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III Consenso Brasileiro para Pesquisa de Autoanticorpos em Células HEp-2: perspectiva histórica, controle de qualidade e associações clínicas

Third Brazilian Consensus for Autoantibodies Screening in HEp-2 Cells: historical perspective, quality control and clinical associations

Resumos

OBJETIVO: O III Consenso Brasileiro para Pesquisa de Autoanticorpos em Células HEp-2 (FAN) objetivou discutir estratégias para controlar a qualidade do ensaio, promover a atualização das associações clínicas dos diversos padrões e avaliar as dificuldades de implantação do II Consenso ocorrido no ano de 2002. MÉTODOS: Nos dias 13 e 14 de abril de 2007 participaram do encontro em Goiânia pesquisadores e especialistas de diversos centros universitários e laboratórios clínicos de diferentes regiões do Brasil, com o propósito de discutir e aprovar as recomendações que visam a melhores padronização, interpretação e utilização do ensaio pelos clínicos. Foram convidados como ouvintes representantes comerciais de diferentes empresas produtoras de insumos para realização do teste de FAN. RESULTADOS E CONCLUSÃO: Dada a heterogeneidade de microscópios e reagentes disponíveis no mercado, o III Consenso enfatizou a necessidade do controle de qualidade em ensaios de imunofluorescência indireta. Foram também feitas algumas adequações na terminologia utilizada para classificar os diferentes padrões. Finalmente, foi realizada uma atualização das associações clínicas com finalidade de facilitar cada vez mais o melhor uso do ensaio pelos clínicos.

Autoanticorpos; Células HEp-2; Anticorpos antinúcleo; Imunofluorescência indireta


OBJECTIVE: The Third Brazilian Consensus for Autoantibodies Screening in HEp-2 Cells (ANA) had as purpose the evaluation of difficulties in the accomplishment of the 2nd Consensus recommendations that took place in the year of 2002, the discussion of strategies for quality control of the assay and the discussion of an update of the clinical associations of the several immunofluorescent patterns. METHODS: Several ANA experts from university centers and private laboratories in different areas in Brazil joined the workshop in Goiânia on 2007 April 13 and 14 with the purpose of discussing and approving the recommendations for standardization, interpretation and use of the test by physicians. Commercial representatives of different ANA slide brands were also invited as listeners to the workshop. RESULTS AND CONCLUSION: The 3rd ANA Consensus emphasized the need for quality control in indirect immunofluorescent assays since there is a considerable heterogeneity of available microscopes and reagents. It also promoted adaptations in the previously approved terminology used to classify the different patterns and finally updated the clinical associations of the several patterns with the purpose of providing guidance for interpretation of the assay by clinical pathologists and assistant physicians.

Autoantibodies; HEp-2 cells; Antinuclear antibodies; Indirect immunofluorescence assays


ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO UPDATE ARTICLE

III Consenso Brasileiro para Pesquisa de Autoanticorpos em Células HEp-2: perspectiva histórica, controle de qualidade e associações clínicas

Third Brazilian Consensus for Autoantibodies Screening in HEp-2 Cells: historical perspective, quality control and clinical associations

Paulo Luiz Carvalho FrancescantonioI, Luis Eduardo Coelho AndradeII, Wilson de Melo CruvinelIII, Flávia Ikeda e AraújoIV, Alessandra DellavanceV, Alexandre Gabriel JúniorVI;* * in memoriam , Barbara NuccitelliVII, Ben Hur TalibertiVIII, Carlos Alberto von MühlenIX, Carlos David Araújo BicharaX, Cláudio Henrique Ramos dos SantosXI, Cleonice BuenoXII, Cristiane Martinez YanoXIII, Cristóvão Luis Pitangueira MangueiraXIV, Darlene Gonçalves CarvalhoXV, Elizângela CardosoXVI, Eloísa BonfáXVII, Gustavo Gabriel RassiXVII, Hugo Mendonça MundimXIX, Izidro BendetXX, Jozélia RegoXXI, Lisiane Maria Enriconi dos Anjos VieiraXXII, Maria Ordália Ferro BarbosaXXIII, Mitiko SugiyamaXXIV, Mittermayer Barreto SantiagoXXV, Natasha SlhessarenkoXXVI, Nilzio Antônio da SilvaXXVII, Renata JarachXXVIII, Roberto SudaXXIX, Roger Abramino LevyXXX, Silvia Oliveira SampaioXXXI, Suzane Pretti Figueiredo NevesXXXII, Wilton Silva dos SantosXXXIII, Yanna K. de M. NóbregaXXXIV

IMestre em Ciências Ambientais e Saúde pela Universidade Católica de Goiás (UCG); professor assistente I de Imunologia dos cursos de Biomedicina e Medicina da UCG; coordenador do III Consenso Brasileiro para Pesquisa de Autoanticorpos

IIProfessor associado; livre docente da disciplina de Reumatologia na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); coordenador do Programa de Pós-Graduação da disciplina de Reumatologia da UNIFESP; assessor-médico do setor de Imunologia do Fleury Medicina e Saúde

IIIDoutorando de Reumatologia pela UNIFESP; professor assistente de Imunologia nos cursos de Biomedicina e Medicina da UCG; secretário do III Consenso Brasileiro para Pesquisa de Autoanticorpos

IVMestra em Ciências Ambientais e Saúde pela UCG; professora assistente I de Imunologia do curso de Biomedicina da UCG; coordenadora do Laboratório de Apoio Didático do Departamento de Biomedicina da UCG

VDoutoranda de Reumatologia pela UNIFESP; assessora científica do setor de Imunologia do Fleury Medicina Diagnóstica

VIPós-doutorado pela Scripps Medical Center La Jolla La USA; coordenador médico da AFIP-Medicina Laboratorial e Centro Imuno-Reumatológico de São Paulo

VIIBiomédica do Padrão Laboratório Clínico

VIIIPós-doutor pela Reumaklinik Aachen, Alemanha; professor titular de clínica médica da Universidade Federal de Uberlândia (UFU); coordenador do serviço de reumatologia do Hospital das Clínicas da UFU

IXProfessor de Reumatologia da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (FMPUCRS); doutor em Medicina pela Faculdade de Medicina da Rheinisch-Westfalische Technische Hochschule/Aachen, Alemanha; pós-doutorado no The Scripps Research Institute, La Jolla, EUA; diretor técnico do Metanalysis Centro de Diagnósticos Médicos, Porto Alegre

XMédico e biomédico; especialista em Patologia Clínica; especialista em Saúde Pública; mestrando em Biologia de Agentes Infecciosos e Parasitários pela Universidade Federal do Pará (UFPA); supervisor-técnico do Laboratório Amaral Costa; professor de Patologia Clínica do Centro de Educação Técnica do Estado do Pará (CESEP)

XIAssessor científico da NewLife Comércio de Produtos Laboratoriais

XIILaboratórios de Investigação Médica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)

XIIIMestra em Medicina Tropical pela Universidade Federal de Goiás; Professora assistente da disciplina de Imunologia da UCG

XIVMédico patologista clínico e reumatologista; doutor em Patologia pela FMUSP; médico da seção de Imunologia da Divisão de Laboratório Central (LIM 03) do Hospital das Clínicas da FMUSP; gerente médico do Departamento de Patologia Clínica (Diretoria de Medicina Diagnóstica e Preventiva) do Hospital Israelita Albert Einstein

XVMédica patologista clínica de Imunologia do Instituto Hermes Pardini

XVIBiologia celular e molecular; suporte técnico-científico da Biometrix Diagnóstica

XVIIProfessora titular de Reumatologia da FMUSP

XVIIIMédico patologista clínico do Laboratório Atalaia

XIXExame medicina laboratorial do Distrito Federal

XXMédico patologista clínico e virologista; pós-graduação em Biologia Parasitária pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ); consultor científico do setor de Imunoensaios do Sérgio Franco Medicina Diagnóstica

XXIMédica reumatologista e coordenadora do laboratório de Imuno-Reumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da UCG (FMUCG)

XXIIMestra em Ciências Médicas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); professora da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); professora da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI); patologista clínica do Laboratório Médico Santa Luzia

XXIIIMestra em Biomedical Science pela San Francisco State University, Califórnia; bioquímica dos Laboratórios Saúde e Hospital e Maternidade e Jardim América

XXIVAssessora científica da Hemagen Diagnósticos

XXVPós-Doutorado pela University of Calgary; médico reumatologista da Universidade Federal da Bahia (UFBA); professor adjunto da Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ciências; chefe do serviço de reumatologia do Hospital Santa Izabel

XXVIMédica patologista clínica; mestra pediatria pela USP; professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)

XXVIIDoutor em reumatologia pela USP; professor titular de reumatologia da FMUCG

XXVIIIMestra em Medicina Tropical pela UCG; biomédica do Padrão Laboratório Clínico

XXIXAssessor Científico da Alka

XXXDoutor em Ciências Biológicas (Biofísica) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); estatutário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); professor adjunto de reumatologia da UERJ; coordenador do Centro de Autoimunidades do Hospital Pró-cardíaco; consultor científico do Diagnósticos da América SA

XXXIDoutora em Imunologia pelo Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP; formada pela FMUSP; especialização em Reumatologia pela FMUSP; médica do setor de Imunologia do Laboratório Diagnósticos da América SA

XXXIIMédica patologista clínica; doutora em Ciências pela FIOCRUZ; professora adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (FMUFMG); coordenadora do setor de Soro-Imunologia do Serviço de Medicina Laboratorial do Hospital das Clínicas da UFMG

XXXIIIMédico reumatologista; coordenador do Laboratório de Reumatologia do Hospital Universitário de Brasília e doutor em Reumatologia pela UNIFESP

XXXIVMestra em Patologia Molecular/Imunologia pela Universidade de Brasília (UNB); professora da União Educacional do Planalto Central e do Centro Universitário Euro-Americano (UNIEURO); assessora científica da Imunotech Sistemas Diagnósticos Importação e Exportação

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Laboratório de Apoio Didático Departamento de Biomedicina da Universidade Católica de Goiás (UCG) Avenida Universitária, 1.069 – Setor Universitário CEP: 74605-010 – Goiânia-Go Tel.: (62) 3946-1393 E-mail: lad@ucg.br

RESUMO

OBJETIVO: O III Consenso Brasileiro para Pesquisa de Autoanticorpos em Células HEp-2 (FAN) objetivou discutir estratégias para controlar a qualidade do ensaio, promover a atualização das associações clínicas dos diversos padrões e avaliar as dificuldades de implantação do II Consenso ocorrido no ano de 2002. MÉTODOS: Nos dias 13 e 14 de abril de 2007 participaram do encontro em Goiânia pesquisadores e especialistas de diversos centros universitários e laboratórios clínicos de diferentes regiões do Brasil, com o propósito de discutir e aprovar as recomendações que visam a melhores padronização, interpretação e utilização do ensaio pelos clínicos. Foram convidados como ouvintes representantes comerciais de diferentes empresas produtoras de insumos para realização do teste de FAN. RESULTADOS E CONCLUSÃO: Dada a heterogeneidade de microscópios e reagentes disponíveis no mercado, o III Consenso enfatizou a necessidade do controle de qualidade em ensaios de imunofluorescência indireta. Foram também feitas algumas adequações na terminologia utilizada para classificar os diferentes padrões. Finalmente, foi realizada uma atualização das associações clínicas com finalidade de facilitar cada vez mais o melhor uso do ensaio pelos clínicos.

Unitermos: Autoanticorpos; Células HEp-2; Anticorpos antinúcleo; Imunofluorescência indireta

ABSTRACT

OBJECTIVE: The Third Brazilian Consensus for Autoantibodies Screening in HEp-2 Cells (ANA) had as purpose the evaluation of difficulties in the accomplishment of the 2nd Consensus recommendations that took place in the year of 2002, the discussion of strategies for quality control of the assay and the discussion of an update of the clinical associations of the several immunofluorescent patterns. METHODS: Several ANA experts from university centers and private laboratories in different areas in Brazil joined the workshop in Goiânia on 2007 April 13 and 14 with the purpose of discussing and approving the recommendations for standardization, interpretation and use of the test by physicians. Commercial representatives of different ANA slide brands were also invited as listeners to the workshop. RESULTS AND CONCLUSION: The 3rd ANA Consensus emphasized the need for quality control in indirect immunofluorescent assays since there is a considerable heterogeneity of available microscopes and reagents. It also promoted adaptations in the previously approved terminology used to classify the different patterns and finally updated the clinical associations of the several patterns with the purpose of providing guidance for interpretation of the assay by clinical pathologists and assistant physicians.

Key words: Autoantibodies; HEp-2 cells; Antinuclear antibodies; Indirect immunofluorescence assays

Introdução

A pesquisa de autoanticorpos em células HEp-2 no Brasil

A medicina laboratorial tem vivenciado uma constante evolução científico-tecnológica que repercute nos exames laboratoriais, afetando parâmetros importantes para a interpretação clínica, como os valores preditivos positivo e negativo, a sensibilidade e a especificidade. Essa realidade pode ser ilustrada em procedimentos laboratoriais, como na pesquisa de anticorpos antinúcleo (ANA), pela técnica de imunofluorescência indireta (IFI) em células HEp-2, também conhecido como fator antinúcleo (FAN), hoje denominado “pesquisa de anticorpos contra antígenos celulares” (PAAC). Trata-se de um excelente exame de rastreamento de autoanticorpos em soro de pacientes com suspeita de doença autoimune que, ao longo das últimas décadas, foi tecnicamente modificado, de forma a conferir sensibilidade progressivamente maior. Como consequência, a pesquisa de anticorpos contra antígenos celulares passou também a apresentar menor especificidade(17).

No entanto, a maior sensibilidade do teste de PAAC-IFI em HEp-2 trouxe algum prejuízo na especificidade, pois resultados reagentes são observados em amostras de alguns indivíduos sem evidência clínica ou laboratorial aparente de doença autoimune. Este cenário exige interpretação criteriosa dos achados sorológicos(19). A alta frequência de resultados positivos do teste em indivíduos saudáveis ou com manifestações clínicas vagas tem trazido à tona uma situação denominada por alguns de “síndrome do anticorpo antinúcleo idiopático”(17). A perda de especificidade do teste agravou-se também pelo fato de que uma vasta gama de especialistas médicos passou a utilizá-lo. Inicialmente, os reumatologistas e nefrologistas eram os grandes usuários desse exame e, em decorrência de sua familiaridade com o mesmo e das características de sua clientela, tinham maior chance de solicitar o exame a quem realmente tivesse quadro autoimune. Gradativamente o teste vem sendo solicitado por especialistas em outras áreas, como gastroenterologia, ginecologia, ortopedia, otorrinolaringologia, neurologia, psiquiatria, entre outras. Isto reforça a necessidade de fundamentarmos que o ensaio deve ser considerado como um teste de triagem e a interpretação e a valorização do resultado devem estar fundamentadas no conhecimento da sensibilidade e especificidade do mesmo e no contexto clínico particular(15,13). Atualmente, o PAAC-IFI em HEp-2 é um exame solicitado com menos critério por grande variedade de especialistas, que obviamente atendem pacientes distintos, nos quais o diagnóstico de doença reumática autoimune é menos prevalente. Portanto, a chance de resultados reagentes em indivíduos saudáveis ou com apresentações clínicas pouco expressivas tornou-se maior. Alguns elementos são importantes para a valorização adequada do teste do PAAC-IFI em HEp-2. Em primeiro lugar, o exame deve ser solicitado apenas quando houver suspeita convincente de doença autoimune. Sua solicitação frente a um paciente com queixas vagas frequentemente trará mais confusão ao raciocínio clínico, visto que um resultado positivo não implica necessariamente em autoimunidade.

Um segundo ponto a ser considerado é o título do PAAC-IFI em HEp-2: em geral, os pacientes autoimunes tendem a apresentar títulos moderados (1/160 e 1/320) e elevados (≥ 1/640), enquanto os indivíduos sadios com PAAC-IFI em HEp-2 positivo tendem a apresentar baixos títulos (1/80)(37). Entretanto, em ambas as situações pode haver exceções(29). Outro ponto importante é o padrão de fluorescência, que fornece uma indicação da identidade do(s) autoanticorpo(s) em questão (21) e deve ser analisado com bastante cautela. Para sua caracterização será levada em consideração a experiência e expertise do observador, a capacidade de se reproduzir o padrão por parte do kit, que pode ser de diferentes fabricantes, e os parâmetros técnicos relacionados com o controle de qualidade da imunofluorescência indireta(13).

Autoanticorpos contra alguns antígenos têm associação bastante específica com determinadas doenças autoimunes ou ao estado de autoimunidade em si, enquanto outros ocorrem indiscriminadamente em indivíduos autoimunes e não-autoimunes. Dessa forma, determinados padrões de fluorescência são mais específicos de doença autoimune, enquanto outros ocorrem com frequência em indivíduos sadios ou em pacientes com outras enfermidades não-autoimunes(17).

Outro ponto a se considerar é que o nível de autoimunidade fisiológica, ou basal, pode flutuar na dependência de sobrecargas a que o sistema imunológico seja exposto. Está bem demonstrada a presença de autoanticorpos desencadeada transitoriamente por infecções, por medicamentos e por neoplasias. Tem sido demonstrada claramente alta prevalência de autoanticorpos em pacientes infectados pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) e por outros vírus linfotrópicos(31). Portanto, outra consideração a ser feita ante um paciente com um achado positivo de PAAC-IFI em HEp-2 refere-se a possibilidade de infecções virais recentes, uso de medicamentos e processos neoplásicos.

Várias evidências demonstram que os autoanticorpos frequentemente precedem à eclosão clínica das doenças autoimunes(6). Um teste de PAAC-IFI em HEp-2 positivo pode preceder o aparecimento clínico do LES em até nove anos. Cerca de 80% dos pacientes com LES apresentam PAAC-IFI em HEp-2 positivo antes do aparecimento dos primeiros sintomas. O mesmo é válido, embora em menor porcentagem, para os vários autoanticorpos específicos dessa enfermidade, como anti-DNA nativo e anti-Sm. Portanto, outra possibilidade a se considerar em presença de um achado clinicamente inconsistente de PAAC-IFI em HEp-2 positivo é a de que o paciente poderá vir a desenvolver uma doença autoimune nos próximos anos. No entanto, alguns indivíduos podem seguir décadas com autoanticorpos circulantes sem desenvolver qualquer sinal de enfermidade autoimune(12).

Perante um resultado positivo de PAAC-IFI em HEp-2 é imprescindível que se caracterize essa reatividade, buscando a presença de anticorpos peculiares de patologias autoimunes por meio de técnicas específicas. Essa investigação deve ser subsidiada pela busca de evidência clínica ou laboratorial de doença autoimune sistêmica. Além do exame clínico apurado, é importante verificar possíveis alterações em hemograma, urina I, proteína C-reativa (PCR) e velocidade de hemossedimentação (VHS), que podem ser consideradas extensões do exame clínico. Na dependência da apresentação clínica, pode ser válido investigar enzimas hepáticas e musculares. A presença de sintomas vagos, como artralgia e astenia, com exames laboratoriais gerais normais, não é suficiente para subsidiar um achado laboratorial de PAAC-IFI em HEp-2 em título baixo e com padrão de fluorescência pouco específico. Nesses casos, deve-se exercitar o bom senso e proceder ao acompanhamento clínico do paciente em consultas regulares.

Levando-se em consideração essa problemática, os dois primeiros consensos contribuíram para o aperfeiçoamento das leituras e a interpretação dos padrões de PAAC-IFI em HEp-2 a partir da criação de critérios morfológicos a serem seguidos durante a leitura do teste. No I Consenso foram instituídas as árvores de classificação para os diversos padrões, a partir da combinação dos critérios, formando os grupos principais (núcleo, nucléolo, citoplasma e aparelho mitótico). De fato, a grande diversidade e heterogeneidade de terminologia então utilizada para caracterizar os diferentes padrões foi o ensejo para a realização do consenso(14).

No II Consenso foram ratificados os algoritmos de decisão para leitura dos padrões na imunofluorescência indireta vistos na primeira edição do consenso brasileiro, adicionando-se ainda o algoritmo para os padrões mistos. Tendo em vista a habilidade do teste em detectar autoantígenos nos distintos compartimentos celulares, e não apenas no núcleo, foram propostas algumas denominações para este exame laboratorial que expressasse a totalidade de sua dimensão diagnóstica:

• FAN – pesquisa de anticorpos contra componentes do núcleo, nucléolo, citoplasma e aparelho mitótico;

• FAN – Pesquisa de autoanticorpos;

• pesquisa de autoanticorpos (FAN e citoplasmáticos);

• pesquisa de anticorpos contra componentes do núcleo (FAN), nucléolo, citoplasma e aparelho mitótico;

• pesquisa de autoanticorpos – núcleo (FAN), nucléolo, citoplasma e aparelho mitótico;

• pesquisa de autoanticorpos contra antígenos intracelulares (FAN HEp-2).

O II Consenso recomendou ainda a elaboração de laudos descritivos com o propósito de aprimorar a leitura da lâmina pelos profissionais de laboratório. O laudo deve contemplar os padrões de fluorescência observados em núcleo, nucléolo, citoplasma, aparelho mitótico e na placa metafásica cromossômica, bem como o título dos respectivos padrões. Na Figura 1 estão representados dois exemplos de laudos, conforme as recomendações do consenso.


Ainda por ocasião do II Consenso foram abordadas informações sobre as principais associações clínicas dos diferentes padrões. Na Tabela estão resumidas as justificativas que fundamentaram a realização dos consensos e as recomendações deliberadas pelos participantes. Como pode ser observado, após a implantação do I e II Consensos, surgiram dificuldades que motivaram a realização de um novo encontro. Na ocasião da implantação do II Consenso, um dos problemas observados refere-se à classificação do padrão nuclear homogêneo quanto à reatividade dos nucléolos e com relação à classificação dos padrões mistos englobando múltiplas reatividades dentro do mesmo grupo, por exemplo, um padrão com dois ou mais autoanticorpos contra antígenos nucleares. Outro aspecto relevante, detectado após o II Consenso, foi a necessidade de alertar quanto à heterogeneidade dos reagentes e substratos, como, por exemplo, o título dos conjugados prontos para uso. Uma vez que alguns laboratórios não estão habituados a titular o conjugado contra um padrão absoluto ou consensual, um mesmo teste realizado em kits de marcas diferentes pode apresentar títulos divergentes. Isto se agrava com a heterogeneidade no poder de iluminação dos microscópios utilizados nos diversos laboratórios. Esses problemas, em seu conjunto, são responsáveis pela heterogeneidade de resultados entre os vários laboratórios e precisam ser mais bem discutidos.

   

Finalmente, ao longo dos anos, sentiu-se necessidade de revisar as associações clínicas dos diferentes padrões estabelecidos no II Consenso. Desse modo, o III Consenso Brasileiro para Pesquisa de Autoanticorpos em Células HEp-2 teve como propósito avaliar as dificuldades de implantação do II Consenso, ocorrido no ano de 2002, discutir estratégias para controlar a qualidade do ensaio e promover a atualização das associações clínicas dos padrões de fluorescência.

Método de trabalho

O III Consenso ocorreu em Goiânia nos dias 13 e 14 de abril de 2007, com a participação de pesquisadores e especialistas de diversos centros universitários e laboratórios clínicos de diferentes regiões do Brasil, com o propósito de discutir e aprovar as recomendações que visam a melhores padronização, interpretação e utilização do ensaio pelos clínicos. Representantes comerciais de diferentes empresas produtoras de insumos para realização do teste de PAAC-IFI em HEp-2 foram convidados como ouvintes.

Essa versão do consenso abordou os seguintes problemas: 1) a necessidade de controlar a qualidade do ensaio; 2) a definição de alguns aspectos controversos na classificação proposta no II Consenso; 3) o relato de novos padrões de fluorescência; e 4) a revisão das associações clínicas. Os problemas foram apresentados para os componentes da assembleia e discutidos amplamente com vistas à obtenção de consenso entre os diversos participantes. As discussões foram embasadas por prévia revisão da literatura referente aos diversos temas, bem como apresentação de dados próprios pelos participantes.

Recomendações gerais

A classificação da reatividade dos nucléolos quando em concomitância com padrão nuclear homogêneo passa a ser não-reagente. O III Consenso reitera a classificação atual dos padrões de fluorescência nos quatro compartimentos celulares (citoplasma, núcleo, nucléolo e aparelho mitótico). Ademais, foram feitas algumas definições para situações de possível ambiguidade ou indefinição. Nos casos em que o núcleo é uniformemente corado e não se destaca a região do nucléolo, os membros do III Consenso entendem que não há reatividade precípua contra o nucléolo, portanto, o mesmo deve ser descrito como “não-reagente”. Obviamente, o nucléolo será também descrito como “não-reagente” nos casos em que o mesmo se mostrar não-corado. Quando da existência de um padrão nuclear, o nucléolo somente será descrito como “reagente” quando sua coloração sobressair sobre a coloração do núcleo. O exemplo do laudo do padrão nuclear homogêneo pode ser observado no painel inferior da Figura 1.

Padrões mistos

Foi retificada a definição de padrões mistos. Foram categorizados como padrões mistos todos os casos em que a coloração de compartimentos celulares distintos (núcleo, nucléolo, citoplasma ou aparelho mitótico) ou de diferentes padrões de fluorescência em um mesmo compartimento celular foi observada. Assim, por exemplo, o padrão NuMA-1 é considerado um padrão misto, pois cora o núcleo e o aparelho mitótico. Outro exemplo é representado por um soro com uma mistura de autoanticorpos que corem simultaneamente o núcleo com padrão pontilhado fino e padrão nuclear pontilhado centromérico.

Padrão nuclear pontilhado com pontos isolados

O III Consenso alterou a deliberação do II Consenso quanto à necessidade de subclassificação do número de pontos no padrão nuclear pontilhado do tipo pontos isolados. Não mais se recomenda a denominação “maior que 10 pontos por núcleo” e “menor que 10 pontos por núcleo”. A denominação do padrão ficou estabelecida como “padrão nuclear pontilhado do tipo pontos isolados”. Essa mudança decorre do fato de que o número de corpos nucleares corados por anticorpos anti-p80-coilina e anti-sp-100 sofre considerável variação conforme o substrato celular em uso. Embora o observador experiente consiga, na maioria dos casos, sugerir com segurança o autoanticorpo mais provável, o número de pontos por núcleo não é um critério absoluto. Esta alteração foi implementada na árvore de classificação dos padrões nucleares, conforme pode ser observado na Figura 2.


Padrões não-caracterizados ou com características novas

O III Consenso reconhece que há padrões não caracterizados ou com características não-definidas, conforme a classificação existente. Nesses casos, a recomendação é que se descreva morfologicamente o padrão observado, que se acrescente uma observação especificando que o mesmo não faz parte da nomenclatura do consenso e que suas associações imunológicas e clínicas ainda não estão definidas. Recomenda-se fortemente que o suposto novo padrão seja testado e confirmado em kit comercial de marca diferente daquela em que originalmente se observou o padrão, evitando assim que condições artefatuais induzam uma falsa interpretação.

Dois novos padrões de fluorescência foram comunicados por participantes do III consenso e vários outros membros testemunharam já haver observado esses padrões. O primeiro refere-se a um padrão nuclear pontilhado fino, aproximando-se da textura homogênea e com placa metafásica corada da mesma forma. Sua associação clínica e identidade imunológica não estão definidas. Sua importância deriva do fato de que pode ser facilmente confundido com o padrão pontilhado fino denso e com o padrão homogêneo (Figura 3). O segundo refere-se a um padrão citoplasmático em forma de pequenos bastões (rods) e círculos (rings) que, aparentemente, está associado à infecção pelo vírus da hepatite C (HCV). Há estudos em curso por alguns grupos de pesquisa com a finalidade de estabelecer sua identidade imunológica (Figura 4). Como ainda não estão definitivamente caracterizados, esses dois novos padrões foram considerados preliminares e o III Consenso recomendou que os mesmos fossem completamente caracterizados e apresentados na próxima versão do consenso.



Substratos à base de células geneticamente modificadas

O III Consenso não realizou estudos sistematizados com substratos geneticamente modificados, sendo este estudo possível objeto de debate nos próximos encontros.

Controle de qualidade

O III Consenso recomenda e incentiva a busca por programas de controle de qualidade. Essa recomendação visa fazer frente às dificuldades em garantir a qualidade do teste, dada a necessidade de profissionais com treinamento especializado, heterogeneidade dos kits comerciais e não-padronização de equipamentos ópticos entre laboratórios. Entre os programas de qualidade institucionais, foram citados o do College Of American Pathologists (CAP) e o programa educativo PAAC-IFI em HEp-2 da Controlab. Também foram citados programas e reagentes para controle de qualidade de empresas privadas, como o PCQAUTO da GMK Diagnósticos, o Conexão HEp-2 da Hemagen Diagnósticos e a lâmina FITC-QC® da ALKA Tecnologia em Diagnósticos.

Um ponto considerado fundamental pelos membros do consenso foi a necessidade de realização da titulação do conjugado por parte dos laboratórios como medida essencial para ajustar a quantidade do ensaio. Esta medida foi formalmente recomendada e teve como objetivo adequar a orientação do I Consenso, que sugeria a diluição de 1/40 como triagem, o que gerou muita dúvida em sua execução, tendo em vista a heterogeneidade de equipamentos para a leitura do teste nos laboratórios. Visando adequar essa inconformidade, o III Consenso recomenda como etapa primordial para a realização do controle de qualidade a titulação do conjugado a partir do uso de soros de referência. A titulação do conjugado com base no soro de referência permite equiparar os resultados obtidos em diferentes serviços utilizando microscópios com diferente potência da lâmpada. Foi ressaltado ainda que esse procedimento deve ser realizado para cada novo kit de lote diferente. A manutenção dessa titulação nos kits do mesmo lote pode ser realizada a partir do uso de controles de baixa intensidade. Nesse quesito, ressalta-se a utilidade de lâminas comerciais com microesferas pré-calibradas para diversas intensidades de fluorescência e que podem ser utilizadas para treinamento e calibração interna da leitura. Para promover a melhoria na qualidade dos diversos serviços e garantir a obtenção de resultados fidedignos, o III Consenso recomenda adesão de todos os laboratórios aos programas de controle de qualidade.

É de fundamental importância recordar que a reação de IFI depende de cinco fatores: o sistema óptico (microscópio), a potência da lâmpada (20, 50 ou 100W), a concentração do conjugado, os soros controles de reatividade mínima (1/80) e o observador.

A concentração do conjugado permite equiparar sistemas ópticos diferentes, lâmpadas de potências diferentes e a capacidade de interpretação do observador, por exemplo: se a potência da lâmpada é baixa, é recomendada a utilização de um conjugado mais concentrado para se obter a mesma fluorescência de uma lâmpada de potência maior. Para estabelecer a concentração ideal do conjugado (título do conjugado), devemos utilizar a técnica de titulação em bloco em que várias diluições do conjugado são cruzadas com diversas concentrações de um soro de referência, procurando a maior diluição do conjugado capaz de reproduzir o título nominal do soro de referência.

O soro de referência pode acompanhar o kit pronto e o laboratório passará a se referenciar a sistema óptico, lâmpada e leitor, de acordo com o padrão estabelecido pelo fabricante. O soro de referência pode também ser adquirido comercialmente, obtido de instituições de controle de qualidade ou ainda o laboratório poderá enviar o seu soro a um outro laboratório de sua referência e, de posse dos resultados, passar a se referenciar a esse laboratório. Uma vez feita a primeira referência, ele poderá armazenar semanalmente alíquotas de soros de títulos determinados no próprio laboratório. O procedimento de titulação do conjugado está representado na Figura 5.


É recomendado que o laboratório mantenha em sua soroteca amostras para controle com título de reatividade mínima (por exemplo: 1/80), a serem diluídas em 1/40, 1/80, 1/160 e 1/320. A cada bateria diária o laboratório deverá processar o controle baixo e deverá considerar a bateria válida se a variação de títulos for de mais ou menos uma diluição. Se for observada inconformidade do controle, por exemplo se uma amostra com título médio de 1/80 apresentar-se como negativa, a bateria deverá ser invalidada. Utilizando o controle de reatividade mínima (1/80), uma bateria de testes somente será validada com a leitura de um título a mais ou a menos de 80. No caso de ocorrer queda superior a um título, é provável que o sistema tenha entrado em instabilidade. Recomenda-se, então, que seja verificado primeiramente se houve problema na alíquota armazenada, nesse caso repetindo o teste com a alíquota armazenada na semana anterior. Se ao término da repetição o título encontrado foi o previsto, chegaremos à conclusão de que a alíquota do controle em uso havia se deteriorado. Se a nova alíquota apresentou também queda do título de mais de uma diluição, deveremos checar o sistema óptico (deterioração do filtro UV, inundação da objetiva com glicerina tamponada e desempenho da lâmpada). Caso não seja encontrada alteração nesses componentes e no número de horas de uso da lâmpada, a causa mais provável será degradação do conjugado, que deve então ser submetido a novo processo de titulação, como descrito anteriormente. Na Figura 6 está representado o fluxograma do controle de qualidade diário das reações.


Como recomendações importantes para manutenção do controle de qualidade adequado temos:

• a realização do controle do conjugado a cada 15 dias e nova titulação sempre que um novo kit for aberto;

• checagem rotineira das objetivas e dos filtros do microscópio que interferem na definição do título do conjugado;

• além da checagem do tempo de lâmpada, é necessário checar se a lâmpada está centrada. Isso pode ser feito utilizando uma folha de papel branca colocada na mesa do microscópio e observado com objetiva de 10 se a lâmpada está centrada. Caso seja observado escurecimento de parte do campo, o manuseio dos botões de centragem direita e esquerda, superior e inferior e foco da lâmpada deverão ser acionados a fim de realizar o ajuste.

Associações clínicas e descrição dos padrões

O III Consenso conduziu ampla discussão para validação e reavaliação das associações clínicas e imunológicas referentes aos padrões de PAAC-IFI em HEp-2. As recomendações advindas dessa atividade estão listadas na Tabela anterior.

Em sua vasta maioria, as associações anteriormente descritas foram acordadas por unanimidade entre os participantes do consenso. Nos raros casos em que não houve unanimidade, acatou-se a opinião majoritária.

Essa iniciativa reflete a vigorosa atividade de pesquisa no campo de autoanticorpos em geral, e de anticorpos antinúcleo em particular, em nosso país. Deve ser enfatizado que essa atividade tem proporcionado uma evolução progressiva e marcante de nossa comunidade científica e profissional, firmando uma posição nacional independente com relação à forma de realizar e interpretar o ensaio para determinação de autoanticorpos em células HEp-2. Essa característica tem beneficiado também os clínicos que lançam mão desse exame laboratorial e, por conseguinte, os pacientes que a eles recorrem. Finalmente, é necessário que fique claro que esse é um processo de amadurecimento contínuo e progressivo e que o mesmo depende da interação de toda a comunidade envolvida com as várias etapas do processo.

Agradecimentos

Às sociedades Brasileira de Reumatologia (SBR), Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC), Brasileira de Análises Clínicas (SBAC) e ao Conselho Regional de Biomedicina da 3ª região (CBRM-3).

Referências

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Primeira submissão em 20/06/09

Publicado em 20/06/09

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  • Endereço para correspondência:
    Laboratório de Apoio Didático
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Recebido
      20 Jun 2009
    • Aceito
      20 Jun 2009
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