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Um quebra-cabeça chamado obesidade

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EDITORIAL

Um quebra-cabeça chamado obesidade

Antônio A. Barros Filho

Professor Doutor, Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Antonio de Azevedo Barros Filho Departamento de Pediatria da FCM - UNICAMP CEP: 13083-970 - Cx. Postal 6011 - Campinas, SP Fone: (19) 3788.7193/3788.7824/3788.7322 E-mail: abarros@fcm.unicamp.br

Em certo sentido, pode-se dizer que a história da humanidade foi pautada pela luta contra a fome. No entanto, desde a antiguidade existem relatos e figuras sobre pessoas obesas. Em algumas sociedades, e até na sociedade ocidental, em alguns períodos, a obesidade chegou a ser considerada sinal de saúde e de beleza. São famosos os quadros de pintores flamengos e impressionistas que retratam homens e mulheres com pesos (peso aqui referido metaforicamente) bem maiores do que os aceitos como belos e adequados nos dias de hoje.

A partir de meados do século passado, começou-se a acumular evidências de que a obesidade era uma condição que poderia prejudicar a saúde das pessoas. Hoje está bem estabelecido que ela aumenta muito o risco das pessoas desenvolverem hipertensão, diabete tipo II e doenças cardiovasculares - uma doença plurimetabólica. Ao mesmo tempo em que se descobria o quanto a obesidade pode ser danosa à saúde, a humanidade testemunhou, nos últimos 50 anos, um aumento da prevalência da obesidade, ao ponto de a Organização Mundial da Saúde considerá-la uma epidemia global1. Com início alguns anos mais tarde e de forma, por enquanto, menos intensa, vem se observando que o aumento da prevalência da obesidade também está ocorrendo entre crianças e adolescentes, tanto em países desenvolvidos quanto em países em desenvolvimento2. No Brasil, enquanto a desnutrição diminuía, a obesidade começou a aumentar3.

Embora nem todos os obesos na adultícia tenham sido obesos na infância, já está bem demonstrado que crianças e adolescentes obesos, principalmente a partir dos 5 anos de idade, tornam-se adultos obesos4, porém, o que é mais grave, vários problemas relacionados à obesidade, que antes eram só observados na adultícia, já são observados na infância e principalmente na adolescência. Alterações metabólicas da obesidade já podem ser observadas em crianças; assim, a hipertensão, a hipercolesterolemia e o hiperinsulinismo são vistos na criança e no adolescente, levando às doenças cardiovasculares e ao diabete. Outras doenças têm sido referidas em crianças obesas: dislipidemia, tíbia vara, resistência à insulina, síndrome do ovário policístico, cálculo biliar, hepatite esteatosa, apnéia do sono e outras, sem falar nas reações preconceituosas que essas crianças podem sofrer entre colegas de escola e da vizinhança, considerando-as como preguiçosas, glutonas, mentirosas5.

Procurando entender por que, em tão pouco tempo, a obesidade se tornou um problema de tão grande envergadura, os pesquisadores estão procurando respostas nas mais diferentes direções, com achados muitas vezes conflitantes, indo desde a biologia molecular até estudos epidemiológicos, de estudos psicológicos e sociais a clínicos, até a tentativa de entender o problema dentro da teoria da evolução6. Como se tentassem montar um jogo de quebra-cabeça, sem ter a mínima idéia de como essa figura ficará uma vez encaixadas todas as peças, autores argumentam e investigam a influência genética, outros buscam hormônios e substâncias reguladoras do metabolismo lipídico e da saciedade (leptina, adiponectina, grelina, pYY), mutações genéticas, e outros investigam atividade física, tipos de alimentos e as interações entre eles, influência do peso ao nascer, tempo em frente à televisão e assim por diante7.

De acordo com essa perspectiva multifacetada, este número do Jornal de Pediatria publica três artigos abordando diferentes aspectos da obesidade8-10.

O artigo de Balaban & Silva (2004)8 refere-se ao provável efeito protetor do aleitamento materno contra a obesidade na infância. A hipótese de que o leite materno possa ter um efeito protetor em relação à obesidade é bastante atraente, tendo em vista os vários benefícios que a prática da amamentação traz para a criança e para a mãe. As autoras fazem inicialmente uma revisão sobre os fatores biológicos implicados na regulação do balanço energético, depois discutem a multicausalidade da obesidade, depois apresentam uma revisão sobre as investigações epidemiológicas que buscam encontrar a associação entre amamentação e proteção contra a obesidade, e por fim discorrem sobre a teoria do imprinting metabólico, que explicaria por que o leite materno exerceria esse efeito protetor. Trata-se de uma revisão muito bem feita e organizada. As autoras concluem que o aleitamento materno "parece" (aspas minhas) ter um efeito protetor contra a obesidade infantil, porém essa questão merece uma investigação mais aprofundada. Na verdade, essa conclusão é ambígua. Em revisão publicada em 200111, a conclusão da autora é de que os estudos têm chegado a resultados controvertidos. Um estudo prospectivo realizado no Brasil e recentemente publicado12 não conseguiu observar efeito protetor do leite materno para a obesidade. No mesmo número em que foi publicado esse estudo brasileiro, foi publicado um estudo inglês13 que também não mostrou efeito protetor. A não-observação de efeito protetor para um problema não compromete a importância do aleitamento materno para a saúde da criança e do adolescente. O importante é não transformar o leite humano na panacéia para todos os problemas de saúde que hoje a humanidade enfrenta. Essa postura, na verdade, pode mais prejudicar a sua importância do que estimular o seu incremento.

O artigo de Giugliano & Carneiro (2004)9 investiga alguns fatores associados à obesidade em escolares de classe média e média-alta da cidade de Taguatinga, DF. Primeiramente, foi realizado um levantamento antropométrico de 452 escolares de 6 a 10 anos de idade e selecionadas 68 crianças com sobrepeso e obesidade e 97 crianças dentro da normalidade. Os autores aplicaram um inquérito sobre a atividade física e horas de sono diárias da criança, além de escolaridade, atividade física, peso e estatura dos pais. A prevalência do sobrepeso entre os alunos foi de 16,8%, e a da obesidade, de 5,3%. Não é uma prevalência tão alta em relação aos relatos que vêm sendo publicados. Dois outros achados parecem-me bastante interessantes. O primeiro refere-se à correlação inversa entre sono e adiposidade e direta com o tempo sentado, observado entre as crianças com sobrepeso e obesidade. Os autores especulam sobre o papel do sono, mas não o relacionam à atividade física. Será que a maior atividade física não favoreceria o sono? Ao invés de estimular o sono, como os autores sugerem, não seria melhor estimular a atividade física? Outro aspecto que me chamou a atenção foi o percentual de obesos e sobrepesos observados entre os pais. Embora a porcentagem seja maior nas crianças obesas e com sobrepeso (75%), também é alta entre os filhos com peso dentro da normalidade (50,6%).

O artigo de Lima et al.10 investiga o perfil lipídico e a peroxidação de lipídeos no plasma de crianças e adolescentes obesos, com sobrepeso e com peso dentro da normalidade de ambos os sexos. Tanto os sobrepesos e obesos de ambos os sexos tiveram alteração nos parâmetros investigados, com comprometimentos mais evidentes no sexo masculino. Este estudo sugere que, já na infância e na adolescência, detecta-se que a obesidade pode ser mais prejudicial para as pessoas do sexo masculino.

Embora ainda muitas peças precisem ser identificadas para se compor este quebra-cabeça, um conceito já está bem definido: o peso corporal é regulado por vários mecanismos que procuram manter um equilíbrio entre a energia ingerida e a energia gasta, e esses mecanismos são bastante precisos em condições normais. Qualquer fator que possa interferir nesses mecanismos, levando a um aumento da ingestão energética ou à diminuição de seu gasto, pode levar à obesidade a longo prazo. O aumento da prevalência da obesidade nos últimos anos (embora fatores genéticos possam ter grande influência, principalmente nas suscetibilidades individuais), por ter sido tão rápido e pela observação de que populações etnicamente semelhantes, vivendo em condições ambientais diferentes, têm prevalências diferentes, aponta para o papel privilegiado que o ambiente tem sobre a obesidade.

Muitas das pesquisas realizadas na área da biologia molecular têm como objetivo descobrir algum medicamento capaz de tratar a obesidade sem causar nenhum efeito colateral. Até o momento esse medicamento não foi encontrado, e as drogas recentemente usadas apresentaram resultados frustrantes14.

É senso comum dizer que o tratamento da obesidade é difícil e que, com freqüência, pessoas que conseguem emagrecer acabam recuperando o peso perdido algum tempo após. Isso é verdade, mas não se leva em conta que as condições ambientais têm exercido importante influência sobre o incremento da obesidade (sedentarismo traduzido em tempo gasto em frente à televisão, computador, jogos eletrônicos, falta de espaço para atividades físicas lúdicas, aliado ao maior acesso a alimentos ricos em carboidratos e gorduras), além do estímulo ao consumo de alimentos promovido pelos meios de comunicação. Com freqüência, a abordagem sobre a obesidade, suas conseqüências clínicas e como tentar resolvê-las ocorre apenas quando o paciente vem procurar atendimento médico, e, na maioria das vezes, não é esse o seu principal problema. A abordagem com o paciente é um aspecto importante, mas se não houver um estímulo do ambiente, dificilmente a criança, o adolescente ou até mesmo o adulto vai conseguir resolver a sua obesidade. E não me refiro ao ambiente familiar, pois ele é fruto dos mesmos estímulos que influenciam as pessoas de forma individual, mas sim do ambiente de forma ampla, da sociedade. E gostaria de terminar dizendo que as sociedades médicas precisam sensibilizar o governo no sentido de se iniciar um movimento de conscientização da população sobre a importância de uma melhor qualidade na alimentação e da atividade física diária para a manutenção da saúde. Essa postura não pode ser apenas individual, mas social. É preciso que as pessoas tenham tempo para praticar atividade física, tanto no trabalho como nas escolas, que alimentos ricos em calorias e pobres nutricionalmente não sejam vendidos nas escolas nem promovidos pela mídia. As pessoas precisam saber que comer é uma atividade saudável e prazerosa, mas que não é isenta de riscos, que não se pode comer à vontade e depois só tomar um remédio contra a azia.

Referências Bibliográficas

1. World Health Organization. Obesity: preventing and managing the global epidemic. Report of a WHO Expert Consultation on Obesity. Geneva, 3-5 June, 1997 (WHO/NUT/NCD/97.2). Geneva: WHO, 1998.

2. Styne DM. Childhood and adolescent obesity: prevalence and significance. Ped Clin N Am. 2001;48:823-54.

3. Wang Y, Monteiro CA, Popkin BM. Trends of obesity and underweight in older children and adolescents in the United States, Brazil, China, and Russia. Am J Clin Nutr. 2002;75:971-7.

4. James WPT. Tendências globais da obesidade infantil - Conseqüências a longo prazo. Anais Nestlé. 2002;62:1-11.

5. Strauss RS. Childhood obesity. Ped Clin N Am. 2002;49:175-201.

6. Friedman JM. A war on obesity, not the obese. Science. 2003;299:856-8.

7. Ebbeling CB, Pawlak DB, Ludwig DS. Childhood obesity: public-health crisis, common sense cure. Lancet. 2002;360:473-82.

8. Balaban G, Silva GAP. Efeito protetor do aleitamento materno contra a obesidade infantil. J Pediatr (Rio J). 2004;80:7-16.

9. Giugliano R, Carneiro EC. Fatores associados à obesidade em escolares. J Pediatr (Rio J). 2004;80:17-22.

10. Lima SCVC, Arrais RF, Almeida MG, Souza ZM, Pedrosa LFC. Perfil lipídico e peroxidação de lipídeos em crianças e adolescentes com sobrepeso e obesidade. J Pediatr (Rio J). 2004;80:23-8.

11. Butte NF. The role of breastfeeding in obesity. Ped Clin N Am. 2001;48:189-98.

12. Victora CG, Barros FC, Lima RC, Horta BL, Wells J. Anthropometry and body composition of 18 year old men according to duration of breast feeding: birth cohort study from Brazil. BMJ. 2003;327:901-5.

13. Li L, Parsons TJ, Power C. Breast feeding and obesity in childhood: cross sectional study. BMJ. 2003;327:904-5.

14. Pi-Sunyer X. A clinical view of the obesity problem. Science. 2003;299:859-60.

  • Endereço para correspondência

    Antonio de Azevedo Barros Filho
    Departamento de Pediatria da FCM - UNICAMP
    CEP: 13083-970 - Cx. Postal 6011 - Campinas, SP
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    • Publicação nesta coleção
      22 Jun 2004
    • Data do Fascículo
      Fev 2004
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