Resumos
A persistência da artéria isquiática é uma variação anatômica rara cujo curso clínico é potencialmente grave, pois o diagnóstico ocorre quando já estão presentes complicações clínicas. Essas complicações advêm do fato de a parede da artéria isquiática ter uma tendência à degeneração ateromatosa com formação aneurismática, podendo evoluir para uma oclusão ou para um tromboembolismo. Este artigo relata o caso de um paciente do sexo feminino, com queixas de dor intensa secundária a compressão extrínseca do nervo isquiático pela dilatação aneurismática no membro inferior direito e pulsatilidade na nádega ipsilateral, apresentando uma massa hiperpulsátil nessa localização. Foi realizado exame angiográfico, que revelou persistência da artéria isquiática à direita, do tipo completo e com aneurisma. A paciente foi submetida a procedimento cirúrgico, sendo utilizada uma abordagem transglútea, e uma prótese de dácron terminoterminal foi interposta entre os colos proximal e distal do aneurisma. Os aspectos técnicos e revisão da literatura sobre o diagnóstico e a terapêutica dessa variação anatômica são discutidos neste trabalho.
Persistência da artéria isquiática; aneurisma da artéria isquiática; terapêutica cirúrgica; isquemia periférica
Persistent sciatic artery is a rare anatomical variation whose clinical course is potentially serious, since diagnosis is performed when clinical complications are already present. Such complications are a consequence of the fact that sciatic artery walls have a tendency to atherosclerotic degeneration with aneurysmal formation and may evolve to occlusive thrombosis or to thromboembolism. This article reports the case of a female patient with complaint of intense pain secondary to extrinsic compression of the sciatic nerve by aneurysmal dilatation of the right lower member and hyperpulsatile ipsilateral buttock. Angiographic examination was carried through, showing complete persistent sciatic artery to the right lower member with an aneurysm. The patient was submitted to a surgical procedure using a transgluteal approach and a termino-terminal Dacron graft was interposed between the proximal and distal necks of the aneurysm. The technical aspects and review of literature on diagnosis and therapeutic approach of this anatomical variation are discussed in this work.
Persistent sciatic artery; sciatic artery aneurysm; surgical correction; peripheral ischemia
RELATO DE CASO
Diagnóstico e tratamento de aneurisma da artéria isquiática persistente: relato de caso e revisão da literatura
Marco Antonio Prado NunesI; Roberto Maurício Ferreira RibeiroII; José Aderval AragãoIII; Francisco Prado ReisIV; Vera Lúcia Correa FeitosaV
IProfessor assistente, Universidade Tiradentes (UNIT), Aracaju, SE
IIMédico angiologista, Hospital de Urgência de Sergipe João Alves Filho, Aracaju, SE
IIIProfessor assistente, UNIT, Aracaju, SE. Professor assistente, Universidade Federal de Sergipe (UFS), Aracaju, SE
IVProfessor titular, UNIT, Aracaju, SE
VProfessora adjunta, UFS, Aracaju, SE
Correspondência Correspondência: Marco Antonio Prado Nunes Av. Anízeo Azevedo, 351/502, Ed. Carlos Gomes, Praia 13 de Julho CEP 49020-240 Aracaju, SE Tel.: (79) 3246.2918, (79) 9988.2862 Email: manprado@uol.com.br
RESUMO
A persistência da artéria isquiática é uma variação anatômica rara cujo curso clínico é potencialmente grave, pois o diagnóstico ocorre quando já estão presentes complicações clínicas. Essas complicações advêm do fato de a parede da artéria isquiática ter uma tendência à degeneração ateromatosa com formação aneurismática, podendo evoluir para uma oclusão ou para um tromboembolismo. Este artigo relata o caso de um paciente do sexo feminino, com queixas de dor intensa secundária a compressão extrínseca do nervo isquiático pela dilatação aneurismática no membro inferior direito e pulsatilidade na nádega ipsilateral, apresentando uma massa hiperpulsátil nessa localização. Foi realizado exame angiográfico, que revelou persistência da artéria isquiática à direita, do tipo completo e com aneurisma. A paciente foi submetida a procedimento cirúrgico, sendo utilizada uma abordagem transglútea, e uma prótese de dácron terminoterminal foi interposta entre os colos proximal e distal do aneurisma. Os aspectos técnicos e revisão da literatura sobre o diagnóstico e a terapêutica dessa variação anatômica são discutidos neste trabalho.
Palavras-chave: Persistência da artéria isquiática, aneurisma da artéria isquiática, terapêutica cirúrgica, isquemia periférica.
Introdução
A artéria isquiática é uma artéria axial embriologicamente responsável pelo suprimento sangüíneo dos membros inferiores. Em condições normais, por volta do terceiro mês de vida embrionária, ela regride dando lugar à formação do segmento proximal da artéria glútea inferior. Isso ocorre após o desenvolvimento da artéria femoral a partir da artéria ilíaca externa1.
Havendo persistência da artéria isquiática, a artéria femoral superficial sofre um processo de atresia na coxa distal e, geralmente, interrompe-se na altura do hiato dos adutores, continuando na perna como artéria tibial posterior. Ocasionalmente, a artéria femoral é muito curta e termina como tronco circunflexo profundo comum2. A persistência da artéria isquiática é uma variação anatômica rara e tem uma tendência à formação de aneurisma, aterosclerose ou embolização distal3.
Ikezawa et al.4 realizaram uma revisão na literatura disponível e relataram a ocorrência de 168 casos. A persistência da artéria isquiática é potencialmente grave, pois se apresenta como um tronco vascular primitivo que assume o papel de principal vaso de suplência para todo o membro inferior2. Por outro lado, o diagnóstico geralmente ocorre quando já estão presentes complicações clínicas. Essas complicações advêm do fato de a parede da artéria isquiática ter uma tendência à degeneração ateromatosa com formação aneurismática, podendo evoluir para uma oclusão ou para um tromboembolismo3.
A detecção precoce da persistência da artéria isquiática permite uma terapia cirúrgica profilática, prevenindo potenciais e sérias complicações, as quais podem comprometer a circulação do membro inferior2. O tratamento das lesões decorrentes da persistência da artéria isquiática é muito difícil, tanto por causa da raridade de sua ocorrência como pela escassa experiência dos profissionais de saúde. Estes geralmente desconhecem a evolução dessa patologia e têm dificuldades na escolha do melhor tratamento para as lesões. Portanto, é importante a realização de mais estudos sobre o assunto, visando viabilizar o diagnóstico precoce e permitir um melhor acompanhamento evolutivo dessas complicações.
Relato
Paciente do sexo feminino, 55 anos de idade, com queixas de dor intensa secundária a compressão extrínseca do nervo isquiático pela dilatação aneurismática no membro inferior direito e pulsatilidade na nádega ipsilateral, deu entrada no setor de hemodinâmica para realização de arteriografia dos membros inferiores. No exame físico, foi detectada a presença de uma massa hiperpulsátil na nádega direita. Na avaliação dos pulsos, foi constatado que o pulso à direita da artéria poplítea era normal, o da artéria femoral era muito fraco e o tibial posterior e o pedioso eram ausentes. À esquerda, todos os pulsos estavam presentes e eram normais.
Foi realizado exame angiográfico através de punção da artéria femoral comum esquerda com o cateterismo seletivo da artéria ilíaca comum direita. Constatou-se a presença de hipoplasia da artéria femoral direita, cujo calibre era reduzido, cursando trajeto medial e terminando ao nível distal da coxa, de onde emergiam alguns ramos musculares. Foi também observada dilatação da artéria ilíaca interna direita (Figura 1) e circulação posterior do membro inferior direito suprida pela artéria isquiática. Esta apresentava dilatação aneurismática fusiforme focal na região glútea direita (Figura 2), estenose no seu colo distal e seguia um trajeto descendente e posterior ao longo da coxa (Figura 3) até alcançar o canal dos adutores, no qual continuava como artéria poplítea. Após o enchimento da artéria poplítea, não foram visualizadas as artérias de perna. Não havia persistência da artéria isquiática no membro inferior esquerdo.
Devido ao risco de embolização distal e devido à dor intensa no membro inferior direito, a paciente foi submetida a procedimento cirúrgico, sendo utilizada uma abordagem transglútea para exposição do aneurisma da artéria isquiática, tomando-se cuidado para identificar e evitar lesão do nervo isquiático. Após dissecção e clampeamento dos colos proximal e distal, o aneurisma foi aberto e um grande trombo do saco aneurismático foi retirado. Não havia evidência de vasos colaterais dentro do aneurisma. Uma prótese de dácron terminoterminal foi interposta entre os colos proximal e distal e, após a retirada de parte do saco aneurismático, o mesmo foi fechado sobre a prótese. Um mês após a cirurgia, a paciente relatava alívio da dor, tendo nessa ocasião realizado um eco-Doppler colorido arterial que mostrou a perviedade do enxerto.
Discussão
A incidência de artéria isquiática persistente baseada em exames angiográficos é estimada em 0,05%2 e, quando avaliada com exames de angiotomografia em pacientes com quadro clínico de isquemia aguda e/ou crônica, essa incidência chega a ser de aproximadamente 1,63%5. Até o presente, não se conhece estudos focalizando a estimativa sobre a incidência no Brasil. Os estudos realizados por brasileiros relataram casos mencionando o sexo e a idade. Assim, Dias et al.6, Oliveira et al.7, Araújo et al.8 e Bez et al.9 descreveram uma variação entre 58 e 74 anos, com uma média de 64,25 anos, sendo três do sexo feminino6-8 e apenas um masculino9. A idade variou entre 42 e 82 anos para Maldini et al.10, com uma média de 62 anos. No presente estudo, o paciente era do sexo feminino e tinha 55 anos.
A ocorrência de bilateralidade da persistência da artéria isquiática ocorreria segundo Mayschak & Flye2 em 50% dos casos. Araújo et al.8 descreveram um caso bilateral. Dias et al.6 e Bez et al.9 encontraram a persistência no membro inferior direito, e Oliveira et al.7 no esquerdo. No nosso caso, não encontramos bilateralidade de persistência da artéria isquiática.
Os tipos de apresentação da persistência da artéria isquiática podem ser variados. Chama-se completa quando a artéria isquiática serve como comunicação direta entre a artéria ilíaca interna e a artéria poplítea. Geralmente, nesses casos, a artéria femoral superficial hipoplásica comunica-se com a artéria poplítea através de uma rede variável de vasos colaterais11. Mayschak & Flye2 relataram que a maioria dos casos encontrados em seu estudo foi de artéria isquiática completa. Em nosso trabalho, corroboramos com os relatos de estudos realizados por Dias et al.6, Oliveira et al.7, Araújo et al.8 e Bez et al.9, e encontramos o tipo completo.
A apresentação é denominada incompleta quando ocorre a involução parcial da artéria isquiática. Esta se torna hipoplásica e se comunica com a artéria poplítea através de uma rede de vasos colaterais, além de apresentar um sistema femoral normal10.
Quanto à incidência de aneurisma da artéria isquiática, segundo Mayschak & Flye2 esta corresponderia a 15% dos casos e, geralmente, ocorre sob o músculo glúteo máximo ao nível do trocanter maior. Para Maldini et al.10, a incidência pode variar entre 15 e 46%. Na literatura pesquisada, foi encontrado o relato de 87 casos de aneurisma de artéria isquiática até 2002. A etiologia básica da dilatação aneurismática na persistência da artéria isquiática ainda não está muito clara10. Em comparação com o segmento ilíaco-femoral, a artéria isquiática persistente tem tendência maior à degeneração ateromatosa e seu percurso posterior às regiões glútea e da coxa, onde estaria sujeita a repetidos traumas, favorecendo a formação de aneurisma, ruptura, trombose e embolização de ateroma. Dias et al.6, Oliveira et al.7 e Araújo et al.8 relataram três casos com a presença de aneurisma. No último estudo, foi descrito um caso de aneurisma bilateral, destacando que no lado direito ocorreu ruptura com hematoma, oclusão da artéria ciática e isquemia aguda do membro afetado.
O diagnóstico da persistência da artéria isquiática exige um alto grau de suspeita por parte do médico, além de depender muito da apresentação clínica e do exame físico do paciente. Ressalte-se, ainda, a importância da configuração anatômica da artéria isquiática persistente e se esta apresenta, ou não, aneurisma associado. Geralmente, os sinais clínicos e os sintomas são determinados pelas complicações. É muito importante excluir a história de trauma recente a fim de evitar o falso diagnóstico de aneurisma2. Em mais de 40% dos casos, a persistência é assintomática e diagnosticada através de achados acidentais, não relacionados com a formação de aneurisma ou de outras complicações10.
Para Wilson et al.11, a ausência de pulsos femorais e a presença de pulsos distais representariam um alto grau de suspeita de artéria isquiática persistente. Na hipoplasia ou na ausência da artéria femoral, o paciente apresenta pulsos poplíteos e podais palpáveis apesar da ausência ou sensível diminuição da amplitude do pulso femoral. Essa apresentação, chamada de sinal de Cowie, é muito sugestiva do tipo completo de persistência de artéria isquiática.
A dor na região glútea é considerada um sintoma não específico11. Admite-se que ela ocorra devido à proximidade da artéria isquiática e do aneurisma com o nervo isquiático, podendo, ainda, causar alterações sensitivas ou motoras na extremidade envolvida. Mayschak & Flye2 e Maldini et al.10 admitem que a presença de uma massa dolorosa na região glútea pode ocorrer. Segundo Mayschak & Flye2, essa massa seria pulsátil e representaria a dilatação aneurismática da artéria. Ikezawa et al.4 encontraram essa massa glútea em 25,7% dos casos por eles estudados.
O achado clínico mais freqüente da persistência da artéria isquiática é a isquemia de membro inferior. Para Maldini et al.10, ela pode ocorrer em 63% dos casos, sendo que em 25% deles pode apresentar-se como isquemia crítica. Ikesawa et al.4 relataram que 31,1% dos pacientes com artéria ciática persistente sintomática apresentaram isquemia. Wilson et al.11 relataram que a taxa de formação de aneurisma nos quadros de persistência da artéria isquiática é alta. Para o seu diagnóstico, o instrumento mais utilizado é a angiografia com subtração digital5. Esta continua sendo essencial para determinar o padrão de vascularização e fornecer informações necessárias ao planejamento do tratamento11. Aziz et al.12 enfatizam a importância da angiografia como o padrão-ouro na investigação para a detecção da lesão vascular, mas ressaltam a necessidade de uma boa experiência para uma adequada análise dos achados angiográficos.
O eco-Doppler colorido é outro recurso diagnóstico que ajuda na detecção da persistência da artéria isquiática. Todavia, a tomografia computadorizada e a angiografia destacam-se na confirmação do diagnóstico, pois mostram a variação da configuração anatômica dos sistemas arteriais isquiáticos e femorais13. A angiotomografia permite a detecção da artéria isquiática ocluída, que pode não ser visualizada através da angiografia digital, além de permitir a avaliação de diferentes complicações, tais como os aneurismas, o grau de trombose intramural, a anatomia vascular, o curso da artéria e sua relação com as estruturas adjacentes e possíveis anomalias venosas associadas.
No presente estudo, foi realizado o exame angiográfico, assim como nos estudos de Oliveira et al.7 e Araújo et al.8. Dias et al.6 acrescentaram à angiografia o eco-Doppler vascular, e Bez et al.9 acrescentaram a angiotomografia. Jung et al.5 concluíram que a angiotomografia poderia ser utilizada como único instrumento para a avaliação pré-terapêutica de qualquer complicação tromboembólica ou alteração aterosclerótica. A angiografia realizada através da ressonância magnética pode ser considerada como um bom meio de diagnóstico. Entretanto, tem como restrição ao seu uso o alto custo e as dificuldades técnicas envolvidas12.
Nos casos de persistência da artéria isquiática, a escolha da conduta terapêutica depende da anatomia da artéria e da ocorrência de complicações13. Para Jung et al.5, a forma assintomática dessa persistência, embora não requeira conduta operatória, deve ser monitorizada devido ao grande risco de ocorrência de complicações tromboembólicas. A detecção precoce, entretanto, permite uma terapia cirúrgica mais imediata, a fim de prevenir as potenciais e sérias complicações2.
Na presença de complicações isquêmicas, a indicação de tratamento cirúrgico é absoluta, principalmente diante do risco de isquemia crônica devido ao tromboembolismo distal ou à trombose do próprio aneurisma14. Na exclusão completa do aneurisma, é sugerido algum tipo de revascularização do sistema hipoplásico da artéria femoral superficial11. Nesses casos, são relatados alguns tipos de procedimentos cirúrgicos, tais como ressecção do aneurisma e anastomose direta entre as duas extremidades dos vasos, interposição de enxerto, exclusão da artéria com ligaduras proximal e distal, bypass ilíaco ou fêmoro-poplíteo e endoaneurismorrafia14. Em nosso caso, a paciente foi submetida a um procedimento cirúrgico no qual foi realizada a excisão do aneurisma com a interposição de enxerto e retirado um grande trombo, seguido pela interposição de uma prótese de dácron com anastomose terminoterminal. Atentamos para a advertência de Ishida et al.15 e, durante a ressecção do aneurisma, tomamos todos os cuidados para não lesar o nervo isquiático.
Os procedimentos cirúrgicos, combinados com técnicas endovasculares para a oclusão do aneurisma, segundo Loh16, evitariam a necessidade e os riscos da cirurgia sobre a artéria isquiática. A embolização arterial simples é recomendada por Song et al.3 para o tratamento de aneurismas da artéria ciática dos tipos completo ou incompleto, quando se faz presente uma boa rede de vasos colaterais. Sogaro et al.14 sugerem como ideal a escolha da embolização com balões destacáveis nos casos de tipo incompleto. Nos casos de tipo completo, poderia ser realizado o stent revestido implantado pela técnica endovascular.
A maioria das complicações pós-cirúrgicas acontece em pacientes com persistência da artéria isquiática do tipo completo. Em geral, esses pacientes não apresentam uma boa rede de vasos colaterais3. Dias et al.6 relataram que, em um dos casos, foi realizada amputação do membro inferior. De acordo com Jung et al.5, essas situações ocorrem devido à demora na procura por tratamento médico. No nosso caso, a paciente evoluiu sem qualquer complicação e, 1 mês após a cirurgia, constatou-se através do eco-Doppler arterial uma boa perviedade do enxerto.
Artigo submetido em 23.05.07, aceito em 14.01.08.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Abr 2008 -
Data do Fascículo
Mar 2008
Histórico
-
Recebido
23 Maio 2007 -
Aceito
14 Jan 2008