Acessibilidade / Reportar erro

Dengue em transplantados renais: adições ao quebra-cabeça!

Arbovírus são vírus transmitidos por artrópodes (Arthropod-borne virus) e são assim designados não somente pela sua veiculação através de artrópodes hematófagos, mas, principalmente, pelo fato de parte de seu ciclo replicativo ocorrer nestes insetos. Os arbovírus que causam doenças em humanos são membros de cinco famílias virais: Bunyaviridae, Togaviridae, Flaviviridae, Reoviridae e Rhabdoviridae11 Rust RS. Human arboviral encephalitis. Semin Pediatr Neurol. 2012 Sep;19(3):130-51. DOI: https://doi.org/10.1016/j.spen.2012.03.002
https://doi.org/10.1016/j.spen.2012.03.0...
.

O vírus da dengue é um arbovírus do gênero Flavivírus, pertencente à família Flaviviridae. Flavivírus são vírus de hélice única de RNA, encapsulados, que utilizam diferentes mediadores de membrana para entrada na célula, onde no citoplasma utilizam o complexo JAK-Stat para replicação viral. Este grupo de patógenos tem como características a permanência de vírions imaturos, maduros e pouco maduros em coexistência, facilitando a infectividade. No hospedeiro imunocompetente, a resposta à infecção viral depende da liberação de interferons alfa, beta e gama, correspondendo à fase inicial da resposta imune inata. Esta resposta manifesta-se por febre, resposta inflamatória e controle da infecção em cerca de sete dias. Nos receptores de transplante, os imunossupressores, especialmente os inibidores de calcineurina, podem limitar esta resposta mediada por interleucinas, refletindo em quadro clínico com menor frequência de febre. Por outro lado, o uso de drogas antiproliferativas pode justificar a maior frequência de toxicidade medular, especialmente de leucopenia e trombocitopenia, resultando em tempo de hospitalização mais prolongado. Outros achados do quadro clínico da dengue, como mialgia, artralgia e eritema podem ter sua apresentação falseada pela utilização crônica de esteroides22 Morris MI, Grossi P, Nogueira ML, Azevedo LS. Arboviruses recommendations for solid-organ transplant recipients and donors. Transplantation 2018 Feb;102(2S):S42-S51. DOI: https://doi.org/10.1097/TP.0000000000002011
https://doi.org/10.1097/TP.0000000000002...
,33 Ngono AE, Shresta S. Immune response to dengue and zika. Ann Rev Immunol. 2018;36:279-308. DOI: https://doi.org/10.1146/annurev-immunol-042617-053142
https://doi.org/10.1146/annurev-immunol-...
.

Nesta série de casos de Ribeiro et al. (2021)44 Ribeiro C, Turany SAD, Miranda SMC, Souza PAM, Penido MGMG. Dengue infection in kidney transplant recipients: clinical course and its impact on renal function. Braz J Nephrol. 2021 Sep 24; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2021-0127
https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-20...
publicada nesta edição do BJN chama a atenção a apresentação clínico-laboratorial de maior tempo de toxicidade medular, com trombocitopenia mais prolongada que na população geral e a baixa frequência de febre. A frequência de injúria renal aguda (IRA) foi de 58%, e ainda que a maioria dos casos de dengue tenha sido de casos moderados/graves (apenas 4/19-21%- eram de dengue sem sinais de alerta), não houve mortalidade nem perda do enxerto renal, com retorno à função renal basal na maioria, mas não na totalidade dos pacientes, durante o período do estudo. Nassim et al. (2013)55 Nassim A, Anis S, Baqui S, Akhtar SF, Baig-Ansari N. Clinical presentation and outcome of dengue in live-related renal transplant recipients in Karachi, Pakistan. Transpl Infect Dis. 2013;15(5):516-25. DOI: https://doi.org/10.1111/tid.12114
https://doi.org/10.1111/tid.12114...
, em estudo paquistanês com o maior número de transplantados renais (TxR) com dengue já publicado (102 pacientes), observaram que em 14,3% daqueles que apresentaram disfunção do enxerto, a mesma persistia após seis semanas de observação.

A IRA, frequente em casos de dengue em TxR, deve ser avaliada com cautela, uma vez que a redução da filtração glomerular pode ser consequência do desequilíbrio hemodinâmico sistêmico, da lesão tecidual viral ou também de episódios de rejeição aguda, pela imunomodulação induzida pela infecção viral ou da redução da imunossupressão nos quadros virais mais graves. Nesta série não houve quadro de rejeição aguda do enxerto. Em outras séries de dengue em TxR a incidência relatada de rejeição aguda foi muito baixa, sendo que revisão sistemática recente sobre o tema assinala que a perda do enxerto ocorre infrequentemente e geralmente não se encontra relacionada à rejeição renal, mas a outros fatores concorrentes66 Weerakkody RG, Patrick JA, Sheriff MHR. Dengue fever in renal transplant patients: a systematic review of literature. BMC Nephrol. 2017 Jan;18(1):15. DOI: https://doi.org/10.1186/s12882-016-0428-y
https://doi.org/10.1186/s12882-016-0428-...
.

O artigo de Ribeiro et al. (2021)44 Ribeiro C, Turany SAD, Miranda SMC, Souza PAM, Penido MGMG. Dengue infection in kidney transplant recipients: clinical course and its impact on renal function. Braz J Nephrol. 2021 Sep 24; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2021-0127
https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-20...
adiciona considerável conhecimento sobre o comportamento e o manejo da infecção por dengue em TxR que necessitam de internação em nosso meio. O quadro clínico e laboratorial, embora com algumas peculiaridades, é bastante semelhante ao da população geral (Weerakkody et al. (2017)66 Weerakkody RG, Patrick JA, Sheriff MHR. Dengue fever in renal transplant patients: a systematic review of literature. BMC Nephrol. 2017 Jan;18(1):15. DOI: https://doi.org/10.1186/s12882-016-0428-y
https://doi.org/10.1186/s12882-016-0428-...
relataram que TxR que apresentam dengue no período pós-operatório precoce têm risco de doença mais grave e de desfechos desfavoráveis); em todo TxR, a presença de febre e/ou quadro viral-like associado à citopenias (leuco ou plaquetopenia) deve motivar a inclusão de dengue no diagnóstico diferencial; devido às citopenias pode ser necessária a redução na imunossupressão em boa parcela dos casos; o tratamento habitualmente dispensado aos acometidos na população geral (medicamentos sintomáticos, expansão de volume, retirada de diuréticos -se possível e se for o caso- e evitar nefrotóxicos) parece evitar a mortalidade e permite a recuperação da função renal dos transplantados acometidos por quadros de dengue semelhantes aos deste estudo.

Uma palavra de cautela quanto ao retorno da função renal à basal na maioria dos pacientes transplantados estudados é a necessidade de abordagem individualizada. TxR devem ser considerados como pacientes com Doença Renal Crônica (DRC) em diferentes estágios e que apresentam alto risco de progressão para diálise e maior mortalidade77 Caminati M, Tedesco-Silva H, Fernandes NMS, Sanders-Pinheiro H. Chronic kidney disease progression in kidney transplant recipients: a focus on traditional risk factors. Nephrology. 2019;24(2):141-7. DOI: https://doi.org/10.1111/nep.13483
https://doi.org/10.1111/nep.13483...
(na presente série embora não tenha sido relatada a TFGe dos pacientes, a creatinina média basal era de 1,74 mg/dl ± 0,61, o que aponta para DRC em estágios 3 ou mais em parcela significativa destes pacientes).

Heung et al. (2016)88 Heung M, Steffick DE, Zivin K, Brenda W, Gillespie BW, Banerjee T, et al. Acute kidney injury recovery pattern and subsequent risk of CKD: an analysis of veterans health administration data. Am J Kidney Dis. 2016 May;67(5):742-75. DOI: https://doi.org/10.1053/j.ajkd.2015.10.019
https://doi.org/10.1053/j.ajkd.2015.10.0...
em uma série de mais de 100.000 pacientes que apresentaram IRA hospitalar (~17.000 com e 88.000 sem IRA) seguidos por um ano após o episódio agudo, demonstraram que o risco de progressão para DRC estágio 3 aumenta conforme a gravidade do episódio, mas que o risco já se encontra significativamente aumentado mesmo em pacientes que apresentaram elevações discretas nos valores da creatinina sérica que retornaram aos valores basais em dois dias: RR de 1.43 (95% IC, 1.39-1.48).

O fato de uma parcela de transplantados deste estudo já apresentarem creatinina sérica basal elevada pode caracterizar alguns episódios de IRA como DRC agudizada, onde a tendência de progressão para cronicidade renal é ainda maior99 Chawla LS, Eggers PW, Star RA, Kimmel PL. Acute kidney injury and chronic kidney disease as interconnected syndromes. N Engl J Med 2014 Jul;371:58-66. DOI: https://doi.org/10.1056/NEJMra1214243
https://doi.org/10.1056/NEJMra1214243...
. De fato, é necessário que para estes e para todos os pacientes, transplantados ou não, que apresentaram um episódio de IRA seja feito acompanhamento a longo prazo para que, se necessário, haja pronto estabelecimento de medidas nefro e cardioprotetoras.

A possibilidade de transmissão de dengue pelo transplante renal é bem documentada, mas não há orientação específica para o rastreio deste vírus em doadores renais, restando a sugestão de que em doadores renais de regiões de muito alta prevalência, a triagem para o vírus deva ser considerada1010 Rosso F, Pinedab JC, Sanzc AM, Cedanoc JA, Luis A, Caicedo LA. Transmission of dengue virus from deceased donors to solid organ transplant recipients: case report and literature review. Braz J Infect Dis. 2018;22(1):63-9. DOI: https://doi.org/10.1016/j.bjid.2018.01.001
https://doi.org/10.1016/j.bjid.2018.01.0...
.

Sendo o Brasil um país endêmico para a infecção por dengue e por serem as séries nacionais disponíveis de dengue em pacientes em TxR relativamente pequenas, seriam altamente desejáveis estudos multicêntricos nacionais sobre este tema.

References

  • 1
    Rust RS. Human arboviral encephalitis. Semin Pediatr Neurol. 2012 Sep;19(3):130-51. DOI: https://doi.org/10.1016/j.spen.2012.03.002
    » https://doi.org/10.1016/j.spen.2012.03.002
  • 2
    Morris MI, Grossi P, Nogueira ML, Azevedo LS. Arboviruses recommendations for solid-organ transplant recipients and donors. Transplantation 2018 Feb;102(2S):S42-S51. DOI: https://doi.org/10.1097/TP.0000000000002011
    » https://doi.org/10.1097/TP.0000000000002011
  • 3
    Ngono AE, Shresta S. Immune response to dengue and zika. Ann Rev Immunol. 2018;36:279-308. DOI: https://doi.org/10.1146/annurev-immunol-042617-053142
    » https://doi.org/10.1146/annurev-immunol-042617-053142
  • 4
    Ribeiro C, Turany SAD, Miranda SMC, Souza PAM, Penido MGMG. Dengue infection in kidney transplant recipients: clinical course and its impact on renal function. Braz J Nephrol. 2021 Sep 24; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2021-0127
    » https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2021-0127
  • 5
    Nassim A, Anis S, Baqui S, Akhtar SF, Baig-Ansari N. Clinical presentation and outcome of dengue in live-related renal transplant recipients in Karachi, Pakistan. Transpl Infect Dis. 2013;15(5):516-25. DOI: https://doi.org/10.1111/tid.12114
    » https://doi.org/10.1111/tid.12114
  • 6
    Weerakkody RG, Patrick JA, Sheriff MHR. Dengue fever in renal transplant patients: a systematic review of literature. BMC Nephrol. 2017 Jan;18(1):15. DOI: https://doi.org/10.1186/s12882-016-0428-y
    » https://doi.org/10.1186/s12882-016-0428-y
  • 7
    Caminati M, Tedesco-Silva H, Fernandes NMS, Sanders-Pinheiro H. Chronic kidney disease progression in kidney transplant recipients: a focus on traditional risk factors. Nephrology. 2019;24(2):141-7. DOI: https://doi.org/10.1111/nep.13483
    » https://doi.org/10.1111/nep.13483
  • 8
    Heung M, Steffick DE, Zivin K, Brenda W, Gillespie BW, Banerjee T, et al. Acute kidney injury recovery pattern and subsequent risk of CKD: an analysis of veterans health administration data. Am J Kidney Dis. 2016 May;67(5):742-75. DOI: https://doi.org/10.1053/j.ajkd.2015.10.019
    » https://doi.org/10.1053/j.ajkd.2015.10.019
  • 9
    Chawla LS, Eggers PW, Star RA, Kimmel PL. Acute kidney injury and chronic kidney disease as interconnected syndromes. N Engl J Med 2014 Jul;371:58-66. DOI: https://doi.org/10.1056/NEJMra1214243
    » https://doi.org/10.1056/NEJMra1214243
  • 10
    Rosso F, Pinedab JC, Sanzc AM, Cedanoc JA, Luis A, Caicedo LA. Transmission of dengue virus from deceased donors to solid organ transplant recipients: case report and literature review. Braz J Infect Dis. 2018;22(1):63-9. DOI: https://doi.org/10.1016/j.bjid.2018.01.001
    » https://doi.org/10.1016/j.bjid.2018.01.001

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2021
  • Aceito
    04 Dez 2021
Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bjnephrology@gmail.com