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Fibrose cística no Brasil: o resgate (ou a hora e a vez) do pediatra

EDITORIAL

Fibrose cística no Brasil: o resgate (ou a hora e a vez) do pediatra

Paulo A. M. Camargos

Professor titular, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Chefe da Unidade de Pneumologia Pediátrica, Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Lições (campineiras) aprendidas: avanços inegáveis, desafios múltiplos e complexos. Múltiplos também são os ensinamentos do grupo de Campinas no artigo publicado neste fascículo do Jornal de Pediatria; brindam-nos com um relato abrangente, competente e provocativo de sua casuística de 104 pacientes com fibrose cística1 — provavelmente o mais rico da literatura especializada latino-americana.

Por tudo isso, são igualmente múltiplos os aspectos a serem analisados. Tarefa agradável e, de certa forma, ingrata, pois o espaço de um editorial é, pela sua natureza, limitado. Limitação não conjuga com multiplicidade e, por isso, nos obriga a pinçar aspectos a serem analisados, visando ao pediatra geral e àqueles que atuam nas subespecialidades afins (pneumologia, gastroenterologia, nutrição e outras) — esses também pediatras, antes de tudo. Premidos pelo espaço, escolhemos, intencionalmente, dois aspectos: sobrevida e idade à época do diagnóstico, já que ambos refletem a (des)assistência que os pacientes vêm recebendo e que não é exclusiva daquele conceituado centro de referência.

Na sobrevida, avanços. Serviços brasileiros participaram de dois estudos colaborativos2,3, que compreenderam os períodos 1979-1989 e 1960-1989, nos quais foram admitidos 743 e 1.827 pacientes, de quatro e 10 países latino-americanos, respectivamente. A média de idade ao óbito fora de apenas 6-7 anos. Centros brasileiros integraram ambos os estudos, e neles, a média de idade dos pacientes que ainda estavam em seguimento no primeiro período (1979-1989) fora de apenas 6,4 anos2. Período anterior e posterior a este último foi incorporado em outro estudo brasileiro — cujo centro participou dos dois estudos previamente citados — , tendo sido verificado que, para o período 1970-1994, a sobrevida média havia saltado para 12,6 anos4. A agradável surpresa nos é revelada pela coorte campineira: na década 1990-2000, a mediana de sobrevida ganha novo patamar, atingindo, desta feita, 18,4 anos de idade após o diagnóstico1, estimativa que equivale àquela observada nos Estados Unidos nos anos 80. Como muito bem revelam os autores, a expectativa de vida nesta enfermidade nos países industrializados situa-se, atualmente, por volta de 31,6 anos1. Então seria lícito indagar: por estarem mais próximos e consultarem mais amiúde o pediatra geral, ganhariam nossos pacientes anos adicionais se houvesse uma ação articulada com subespecialistas?

Em relação à idade à época do diagnóstico, estacionamos. Nas duas coortes latino-americanas e na coorte avaliada pelo grupo de Campinas, a média de idade ao diagnóstico foi superior a 3-4 anos2,3 e 4 anos e 2 meses1, respectivamente. Ademais, cabe observar, no artigo objeto deste editorial, que 81,1% dos pacientes já estavam sintomáticos no primeiro ano de vida, achado que se assemelha com a série de casos estudada por outro grupo paulista em Ribeirão Preto1,5. Por isso, novamente é lícito indagar: seriam os pacientes diagnosticados mais precocemente se subespecialistas contassem com o concurso do pediatra geral?

A inexistência da parceria com o pediatra tem outra repercussão negativa, pois enfrentamos ainda a conjunção de diagnóstico precoce em pacientes mais graves, uma vez que esses pacientes acorrem com mais freqüência a serviços terciários, onde estão os subespecialistas. Por evoluírem para óbito prematuramente, reduzem a sobrevida geral da coorte, como é o caso daquela analisada em Minas Gerais6,7, composta por 111 crianças, onde cerca de 1/3 dos casos diagnosticados antes de 12 meses de idade foram a óbito antes de concluir 1 ano de vida6. Na medida em que, até os 2 anos e, muito especialmente, no primeiro ano após o nascimento, nossas crianças buscam as unidades da rede básica e ali são assistidas por pediatras e/ou outros profissionais da equipe de saúde, talvez uma dezena de vezes, contar com a parceria de pediatras possibilitaria também o diagnóstico precoce de quadros de leve a moderada intensidade. É oportuno salientar que ainda não dispomos de estimativas para o sub-registro; desconhecemos o número real de doentes sem diagnóstico. Certamente eles são bem mais numerosos que os cerca de 2.300 casos conhecidos.

Claro que outras estratégias serão sempre bem-vindas, mas entendemos que o engajamento do pediatra na assistência à fibrose cística é uma delas. No Brasil, como destacam os autores, o número de centros de referência ainda é restrito, e eles abrangem áreas geográficas extensas, tendo grande clientela sob sua responsabilidade, o que permite supor um expressivo problema de acesso dos doentes e suas famílias a esses mesmos centros1, do que decorre, por exemplo, o diagnóstico tardio.

O pediatra teria um papel estratégico a desempenhar neste contexto. Evidentemente que propomos a criação de uma via de mão dupla, de um sistema de referência e contra-referência entre o pediatra geral e pneumologistas, gastroenterologistas e nutrólogos pediátricos. Após treinamento adequado e continuado, tanto presencial quanto com recursos de ensino à distância, quais seriam então as atividades dos pediatras numa possível reorganização da assistência a esta afecção? Entre outras, elevar seu próprio nível de suspeita diagnóstica, pensar "fibrocisticamente" nas crianças com história familiar sugestiva (cloretos alterados, óbitos por doenças respiratórias crônicas), íleo meconial, pneumopatias crônicas e/ou de repetição (cientes de que neste grupo de doenças há outras muito mais freqüentes, caso típico da asma) e/ou diarréia crônica e/ou desnutrição e/ou déficits de crescimento e/ou distúrbios hidroeletrolíticos aparentemente inexplicáveis e solicitar dosagem de cloretos no suor em todos os casos que assim se lhe apresentam; promover educação em saúde, alertando pais e responsáveis para a sintomatologia suspeita e reforçando noções básicas de aconselhamento genético; participar do acompanhamento clínico do paciente, desde que se sinta à vontade para tal, quando então trabalhará articuladamente com seus pares do centro de referência mais próximo. Entendemos que, mesmo constituindo realidade distante neste país, algumas dessas proposições vão ao encontro daquelas propostas pelo grupo de Campinas neste e em outro artigo publicado no Jornal de Pediatria8. Para tanto, torna-se indispensável a ampliação, responsável, paulatina e com rigoroso controle de qualidade, do número de laboratórios capacitados para a realização da iontoforese. Convocar o pediatra implica fornecer-lhe condições de atuação adequadas a esta (nova) função.

Mas será que uma estrutura assim delineada estaria mesmo muito distante da realidade brasileira? Talvez não. Em Belo Horizonte, na década passada, havia uma única instituição que realizava o "teste do suor", e a ela agregaram-se, recentemente, outras quatro, vinculadas tanto ao setor público (municipal, estadual e federal) como ao privado. Desta forma, a oferta de exames elevou-se de cerca de 1.000 determinações para um mínimo de 2.000 por ano, apenas nos últimos 5 anos. Como conseqüência direta desta iniciativa, a Prefeitura Municipal passou a distribuir orientações para os pediatras dos centros de saúde sobre os quadros clínicos em que a solicitação da iontoforese está formalmente indicada. Ademais, a pauta interinstitucional mineira para fibrose cística incluiu, em 2002, a criação de um centro para atendimento de adultos no Hospital das Clínicas da UFMG, uma das instituições brasileiras credenciadas para transplante pulmonar e, em 2003, a instalação de um segundo centro de referência pediátrico naquela cidade. Está prevista, igualmente, a institucionalização e continuidade deste processo de descentralização assistencial. Serão criados cerca de cinco centros (ou unidades menos complexas) de acompanhamento pediátrico, dotados de recursos para a realização do teste do suor em igual número de cidades-pólo do interior do Estado, necessariamente vinculadas entre si e com as duas instituições instaladas na Capital. Claro está que é possível vislumbrar a implantação de um sistema estadualizado, ainda acanhado, é verdade, mas com efeitos multiplicadores potenciais e que não se privará da colaboração do pediatra geral, já que dele se aproximará.

Outros movimentos recentes no cenário brasileiro atestam que uma evolução indiscutível encontra-se em andamento. Entre eles destacamos a criação, em 2003, do Grupo Brasileiro de Estudos em Fibrose Cística, que coordenou a já concluída redação de normas técnicas para a enfermidade, documento de referência para a comunidade pediátrica e para o Ministério da Saúde. Papel inalienável deste grupo promissor aponta para a necessidade imperiosa de continuarmos produzindo conhecimentos originais sobre a doença em nosso país, quiçá a reprodução, em cada centro brasileiro e no conjunto desses centros, de pesquisas como esta agora publicada pelo grupo de Campinas. Neste ambiente mobilizador, é imprescindível a participação da Sociedade Brasileira de Pediatria e suas filiadas, buscando articulações com os níveis federal, estadual e municipal, e até mesmo convocando as diferentes modalidades de mídia (impressa, falada, televisada) para campanhas educativas sobre a fibrose cística.

Finalmente, mas não menos importante, sigamos produzindo um corpo de conhecimentos sobre a enfermidade genuinamente brasileiro, como muito bem sublinham os autores do artigo1, aqui incluídas as análises de casuística de pacientes adultos, duas delas publicadas recentemente9,10.

De volta ao começo. Resgate (incluído no título) origina-se da fusão de dois termos latinos, recaptare e reexcaptare. Colegas pediatras: permitam-nos sua captura. O barco é o mesmo, e nós, remadores, carecemos de outros. Viagem compartilhada, águas nem sempre mansas, mas certamente gratificantes. Como bem demonstram os avanços aqui comentados.

Referências

1. Alvarez AE, Ribeiro AF, Hessel G, Bertuzzo CS, Ribeiro JD. Fibrose cística em um centro de referência no Brasil: características clínicas e laboratoriais de 104 pacientes e sua associação com o genótipo e a gravidade da doença. J Pediatr (Rio J). 2004;80:371-9.

2. Macri CN, de Gentile AS, Manterola A, Tomezzoli S, Reis FC, Largo Garcia I, et al. Epidemiology of cystic fibrosis in Latin America: preliminary communication. Pediatr Pulmonol. 1991;10:249-53.

3. Macri CN, Gentile AS, Manterola A. Estúdio clínico epidemiológico latinoamericano de la fibrosis quística (mucoviscidosis). Arch Argent Pediatr. 1992;90:111-18.

4. Reis FJC, Camargos PAM, Rocha SF. Survival analysis for cystic fibrosis in Minas Gerais State, Brazil. J Trop Pediatr. 1998;44:329-31.

5. Dornelas EC, Fernandes MIM, Galvão LC, Silva GA. Estudo do quadro pulmonar de pacientes com fibrose cística. J Pediatr (Rio J). 2000;76:295-9.

6. Camargos PAM, Guimarães MDC, Reis FJC. Prognostic aspects of cystic fibrosis in Brazil. Ann Trop Paediatr. 2000;20:287-91.

7. Oliveira MC, Reis FJC, Oliveira EA, Colosimo EA, Monteiro AP, Penna FJ. Prognostic factors in cystic fibrosis in a single center in Brazil: a survival analysis. Pediatr Pulmonol. 2002;34:3-10.

8. Ribeiro JD, Ribeiro MAGO, Ribeiro AF. Controvérsias na fibrose cística - do pediatra ao especialista. J Pediatr (Rio J). 2002:78 (Supl 2):S171-86.

9. Fernandes A, Mallmann F, John A, Faccin C, Dalcin P, Menna Barreto S. Relação entre alterações funcionais e radiológicas em pacientes com fibrose cística. J Pneumol. 2003;29:196-201.

10. Lemos ACM, Matos E, Franco R, Santana P, Santana MA. Fibrose cística em adultos: aspectos clínicos e espirométricos. J Bras Pneumol. 2004;30:9-13.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2004
  • Data do Fascículo
    2004
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