RESUMO
Introdução:
Purpura Fulminans (PF) é uma doença trombótica de rápida progressão, com infarto hemorrágico da pele e coagulação intravascular disseminada (CIVD). É potencialmente causadora de injúria renal aguda (IRA). Porém, não há descrição na literatura médica dos achados histológicos renais causados por PF.
Relato de caso:
Mulher, 20 anos, previamente hígida, hospitalizada por odinofagia, febre, mialgia generalizada e anúria, evoluiu com aparecimento de placas purpúricas em face e membros. Necessitou de hemodiálise (HD) já na admissão. Exames laboratoriais mostravam anemia, leucocitose, plaquetopenia e elevação de desidrogenase lática. As lesões purpúricas tornaram-se bolhosas com rompimento e progressão para necrose, se aprofundaram, atingindo derme, subcutâneo e musculatura, até a exposição óssea. Não houve melhora com antibioticoterapia inicial voltada para tratamento de meningococemia. Suspeitou-se, então, de microangiopatia trombótica (MAT) e PF. A paciente permaneceu em HD diária e necessitou também de plasmaférese, após melhora sustentada da plaquetopenia, foi submetida à biópsia renal, que não foi compatível com MAT, possivelmente caracterizando PF. Houve recuperação completa da função renal e as sequelas cutâneas foram tratadas com enxerto.
Conclusão:
Em casos nos quais os fenômenos trombóticos e hemorrágicos se sobrepõem, a obtenção da biópsia renal se torna difícil. Neste caso, a biópsia permitiu excluir IRA causada por MAT e mostrar, pela primeira vez, achados compatíveis com PF.
Palavras-chave:
Púrpura Fulminante; Microangiopatias Trombóticas; Lesão Renal Aguda; Biópsia
ABSTRACT
Introduction:
Purpura fulminans (PF) is a rapid progressive thrombotic disease in which hemorrhagic infarction of the skin and disseminated intravascular coagulation (DIC) occurs. It can potentially cause acute kidney injury (AKI). However, there is no description in the medical literature of renal histological findings of PF.
Case report:
A 20-year-old female patient, previously healthy, was admitted to the emergency department (ED) with odynophagia, fever, generalized myalgia and anuria, which evolved with the appearance of purpuric plaques on the face and limbs. She required dialysis on admission. Laboratorial tests showed anemia, leukocytosis, thrombocytopenia, and elevation of lactic dehydrogenase (LDH). The purpuric lesions became bullous with ruptures and then necrotic and erosive, reaching the dermis, subcutaneous tissue and musculature, until bone exposure. There was no improvement with initial antibiotic therapy aimed at the treatment of meningococcemia. Thrombotic microangiopathy (TMA) and PF were then suspected. The patient remained in daily dialysis, requiring plasmapheresis. After sustained improvement of the thrombocytopenia, she underwent renal biopsy, which was not compatible with TMA, characterizing possible PF. A complete recovery of the renal function was achieved and cutaneous sequels were treated with grafts.
Conclusion:
When thrombotic and hemorrhagic phenomena overlap, obtaining a renal biopsy can be difficult. However, in the presented case, the biopsy allowed the exclusion of AKI caused by TMA, presenting for the first time, histological findings compatible with PF.
Keywords:
Purpura Fulminans; Thrombotic Microangiopathies; Acute Kidney Injury; Biopsy
INTRODUÇÃO
A purpura fulminans (PF) é uma doença trombótica rapidamente progressiva, que acarreta infarto hemorrágico da pele e coagulação intravascular disseminada (CIVD). A PF também pode evoluir com falência de múltiplos órgãos ou trombose venosa de grandes vasos.11 Chalmers E, Cooper P, Forman K, Grimley C, Khair K, Minford A, et al. Purpura fulminans: recognition, diagnosis and management. Arch Dis Child [Internet] 2011 Jan [cited 2018 Jan 18];96:1066-71. Available from: http://adc.bmj.com/content/96/11/1066. DOI: 10.1136/1066 adc.2010.199919
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A lesão da PF pode ser clinicamente distinguida da hemorragia simples na pele, por se apresentar geralmente com bordas, endurecida e ter uma área circunferencial eritematosa. Ao longo do tempo, as lesões se coalescem e evoluem com necrose tecidual.22 Smith OP, White B. Infectious purpura fulminans: diagnosis and treatment. Br J Haematol [Internet] 2001 Dec [cited 2018 Jan 18];104:202-7. Available from: http://dx.doi.org/10.1046/j.1365-2141.1999.01186.x
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Existem três categorias para classificar a PF: PF neonatal, associada à deficiência hereditária de anticoagulantes; PF infecciosa aguda/PF sepse-associada, causando CIVD; e, por fim, a PF idiopática, subdivida em PF pós-infecciosa (comumente associada a infecções por varicela e Streptococcus) e PF de etiologia desconhecida.11 Chalmers E, Cooper P, Forman K, Grimley C, Khair K, Minford A, et al. Purpura fulminans: recognition, diagnosis and management. Arch Dis Child [Internet] 2011 Jan [cited 2018 Jan 18];96:1066-71. Available from: http://adc.bmj.com/content/96/11/1066. DOI: 10.1136/1066 adc.2010.199919
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2 Smith OP, White B. Infectious purpura fulminans: diagnosis and treatment. Br J Haematol [Internet] 2001 Dec [cited 2018 Jan 18];104:202-7. Available from: http://dx.doi.org/10.1046/j.1365-2141.1999.01186.x
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3 Darmstadt GL. Acute Infectious Purpura Fulminans: Pathogenesis and Medical Management. Pediatr Dermatol [Internet] 2002 Jan [cited 2018 Jan 18];15:169-83. Available from: http://dx.doi.org/10.1046/j.1525-1470.1998.1998015169.x
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4 Adcock DM, Brozna J, Marlar RA. Proposed Classification and Pathologic Mechanisms of Purpura Fulminans and Skin Necrosis. Semin Thromb Hemost [Internet] 1990 [cited 2018 Jan 18];16:333-40. Available from: https://www.thieme-connect.com/DOI/DOI?10.1055/s-2007-1002686. DOI: 10.1055/s-2007-1002686
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-55 Honarpisheh H, Camp R, Lazova R. Staphylococcal Purpura Fulminans: Report of a Case. Am J Dermatopathol [Internet] 2015 Aug [cited 2018 Jan 18];37:643-6. Available from: http://journals.lww.com/amjdermatopathology/Abstract/2015/08000/Staphylococcal_Purpura_Fulminans___Report_of_a.10.aspx DOI: 10.1097/DAD.0000000000000175
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A PF infecciosa aguda é vista como um sinônimo de meningococemia grave, uma vez que 10-20% dos casos de meningococemia aguda resultam em PF. Porém, há registros de bacteremia por Staphylococcus aureus e Streptococcus pneumoniae complicando com PF,66 Chambers HF. Staphylococcal Purpura Fulminans: A Toxin-Mediated Disease? Clin Infect Dis [Internet] 2005 Apr [cited 2018 Jan 18];40:948-50. Available from: http://dx.doi.org/10.1086/428584
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,77 Kravitz GR, Dries DJ, Peterson ML, Schlievert PM. Purpura Fulminans Due to Staphylococcus aureus. Clin Infect Dis [Internet] 2005 Apr [cited 2018 Jan 18];40:941-7. Available from: http://dx.doi.org/10.1086/428573
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e ainda de algumas infecções virais, como a dengue, por exemplo.88 Karunatilaka DH, De Silva JRS, Ranatunga PK, Gunasekara TMR, Faizal MAM, Malavige GN. Idiopathic purpura fulminans in dengue hemorrhagic fever. Indian J Med Sci [Internet] 2007 Aug [cited 2018 Jan 18];61:471-3. Available from: http://www.bioline.org.br/request?ms07076
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A microangiopatia trombótica (MAT) resulta, geralmente, da anemia hemolítica microangiopática (AHMA), acompanhada de trombocitopenia e presença de esquizócitos no sangue periférico. Histologicamente, caracteriza-se por células endoteliais lesadas, edemaciadas e até exclusas de arteríolas e capilares, além de aglomerados de plaquetas e trombos hialinos que causam oclusões microvasculares parciais ou completas.99 Leung N, Textor SC. Vascular Injury to the Kidney. In: Kasper D, Fauci A, Hauser S, Longo D, Jameson JL, Loscalzo J, eds. Harrison's Principles of Internal Medicine, 19e [Internet]. New York, NY: McGraw-Hill Education; 2015 [cited 2018 Jan 18]. Chapter 341. Available from: https://accessmedicine.mhmedical.com/Content.aspx?bookId=1130§ionId=79747076
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Nos rins, há células endocapilares edemaciadas (endoteliose), trombos de fibrina, placas plaquetárias, fibrose da íntima e um padrão membranoproliferativo. As doenças associadas a essa lesão incluem púrpura trombocitopênica trombótica (PTT), síndrome hemolítica urêmica (SHU), hipertensão maligna, síndrome antifosfolipíde, pré-eclâmpsia/síndrome de HELLP, infecção por HIV e outras.99 Leung N, Textor SC. Vascular Injury to the Kidney. In: Kasper D, Fauci A, Hauser S, Longo D, Jameson JL, Loscalzo J, eds. Harrison's Principles of Internal Medicine, 19e [Internet]. New York, NY: McGraw-Hill Education; 2015 [cited 2018 Jan 18]. Chapter 341. Available from: https://accessmedicine.mhmedical.com/Content.aspx?bookId=1130§ionId=79747076
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Independentemente da etiologia, a MAT é uma emergência hematológica que requer tratamento imediato,1010 Arnold DM, Patriquin CJ, Nazy I. Thrombotic microangiopathies: a general approach to diagnosis and management. CMAJ [Internet] 2017 Jan [cited 2018 Jan 18];189:E153-E159. Available from: http://www.cmaj.ca/content/189/4/E153. DOI: 10.1503/cmaj.160142
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podendo ser classificada em primária e secundária. Quando ocorre espontaneamente, sem uma causa base associada, é a forma primária; já a forma secundária ocorre em casos de gestação, doença autoimune, uso de certos medicamentos e doença maligna, por exemplo.1111 Scully M, Hunt BJ, Benjamin S, Liesner R, Rose P, Peyvandi F, et al.; British Committee for Standards in Haematology. Guidelines on the diagnosis and management of thrombotic thrombocytopenic purpura and other thrombotic microangiopathies. Br J Haematol [Internet] 2012 May [cited 2018 Jan 18];158:323-35. Available from: http://dx.doi.org/10.1111/j.1365-2141.2012.09167.x
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SHU e PTT são o protótipo da AHMA.99 Leung N, Textor SC. Vascular Injury to the Kidney. In: Kasper D, Fauci A, Hauser S, Longo D, Jameson JL, Loscalzo J, eds. Harrison's Principles of Internal Medicine, 19e [Internet]. New York, NY: McGraw-Hill Education; 2015 [cited 2018 Jan 18]. Chapter 341. Available from: https://accessmedicine.mhmedical.com/Content.aspx?bookId=1130§ionId=79747076
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A SHU é caracterizada por AHMA, plaquetopenia e disfunção renal. Na maioria dos casos, o agente etiológico é a E. coli produtora de shiga toxina. Entretanto, na minoria dos pacientes, pode ocorrer a SHU atítpia (SHUa) - uma desordem genética rara caracterizada por MAT mediada por complemento, resultante de mutações que afetam a regulação da via alternativa do complemento.1212 Shen YM. Clinical evaluation of thrombotic microangiopathy: identification of patients with suspected atypical hemolytic uremic syndrome. Thromb J [Internet] 2016 Oct [cited 2018 Jan 18];14:19. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5056489/ DOI: 10.1186/s12959-016-0114-0
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Na PTT também encontramos anemia hemolítica e plaquetopenia, pode haver febre e comprometimento renal e as manifestações neurológicas são variáveis. Está associada à deficiência ou disfunção da protease plasmática ADAMTS-13, o que leva ao acúmulo de multímeros ultra-grandes do fator de von Willebrand. A PTT pode ser congênita (mutações na ADAMTS-13) ou adquirida (autoanticorpos). Assim como a SHUa, pode ser desencadeada por infecções e outros fatores de estresse, mas na SHUa os níveis de ADAMTS-13 são normais.1313 Karpman D, Loos S, Tati R, Arvidsson I. Haemolytic uraemic syndrome. J Intern Med [Internet] 2016 Oct [cited 2018 Jan 18];281:123-48. Available from: http://dx.doi.org/10.1111/joim.12546
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PF pode desencadear anemia hemolítica, mas também outras formas de anemia.1414 Hollingsworth JH, Mohler DN. Microangiopathic Hemolytic Anemia Caused by Purpura Fulminans. Ann Intern Med [Internet] 1968 Jun [cited 2018 Jan 18];68:1310-4. Available from: http://annals.org/aim/article-abstract/682452/microangiopathic-hemolytic-anemia-caused-purpura-fulminans. DOI: 10.7326/0003-4819-68-6-1310
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,1515 Lalitha AV, Aruna D, Prakash A, Swamy HMN, Rao SDS. Spectrum of Purpura Fulminans. Indian J Pediatr [Internet] 2009 Jan [cited 2018 Jan 18];76:87-9. Available from: http://doi.org/10.1007/s12098-009-0034-0
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A anemia seria característica da doença e resultante da combinação de extravasamento tecidual, perdas externas e hemólise microangiopática.1515 Lalitha AV, Aruna D, Prakash A, Swamy HMN, Rao SDS. Spectrum of Purpura Fulminans. Indian J Pediatr [Internet] 2009 Jan [cited 2018 Jan 18];76:87-9. Available from: http://doi.org/10.1007/s12098-009-0034-0
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Todas essas alterações são potencialmente causadoras de injúria renal aguda (IRA), porém, diante de um quadro clínico em que os riscos tromboembólicos e hemorrágicos se somam, pode ser difícil a obtenção de biópsia renal para definição da causa de injúria. Não há descrição na literatura médica revisada sobre os achados histológicos renais na PF.
RELATO DE CASO
Mulher, parda, 20 anos, previamente hígida, admitida no departamento de emergência (DE) do Hospital Universitário de Londrina (HU) queixando-se de odinofagia, episódio único de febre não aferida e mialgia generalizada com início havia cinco dias. Relatou que, inicialmente, automedicou-se com dipirona e ibuprofeno por um dia, mas não obteve melhora e procurou uma unidade básica de saúde, onde foi prescrito amoxicilina. No mesmo dia, referiu aparecimento de petéquias em face, membros superiores (MMSS) e inferiores (MMII). Procurou o hospital secundário, quando evoluiu o aumento das petéquias (Figura 1), seguido de confluência para placas, piora do estado geral e alteração de exames laboratoriais, sendo então encaminhada ao HU. No exame físico de admissão, apresentava-se discretamente hipertensa (máximo 150/70 mmHg), descorada, taquicárdica, amígdalas hiperemiadas e com placas purulentas, com cianose de extremidades e placas purpúricas em face, MMSS e MMII. A paciente evoluiu anúrica e necessitou de diálise já na admissão do HU, estando no quinto dia do início dos sintomas. Os exames laboratoriais mostravam anemia (Hb 10,7 g/dL), leucocitose (44.990/µL), plaquetopenia (24 mil/µL), prejuízo da função renal (Cr 4,15 mg/dL), hiponatremia e hipercalemia, elevação de LDH 3.579 U/L.
Evolução das lesões de pele: petéquias e placas purpúricas (A), bolhas (B), necrose (C), exposição óssea (D), após enxerto de pele (E)
As hipóteses diagnósticas iniciais na admissão foram meningococcemia e estafilococcia, as hemoculturas foram coletadas e iniciou-se antibioticoterapia (ceftriaxone e vacomicina). Apesar da introdução dos antibióticos, a paciente continuou evoluindo com piora do quadro clínico, hipotensa, taquicárdica e taquipneica, e as lesões purpúricas tornaram-se bolhosas (Figura 1). A presença de esquizócitos e dosagem sérica de LDH elevadas apontaram para a hipótese de microangiopatia trombótica (MAT). A paciente não apresentou alterações neurológicas, sendo assim praticamente excluído o diagnóstico de púrpura trombocitopênica trombótica (PTT). Cogitada a hipótese de síndrome hemolítico-urêmica atípica (SHUa), iniciamos investigação para as possíveis causas de MAT. Todas as hemoculturas foram negativas. Provas reumatológicas negativas, exceto uma primeira dosagem de complemento C3 diminuída, a qual normalizou no exame seguinte. As sorologias realizadas também foram negativas, exceto IgM positivo para dengue, coletado no sexto dia do início do quadro e repetido com 12 e 28 dias de história, ambos positivos. A pesquisa de arbovírus (dengue 1, 2, 3 e 4; chikungunya; zika) foi negativa. No entanto, esta foi coletada no sexto dia de início do quadro, e o ideal é que a amostra para pesquisa de arboviroses seja coletada no primeiro dia de início dos sintomas, sendo aceitável até o quinto dia.
A paciente completou o esquema de antibiótico, e depois foi mantida apenas em tratamento de suporte, realizando hemodiálise diária devido à anúria e necessidade frequente de transfusões de concentrados de hemácias por causa da anemia. No 15º dia de internação, após melhora sustentada da plaquetopenia, foi submetida à biópsia renal videolaparoscópica, que identificou extensas áreas de infarto isquêmico e hemorrágico, hemorragia intersticial, vasos de médio calibre com trombos de fibrina (Figura 2). As lesões de pele também foram biopsiadas e evidenciou-se infiltrado inflamatório com extensa necrose em tecido adiposo, ausência de sinais compatíveis com vasculite em músculos e ausência de derme e epiderme local - áreas adjacentes com sinais de reparo na epiderme. As lesões evoluíram com rompimento das bolhas e áreas necróticas que se aprofundaram progressivamente, atingindo derme, subcutâneo, musculatura e, posteriormente, ocorreu exposição óssea de tíbia (Figura 1). Houve necessidade de debridamentos frequentes das áreas necróticas em membros inferiores, e o tratamento foi realizado pela equipe de cirurgia plástica do centro de tratamento de queimados do serviço.
Biopsia renal: áreas extensas de isquemia e infarto hemorrágico (A), hemorragia intersticial (B), trombos de fibrina em vasos de médio calibre (C)
Com a progressão incessante das lesões de partes moles de pernas e pés, tomados por áreas necróticas em todo o seu diâmetro, foi considerada que a doença de base causadora de necrose estaria em atividade. Todos os marcadores disponíveis estavam negativos para vasculites e não havia secreção purulenta ou culturas positivas que justificassem a evolução. Nesse momento, o 32º dia de internação, como medida alternativa, foi optado por realização de plasmaférese, uma vez que havia associação com MAT e inicialmente uma das hipóteses diagnósticas foi SHUa. Por volta do 40º dia de internação, a paciente começou a apresentar melhora importante da diurese e a evolução das áreas necróticas em pernas cessou. Foi possível suspender a hemodiálise, e a equipe de cirurgia plástica iniciou enxertia de pele no local, com boa resposta (Figura 1). A paciente recebeu alta após 68 dias de internação e foi considerado o diagnóstico de MAT e PF idiopática associada à IRA.
CONCLUSÃO
Este estudo traz o relato de uma paciente com lesões purpúricas de início agudo e rápida evolução complicadas com IRA e necessidade de hemodiálise. Embora a PF seja considerada uma doença trombótica, com indicação de anticoagulação plena, nesse caso o uso de qualquer anticoagulante não foi possível devido à associação com o quadro hemolítico e trombocitopênico, tornando o manejo mais difícil. Inicialmente, acreditava-se ser uma doença autolimitada, visto que a investigação de causa infecciosa foi completamente negativa, incluindo exame falso positivo para dengue. Entretanto, a presença de doença ativa, com risco de amputação de membros inferiores, decorrente de necroses progressivas até partes ósseas, causou preocupação. Nesse momento, a plasmaférese foi indicada como medida alternativa, com o intuito de cessar a agressiva progressão da doença cutânea. Além disso, a associação com MAT e a hipótese de SHUa ter sido inicialmente considerada, corroboraram essa indicação.
Houve resposta clínica ao tratamento, estabilização das áreas de necrose, permitindo a enxertia de pele. A biópsia renal, que é muito difícil de obter nesses casos, devido à sobreposição do quadro hemorrágico e trombótico, foi importante porque permitiu a diferenciação das possíveis causas de IRA, visto que esperava-se encontrar achados histológicos compatíveis com MAT, na qual se esperam microtrombos no lúmen dos capilares glomerulares, arteríolas e artérias, com proliferação miointimal, levando à isquemia glomerular e retração do tufo.1616 Moake JL. Thrombotic Microangiopathies. N Engl J Med [Internet] 2002 Aug [cited 2018 Jan 18];347:589-600. Available from: https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMra020528 DOI: 10.1056/NEJMra020528
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A presença de tantos achados hemorrágicos no interstício nos levou a considerar, portanto, o diagnóstico de IRA causada por PF. Novos estudos são necessários para corroborar esses achados, embora a obtenção de biópsia renal nesses casos ainda seja de grande dificuldade técnica.
REFERENCES
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Set 2018 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2019
Histórico
-
Recebido
02 Abr 2018 -
Aceito
13 Jul 2018