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Instrumentos de avaliação de abuso sexual em crianças

EDITORIAIS

Instrumentos de avaliação de abuso sexual em crianças

Vincent J. PalusciI; John V. PalusciII

IMD, MS. Wayne State University, Detroit, MI, USA

IIUniversity of Pennsylvania, Philadelphia, PA, USA

O diagnóstico médico de abuso sexual em crianças pode ser problemático; qualquer possibilidade de simplificar, fortalecer ou otimizar o processo de avaliação é desejável. Triagem tem sido definida como a identificação presumível de uma doença ou um defeito não reconhecido através da aplicação de testes, exames ou outros procedimentos que possam, de forma ágil, distinguir entre pessoas aparentemente bem mas que provavelmente têm uma doença e aqueles que não têm doença1. A triagem ou avaliação de abuso sexual em crianças é potencialmente útil tanto para identificar vítimas em populações pediátricas em geral, sem suspeitas anteriores de abuso, como também para fornecer ao pediatra informações adicionais no sentido de direcionar o processo diagnóstico em crianças que apresentam sintomas potenciais de abuso sexual. Um teste de triagem em si não tem o objetivo de ser diagnóstico, e uma força-tarefa estadunidense não encontrou evidências suficientes para recomendar ou desaconselhar a triagem de rotina em pais ou responsáveis no que diz respeito a violência familiar2.

Na medicina, a triagem tem sido utilizada em muitos estados de doença, e inúmeros instrumentos têm sido disponibilizados para identificar abuso físico, abuso sexual e negligência em crianças3-6. Historicamente, o propósito inicial da triagem era poder distinguir as características de crianças abusadas sexualmente das características de crianças que não sofriam abuso. Testes de triagem já foram administrados a quase todas as pessoas que mantêm contato com a criança: pais, investigadores e as próprias crianças. Um indicador potencial de abuso sexual é o comportamento sexual, que pode ser avaliado através do relatório dos pais utilizando-se itens tais como os da Child Behavior Checklist e do Child Sexual Behavior Inventory7. Esses relatórios e suas versões atualizadas podem distinguir probabilisticamente entre o comportamento sexual padrão e o de crianças abusadas sexualmente, mas são menos confiáveis em crianças sob tratamento psiquiátrico ou psicológico. Achados de exame físico podem ser úteis, mas quando resultam normais, não descartam nem reforçam alegações de abuso sexual8, uma vez que nem todo abuso sexual deixa evidências físicas identificáveis. Um instrumento de avaliação englobando comportamento, revelação e achados físicos tem sido usado por muitos médicos nos Estados Unidos, mas nunca foi pretendido como triagem para uso na população geral8. Após a avaliação médica, a comprovação final do abuso depende da confissão dos autores do crime e de decisões dos sistemas legal e de assistência social da criança, que respondem pela determinação final e dão início aos passos necessários para a proteção da criança9.

Neste número do Jornal de Pediatria, Salvagni & Wagner10 descrevem o desenvolvimento e a implementação de um questionário de triagem de abuso sexual em crianças que é administrado aos pais durante a avaliação médica de seu filho(a), com idade entre 2 e 12 anos. Este questionário de cinco perguntas avalia os sintomas comportamentais utilizando itens previamente estudados em outros instrumentos - já validados, porém mais longos7,11. Tendo iniciado com 18 itens, os autores condensaram o questionário e chegaram a cinco perguntas que, em conjunto, podem razoavelmente distinguir seu grupo-controle de crianças não abusadas daquelas atendidas em centros de referência para vítimas de abuso sexual. Escores correspondentes a três ou mais respostas positivas aumentaram significativamente a probabilidade de abuso sexual, com características pré-teste/pós-teste aceitáveis. Dependendo do ambiente da triagem (em clínica normal ou em clínica para vítimas de violência sexual), escores diferentes podem presumivelmente acionar outras avaliações multidisciplinares para confirmar ou descartar o diagnóstico de abuso sexual e, se necessário, dar início às medidas legais de proteção.

Desenvolver um instrumento de avaliação significativo para a avaliação médica de abuso sexual é difícil, e Salvagni & Wagner merecem cumprimentos por sua parcimônia. Isoladamente, várias avaliações, tais como associação de palavras, jogos ou brincadeiras com bonecas anatomicamente detalhadas e outras avaliações psicológicas indiretas não conseguiram distinguir de forma adequada entre crianças normais e física ou sexualmente abusadas12. O abuso sexual infantil acontece em um contexto sociocultural, e decisões diagnósticas são fortemente influenciadas pelos custos estimados de um diagnóstico falso, com o risco de se classificar erroneamente crianças que estão sendo abusadas sexualmente e sujeitá-las a mais trauma, assim como crianças que não estão sendo abusadas e sujeitá-las, às crianças e às suas famílias, desnecessariamente ao estresse da intervenção12. Crianças abusadas sexualmente vivem em circunstâncias significativamente mais negativas e estressantes do que crianças não abusadas, com famílias mais pobres, pais menos educados, e vivenciam outras situações estressantes além do abuso sexual, o que confunde ainda mais qualquer avaliação7. Se, por um lado, sintomas comportamentais e revelações são importantes no tratamento médico e nas investigações dos serviços de proteção, por outro, achados físicos positivos, embora incomuns, são altamente associados com veredictos de culpa9. Uma revisão de vários instrumentos de avaliação e triagem existentes para trauma em crianças e adolescentes concluiu que nenhuma medida comporta, sozinha, todas as situações, e que novos instrumentos são necessários para preencher lacunas nos procedimentos de avaliação atualmente disponíveis6. O instrumento de Salvagni & Wagner começa a abordar esses temas, uma vez que combina itens de instrumentos padronizados com achados físicos.

É interessante observar quais itens não foram incluídos na versão final do instrumento de Salvagni & Wagner. Os itens sobre curiosidade incomum sobre genitais, medo de ficar sozinho com uma determinada pessoa, mudança súbita emocional ou de comportamento, abandono das antigas brincadeiras e lesões genitais/anais foram incluídos, enquanto que problemas de sono, queixas somáticas, choro fácil, brincadeiras sexuais agressivas, masturbação excessiva, medo de ficar sozinho, problemas na escola, conhecimento sexual, enurese e história de vitimização sexual por parte dos pais não foram incluídos na versão final. Estudos anteriores mostraram correspondência positiva ou negativa entre muitos desses problemas de comportamento e outros eventos estressantes, com ou sem abuso sexual, e muitos dos itens deixados de fora por Salvagni & Wagner são úteis para determinar qual criança poderia se beneficiar de aconselhamento e tratamento, independentemente de seu valor preditivo para abuso sexual5,7,9.

O estudo de Salvagni & Wagner apresenta algumas limitações. O tamanho da amostra é relativamente pequeno, com 192 crianças de uma área geográfica. Isso afeta a possibilidade de generalização do estudo para outras populações pediátricas. Além disso, como ocorre com todos os estudos sobre abuso infantil, a falta de um "padrão-ouro" para se ter certeza de que os casos estão sendo adequadamente identificados e de que os controles estão "livres" de abuso é um problema. Embora isso seja levado em consideração na suposição dos autores de uma prevalência de 5% de abuso sexual na prática clínica geral e de 40% no centro de referência, avaliações adicionais no grupo controle e um seguimento maior poderiam reduzir potenciais erros de classificação. Finalmente, se, por um lado, é recomendável não submeter as crianças a mais entrevistas e procedimentos médicos apenas para fins de pesquisa, o uso feito pelos autores de revelações e achados físicos prévios afeta a confiabilidade de algumas das respostas dadas ao seu instrumento.

Apesar dessas imperfeições, é nossa opinião que os pediatras podem usar o questionário de Salvagni & Wagner para identificar crianças com um risco aumentado na população geral e também aquelas com alto risco entre as crianças encaminhadas para investigação de abuso sexual. Para crianças atendidas na prática clínica pediátrica geral, uma triagem positiva deve dar início a avaliações pediátricas e psicossociais adicionais e ao tratamento dos problemas comportamentais. Já em centros de referência, será necessária a realização de um exame detalhado por parte de assistentes sociais e outros investigadores, e a identificação de crianças com risco maior pode ajudar os profissionais de saúde a fazer recomendações de tratamento e encaminhamento apropriadas, particularmente quando os recursos são escassos. De uma perspectiva médica, esse questionário não se destina a servir de "prova" de que está ocorrendo abuso, e sim apenas como um alerta para que se comece a coletar informações adicionais sobre outros aspectos relacionados à questão. Por outro lado, uma triagem negativa não deve descartar a possibilidade de ocorrência de abuso quando outras evidências consistentes estão presentes. É exatamente assim que uma triagem deve ser implementada: como uma medida usada para dar início a avaliações adicionais e mais discriminatórias no sentido de confirmar o abuso sexual infantil, e não como um indicador "tudo ou nada". Salvagni & Wagner merecem nossa admiração por terem desenvolvido um instrumento simples porém elegante, e nós estamos ansiosos para ampliar seu estudo em populações maiores e mais diversas, com um seguimento de longo prazo, para mostrar os desfechos positivos associados com a identificação e o tratamento mais precoces da criança que sofre de abuso sexual.

Referências

1. Last JM, editor. A dictionary of epidemiology. 3rd ed. New York: Oxford University Press; 1995.

2. U.S. Preventative Services Task Force. Screening for family and intimate partner violence: recommendation statement. Ann Fam Med. 2004;2:156-60.

3. Lounds JJ, Borkowski JG, Whitman TL; The Centers for the Prevention of Child Neglect. Reliability and validity of the mother-child neglect scale. Child Maltreat. 2004;9:371-81.

4. Chang DC, Knight VM, Ziegfeld S, Haider A, Paidas C. The multi-institutional validation of the new screening index for physical child abuse. J Pediatr Surg. 2005;40:114-9.

5. Hulme PA. Retrospective measurement of childhood sexual abuse: a review of instruments. Child Maltreat. 2004;9:201-17.

6. Strand VC, Sarmiento TL, Pasquale LE. Assessment and screening tools for trauma in children and adolescents: a review. Trauma Violence Abuse. 2005;6:55-78.

7. Friedrich WN, Fisher JL, Dittner CA, Acton R, Berliner L, Butler J, et al. Child Sexual Behavior Inventory: normative, psychiatric, and sexual abuse comparisons. Child Maltreat. 2001;6:37-49.

8. Adams JA. Evolution of a classification scale: medical evaluation of suspected child sexual abuse. Child Maltreat. 2001;6:31-6.

9. Palusci VJ, Cox EO, Cyrus TA, Heartwell SW, Vandervort FE, Pott ES. Medical Assessment and legal outcome in child sexual abuse. Arch Pediatr Adolesc Med. 1999;153:388-92.

10. Salvagni EP, Wagner MB. Development of a questionnaire for the assessment of sexual abuse in children and estimation of its discriminant validity: a case-control study. J Pediatr (Rio J). 2006;6:431-6.

11. Wells R, McCann J, Adams J, Voris J, Dahl B. A validational study of the Structured Interview of Symptoms Associated with Sexual Abuse (SASA) using three samples of sexually abused, allegedly abused, and nonabused boys. Child Abuse Negl. 1997;21:1159-67.

12. Babiker G, Herbert M. The role of psychological instruments in the assessment of sexual abuse. Child Abuse Negl. 1996;5:239-51.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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