EDITORIAL EDITORIAL
O fator antinúcleo para além do bem e do mal
Os autoanticorpos têm tido importância fundamental no estabelecimento do conceito da autoimunidade, na definição de diversas entidades nosológicas autoimunes e no manejo clínico de várias doenças autoimunes. Muitas doenças autoimunes sistêmicas estão associadas à presença de altos níveis séricos de autoanticorpos contra antígenos nucleares, nucleolares e citoplasmáticos. Compreensivelmente, uma das formas tradicionais de se fazer o rastreamento de uma possível doença autoimune sistêmica é a pesquisa de anticorpos contra antígenos celulares pelo método de imunofluorescência indireta em células HEp-2.
Uma revisão histórica nos mostra que este teste foi, inicialmente, desenhado para a detecção de autoanticorpos contra antígenos nucleares, principalmente aqueles associados ao lúpus eritematoso sistêmico (LES). Por este motivo, o teste foi designado fator antinúcleo ou FAN. No entanto, hoje está bem claro que este teste permite a detecção de autoanticorpos contra antígenos de diversos compartimentos celulares, incluindo nucléolo, citoplasma e aparelho mitótico. Embora tenham sido feitas recomendações alternativas, o termo FAN é ainda o mais empregado.
A presença de autoanticorpos é um critério importante para o diagnóstico de várias doenças autoimunes. No caso do LES, especificamente, o teste de FAN positivo é um dos 14 critérios para classificação da doença. Ao longo dos anos, este cenário possivelmente contribuiu para o estabelecimento do conceito de que um teste de FAN positivo é forte indício de doença autoimune e de que este seria um bom método para rastreamento amplo de autoimunidade. Nesse ínterim, alguns eventos contribuíram para demonstrar que este conceito deve ser reavaliado.
Houve progressivo e vigoroso melhoramento na tecnologia dos diversos elementos que compõem o ensaio, incluindo a qualidade das lâminas de células HEp-2, dos conjugados fluorescentes e dos próprios microscópios de fluorescência. Esta melhora tecnológica resultou em grande aumento na sensibilidade do teste, que hoje é capaz de detectar anticorpos em níveis séricos menores e de menor avidez do que outrora. Em paralelo, a prescrição do teste de FAN passou a ser feita por um amplo espectro de especialistas médicos. Este exame era anteriormente prescrito quase exclusivamente por reumatologistas e nefrologistas, afeitos à lida de pacientes com LES e doenças afins. Portanto, a probabilidade pré-teste de autoimunidade era alta, favorecendo o desempenho diagnóstico do teste. Progressivamente, médicos das várias especialidades, incluindo ginecologistas, pneumologistas, alergistas, endocrinologistas, cardiologistas, hematologistas e gastroenterologistas, entre outros, passaram a utilizar o teste de FAN como ferramenta de rastreamento geral de autoimunidade. Ocorre que cerca de 10% dos indivíduos de uma amostragem geral apresentam teste de FAN positivo. Portanto, sua solicitação indiscriminada tem gerado, frequentemente, a constrangedora situação de um teste positivo na ausência de evidência clínica objetiva de enfermidade. Temos denominado este cenário de síndrome do FAN positivo idiopático. Não é difícil imaginar os transtornos, as preocupações, as condutas terapêuticas inadequadas e as despesas desnecessárias advindos desta síndrome. E, assim, um exame de grande utilidade pode ter efeitos maléficos.
Para melhor apreciação da situação, é importante compreender que o fenômeno do autoanticorpo não está, exclusivamente, associado ao contexto de doença autoimune. Na verdade, existe um grau fisiológico de autoimunidade representado por autoanticorpos de baixa avidez e em baixa concentração sérica. Em situações de estresse imunológico, pode haver exacerbação do fenômeno do autoanticorpo. No contexto patológico autoimune, em especial, ocorrem autoanticorpos de alta avidez e altos níveis séricos. No entanto, em algumas condições não-autoimunes também pode ocorrer exacerbação dos autoanticorpos. De fato, isto é observado em algumas infecções virais e bacterianas, em algumas neoplasias e após exposição a alguns fármacos e agentes químicos em geral.
Outro aspecto a ser considerado é que os autoanticorpos podem preceder o desenvolvimento de uma doença autoimune por meses ou anos. Ademais, as condições autoimunes são espectrais em intensidade e podem se manifestar de formas frustras e paucissintomáticas. Finalmente, a autoimunidade apresenta forte influência genética, de forma que diferentes membros de uma mesma família podem apresentar distintas formas de doença autoimune, de intensidade variada, sendo que alguns podem exibir somente a presença de autoanticorpos.
Assim, temos hoje uma contradição. Por um lado, há o conceito geral de que um teste de FAN positivo representa forte indício de doença autoimune sistêmica, especialmente de LES. Este conceito vigora em vários segmentos do meio médico e, até mesmo, entre leigos. De outro lado, sabemos que um teste de FAN positivo pode ocorrer em cerca de 10% dos indivíduos sem qualquer indício aparente de doença e que, mesmo naqueles com predisposição autoimune, pode haver dissociação entre a presença do autoanticorpo e a manifestação clínica da enfermidade.
Esta situação gera a necessidade de se refletir sobre a utilização do teste do FAN nas práticas clínica e laboratorial. No cenário clínico, está claro que é necessário exercer critério clínico quando da solicitação deste exame. No contexto laboratorial há a necessidade de melhor compreender as variáveis técnicas na realização do teste e buscar elementos na interpretação do mesmo que auxiliem na discriminação de resultados de maior ou menor relevância clínica. Neste sentido, diversos pesquisadores brasileiros e estrangeiros vêm, progressivamente, apontando para a importância da valorização do padrão de fluorescência, que, de fato, fornece informação direta sobre a distribuição topográfica do autoantígeno reconhecido. Como esperado, alguns padrões têm demonstrado forte associação a doenças autoimunes, enquanto outros são predominantemente associados a contexto não-autoimune.
Atentos a esta situação, diversos estudiosos de autoanticorpos em nosso país têm se preocupado em estabelecer critérios padronizados para execução, interpretação e relato do exame de FAN. Desde 2002, pesquisadores e analistas com larga experiência na análise de autoanticorpos e do FAN, em especial, têm se reunido em sucessivas ocasiões para o estabelecimento de um consenso sobre esses aspectos. Este esforço tem resultado na progressiva homogeneização de vários aspectos importantes para a interpretação e a elaboração do laudo do exame de FAN. A presente edição do JBPML traz um artigo relatando as atividades e recomendações do III Consenso Nacional para Pesquisa de Autoanticorpos em Células HEp-2. Nesta edição do consenso, houve o refinamento na descrição e na classificação de alguns padrões de fluorescência, bem como recomendações fundamentais para o controle de qualidade do exame. A adesão às recomendações do consenso tem favorecido a qualidade do exame em todo o país e contribuído para melhorar a comunicação entre o patologista clínico e os médicos a cargo dos pacientes. Acreditamos, também, que as atividades do grupo do consenso têm colaborado para a contínua troca de experiência e o aprimoramento entre especialistas no teste de FAN em todo o país, propiciando, assim, o uso mais adequado desta importante ferramenta pelos profissionais da assistência médica e possibilitando auxílio mais efetivo ao paciente.
Luís Eduardo Coelho Andrade
Professor associado; livre-docente da disciplina de Reumatologia na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); coordenador do Programa de Pós-Graduação da disciplina de Reumatologia da UNIFESP; assessor médico do setor de Imunologia do Fleury Medicina e Saúde.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Ago 2009 -
Data do Fascículo
Jun 2009