Resumo
Objetivo: O quadro clínico de crianças com transtorno do espectro do autismo é caracterizado por déficits de interação social e comunicação, bem como por interesses e atividades repetitivos. As alterações sensoriais são uma característica muito frequente que geralmente não é percebida devido às dificuldades de comunicação desses pacientes. Nesta análise narrativa, resumimos as principais características de alterações sensoriais e as respectivas implicações para a interpretação de vários sinais e sintomas do transtorno do espectro do autismo e, portanto, para seu manejo.
Fontes: Fizemos uma busca no PubMed (Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos) sobre as alterações sensoriais em indivíduos (principalmente crianças) com transtorno do espectro do autismo.
Resumo dos achados: As alterações sensoriais são comuns e geralmente invalidam as crianças com transtorno do espectro do autismo, porém não são específicas do autismo, sendo uma característica frequentemente descrita também em indivíduos com deficiência intelectual. Três principais padrões sensoriais foram descritos no transtorno do espectro do autismo: hiporreatividade, hiperreatividade e busca sensorial; a eles, alguns autores acrescentaram um quarto padrão: percepção aprimorada. As alterações sensoriais podem afetar negativamente a vida desses indivíduos e de suas famílias. Hipotetizamos uma deficiência não apenas das modalidades não sensoriais, mas também da integração multissensorial.
Conclusões: A reatividade sensorial atípica de indivíduos com transtorno do espectro do autismo pode ser a chave para entender muitos de seus comportamentos anormais e, portanto, é um aspecto relevante para ser considerado em seu manejo diário em todos os contextos nos quais eles vivem. Sempre se deve fazer uma avaliação formal da função sensorial nessas crianças.
PALAVRAS-CHAVE Transtorno do espectro autista; Reatividade sensorial; Alterações sensoriais; Busca sensorial
Abstract
Objective: The clinical picture of children with autism spectrum disorder is characterized by deficits of social interaction and communication, as well as by repetitive interests and activities. Sensory abnormalities are a very frequent feature that often go unnoticed due to the communication difficulties of these patients. This narrative review summarizes the main features of sensory abnormalities and the respective implications for the interpretation of several signs and symptoms of autism spectrum disorder, and therefore for its management.
Sources: A search was performed in PubMed (United States National Library of Medicine) about the sensory abnormalities in subjects (particularly children) with autism spectrum disorder.
Summary of the findings: Sensory symptoms are common and often disabling in children with autism spectrum disorder, but are not specific for autism, being a feature frequently described also in subjects with intellectual disability. Three main sensory patterns have been described in autism spectrum disorder: hypo-responsiveness, hyper-responsiveness, and sensory seeking; to these, some authors have added a fourth pattern: enhanced perception. Sensory abnormalities may negatively impact the life of these individuals and their families. An impairment not only of unisensory modalities but also of multisensory integration is hypothesized.
Conclusions: Atypical sensory reactivity of subjects with autism spectrum disorder may be the key to understand many of their abnormal behaviors, and thus it is a relevant aspect to be taken into account in their daily management in all the contexts in which they live. A formal evaluation of sensory function should be always performed in these children.
KEYWORDS Autism spectrum disorder; Sensory reactivity; Sensory abnormalities; Sensory seeking
Introdução
O quadro clínico das crianças com transtorno do espectro do autismo (TEA) é caracterizado por déficits de interação social e comunicação, bem como por interesses e atividades repetitivos, de acordo com os critérios do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª Edição (DSM-5).1 As alterações sensoriais são uma característica muito frequente que geralmente não é percebida devido às dificuldades de comunicação desses pacientes. De acordo com os critérios do DSM-5, esse tipo de sintomatologia é constituído por um aumento ou redução da reatividade à entrada sensorial ou por um interesse incomum em aspectos sensoriais do ambiente. Há alguns exemplos citados pelo DSM-5: fascínio visual por luzes ou objetos que rodam, resposta adversa a sons ou texturas específicos, cheiro ou toque excessivos de objetos, aparente indiferença a dor, calor ou frio.1 Quase qualquer canal sensorial pode estar envolvido, no sentido de responsividade reduzida a estímulos ou no sentido de responsividade excessiva a estímulos. Pode haver vários tipos de alterações sensoriais na mesma pessoa durante a vida ou até mesmo ao mesmo tempo. A tabela 1 descreve vários possíveis exemplos de comportamentos relacionados a alterações sensoriais em crianças com TEA. A disfunção sensorial está provavelmente relacionada a uma modulação prejudicada que ocorre no sistema nervoso central, que regula as mensagens neurais com relação a estímulos sensoriais.2 Já na descrição pioneira de Sukhareva de algumas crianças com autismo (1926), os transtornos de reatividade sensorial foram inequivocamente mencionados como percepções do futuro (foresight).3 Mais tarde, a hiporreatividade, bem como a reatividade excessiva a estímulos sensoriais, foi relatada nas descrições clássicas de Kanner (1943)4 e Asperger (1944).5 Nas décadas seguintes, a atenção a essas características tem sido variável, apesar de a experiência clínica com indivíduos com TEA sempre ter sugerido a importância desses aspectos. Em 1980, o DSM-III considerou a falta de responsividade sensorial ou responsividade excessiva como características associadas a autismo infantil,6 ao passo que as duas edições seguintes, DSM-III-R7 e DSM-IV,8 não incluíram alterações sensoriais como critérios de diagnóstico definidos. Por fim, o DSM-5 (2013) incluiu “hiper ou hiporreatividade à entrada sensorial”, bem como “interesses incomuns nos aspectos sensoriais do ambiente”, dentro dos principais critérios do TEA com relação a interesses restritos e comportamentos repetitivos.1
Exemplos de comportamentos relacionados a alterações sensoriais relatadas em crianças com transtorno do espectro do autismo, agrupadas de acordo com as modalidades sensoriais
As alterações sensoriais das crianças com TEA também podem afetar seu comportamento em atividades diárias familiares, inclusive comer, dormir e rotinas de dormir; e fora de casa essas alterações podem criar problemas, por exemplo, ao viajar e participar de eventos na comunidade. Consequentemente, as intervenções do autismo também devem incluir estratégias específicas de manejo de comportamentos sensoriais para melhorar as atividades diárias familiares e a participação em eventos na comunidade.9
Nessa análise narrativa, resumimos as principais características da reatividade sensorial anormal em pacientes com TEA e suas implicações para a interpretação de vários sinais e sintomas do autismo e, portanto, para o tratamento. Consideramos os trabalhos mais relevantes (preferencialmente com relação a crianças) entre aqueles publicados sobre esse assunto de 1° de janeiro de 2007 a 31 de julho de 2017 disponíveis no PubMed (Livraria Nacional de Medicina dos Estados Unidos), inclusive revisões; usamos as seguintes palavras-chave: “autismo”, “reatividade sensorial”, “alterações sensoriais”.
Alterações sensoriais e TEA
A tabela 2 resume os resultados mais importantes desta análise.10-19 Três principais padrões sensoriais foram descritos em pacientes com TEA: hiporreatividade, hiperreatividade e busca sensorial; a eles, alguns autores acrescentaram um quarto padrão: percepção aprimorada.13 Entre os achados da tabela 2, há também a importância de associar um objetivo a uma avaliação subjetiva, conforme confirmado pelo caso de sensibilidade a dor, classicamente considerada reduzida em indivíduos com TEA. Nesse sentido, o estudo de Yasuda et al. fornece achados muito interessantes (tabela 2).17
Características dos estudos que avaliaram alterações sensoriais em pacientes com transtorno do espectro do autismo (TEA)
Conforme mostrado na tabela 2, nos últimos anos vários questionários de relato de pais com relação à reatividade sensorial foram usados em indivíduos com TEA, alguns não específicos para autismo (por exemplo, Short Sensory Profile - SSP), outros específicos para autismo (por exemplo, Sensory Experiences Questionnaire, Versão 3.0- SEQ-3.0). Esses questionários (apenas esporadicamente associados a ferramentas de observação)12,16,20 podem fornecer achados valiosos, porém, como têm como base dados provenientes do ponto de vista externo, eles não conseguem descrever a experiência sensorial dos pacientes em primeira pessoa. Seria muito importante entender o que eles realmente percebem, porém, infelizmente, somente alguns deles conseguem descrevê-la, devido ao comprometimento severo frequente da fala e das habilidades cognitivas. Os pacientes com TEA que conseguem descrever as experiências sensoriais podem nos fornecer informações no mínimo parcialmente aplicáveis também a indivíduos que não conseguem descrever essas experiências. Esse aspecto foi abordado nos trabalhos de Chamak et al.18 e Elwin et al.19 (tabela 2).
Há diferentes formas pelas quais as alterações sensoriais podem afetar negativamente a vida de indivíduos com TEA e suas famílias,9-16,18-20 inclusive afetar a comunicação e as atividades sociais; o comportamento adaptativo (por exemplo, “comportamentos problemáticos” em Discussão); variedade de interesses (restritos, repetitivos); rotinas diárias (por exemplo, evitar comportamentos de dificuldade sensorial); e cognição, o último hipoteticamente devido à quantidade reduzida de sinais que os indivíduos com TEA podem usar para entender e interagir com o ambiente, conforme recentemente sugerido por Haigh.21 O comportamento de comer também pode ser afetado pelas alterações sensoriais, leva a uma seletividade alimentar que pode, por sua vez, causar nutrição inadequada,22 bem como o sono, devido principalmente a um mecanismo hiperarousal.23
Alterações sensoriais no TEA: hipóteses interpretativas
Várias hipóteses foram formuladas para explicar as alterações sensoriais em pacientes com TEA, inclusive o “funcionamento perceptual melhorado”, talvez devido ao aumento no funcionamento das regiões do cérebro envolvidas em funções perceptuais básicas,24 e a “hipótese de mundo intenso do autismo”, nas quais a patologia do núcleo do cérebro significa um aumento na reatividade e plasticidade dos circuitos neurais locais que levam a um aumento na percepção, atenção e memória, tornam o mundo aversivamente intenso para a criança com TEA.25 Porém, nos últimos anos, houve um aumento no interesse pelos modelos de interpretação que sugerem prejuízo não somente das modalidades unissensoriais (por exemplo, somente audição), mas também da integração multissensorial provavelmente relacionada a um comprometimento da conectividade cerebral, consistem principalmente de uma baixa conectividade de longo alcance.26 De acordo com esse ponto de vista, as crianças e, em geral, pessoas com TEA têm uma capacidade reduzida de integrar informações sensoriais em diferentes modalidades (auditivas, visuais etc.), o que contribuiria para os principais sintomas do autismo, como comprometimento da comunicação social.11,14,27,28 Os fatores ambientais também podem influenciar esses sintomas, conforme sugerido recentemente por Kirby et al. (EUA), que estudaram os contextos acerca dos comportamentos sensoriais e repetitivos de 32 crianças com TEA por meio da codificação comportamental de gravações de vídeo naturalistas em casa. Eles constataram que os comportamentos hiperresponsivos foram associados a atividades e diárias e estímulos iniciados pela família, ao passo que os comportamentos de busca sensorial foram associados a atividades e estímulos lúdicos iniciados pela criança. Contudo, as conclusões deste estudo intrigante devem ser levadas em consideração com cautela, devido ao tamanho relativamente estreito da amostra considerada.29
Alterações sensoriais no TEA: intervenções
No contexto de intervenções sensoriais são diferenciadas as terapias de integração sensorial (“centradas na criança”) e intervenções sensoriais (“direcionadas aos adultos”). A primeira são intervenções clínicas que usam atividades lúdicas e interações sensoriais aprimoradas para melhorar as respostas adaptativas a experiências sensoriais. Por meio de atividades motoras brutas que ativam os sistemas vestibulares e somatossensoriais, essas intervenções visam a melhorar a capacidade de integrar informações sensoriais, levam a criança a adotar comportamentos mais organizados e adaptativos, inclusive atenção conjunta melhorada, habilidades sociais, planejamento motor e habilidades perceptuais. Nesse contexto, a terapeuta escolhe um “desafio justo” (ou seja, uma atividade que seja somente um pouco acima do que a criança atualmente consegue fazer sem dificuldade) das habilidades emergentes da criança e reforça suas respostas adaptativas ao desafio. Por outro lado, as intervenções sensoriais são feitas em sala de aula e usam estratégias unissensoriais (por exemplo, bolas terapêuticas ou coletes com peso) para influenciar o estado de excitação, na maioria das vezes basicamente com vistas a reduzir um estado de alta excitação que pode ser clinicamente manifestado como comportamentos de inquietação, hiperatividade e autoestimulantes.30
Quais desses dois tipos de intervenção são os mais efetivos? A resposta provém de Case-Smith et al.,30 que fizeram uma análise sistemática das intervenções sensoriais em crianças com TEA e alterações de processamento sensorial (2000-2012), inclusive cinco estudos sobre os efeitos das terapias de integração sensorial e 14 estudos sobre os efeitos das intervenções sensoriais. Com relação às terapias de integração sensorial, dois ensaios clínicos controlados e randomizados mostraram efeitos positivos sobre a Escala de Objetivos Atingidos,31,32 a redução de maneirismos31 e melhoria do autocuidado e da função social,32 ao passo que outros estudos mostraram efeitos positivos sobre a melhoria nos comportamentos relacionados a alterações sensoriais. Pelo contrário, os estudos sobre as intervenções sensoriais mostraram apenas poucos efeitos positivos, sugeriram falta de eficácia.30
Discussão
As experiências sensoriais em indivíduos com TEA são relatadas como angústia/ansiedade, bem como fonte de fascínio/interesse.33 Por outro lado, angústia/ansiedade podem gerar reações com intensa agitação e agressão dirigida a outros ou a si mesmo (veja os chamados “comportamentos problemáticos”). Por outro lado, as fontes de estímulos absorventes podem levar a comportamentos restritivos e repetitivos, dos quais é muito difícil desviar a atenção desses indivíduos. Por um motivo ou outro, o impacto das alterações sensoriais das crianças com TEA sobre suas vidas diárias é considerável e provavelmente subestimado, devido às suas dificuldades de comunicação, então elas sempre devem ser especificamente investigadas.
A seguinte pergunta surge espontaneamente: as alterações sensoriais devem ser consideradas principais características do autismo ou apenas características de comorbidade? Com base nos dados disponíveis atualmente, essa pergunta continua sem resposta. De fato, os sintomas sensoriais são comuns e geralmente invalidam as crianças com TEA, porém não são específicos do autismo, são uma característica, conforme relatamos acima, frequentemente descrita também em indivíduos com deficiência intelectual sem autismo. Contudo, a reatividade sensorial atípica desses indivíduos pode ser a chave para entender muitos de seus comportamentos anormais e, portanto, é um aspecto relevante para ser considerado no manejo diário desses indivíduos em todos os contextos nos quais eles vivem. Por exemplo, de acordo com Leekam et al., a angústia causada por entrada sensoriais específicas pode despertar comportamentos problemáticos em indivíduos com TEA com baixo funcionamento que não conseguem relatar seu desconforto. Entender quais entradas sensoriais específicas causam desconforto em determinado indivíduo é o pré-requisito para reorganizar o ambiente em que ele vive e sua rotina diária para reduzir o máximo possível esse desconforto; nesse ponto de vista, um programa de dessensibilização pode ser útil. Em alguns casos, o uso de salas sensoriais, nas quais os indivíduos são submetidos a experiências sensoriais agradáveis de vários tipos, pode ser muito útil.11
Concluindo, sempre se deve fazer uma avaliação formal da função sensorial na avaliação neurocomportamental de crianças com TEA e ser repetida periodicamente durante o acompanhamento, para atender às necessidades desses indivíduos, prevenir o máximo possível o surgimento de comportamentos problemáticos e, por fim, aliviar as dificuldades de suas famílias. Além disso, devem ser feitas pesquisas adicionais, de acordo com Lane et al.,14 para melhor entender os possíveis caminhos neurobiológicos (genéticos, neurofisiológicos e neuroimagem) das alterações sensoriais em pacientes com TEA.
Agradecimentos
A Cecilia Baroncini pelo apoio linguístico.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jul-Aug 2018
Histórico
-
Recebido
8 Ago 2017 -
Aceito
23 Ago 2017 -
Publicado
04 Nov 2017