Open-access Corticosteróides inalados no tratamento da alergia respiratória: segurança versus eficácia

Resumos

OBJETIVO: Revisar os mecanismos moleculares de ação, eficácia e potenciais efeitos adversos relacionados aos corticosteróides inalados (CEI) em crianças com asma persistente. FONTES DOS DADOS: Artigos de língua inglesa da base de dados MEDLINE. Foram empregados os termos: corticosteroids, inhaled corticosteroids, asthma, children, beclomethasone, fluticasone, budesonide, ciclesonide, growth, adrenal insufficiency, bone mineral density, oral candidiasis. Foram selecionados guias de tratamento, artigos de revisão, estudos controlados, meta-análises e revisões sistemáticas que avaliaram a eficácia e os eventos adversos do tratamento com CEI. SÍNTESE DOS DADOS: Estudos in vivo e in vitro mostram que os CEI disponíveis apresentam diferentes características farmacocinéticas e farmacodinâmicas que lhes conferem diferentes potenciais de ação. Os CEI também diferem quanto aos efeitos adversos sistêmicos e locais. Salienta-se a biodisponibilidade desses produtos como essencial para determinar a incidência de efeitos colaterais. Em linhas gerais, os CEI são capazes de controlar a asma, reduzindo o número de exacerbações, atendimentos médicos, hospitalizações e a necessidade de pulsos de corticosteróides orais. Também se observa melhora da função pulmonar, sobretudo nos pacientes com asma de início recente. O efeito adversos mais documentado é a desaceleração transitória do ritmo de crescimento. CONCLUSÕES: Os CEI são o principal agente antiinflamatório utilizado no tratamento da asma persistente. Quando administrados em doses baixas, mostram-se seguros e efetivos. O monitoramento dos pacientes permite a detecção precoce de eventuais efeitos adversos associados aos CEI.

Criança; asma; corticosteróides inalados; budesonida; beclometasona; fluticasona; ciclenonida


OBJECTIVE: Review the molecular mechanisms of action, efficacy, and potential side effects associated with inhaled corticosteroids (ICS) in children with persistent asthma. SOURCES: Articles in English from MEDLINE. The following terms were used: corticosteroids, inhaled corticosteroids, asthma, children, beclomethasone, fluticasone, budesonide, ciclesonide, growth, adrenal insufficiency, bone mineral density, and oral candidiasis. Treatment guidelines, review articles, controlled trials, meta-analyses, and systematic reviews evaluating the efficacy and the adverse events of treatment with ICS were selected. SUMMARY OF THE FINDINGS: In vivo and in vitro studies show that the available ICS have different pharmacokinetic and pharmacodynamic properties that result in different action potentials. ICS also differ as to the systemic and local side effects. The bioavailability of these products is essential in order to determine the incidence of side effects. In general, ICS are capable of controlling asthma, reducing the number of exacerbations, medical consultations, hospitalizations, and the need of oral corticosteroid (applications) bursts. Improvement can also be seen in pulmonary function, especially in patients with recent onset asthma. The most documented adverse effect is transitory decrease of growth rate. CONCLUSIONS: ICS are the main anti-inflammatory agent used to treat persistent asthma. When administered in low doses, they seem to be safe and effective. Patient monitoring allows for early detection of possible side effects associated with ICS.

Children; asthma; inhaled corticosteroids; budesonide; beclomethasone; fluticasone; ciclesonide


ARTIGO DE REVISÃO

Corticosteróides inalados no tratamento da alergia respiratória: segurança versus eficácia

Maria Cândida V. RizzoI; Dirceu SoléII

IDoutora. Pesquisadora associada, Departamento de Pediatria, Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (UNIFESP-EPM), São Paulo, SP

IIProfessor titular e livre-docente, Departamento de Pediatria, UNIFESP-EPM, São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Dirceu Solé Rua Mirassol 236/72 - Vila Clementino CEP 04044-010 - São Paulo, SP. E-mail: dirceus@ajato.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Revisar os mecanismos moleculares de ação, eficácia e potenciais efeitos adversos relacionados aos corticosteróides inalados (CEI) em crianças com asma persistente.

FONTES DOS DADOS: Artigos de língua inglesa da base de dados MEDLINE. Foram empregados os termos: corticosteroids, inhaled corticosteroids, asthma, children, beclomethasone, fluticasone, budesonide, ciclesonide, growth, adrenal insufficiency, bone mineral density, oral candidiasis. Foram selecionados guias de tratamento, artigos de revisão, estudos controlados, meta-análises e revisões sistemáticas que avaliaram a eficácia e os eventos adversos do tratamento com CEI.

SÍNTESE DOS DADOS: Estudos in vivo e in vitro mostram que os CEI disponíveis apresentam diferentes características farmacocinéticas e farmacodinâmicas que lhes conferem diferentes potenciais de ação. Os CEI também diferem quanto aos efeitos adversos sistêmicos e locais. Salienta-se a biodisponibilidade desses produtos como essencial para determinar a incidência de efeitos colaterais. Em linhas gerais, os CEI são capazes de controlar a asma, reduzindo o número de exacerbações, atendimentos médicos, hospitalizações e a necessidade de pulsos de corticosteróides orais. Também se observa melhora da função pulmonar, sobretudo nos pacientes com asma de início recente. O efeito adversos mais documentado é a desaceleração transitória do ritmo de crescimento.

CONCLUSÕES: Os CEI são o principal agente antiinflamatório utilizado no tratamento da asma persistente. Quando administrados em doses baixas, mostram-se seguros e efetivos. O monitoramento dos pacientes permite a detecção precoce de eventuais efeitos adversos associados aos CEI.

Palavras-chave: Criança, asma, corticosteróides inalados, budesonida, beclometasona, fluticasona, ciclenonida.

Introdução

Os corticosteróides (CE) são utilizados como terapia antiinflamatória em muitas doenças, inclusive a asma. A inflamação crônica caracteriza-se pelo aumento na expressão de múltiplos genes inflamatórios. Estes são regulados por fatores de transcrição proinflamatórios, como o fator nuclear-kappa beta (NF-kb) e o ativador de proteína-1 (AP-1), que se ligam e ativam moléculas co-ativadoras (CBP, SRC-1, TIF-2, p300/CBP). Os fatores de transcrição são ativados em todas as doenças inflamatórias. As moléculas co-ativadoras acetilam histonas (componentes protéicos da cromatina) e levam à transcrição gênica.

Mecanismos moleculares de ação dos CE

As ações antiinflamatórias dos CE são mediadas por sua ligação aos receptores (GR) no citoplasma. Os GR citoplasmáticos são geralmente ligados a proteínas carreadoras, como as proteínas de choque térmico-90 (hsp90) e a proteína ligadora-FK, que protegem o receptor e evitam a sua localização nuclear1.

Uma vez ligados ao GR, os CE sofrem mudanças em sua estrutura. Tais mudanças levam à dissociação das proteínas carreadoras, expondo os sinais de localização nuclear ao GR. Isso resulta em transporte rápido do complexo CE/GR ao núcleo, onde o complexo se liga a seqüências específicas de DNA na região promotora gênica (GRE). Após sua ligação aos receptores no DNA, os CE podem aumentar ou inibir a expressão gênica por processos denominados trans-ativação e trans-repressão, respectivamente. Os CE trans-ativam, por exemplo, o gene do receptor beta-2 adrenérgico, da lipocortina-1, da interleucina (IL)-10 e do inibidor de NF-kb (Ikb-a) com ações antiinflamatórias. Os CE também aumentam a síntese de duas proteínas que afetam as vias de transdução do sinal inflamatório: a GILZ, ou glucocorticoid-induced leucine- zipper protein, que inibe o NF-kb e o AP-12, e a MAP quinase fosfatase-1 (MKP-1), que inibe a MAP quinase p38. Entretanto, a maioria dos genes trans-ativados pelos CE estão possivelmente envolvidos em efeitos colaterais, incluindo a hipertensão, o edema, a hipocalemia, o glaucoma e o diabetes3.

Pelo mecanismo de trans-repressão, os CE "inibem" a ação dos fatores de transcrição AP-1 e NF-kb, diminuindo a produção de mediadores inflamatórios, possivelmente pela inibição da acetilação das histonas (HAT). Na asma, há aumento na atividade HAT e certa diminuição na atividade de desacetilação das histonas (HDAC), que é restituída pelo tratamento com CE. Aceita-se que este seja o mecanismo de atuação mais importante dos CE nas doenças inflamatórias1,4.

Os CE inibem a transcrição de várias citocinas e quimoquinas que são relevantes em doenças pulmonares inflamatórias, incluindo IL-1b, TNF-a, GM-CSF, IL-4, IL-5, IL-8 e eotaxina5. Os CE podem não apenas bloquear a síntese de citocinas, como também bloquear seus efeitos pela inibição da síntese de receptores de citocinas, como o receptor de IL-2. Os CE reduzem a sobrevida de eosinófilos e de linfócitos T5.

O tratamento com CE não é apenas imunossupressor e antiinflamatório, mas também promove a diferenciação de células T reguladoras (CD25+CD4+) por um mecanismo dependente de FOXP3. As células T reguladoras CD25+CD4+ representam uma população de linfócitos capaz de suprimir a resposta imunológica. O marcador FOXP3 correlaciona-se com a expressão da citocina antiinflamatória IL-10, e é um marcador da ativação de células T reguladoras6.

Dose versus segurança

Todos os CE inalados são absorvidos sistemicamente e exibem efeitos adversos sistêmicos relacionados à dose. A absorção sistêmica pode ocorrer diretamente pela superfície pulmonar ou por deglutição da droga.

Imediatamente após a inalação do CE com o aerossol dosificador (pMDI), aproximadamente 10% a 20% da dose nominal liberada é depositada nos pulmões, enquanto que a maior parte impacta-se na orofaringe e é deglutida. Seguindo a absorção a partir do trato gastrintestinal, a droga passa pelo fígado antes de entrar na circulação sistêmica. Alguns CE, particularmente budesonida (BUD) e fluticasona (FP) são metabolizados (89% e 99% respectivamente) durante sua primeira passagem pelo fígado. Portanto, após a absorção oral, entram na circulação sistêmica como metabólitos inativos7,8. A maioria das drogas, entretanto, não são eficientemente inativadas durante o primeiro passo do metabolismo e entram na circulação sistêmica sem modificações, resultando em efeitos colaterais extra-pulmonares.

A deposição na orofaringe e seus efeitos locais e sistêmicos indesejados são marcadamente reduzidos se o CE for administrado com espaçadores de grande volume. A limpeza da boca após o uso do inalador dosimetrado ou de pó seco também é recomendada com o objetivo de reduzir a biodisponibilidade sistêmica (porção deglutida)9. É importante enfatizar as diferenças entre os metabolismos dos diferentes CE. O dipropionato de beclometasona (BDP) é metabolizado na forma de monopropionato de beclometasona em muitos tecidos, incluindo o pulmonar, mas existe pouca informação sobre a formação e a absorção deste metabólito em humanos.

A dose de CE liberada nos pulmões também será absorvida pela circulação sistêmica. A absorção pela superfície pulmonar é rápida, e se a droga não for metabolizada localmente, pode haver efeitos extra-pulmonares, especialmente em doses muito elevadas. No momento, existem quatro CE disponíveis para tratamento da asma em nosso meio: BDP, BUD, FP e, mais recentemente, ciclesonida (CIC). Esses CE inalados diferem não somente em suas propriedades farmacocinéticas e farmacodinâmicas, mas também em suas potências.

A CIC, considerada um esteróide soft, é ativada somente no pulmão após a sua inalação, o que lhe garante redução de efeitos adversos. A CIC por si é inativa, e necessita ser clivada por esterases pulmonares específicas para ligar-se aos GR10. Trata-se de um CE com elevadas propriedades antiinflamatórias e praticamente ausência de biodisponibilidade. É uma pró-droga sem atividade direta e sem afinidade na ligação aos GR. A CIC ativada é muito rapidamente metabolizada e transforma-se em produtos inativos11.

Dispositivos de inalação

Para os CE, a eficácia depende da atividade tópica da droga que alcança os pulmões, enquanto que os eventos adversos dependem da deposição oral e da atividade sistêmica. A atividade sistêmica da droga depende da quantidade absorvida tanto pelo trato gastrintestinal como pelos pulmões. A quantidade de droga liberada aos pulmões depende da técnica de inalação12, assim como do tipo de inalador usado, com diferentes tamanhos de partículas liberadas13, e do uso ou não de espaçadores.

Cada dispositivo de inalação, se pMDI ou dispositivo de pó (DPI), requer técnicas específicas para a liberação intrapulmonar adequada14. Os dispositivos de inalação são tão diferentes que as características de liberação de um não podem ser extrapoladas aos outros14. O uso de espaçadores pode alterar a quantidade de partículas respiráveis (entre 1 a 4 µm) que chegam aos pulmões e diminuir a deposição em orofaringe, alterando tanto a eficácia terapêutica quanto o potencial para efeitos sistêmicos15.

Nos pMDI há tendência atual na troca de propelentes de clorofluorocarbono para hidrofluoroalcano, pela maior deposição pulmonar, maior eficácia16 e ausência de impacto na camada atmosférica de ozônio. Outros fatores que determinam o aproveitamento dos pMDI incluem a habilidade do paciente de coordenar a liberação da droga e a sua inalação. Entretanto, o uso de espaçadores valvulados permite sua utilização até mesmo em crianças menores de 2 anos.

Os dispositivos de pó (DPIs = diskhaler, diskus, rotahaler e turbuhaler) requerem inalação profunda com um fluxo inspiratório > 60 L/min14, possível em crianças maiores de 6 anos.

Potência dos corticosteróides inalados

É difícil comparar as potências absolutas dos vários CE inalados, uma vez que os CE disponíveis não foram comparados em um estudo único. A potência do CE ou sua capacidade de produzir uma resposta farmacológica se baseia em sua potência relativa determinada por várias medidas, como testes cutâneos de vasoconstrição (human skin blanching), afinidade de ligação ao receptor, lipofilia e inibição de células inflamatórias, de mediadores e de citocinas. Medidas da atividade funcional dos CE disponíveis, in vivo e in vitro, sugerem as seguintes potências relativas: FP > BUD = BDP > triancinolona acetonida (TAA) = flunisolida (FLU)17. Do ponto de vista farmacológico, as diferenças nas potências são relativamente insignificantes, a não ser que traduzam efetividade clínica.

A atividade de uma droga depende de suas características farmacocinéticas e farmacodinâmicas. A farmacocinética determina a relação concentração-tempo no local da atuação; a farmacodinâmica determina a relação entre a concentração da droga e seus efeitos clínicos. É necessária a combinação desses dois parâmetros para a determinação do efeito global da droga no tempo18.

O índice terapêutico, ou efetividade clínica, é o único parâmetro mensurável para comparação de novos CE inalados ou da combinação de novo CE/inalador com os existentes. Para tanto, considera-se a farmacocinética da droga (por exemplo, afinidade ao receptor, meia-vida plasmática, volume de distribuição, clearence plasmático e taxa de metabolização na primeira passagem pelo fígado), a farmacodinâmica (por exemplo, características de dose-resposta e duração de ação) e as características de cada dispositivo de inalação (por exemplo, distribuição de tamanho de partículas, eficácia da liberação pulmonar e facilidade de uso) (Tabela 1). O CE ideal deve não apenas ser efetivo, mas seguro, isto é, apresentar um alto índice terapêutico.

Como o mesmo receptor medeia todos os efeitos dos CE inalados, a resposta qualitativa decorrente da ocupação do GR é semelhante para todos os CE inalados. Portanto, a farmacodinâmica dos CE inalados depende somente da afinidade do receptor. Para garantir efeitos equivalentes, as diferenças nessa afinidade podem ser compensadas pelo controle das doses, ou seja, pela concentração da droga no local de ligação ao GR. Como a farmacodinâmica dos CE inalados depende apenas de suas afinidades relativas de ligação ao GR, e porque essas diferenças podem ser controladas por ajustes nas doses, as maiores diferenças entre os CE inalados devem ser devidas às suas propriedades farmacocinéticas (Tabela 1). São considerados importantes os aspectos referentes à farmacocinética dos CE inalados, incluindo biodisponibilidade, clearence, volume de distribuição, meia-vida, tempo de permanência no tecido pulmonar, conjugação lipídica, ligação protéica e natureza do CE em questão (droga biologicamente ativa ou pró-droga) (Tabela 1).

Uma discussão sobre biodisponibilidade dos CE inalados deve diferenciar duas biodisponibilidades, pulmonar e oral, que juntas perfazem a biodisponibilidade sistêmica total. O monopropionato de beclometasona apresenta a mais elevada biodisponibilidade oral (~25%), enquanto a FP e o produto ativo da CIC apresentam biodisponibilidade oral insignificante.

Para reduzir eventos adversos sistêmicos, um CE inalado deve ser eliminado da circulação sistêmica o mais rapidamente possível. Todos os CE inalados são rapidamente metabolizados pelo fígado (~90 L/h)19. As drogas que estão primariamente presentes nos tecidos apresentam baixas concentrações séricas e, portanto, grandes volumes de distribuição, enquanto que as drogas que estão primariamente presentes no sangue apresentam baixos volumes de distribuição. O FP e os dois metabólitos ativos das pró-drogas apresentam grandes volumes de distribuição, o que significa boa penetração tecidual, no caso, em tecidos pulmonares19 (Tabela 1).

A meia-vida é o tempo necessário para que a concentração da droga caia em 50%. Drogas com alto clearence têm meias-vidas curtas, e drogas com grandes volumes de distribuição apresentam maiores longas-vidas19. Outra forma de se mensurar o tempo pelo qual um CE inalado permanece no pulmão (tempo de residência pulmonar) é pelo cálculo da porcentagem de absorção da droga no tempo. Consistente com sua meia-vida longa, o PF é absorvido lentamente e se mantém em quantidade significativa nos pulmões 4 a 8 horas após a inalação. Em contraste, a BUD desaparece rapidamente dos pulmões (Tabela 1).

A conjugação lipídica é outro parâmetro importante para avaliar a farmacocinética dos CEI. O CE conjugado ao lipídeo é retido nos pulmões e não é absorvido pela circulação sistêmica. É importante a distinção entre conjugação lipídica e lipofilia. Drogas com alta lipofilia freqüentemente apresentam elevado grau de ligação inespecífica a lipídeos e proteínas, o que resulta em sua grande distribuição nos tecidos. Como resultado de um grande volume de distribuição, drogas como o PF, que têm alta lipofilia, também têm grande meia-vida (Tabela 1).

A ligação a proteínas é importante porque somente as moléculas livres de CE podem interagir com GR; as moléculas ligadas a proteínas são inativas. BDP, BUD e FP apresentam porcentagens similares de droga livre (~10%). O produto ativo da CIC apresenta mais de 99% de ligação às proteínas, resultando em uma porção muito baixa de droga livre na circulação comparativamente aos outros CEI. Como resultado dessa elevada ligação protéica, menos de 1% do produto ativo da CIC (des-CIC) que entra na circulação sistêmica está disponível para potenciais efeitos sistêmicos adversos, em comparação a 10% ou mais para outros CE inalados. Portanto, a CIC produz muito menos supressão do que outros CEI20 (Tabela 1).

Eficácia clínica

Três revisões sistemáticas mostraram que BDP, BUD e FP promovem melhora significativa da função pulmonar, avaliada pelo volume expiratório forçado no primeiro segundo (FEV1) e pelo pico de fluxo expiratório (PEF); menor freqüência de exacerbações da asma; melhora dos sintomas e menor necessidade do uso de beta-2 agonistas em qualquer dose diária, comparativamente a placebo21-23.

A determinação da eficácia clínica é dependente do tempo de tratamento estipulado. Os sintomas de asma podem mostrar uma clara resposta em alguns dias, enquanto que a melhora máxima da função pulmonar pode demorar algumas semanas. Por outro lado, a melhora máxima da hiper-reatividade brônquica pode levar meses após o início do tratamento com CE. Os resultados podem também variar dependendo da dose de CE usada, da gravidade da asma no início da terapia e das exposições a alérgenos e a agentes infecciosos durante o estudo.

O padrão das doses de CE inalados em adultos e crianças é descrito na Tabela 2.

Podem-se apontar alguns pontos práticos no manejo dos CEI24:

- Em casos de asma leve/moderada, o perfil de dose-resposta não é claro, e o maior benefício é, em geral, obtido com doses baixas/moderadas.

- Em asma leve/moderada, doses elevadas de PF são seguidas por aumento acentuado dos efeitos colaterais na cavidade oral, com pouca melhora no controle da doença.

- Para pacientes que necessitam de CEI, iniciar com dose moderada é tão efetivo quanto iniciar com dose elevada e ir reduzindo de acordo com a estabilização clínica.

- Os pacientes com asma grave, especialmente aqueles que recebem pulsos freqüentes de CE por via oral/sistêmica, se beneficiam de doses elevadas de CE inalados.

Uma meta-análise de 14 estudos clínicos comparativos demonstrou que FP na metade da dose foi numericamente superior em todos os estudos e estatisticamente superior em quatro deles quando comparado a BUD e a BDP. Portanto, apesar das dificuldades de padronização, os estudos sugerem que quando se utiliza o pMDI, FP é mais efetivo que BDP, TAA e BUD; entretanto, a eficácia da BUD por turbuhaler é semelhante à do FP liberado por pMDI ou por diskhaler, e melhor que BDP25.

Pacientes com asma moderada alcançam níveis semelhantes de controle da asma com doses moderadas ou altas de FP. Doses altas de FP, acima de 500 µg/dia conferem benefício a pacientes graves. Em asmáticos dependentes de CE, pode-se conseguir reduções significativas nas doses de CE orais com 2.000 µg FP/dia, o que se torna uma vantagem em termos de efeitos colaterais26.

Coricosteróides e qualidade de vida

Os CE melhoram o desempenho na escola e no trabalho e reduzem distúrbios de sono associados aos sintomas respiratórios. São mais efetivos quando seu uso se inicia dias antes da exposição a alérgenos ou a irritantes e devem ser usados regularmente, por períodos de tempo suficientes para manter o paciente clinicamente estável. A vantagem da aplicação tópica é a menor ocorrência de efeitos adversos sistêmicos. Apesar disso, todos os CE de uso tópico são absorvidos sistemicamente e exibem efeitos adversos, que são dose-dependentes, como um efeito de classe. Deve haver um ajuste terapêutico de modo a se utilizar a dose mínima capaz de promover a estabilidade clínica.

Efeitos adversos

A biodisponibilidade dos novos CEI é baixa e, na maioria deles, dependente da fração inalada que atinge a circulação sistêmica após absorção através dos pulmões. Entretanto, vários fatores são importantes para determinar os efeitos clínicos e sistêmicos e o índice terapêutico do CEI: dose liberada, potência, deposição, afinidade pelo receptor e retenção local, distribuição, eliminação além de diferenças individuais na resposta aos GC. Entre os principais efeitos adversos sistêmicos dos CEI destacam-se: supressão do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, densidade mineral óssea, crescimento vertical e toxicidade ocular (incluindo catarata subcapsular e glaucoma)11,27.

Supressão do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal

A freqüência de insuficiência adrenal secundária à supressão do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA) por tratamento com CEI é muito baixa. Poucos casos em crianças foram associados ao tratamento de longo prazo com PF28. Não há unanimidade quanto à ação supressora dos CEI sobre o eixo HHA. O modo de avaliação dessa supressão é um dos fatores capazes de afetar a interpretação dos resultados. A supressão pode ser avaliada pelo monitoramento seriado dos níveis de cortisol sérico em 24 horas, pela determinação dos níveis urinários de cortisol durante o período noturno ou durante 24 horas e pelo teste de estímulo usando o hormônio adrenocorticotrófico (ACTH). Também são fatores de confusão a equivalência das doses dos CEI empregados e os dispositivos empregados.

Uma meta-análise de estudos realizados com adultos e crianças concluiu que o PF tem potencial supressor da adrenal significativamente maior quando comparado equivalentemente à DPB, BUD ou TAA29.

Pacientes em tratamento com dose baixa a moderada de CEI (< 400 µg/dia de DPB, BUD ou TAA ou < 200 µg PF ou 160 µg de CIC) usualmente não apresentam alterações significativas nos níveis de cortisol plasmático em 24 horas30, no cortisol urinário e na resposta aos testes de estímulo com ACTH31. Todavia, tem sido detectada supressão do eixo HHA (sem qualquer expressão clínica) ao se empregar dispositivos de inalação de pó, que aumentam a quantidade de droga que atinge o pulmão, mesmo nessas doses mais baixas32.

A CIC, o mais recente dos CEI disponíveis para o uso clínico em crianças, tem demonstrado eficácia no tratamento da asma e melhor perfil de efeitos colaterais quando comparada a outros CE33. Considerada uma pró-droga, a CIC é ativada localmente no pulmão por ação de esterases pulmonares, o que garante alta concentração local e pouca absorção gastrintestinal. A CIC tem meia-vida plasmática muito curta por sua alta sensibilidade às oxidases hepáticas, o que reduz ao mínimo a exposição sistêmica à droga ativa11. Essa baixa exposição sistêmica é evidenciada por estudos recentes demonstrando a ausência de efeito clínico relevante sobre o eixo HHA mesmo com doses diárias elevadas, entre 320 e 1.280 µg34.

Em conclusão, o tratamento com doses baixas ou moderadas (< 400 µg/d) de CEI normalmente não se associa à supressão do eixo HHA na criança. Desse modo não é necessária a monitorização de rotina do eixo HHA, a menos que haja evidência de supressão de crescimento. Por outro lado, crianças com asma grave, que recebem doses elevadas de CEI, ou que venham recebendo GC por outras vias (tópica, intranasal), devem ter os níveis matinais de cortisol plasmático monitorados periodicamente, embora não tenham risco significativamente maior de supressão do eixo HHA. Na presença de valores baixos, deverão ser submetidos a teste de estímulo com ACTH19.

Metabolismo ósseo

Os CE, por aumentarem a reabsorção e diminuírem a formação óssea, determinam osteoporose, de modo dependente da dose e idade. O turnover ósseo na criança é maior do que no adulto. O pico de aquisição de massa óssea/densidade óssea, iniciada na infância, é atingido na fase de adulto jovem. Vários fatores são identificados como capazes de interferir com o conteúdo de massa óssea: sexo, nutrição, hereditariedade, fatores endócrinos e atividades físicas.

Os efeitos dos CE exógenos sobre o osso podem ser avaliados por marcadores bioquímicos do metabolismo ósseo, densidade mineral óssea (DMO) ou freqüência de fraturas. Revisão recente sobre os efeitos dos CEI no osso apontou a ausência de evidências de modificações de marcadores ósseos de formação e degradação em crianças tratadas com doses padrão de CEI35. Entretanto, doses elevadas podem causar mudanças significativas na velocidade de turnover ósseo, mas a ocorrência dessas mudanças durante o tratamento, geralmente de curto prazo, merecem ser mais bem estudadas27.

Crianças asmáticas tratadas com BUD (> 800 mcg/dia) por mais de 18 meses36, ou BUD (500 mcg/dia) por 4,5 anos32,37, ou DPB (300-800 mcg/dia) por 2 anos38 não apresentaram redução da DMO quando comparadas às tratadas com placebo ou dose menores dos respectivos CEI. Em lactentes sibilantes, o emprego de esquema intermitente de tratamento com BUD inalada (400 mcg/dia) não determinou alterações significativas na DMO39. Em revisão recente sobre o uso de CEI em asma pediátrica, nenhum dos quatro estudos em que se avaliou a DMO mostrou alteração significativa40.

À luz dos estudos atuais, não há evidências de que o tratamento de longo prazo com CEI em doses baixas esteja associado à redução da DMO ou a risco aumentado de osteoporose ou fratura em crianças41. Entretanto, mudanças no conteúdo mineral ósseo total em crianças tratadas com doses elevadas de DPB ou BUD ou PF foram recentemente documentadas durante tratamento por período de 12 meses42,43. Estudo experimental documentou a ausência de efeito sobre o metabolismo ósseo com ciclesonida, mesmo em doses elevadas20.

Crescimento linear

O crescimento é um fenômeno fisiológico complexo, não-homogêneo, que sofre interferência de vários fatores: genéticos, nutricionais e hormonais, entre outros. Os CE, por interferirem com o turnover de colágeno e com os níveis de somatomedina, promotora final do crescimento e produzida por ação do hormônio de crescimento, podem se associar a déficit de crescimento somático em crianças com asma em tratamento de longo prazo com CEI, sobretudo com doses elevadas19. Essa interferência é mais evidente nas fases de crescimento rápido (estirão), no período pré-escolar e na puberdade. Por si só a asma pode interferir com o ritmo de crescimento.

Para monitorar o ritmo de crescimento, podem ser empregadas a knemometria (medida de crescimento do membro inferior), útil para detectar mudanças durante curto período de tempo, e a estadiometria, útil para medir a velocidade em estudos de duração média ou longa, embora a estatura na idade adulta seja o parâmetro mais adequado42. Evidências atuais mostram que o tratamento com CEI (doses média/elevada) pode induzir desaceleração do ritmo de crescimento ao início do tratamento com DPB19,21,44 ou BUD19,22. Entretanto, essa interferência é transitória, uma vez que não se documenta o comprometimento da estatura desses pacientes na idade adulta19. Em pacientes recebendo doses mais elevadas de DPB ou de BUD (> 750 mcg/dia) por 14 semanas, houve retardo do crescimento em poucos deles45. Nos Estados Unidos, um programa nacional de prevenção de asma (National Asthma Education and Prevention Program) afirma que doses baixas ou médias de CEI têm potencial para diminuir a velocidade do crescimento, embora os efeitos sejam pequenos, não progressivos e possivelmente reversíveis. Além disso, a estatura adulta atingida por crianças asmáticas em tratamento de CEI não é diferente da atingida por não asmáticos46.

Uma meta-análise de 21 estudos e 810 pacientes comparou a estatura atingida em relação ao tratamento com CE inalado ou oral. Houve prejuízo discreto do crescimento entre as tratadas com CE oral47. O estudo CAMP (Childhood Asthma Management Program) comparou a eficácia e a segurança do tratamento de longo prazo (4 a 6 anos) com BUD e nedocromil sódico inalados em crianças com asma de leve a moderada. O tratamento com BUD foi acompanhado de melhora na reatividade da via aérea, melhor controle da asma e redução transitória na velocidade de crescimento48. Fato similar foi documentado por outros investigadores49.

O tratamento com PF foi avaliado em crianças com asma leve, sem ter sido documentada qualquer interferência50. Por outro lado, Guilbert et al. avaliaram o tratamento com PF (176 mcg/dia) durante 2 anos em crianças com 2 a 3 anos de idade. Além do controle clínico durante o período de tratamento ativo, houve redução da velocidade de crescimento com recuperação parcial durante o período de seguimento51. Recentemente, um estudo duplo-cego controlado por placebo com crianças tratadas com diferentes doses de ciclesonida inalada não documentou alterações no ritmo de crescimento do membro inferior, nem efeitos sobre o eixo HHA52,53.

Toxidade ocular

O risco de catarata subcapsular e nuclear associado ao uso de CEI é insignificante nos pacientes pediátricos com asma; entretanto, pode ser maior em idosos. Não há informação suficiente com relação às diferenças no risco de formação de catarata entre as várias formulações de CEI19,35.

Efeitos adversos locais

Os efeitos locais incluem tosse durante a inalação, secura na garganta, rouquidão, disfonia e candidíase oral54,55. A higienização oral após o uso do CEI auxilia na redução desses efeitos dose-dependentes. Por não ser ativada na mucosa oral, a CIC proporciona uma chance significativamente menor de efeitos adversos locais. O uso de dispositivos pode promover menor deposição na orofaringe54,55.

Conclusão

Os CEI ainda são o padrão ouro no tratamento antiinflamatório de longo prazo da asma persistente em crianças. Os benefícios clínicos desses agentes sobrepujam em muito os efeitos adversos em pacientes tratados com dose de baixa a moderada. Apesar disso, o acompanhamento clínico é indispensável para que eventuais efeitos adversos possam ser precocemente detectados.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Fev 2007
    • Data do Fascículo
      Nov 2006
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