que consiste em outra limitação do presente estudo11. Por fim, para diagnóstico da DRC, são necessários pelo menos dois resultados alterados de EUA ou TFG em um período de 3 a 6 meses1.
Conclusão
Os resultados deste estudo evidenciaram que a DRC foi frequente e subavaliada nos pacientes com DM2. Foi observado um maior índice de rastreio da DRC através da TFG em relação ao rastreio através da EUA, o qual foi realizado por um número pequeno de pacientes. Portanto, o rastreio da DRC não está sendo realizado adequadamente na atenção básica ao diabético, já que ambos os exames devem ser realizados anualmente. Ademais, foi demonstrado que há pacientes com comprometimento renal que não estão em uso de medicamentos nefroprotetores. Esses achados suscitam ações de saúde pública no sentido de melhorar o rastreio da DRC nos pacientes com DM2 e a realização de intervenções farmacológicas em pacientes com comprometimento da função renal.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Fev 2022 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2022
Histórico
-
Recebido
27 Ago 2021 -
Aceito
11 Jan 2022