Acessibilidade / Reportar erro

Determinação das medidas do tamanho corporal e níveis da pressão arterial entre as crianças

EDITORIAL

Determinação das medidas do tamanho corporal e níveis da pressão arterial entre as crianças* * Ver artigo de Moser DC et al. nas páginas 243-9.

David S. Freedman

PhD, Division of Nutrition, Physical Activity and Obesity, Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, GA, EUA

Vague observou, em 1956, que as mulheres com obesidade androide (central) tinham alta prevalência de diabetes e aterosclerose,1 e uma revisão de Stern e Haffner, em 1986,2 estimulou grande interesse pelos efeitos da distribuição da gordura corporal na saúde. Desde então, numerosos estudos têm documentado a importância do tecido adiposo visceral no desenvolvimento de DAC e diabetes tipo 2.3 Moser et al.4 devem ser congratulados por seus esforços em obter e analisar dados sobre a relação de várias medidas do tamanho corporal com níveis de PAS e PAD entre 1.441 indivíduos com 10 a 16 anos de idade. O principal achado, de que o índice de massa corporal (IMC, kg/m2 ) parece ser um preditor mais importante de níveis altos de pressão arterial entre as crianças do que a circunferência da cintura (CC), a relação cintura-altura ou a espessura da prega cutânea do tríceps, está de acordo, em geral, com os resultados de outros estudos.5

Existem, contudo, vários pontos que devem ser considerados na interpretação desses achados. É extremamente difícil separar os efeitos das medidas do tamanho corporal, que são altamente inter-relacionadas (r = 0,80 a 0,90, tabela 2) e, como observam os autores, essa multicolinearidade torna difícil tirar conclusões válidas. Embora o poder preditivo global de um modelo estatístico possa não ser grandemente afetado por sua multicolinearidade, é difícil ou impossível interpretar a influência independente dos coeficientes individuais em um modelo de regressão que incorpore várias medidas do tamanho corporal. Se os preditores forem altamente inter-relacionados, é provável que poucas crianças, por exemplo, tenham níveis substancialmente diferentes de CC, mas níveis semelhantes de IMC e de espessura da prega cutânea do tríceps. Isso leva a estimativas muito imprecisas dos coeficientes de regressão individuais e é até possível que o sinal dos coeficientes se inverta. O efeito independente da CC, em níveis constantes de IMC e espessura da prega do tríceps, não pode ser avaliado em um modelo de regressão porque os níveis dessas três variáveis quase sempre mudam juntos.

Parece, contudo, que os autores podem ter tentado interpretar os coeficientes de regressão individuais a partir de um modelo com alta multicolinearidade. O texto que acompanha a tabela 3 afirma que o IMC e a espessura da prega do tríceps se associaram individualmente à pressão arterial alta "independentemente da obesidade abdominal", e a seção Métodos afirma que os modelos foram ajustados "para todas as medidas de adiposidade". Embora não se tenha certeza de como os autores derivaram as estimativas da tabela 3, parece que os coeficientes são de um modelo de regressão simples que incluiu IMC, CC e espessura da prega do tríceps (juntamente com maturidade sexual e condições econômicas). Mesmo que os níveis de IMC, CC e a espessura da prega do tríceps fossem tratados como variáveis dicotômicas nas análises de regressão, ainda seriam fortemente inter-relacionados. Provavelmente, essa é a razão por que a odds ratio para a CC, que mostra uma correlação de r = 0,89 com o IMC e uma correlação de cerca de r = 0,25 com os níveis de pressão arterial (tabela 2), é inferior a 1,0 (mas estatisticamente não significativa) na tabela 3. Também se sabe que os efeitos da multicolinearidade são particularmente problemáticos quando a inter-relação entre as variáveis dos preditores é mais forte do que a relação dos preditores com o resultado. É esse o caso no estudo de Moser et al.:4 as inter-relações entre as medidas do tamanho corporal são muito mais fortes (r > 0,8) do que suas associações com os níveis da pressão arterial (r ≈ 0,25). Também se deve observar que todas as análises da relação das medidas do tamanho corporal com os fatores de risco para DAC certamente devem fazer controle para gênero e idade. Isso não é especificado nas seções Métodos, Resultados nem na tabela, e não se sabe ao acerto como os autores fizeram o controle dessas covariáveis.

Na presença de multicolinearidade, comom ser comparadas s importâncias de diferentes medidas do tamanho corporal? A solução mais simples seria comparar o ajuste global de vários modelos, cada um deles contendo apenas uma medida de tamanho corporal. O ajuste ou concordância do modelo com os dados observados poderia ser avaliado usando múltiplos R2 para desfechos contínuos ou a estatística kappa6 para desfechos dicotômicos. A significância estatística das diferenças nos múltiplos valores de R2 poderia, então, ser avaliada usando fórmulas para correlações correspondentes,7 ou para a estatística kappa através de bootstrapping.8 Outra possibilidade para um desfecho dicotômico, tal como pressão arterial elevada (tabela 3), seria comparar áreas sob a curva da característica operativa do receptor (ROC).9 As curvas ROC avaliam a sensibilidade e a especificidade (expressa como taxa de falso-positivos) de uma associação ao longo de todos os pontos de corte possíveis do preditor e são usadas para examinar a relação de várias medidas de tamanho corporal (inclusive IMC, CC e espessura da prega do tríceps) com fatores de risco de CAD entre crianças de três grandes cidades do Brasil.10

As áreas sob a curva ROC das várias medidas de tamanho corporal i poderiam ser então comparadas.9 Também seria possível examinar se um modelo com duas das medidas de tamanho corporal representa mais da variabilidade da pressão arterial do que um modelo com apenas uma medida. Por exemplo, se o R2 (ou kappa) de um modelo com IMC e CC for semelhante ao de um modelo contendo apenas CC, mas for substancialmente mais baixo do que o de um modelo contendo apenas o IMC, isso indicaria que a CC é a característica mais importante.

Moser et al.4 examinaram os níveis de pressão arterial entre indivíduos com 10 a 16 anos de idade, mas deve-se notar que a importância relativa da medida do tamanho corporal pode depender do fator de risco examinado. Em geral, estudos de crianças e adolescentes verificaram que os níveis de pressão arterial e insulina se correlacionam mais fortemente com o IMC do que com a CC ou a espessura da prega, mas os níveis de lípides tendem a mostrar associações discretamente mais fortes com a CC. Isso é um tanto semelhante aos resultados de estudos em adultos que indicaram que, conquanto a gordura visceral possa ser o preditor mais importante do diabetes melito, a adiposidade geral pode ser mais importante para doença cardiovascular.11 É até possível que as diferenças de importância relativa das várias medidas do tamanho corporal variem com a idade. Rimm et al., por exemplo, verificaram que o melhor preditor de CAD antes dos 65 anos de idade era o IMC, enquanto que a relação cintura-quadril era um preditor mais forte de incidência de CAD entre homens mais idosos.12 A possibilidade de que a importância relativa do IMC, da CC e da espessura da prega do tríceps difira entre os fatores de risco, idade e, possivelmente, gênero e raça, poderia tornar extremamente difícil a identificação da "melhor" medida.

A interpretação biológica do IMC e da CC também pode ser problemática. Embora a CC se correlacione com a quantidade de gordura visceral intra-abdominal, que pode ser o depósito de gordura mais prejudicial,13 também se associa à gordura abdominal subcutânea e à gordura corporal total.11,14 Além disso, a relação cintura-quadril e o IMC se associam mais fortemente entre si (r ≈ 0,90) do que com a porcentagem de gordura corporal (r ≈ 0,70), conforme determinado pela pletismografia por deslocamento de ar.15 Portanto, não se deve supor que o IMC e a CC sejam índices de adiposidade geral e abdominal, respectivamente. Outra complicação é que estudos têm verificado consistentemente que os níveis de vários fatores de risco se relacionam com o IMC pelo menos tão fortemente quanto com estimativas mais acuradas da gordura corporal baseada na pletismografia por deslocamento de ar,15 absorciometria por dupla emissão de raios-X (DEXA)16 ou pesagem sob a água.17 Isso parece contraditório, em se admitindo que alguma medida da adiposidade (ou algum depósito específico de gordura) seja a característica do tamanho corporal de interesse primário.

O uso da espessura da prega cutânea também pode ser abordado com cautela. As medidas da espessura da prega cutânea têm sido consideradas, há muito tempo, uma alternativa atraente ao IMC e se verifica que são correlatos mais fortes da gordura corporal (determinada por métodos mais acurados) entre as crianças do que o IMC.18,19 No entanto, pode haver grandes erros na medida das pregas cutâneas,20 há pouca concordância sobre os locais ideais para essas medidas e, como observam os autores, essas medidas são mais incômodas do que aquelas para peso e estatura. Também é possível que a relação mais forte da espessura das pregas cutâneas com a gordura corporal se deva amplamente à melhora da previsão da adiposidade entre as crianças com níveis de gordura baixos a normais. Embora o IMC seja um bom substituto para a adiposidade corporal entre crianças que pesam mais, é "quase inútil" para avaliar a gordura corporal em crianças com peso normal.18 Com base em dados nacionais (NHANES) dos EUA, verificamos que o IMC é quase tão bom quanto as espessuras das pregas cutâneas (subescapular mais tríceps) para identificar crianças que tenham níveis elevados de gordura corporal calculada por DEXA.21 É provável que sejam essas crianças com altos níveis de gordura corporal que tenham níveis indesejáveis de vários fatores de risco.

Outra preocupação é com os métodos estatísticos que foram usados no estudo.4 A estimativa dos desvios-padrão, coeficientes de correlação e coeficientes de regressão é apropriada para uma amostra aleatória simples, mas, como descrito na seção Métodos, a amostra foi selecionada primeiramente escolhendo uma escola em cada uma das cinco regiões. Todas as crianças nas cinco escolas selecionadas foram então convidadas a participar. Este é um desenho conglomerado, com as crianças em grupos nas escolas, e é provável que crianças da mesma escola sejam mais parecidas do que as crianças de escolas diferentes. Isso é denominado correlação intragrupo (ou intraclasse), e as observações não são independentes. Em geral, o tratamento dos dados aglomerados como se fossem resultados de amostras aleatórias resulta em erros padrão muito pequenos. Como as crianças em uma escola não contribuem com informações completamente independentes, o tamanho "efetivo" da amostra é menor do que o número total de crianças no estudo. Embora haja vários métodos que podem ser usados para analisar corretamente dados agrupados,22 inclusive com software estatístico de fonte aberta23 e o complemento de "Amostras Complexas" para SPSS, não está claro se o agrupamento foi levado em consideração. Também é possível usar modelos de regressão em múltiplos níveis ou hierárquicos para levar em conta o agrupamento, mas, independentemente da técnica estatística usada, é importante que as análises considerem a estrutura dos dados.

Também pode ser difícil separar a importância das várias medidas do tamanho corporal dos pontos de corte usados para formar as categorias dicotômicas para as análises de regressão logística (tabela 3). Os níveis de IMC das crianças foram categorizados como "adequados" ou "sobrepeso" com base em extrapolar um IMC de 25 kg/m2, na idade de 20 anos, para idades mais baixas em dados de 1989, do Brasil.24 Diferentemente, a CC foi categorizada usando o 75º percentil de dados dos EUA coletados de 1984-1988, e a espessura da prega do tríceps foi categorizada usando o 90º percentil de dados dos EUA coletados de 1971-1974. A classificação de pressão arterial elevada também se baseou em níveis entre crianças e adolescentes nos EUA e levou em conta gênero, estatura e idade. Como as associações entre variáveis dicotômicas podem ser fortemente influenciadas pela prevalência de cada característica, com mais pontos de corte extremos tipicamente resultando em odds ratios mais altas, teria sido útil ver as prevalências de níveis altos do IMC, CC, espessura da prega do tríceps e pressão arterial.

O desejo de usar pontos de corte que facilitem comparações com os resultados de outros estudos é recomendável, mas, em muitos casos, pode ser melhor usar pontos de corte que resultem em proporções aproximadamente equivalentes de crianças que sejam classificadas como "nível alto" para cada característica de exposição. As comparações entre os resultados do presente estudo com outros na literatura também teriam sido facilitadas se os autores apresentassem a prevalência de sobrepeso ou obesidade avaliada pelos pontos de corte do IMC nos gráficos de crescimento do CDC de 2000 amplamente usados, ou os pontos de corte da International Obesity Task Force (IOTF). Com base nos presentes resultados, não é possível determinar se a odds ratio mais alta para o IMC do que para a espessura da prega do tríceps (2,9 vs 1,9), na tabela 3, deve-se à superioridade do próprio IMC ou ao uso de pontos de corte mais extremos para o IMC do que para a espessura da prega do tríceps.

Em resumo, embora o trabalho de Moser et al.4 forneça algumas informações úteis, são necessários mais estudos para determinar a importância relativa das várias medidas de tamanho corporal. As inter-relações entre essas medidas, juntamente com a possibilidade de que a "melhor" medida possa diferir, de acordo com o desfecho examinado e a idade, pode tornar extremamente difícil a determinação da "melhor" medida. Na presença de medidas altamente correlacionadas de tamanho corporal, pode não ser possível que uma medida única seja a ideal para todas as situações.

Conflitos de interesse

O autor declara não haver conflitos de interesse.

E-mail: dxf1@cdc.gov

  • 1. Vague J. The degree of masculine differentiation of obesities: a factor determining predisposition to diabetes, atherosclerosis, gout, and uric calculous disease. 1956. Obes Res. 1996;4:204-12.
  • 2. Stern MP, Haffner SM. Body fat distribution and hyperinsulinemia as risk factors for diabetes and cardiovascular disease. Arteriosclerosis. 1986;6:123-30.
  • 3. Després JP. Body fat distribution and risk of cardiovascular disease: an update. Circulation. 2012;126:1301-13.
  • 4. Moser DC, Giuliano I, Titski A, Gaya AR, Coelho-e-Silva MJ, Leite N. Anthropometric measures and blood pressure in school children. J Pediatr (Rio J). 2013;89:243-9
  • 5. Freedman DS, Kahn HS, Mei Z, Grummer-Strawn LM, Dietz WH, Srinivasan SR, et al. Relation of body mass index and waist-to-height ratio to cardiovascular disease risk factors in children and adolescents: the Bogalusa Heart Study. Am J Clin Nutr. 2007;86:33-40.
  • 6. Viera AJ, Garrett JM. Understanding interobserver agreement: the kappa statistic. Fam Med. 2005;37:360-3.
  • 7. Meng XL, Rosenthal R, Rubin DB. Comparing correlated correlation coefficients. Psychol Bull. 1992;111:172-5.
  • 8. Henderson AR. The bootstrap: a technique for data-driven statistics. Using computer-intensive analyses to explore experimental data. Clin Chim Acta. 2005;359:1-26.
  • 9. Hanley JA, McNeil BJ. A method of comparing the areas under receiver operating characteristic curves derived from the same cases. Radiology. 1983;148:839-43.
  • 10. Ribeiro RC, Coutinho M, Bramorski MA, Giuliano IC, Pavan J. Association of the waist-to-height ratio with cardiovascular risk factors in children and adolescents: the three cities heart study. Int J Prev Med. 2010;1:39-49.
  • 11. Molarius A, Seidell JC. Selection of anthropometric indicators for classification of abdominal fatness: a critical review. Int J Obes Relat Metab Disord. 1998;22:719-27.
  • 12. Rimm EB, Stampfer MJ, Giovannucci E, Ascherio A, Spiegelman D, Colditz GA, et al. Body size and fat distribution as predictors of coronary heart disease among middle-aged and older US men. Am J Epidemiol. 1995;141:1117-27.
  • 13. Despres JP. Is visceral obesity the cause of the metabolic syndrome? Ann Med. 2006;38:52-63.
  • 14. Lean ME, Han TS, Deurenberg P. Predicting body composition by densitometry from simple anthropometric measurements. Am J Clin Nutr. 1996;63:4-14.
  • 15. Bosy-Westphal A, Geisler C, Onur S, Korth O, Selberg O, Schrezenmeir J, et al. Value of body fat mass vs anthropometric obesity indices in the assessment of metabolic risk factors. Int J Obes (Lond). 2006;30:475-83.
  • 16. Sun Q, van Dam RM, Spiegelman D, Heymsfield SB, Willett WC, Hu FB. Comparison of dual-energy x-ray absorptiometric and anthropometric measures of adiposity in relation to adiposity-related biologic factors. Am J Epidemiol. 2010;172:1442-54.
  • 17. Spiegelman D, Israel RG, Bouchard C, Willett WC. Absolute fat mass, percent body fat, and body-fat distribution: which is the real determinant of blood pressure and serum glucose? Am J Clin Nutr. 1992;55:1033-44.
  • 18. Bray GA, DeLany JP, Volaufova J, Harsha DW, Champagne C. Prediction of body fat in 12-y-old African American and white children: evaluation of methods. Am J Clin Nutr. 2002;76:980-90.
  • 19. Freedman DS, Wang J, Ogden CL, Thornton JC, Mei Z, Pierson RN, et al. The prediction of body fatness by BMI and skinfold thicknesses among children and adolescents. Ann Hum Biol. 2007;34:183-94.
  • 20. Ulijaszek SJ, Kerr DA. Anthropometric measurement error and the assessment of nutritional status. Br J Nutr. 1999;82:165-77.
  • 21. Freedman DS, Ogden CL, Blanck HM, Borrud LG, Dietz WH. The abilities of body mass index and skinfold thicknesses to identify children with low or elevated levels of dual-energy x-ray absorptiometry-determined body fatness. J Pediatr. 2013 [Epub ahead of print]
  • 22. Galbraith S, Daniel JA, Vissel B. A study of clustered data and approaches to its analysis. J Neurosci. 2010;30:10601-8.
  • 23. 23. Lumley T. Complex surveys: a guide to analysis using R. Hoboken, NJ: Wiley; 2010.24.
  • 24. Conde WL, Monteiro CA. Valores críticos do índice de massa corporal para classificação do estado nutricional de crianças e adolescentes brasileiros. J Pediatr (Rio J). 2006;82:266-72.
  • *
    Ver artigo de Moser DC et al. nas páginas 243-9.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
    Sociedade Brasileira de Pediatria Av. Carlos Gomes, 328 cj. 304, 90480-000 Porto Alegre RS Brazil, Tel.: +55 51 3328-9520 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: jped@jped.com.br