RESUMO
O artigo investiga alguns tópicos relacionados ao wagnerismo em determinadas obras de Nietzsche e Adorno. Também procura mostrar até que ponto a crítica a Wagner elaborada por Nietzsche foi assimilada por Adorno.
Palavras-chave: Friedrich Nietzsche; Theodor Adorno; Richard Wagner; wagnerismo
Abstract
The article investigates some Wagnerism-related topics in some works of Nietzsche's and Adorno's. It also seeks to show to what extent the criticism of Wagner by Nietzsche was assimilated by Adorno.
Keywords: Friedrich Nietzsche; Theodor Adorno; Richard Wagner; wagnerism
Quando colocamos em perspectiva os Gesammelten Schriften de Theodor Adorno, podemos notar que nada menos que 8 dos 20 volumes foram exclusivamente dedicados à música, sem falar nas incontáveis passagens de outros volumes onde o autor discute, em diversos textos e ensaios, a música e suas implicações sociais e estéticas, como em “Crítica e sociedade”, “Teoria estética” e “Dialética do esclarecimento”, para ficarmos apenas nesses três exemplos. Essa predominância mostra que a música foi o tema mais frequente na obra daquele que podemos considerar um dos maiores filósofos do século XX. Outra constatação, e esta já introduz o tema deste artigo, é a presença de Richard Wagner nos seus escritos; uma presença recorrente e, ao mesmo tempo, determinante para sua teoria estética - embora não possamos falar em uma presença uniforme ou homogênea do compositor, como tentarei mostrar. Da mesma forma, a constância das referências a Nietzsche nas análises críticas de Adorno também não é uma novidade, no entanto, salvo engano, ainda não se considerou de perto o quanto Adorno sustentou ou tencionou a crítica nietzschiana ao wagnerismo, ligando os dois polos no interior de sua obra. Dentro dos limites deste artigo, gostaria de recuperar alguns desses vínculos e tentar esquadrinhar o tema Wagner em alguns dos textos incluídos nos chamados Musikalische Schriften, mas também em alguns outros ensaios essenciais, onde o nome de Wagner foi mobilizado de maneiras por vezes discordantes.
Os chamados Escritos musicais cobrem um vasto período da produção adorniana e foram organizados a partir de material cuja fonte provém de diversas publicações desde a década de 1920, quando ele iniciou sua atividade como crítico musical, e se estendeu até os anos de 1960, última década de sua atividade intelectual. Sobre esses volumes e as escolhas de seus títulos, trata-se, como as notas editoriais da edição alemã esclarecem, de decisões baseadas nas opções do próprio autor:
Ninguém compreendeu melhor as implicações desse título [Musikalische Schriften] que Hans-Klaus-Metzger [crítico musical alemão, HB] - em uma recensão até hoje inédita: “Adorno gostava de versões com conotações de crítica musical como, por exemplo, 'Escritos sobre música', não apenas por gosto, mas para explicitar uma intenção filosófica central: seus livros sobre música não são livros sobre música. A filosofia de Adorno nunca abdicou da pretensão de reconhecer a alternativa entre o pensamento musical e o pensamento sobre música, que a incompetência objetiva da maior parte da literatura especializada produz” (Adorno, GS 16, pp. 674-675).2
Por trás do verniz editorial, pode-se notar que os Escritos musicais espelham de várias maneiras a obra multifacetada de Adorno, com um leque de temas amplo e não classificável em determinações de área, como filosofia, sociologia ou mesmo estética musical. No entanto, podemos observar que, de ponta a ponta, comentários e análises sobre Richard Wagner estão presentes de modo marcante e com uma recorrência que não passa despercebida quando trabalhados em conjunto. De antemão, cabe esclarecer que não se trata aqui de um mapeamento, ou de um tratamento filológico, de uma classificação ou algo parecido, mas de uma tentativa de abordagem crítica, cuja intenção é discutir como Adorno compreendeu a permanência de Wagner no sistema geral das artes nas primeiras décadas do século XX e de que maneira sua análise sobre essa presença do wagnerismo é ou não devedora dos comentários mais recuados da crítica de Nietzsche ao compositor e sua obra.
Em “Figuras sonoras”, incluída nos Escritos musicais I, especificamente no texto “Ideias sobre a sociologia da música” (1958), Adorno afirma que a música transcende a sociedade, ao contribuir, através de sua própria configuração, para dar voz a essa sociedade e, ao mesmo tempo, tentar reconciliar o irreconciliável em uma imagem antecipatória, para então concluir que “quanto mais profundamente [a música] se acovarda nisso, mais ela se aliena, desde meados do século XIX, com o Tristão, em relação ao entendimento da sociedade constituída” (Adorno, GS 16, p. 18). Wagner é, pois, ao que parece, um marco divisório fundamental para Adorno, pois representa o momento em que a música deixa de espelhar a sociedade na qual ela é produzida e se deixa atravessar por elementos externos à racionalidade musical. Um pouco mais adiante, ainda no mesmo texto, Adorno esclarece melhor essa mudança. Para ele, não era mais possível falar em “progresso musical” como um desenvolvimento retilíneo, pois, apesar do domínio racional do material ter amadurecido em paralelo com a qualidade musical das obras, nem sempre eles formaram uma unidade. Novamente, Wagner aparece como exemplo modelar:
As discrepâncias nos procedimentos técnicos de um compositor que trabalha com o máximo de nível formal, como Richard Wagner, manifestam a impossibilidade socialmente pré-formada do que ele aspirava, uma obra de arte que reuniria a sociedade burguesa em torno de um culto, com isso, a falsidade do conteúdo objetivo de suas próprias obras: nelas é possível captar a natureza ideológica daquela. A redução da grande música, bem-sucedida, à sociedade é tão problemática como qualquer coisa verdadeira (Adorno, GS 16, p. 21).
Wagner teria inaugurado o vínculo, ou melhor, a dependência entre as obras e a sociedade que deve refleti-las, um procedimento condenado na origem por Adorno. Em outras palavras, o wagnerismo instaura um artifício que antecipa o que podemos chamar de perda de autonomia, ferindo pela base esta que é uma das grandes conquistas da arte na modernidade, lançando toda e qualquer produção em uma nova forma de sujeição, não mais sob a batuta da Igreja e do Estado, mas sob o insinuante mercado de bens culturais, ou, como queria Adorno, sob a égide da ideologia burguesa. Devemos notar, entretanto, que essa atribuição da qual Wagner é acusado, isto é, de ser um 'facilitador', não acompanha os comentários sobre o compositor ao longo da obra adorniana. Antes de apontarmos para essas diferenças de atribuição, lembremos que, diferente de Adorno, Nietzsche reprova o wagnerismo não apenas por sua falsidade e por seus recursos edulcorantes, mas por seu afastamento em relação ao mito, Adorno afirma, em A ópera burguesa (1955), que Wagner “entregou a ópera ao mito como uma presa, empurrando o incesto para o centro do ritual operístico” (Adorno, GS 16, p. 32). O que podemos depreender disso é que há uma sutil diferença de compreensão a respeito da função do mito nos dois autores; mas não é uma diferença suficiente para obscurecer a presença de Nietzsche na análise adorniana. Para avaliar a função da ópera, Adorno não hesita em elencar “A judia de Halévy, A africana de Meyerbeer, A dama das camélias na versão de Verdi e a princesa egípcia Aída, Lakmé de Delibes, do qual ainda será preciso acrescentar o toque cigano que culmina em O trovador e Carmen” (Adorno, GS 16, p. 32). São exemplos de obras que Adorno considerava de modo positivo quando colocadas à luz do wagnerismo, e pelo menos aqui não aparece claramente expressa qualquer desavença em função de possíveis conteúdos regressivos. Todas essas óperas simbolizam, naquele momento, “tudo que há de estrangeiro e proscrito que incendeia a paixão e entra em conflito com a ordem estabelecida”, afirma Adorno ainda em A ópera burguesa (Adorno, GS 16, p. 32). É quase dispensável lembrar do papel que a Carmen de Bizet possuía em O caso Wagner (1888), como contraponto tardio fundamental ao wagnerismo. Embora ligeiramente distinto, podemos dizer que Adorno segue a trilha aberta por Nietzsche, quando permite a confrontação das obras de Wagner com exemplos retirados da ópera tradicional, da qual Wagner pretendia se diferenciar radicalmente. De que maneira, pelo menos por enquanto, podemos aproximar as duas visões do legado de Wagner? Percebendo como Adorno dispensou, de certo modo surpreendentemente, os avanços da racionalidade musical:
Em comparação com este ritual de tentativa de fuga, o anticonvencional Wagner parecia mais convencional que os libretistas por ele desprezados: com a sabedoria proverbial de Wotan “Tudo é segundo sua condição”, confirmou a imanência da sociedade burguesa e bloqueou essa fuga, exatamente ali propagou um ensopado biológico onde os casais de pecadores irmãos aparentemente chocavam a plateia (Adorno, GS 16, p. 32).
A passagem ecoa alguns dos principais motivos da crítica desenvolvida em O caso Wagner, onde Nietzsche considera que o mito, que por algum tempo parecia sustentar as obras do jovem e ainda revolucionário Wagner, na época d'O nascimento da tragédia, sucumbiu diante da necessidade de, constantemente, ter que salvar uma mulher - Nietzsche se referia claramente a Brunilda, mas também à vocação assumidamente redentora que o wagnerismo assumia para si a partir da Sociedade Wagneriana de Munique. Estamos diante não apenas de um contraponto a Nietzsche, mas também de uma inversão sobre o lugar do mito. Para Nietzsche, o mito muitas vezes poderia ser adotado como uma ligação metafísica com o passado medieval germânico, que, por sua vez, era a memória coletiva possível dos mitos arcaicos gregos, que Nietzsche admirava mesmo em sua fase tardia. Para Adorno esse mito parece ter sido convertido em ideologia, principalmente a que se manifesta no interior do pensamento burguês. De certa forma, eles estão dizendo a mesma coisa, porque a perda do mito para Nietzsche é um reenvio para a dimensão redentora do cristianismo assumido pelo wagnerismo sem nenhum pudor em obras como Parsifal, enquanto para Adorno o mito parece mais o mascaramento da liberdade 'anticonvencional' de Wagner - quer dizer, como ele mesmo diz, Wagner foi um dos primeiros a servir ao novo cenário: “No século XIX a nostalgia burguesa de liberdade havia se perdido para o espetáculo representativo da ópera como no grande romance; Wagner, para quem o mito triunfa sobre a liberdade, foi o primeiro que neste ponto se mostrou totalmente submisso em seus antirrealistas dramas musicais às exigências do resignado e frio realismo burguês” (Adorno, GS 16, p. 33).
Quando pensamos na influência direta de Nietzsche sobre Adorno, é comum que o livro mais lembrado seja O caso Wagner, possivelmente em função de sua proximidade cronológica com o apogeu do wagnerismo e, consequentemente, com a mudança profunda pela qual passou a produção musical e seu entorno, justamente o que Adorno chama de “resignado e frio realismo burguês”. Se essa influência sobre Adorno hoje é reconhecida, estudos recentes reiteram que a amplitude das análises de Nietzsche extrapolou a dimensão filosófica. Andreas Urs Sommer considera que a repercussão da crítica de Nietzsche a Wagner teve um efeito direto e muito amplo. Por exemplo, o termo décadence tornou-se um princípio orientador da crítica cultural contemporânea. Nietzsche, no momento do aparecimento d'O caso Wagner, e dentro do contexto crítico estabelecido contra Wagner naquele momento, associou seu nome a uma renúncia radical do paradigma artístico wagneriano, e não apenas contra o ambiente rígido em torno de Bayreuth. Corroborando o que se defende aqui, a recepção inspirada pelo O caso Wagner foi de Robert Musil e Thomas Mann até Theodor W. Adorno:
Musil empregou sua respectiva leitura diretamente em seu romance Der Mann ohne Eigenschaften [...], enquanto Thomas Mann, em Leiden und Größe Richard Wagners (1933), sentiu “a imortal crítica de Nietzsche a Wagner [...] sempre como um panegírico com presságio invertido, como uma outra forma de glorificação: ela foi de amor e ódio, autoflagelação” [...]. No entanto, ele queria ficar associado a Wagner justamente como crítico. Para Adorno também aplica-se o mesmo, apesar de que ele destacou, em seu Versuch über Wagner (1952), que Nietzsche “ouviu Wagner ainda com os ouvidos do Biedermeier, quando o encontrou sem forma” (Sommer, 2012, p. 22).
Como se vê, Adorno não se exime de identificar na crítica de Nietzsche um certo anacronismo, ou talvez, o que é ainda mais grave, um traço de conservadorismo, já que o Biedermeier é considerado um período marcadamente conservador no campo das artes na Alemanha, datado entre 1815 e 1848. Isso, desde já, nos previne contra a ideia de uma recepção passiva de Nietzsche por Adorno. Como o leitor pode perceber, não se opta aqui por uma leitura sequencial ou cronológica dos textos de Adorno, antes de uma alternância de posições dentro da temática geral Wagner e/ou wagnerismo. Não se trata, da mesma maneira, de um estudo comparativo, pois tentarei mostrar como Adorno mantém ou rejeita as proposições de Nietzsche, sem delas se descolar completamente, mas demarcando limites nítidos em relação aos subsídios críticos de seu antecessor. Por exemplo, a crítica a uma suposta visão classicista da parte de Nietzsche, algo que remeta a uma possível dificuldade deste em enfrentar radicalmente a quebra de paradigmas formais em Wagner, não esgota a análise. Na Filosofia da nova música (1949), anterior ao Ensaio sobre Wagner, Nietzsche aparece quase como um visionário da crítica musical, como mostra este longo trecho:
Em Wagner, a categoria metafísica fundamental era a renúncia, a negação da vontade de vida; a música francesa, despojada de toda metafísica, até da metafísica pessimista, expressa objetivamente esta renúncia, com uma força proporcional à sua entrega a uma felicidade que, como mero aqui, como mera transitoriedade, já não é felicidade. Estes graus de resignação são as preformas da liquidação do indivíduo que celebra a música de Stravinsky. Poder-se-ia chamá-lo, exagerando, um Wagner voltado a si mesmo, que se abandona premeditadamente a seu impulso de repetição, se não já também à exterioridade “musical dramática” do procedimento musical, sem mais ocultar sequer o impulso regressivo com ideais burgueses de subjetividade e desenvolvimento. Se a critica wagneriana de outra época, encabeçada por Nietzsche, censurava Wagner por pretender inculcar com sua técnica temática pensamentos na gente ignorante da música - ou seja, em caracteres humanos destinados à cultura de massas industrial -, esta inculcação se converte em Stravinsky, mestre da arte da percussão, em princípio técnico reconhecido, no princípio do efeito; a autenticidade converte-se assim em propaganda de si mesma (Adorno, 1974, p. 146).
Nietzsche cumpre, a despeito da possível fixação formal, chamemos assim, um papel fundamental para Adorno. Se a crítica de Nietzsche ainda está longe de compreender a visada claramente mercadológica de Wagner, ou seja, se não existem elementos no wagnerismo - em sua expressão, até aquele momento, de supremacia puramente musical, ainda não claramente política -, Adorno trata de esclarecer a extensão da percepção geral de seu predecessor, e afirma que o que Nietzsche quis dizer é que Wagner pretendia introduzir a facilitação no programa imposto aos ouvintes, os tais caracteres humanos destinados à cultura de massas industrial. Talvez possamos pensar nesse destino futuro como uma forma de isentar Wagner, cujos procedimentos passavam distante de uma técnica consciente, de uma manipulação, como será com seu sucessor Stravinsky, na ótica de Adorno. Neste, trata-se de um princípio técnico e, levando às últimas consequências a antecipação fornecida por Nietzsche, segundo a qual Wagner era um artista do efeito, Adorno considera a forma composicional de Stravinsky uma quase estratégia regida por um princípio do efeito.
Quando Nietzsche se referia ao efeito wagneriano, não estava em jogo nenhum tipo de circuito de massa, pelo menos não como o compreendemos depois de Adorno. Tratava-se de uma desconfiança, por assim dizer, de um diagnóstico sobre o que Nietzsche chamava de uma traição, pois Wagner, acreditava Nietzsche, descumpriu um projeto e uma tarefa conjunta. Mais uma vez, Adorno alterna concordâncias e discordâncias, como, ao afirmar que “Nietzsche reconheceu desde cedo que o material musical estava cheio de intenções, assim como reconheceu a contradição potencial entre intenção e material” (Adorno, 1974, p. 111, nota 2). A fonte de Adorno, note-se a não coincidência, é a seção “Da alma dos artistas e escritores”, de Humano, demasiado humano I, limiar de uma renovada perspectiva estética da obra de Nietzsche, porta de entrada que levaria uma década depois a'O caso Wagner. Adorno entende o aforismo de Nietzsche como uma psicologização niveladora, daí a necessidade de retomar parte do trecho citado na Filosofia da nova música e a respectiva ponderação de Adorno:
A música. - A música, em si, não é tão significativa para o nosso mundo interior, tão profundamente tocante, que possa valer como linguagem imediata do sentimento; mas sua ligação ancestral com a poesia pôs tanto simbolismo no movimento rítmico, na intensidade ou fraqueza do tom, que hoje imaginamos que ela fale diretamente ao nosso íntimo e que dele parta. A música dramática é possível apenas quando a arte sonora conquistou um imenso domínio de meios simbólicos, com o lied, a ópera e centenas de tentativas de pintura tonal. A “música absoluta” é, ou forma em si, no estado cru da música, em que o ressoar medido e variamente acentuado já causa prazer, ou o simbolismo das formas, que sem poesia já fala à compreensão, depois que as duas artes estiveram unidas numa longa evolução, e por fim a forma musical se entreteceu totalmente com fios de conceitos e sentimentos. Os homens que permaneceram atrasados no desenvolvimento da música podem sentir de maneira puramente formal a peça que os avançados entendem de modo inteiramente simbólico. Em si, música alguma é profunda ou significativa, ela não fala da “vontade” ou da “coisa em si”; isso o intelecto só pôde imaginar numa época que havia conquistado toda a esfera da vida interior para o simbolismo musical. Foi o próprio intelecto que introduziu tal significação no som: assim como pôs nas relações de linhas e massas da arquitetura um significado que é, em si, completamente estranho às leis mecânicas (Nietzsche, 2000, pp. 151-152).
Aqui a separação entre som e “conteúdo” é concebida mecanicamente. O “em si” postulado por Nietzsche é fictício: toda a nova música é veículo de significado, tem seu ser somente enquanto é mais do que mero som e não pode portanto decompor-se em ilusão e realidade. Da maneira que também o conceito nietzschiano de progresso musical como psicologização crescente é entendido de forma demasiado linear (Adorno, 1974, p. 111, nota 2).
Adorno nos obriga a uma revisão de algumas posturas de Nietzsche, principalmente quando o tomamos sempre por extemporâneo, por sua afiada autoconsciência a respeito de seu lugar no tempo e no espaço da história da filosofia. No entanto, a concepção musical de Nietzsche parece ter padecido de um certo anacronismo, como se importassem menos os avanços da racionalidade musical que algumas tarefas para as quais a música deveria estar voltada, como no que diz respeito à nacionalização inicial, compartilhada entre Nietzsche e Wagner. Adorno parece apontar uma incompreensão da parte de Nietzsche acerca dos avanços e ressignificações da música mais avançada. Decerto não toma Nietzsche por um néscio auditivo, mas não parece poupá-lo de um esteticismo, cuja fatalidade alcançou o século XX e conformou quem deveria, ou poderia, ter escapado ao clássico e fornecido munição para a luta contra a estupidez política através de dispositivos musicais redivivos da Música Nova. Essa compreensão sobre a permanência de Nietzsche em um certo lugar-seguro aparece no livro onde o jogo adorniano em relação ao tradicional e ao avançado é mais radical, exatamente em Filosofia da nova música:
É significativo o fato de que Stravinsky, logo que formulou a pretensão objetiva, teve que montar sua armadura com supostas fases pré-subjetivas da música, ao invés de fazer progredir sua linguagem formal além do elemento romântico incriminado, em virtude de seu próprio peso de gravitação. Por isso, da inconciliabilidade das fórmulas “pré-clássicas”, de sua própria condição de consequência e de sua própria disponibilidade de material, Stravinsky fez um estímulo e gozou com jogo irônico a impossibilidade da restauração a que aspirava. É indiscutível o esteticismo subjetivo da atitude objetiva: Nietzsche sustentou, por exemplo, para demonstrar que se havia curado de Wagner, que em Rossini e em Bizet e até no periodístico Offenbach, gozava de tudo aquilo que soava como zombaria das peculiaridades e do pathos wagneriano (Adorno, 1974, p. 155).
O reverso dessa percepção, não é difícil de notar, é o elogio de Wagner como aquele que fez a música avançar num momento decisivo. A ambiguidade é grande e dá o que pensar. Como o compositor mais afim ao nacional-socialismo pode ter fornecido as bases sobre as quais a música mais avançada da vanguarda do início do século XX se desenvolveu, sendo esta a música aquela na qual Adorno apostava como sendo um dos mais potentes antídotos contra a barbárie? O trecho a seguir pode ser uma das respostas possíveis:
A mudança de linguagem realizou-se, na linha do romantismo wagneriano, às custas da objetividade e da obrigatoriedade da própria música. Essa mudança destruiu a unidade melódico-temática no lied e logo a substituiu pelo leitmotiv e pelo programa. Schöenberg foi o primeiro a revelar os princípios de uma unidade e de uma economia universal num novo material subjetivo e livre, inspirado pelo espírito de Wagner. Suas obras são a prova de que quanto mais coerentemente se observa o nominalismo da linguagem musical inaugurado por Wagner, tanto mais perfeitamente esta linguagem se deixa dominar pela razão; e isto é possível em virtude das tendência imanentes na linguagem e não por um gosto nivelador (Adorno, 1974, pp. 52-53).
Talvez a ideia de que a linguagem musical wagneriana tenha sido dominada pela razão - schöenberguiana -, que a teria então reposicionado independentemente do fundo reacionário, pode ser uma forma de se ler essa importante consideração sobre a extensão do wagnerismo sobre a vanguarda. Se ela se dá “às custas da objetividade e da obrigatoriedade da própria música”, isto é, se a autonomia da racionalidade musical compreende inclusive sua autossupressão, logo é pertinente considerar que o racionalismo musical é alçado por Adorno à máxima condição, e subentende-se que subjetividade e liberdade não são artifícios do wagnerismo, como o próprio Wagner talvez considerasse, mas seus elementos estranhos. Benjamin, na correspondência com Adorno, não hesitaria em discutir o método do amigo “Teddie”, em carta datada de 23 de abril de 1937:
A concepção de fundo do “Wagner” [...] é uma concepção polêmica. Não me surpreenderia se essa fosse a única que nos conviesse e nos permitisse, como o senhor faz, trabalhar a gosto. Suas enérgicas análises musicais de natureza técnica, e aliás justamente estas, também me parecem ter seu lugar dentro dessa mesma concepção. Um corpo a corpo polêmico com Wagner não exclui de forma alguma a radioscopia dos elementos progressivos em sua obra [...] Mas ainda assim [...] a perspectiva histórico-filosófica da salvação mostra-se incompatível com a perspectiva crítica de progressões e regressões. [...] O uso indiscriminado das categorias de progressivo e regressivo, cujo direito eu seria o último a cercear nas partes centrais do seu escrito, torna a tentativa de salvar Wagner extremamente problemática (salvação esta na qual no momento eu seria uma vez mais o último a insistir - sobretudo depois da leitura do seu escrito, com suas análises devastadoras) (Adorno, Benjamin, 2012, pp. 372-373).3
Embora Adorno, aparentemente, não opte por sustentar uma crítica baseada em análises sobre materiais progressivos e regressivos, o que fica mais evidente é que ele nunca definiu uma posição única em relação ao legado de Wagner. Isso se aplica, da mesma forma, a Nietzsche. Há uma tensão horizontal ao longo de toda a obra que ora engrandece, ora minimiza o papel e a extensão desses dois autores, como tentamos apontar até aqui; diferente, por exemplo, de Kierkegaard e Hegel, aos quais Adorno tratou a partir de uma perspectiva integrada e sobre cujos legados se manifestou mais claramente. O que Benjamin talvez cobrasse de Adorno era probidade em relação a Wagner, um afrouxamento das categorias de análise musical stricto sensu, em nome de uma crítica que não perdesse de mão a responsabilidade do compositor.
Adorno, por sua vez, em movimento pendular, concede a Wagner a prevalência de sua música avançada e disruptiva, na intenção de salvá-lo, como vimos no comentário; esse seria, digamos assim, o Wagner de Adorno, ou ainda a forma estrutural e normativa que Adorno escolhe para desenvolver uma crítica estética do material para além, se isso fosse possível, das intenções e da condução dada ao material pelo próprio autor. Se essa percepção do movimento revolucionário que a racionalidade musical wagneriana continha é a chave de sua crítica no estertor da decadência política no interior da qual ele se movimenta, a primeira crítica, a de Nietzsche - da qual Benjamin parece mais afim que Adorno -, só poderia ser considerada sob a luz da citada audição do Biedermeier, ou seja, como uma crítica limitada por uma postura conservadora. Sabemos, entretanto, que os conhecimentos musicais de Nietzsche lhe possibilitavam uma proximidade efetiva com a forma dos dramas musicais e, portanto, de uma sólida análise técnica. Na verdade, o problema reside na visão formalista de Adorno, para quem a racionalidade composicional tornava o material musical dotado de autonomia total, tanto em relação ao conteúdo dos libretos quanto em relação à condução pessoal de sua vida e obra.
Isso já aparece, de certo modo, na primeira referência a Wagner na correspondência com Benjamin, quando Adorno comenta o lugar de Berlioz. Por que Berlioz é comparado a Wagner? Adorno afirma que sua música, “apesar da banalidade, apesar da proximidade a orquestras de balneário [...]”, traz “o selo de sua autoria”. Feito o estrago, restava a pá de cal: “Suas maneiras musicais são as piores do mundo: todo o barulho e brilho espúrio do wagnerismo nele converge” (Adorno, Benjamin, 2012, p. 287). Note-se a diferença entre essa condenação de Berlioz e a crítica de Benjamin. A questão para Benjamin era justamente a impossibilidade de sustentar a perspectiva de redimir Wagner, talvez pensando que, no interior da sua obra, não havia como desmembrar forma e conteúdo, como se ambas não fossem uma estrutura integrada pela ideia de uma Gesamtkunstwerk, a Obra de arte total. De certa forma, apesar das tensões e da não uniformidade na própria crítica de Adorno contra Wagner, parece prevalecer a sustentação de uma normatividade estética que, em toda sua rigorosidade, não passa no crivo político de Benjamin. Por outro lado, pensando estritamente na presença de Nietzsche como o crítico de primeira hora do projeto wagneriano, não é difícil perceber como muitas de suas análises foram assimiladas por Adorno sem nada lhes alterar essencialmente, como neste importante trecho da Filosofia da nova música:
Dessa maneira Stravinsky realiza uma antiga tendência. A crescente diferenciação dos meios musicais, por amor à expressão, esteve sempre ligada ao aumento do “efeito”: Wagner não era somente o homem que sabia manejar os movimentos da alma, encontrando-lhes as correlações técnicas mais adequadas, mas era além disso o herdeiro de Meyerbeer, o showman da ópera (Adorno, 1974, p. 134).
Se, por um lado, não resta dúvida de que Adorno seria capaz de recuperar esse vínculo sem Nietzsche, não se pode duvidar da presença direta dessa leitura em muitas das constatações diluídas ao longo de sua obra, principalmente quando consideramos a enorme antecipação que o olhar de Nietzsche foi capaz de promover, ainda que num momento ainda turvo da cultura de massas. Para ficarmos em um exemplo singular, lembremos do episódio em que Wagner atacou diretamente o compositor judeu Meyerbeer em seu texto Ópera e drama. Mesmo autores generalistas, como Otto Maria Carpeaux, reconhecem a tensão e a iniquidade do valor último desta crítica:
É muito menos importante a teoria do Gesamtkunstwerk (Obra de arte total): o drama musical, servido por todas as artes: da poesia, da pintura cenográfica, da dança, da arquitetura. O “teatromonarca” quis subjugar todas as outras artes. E qual foi o resultado? Algo muito parecido com o grande espetáculo da “grande ópera”, de Meyerbeer e Halévy, que Wagner combatera tanto (Carpeaux, 2001, p. 310).4
Nietzsche mobilizou inúmeras vezes a crítica ao efeito na obra de Wagner, sempre apontando os procedimentos fundamentais aos quais o compositor se servia para atingir seus ouvintes:
Wagner praticamente descobriu que magia se pode exercer ainda com uma música decomposta e, por assim dizer, tornada elementar. Sua consciência disso é quase inquietante, tal como sua percepção instintiva de não carecer das leis superiores, do estilo. O elementar basta - som, movimento, cor, em suma, a sensualidade da música. Wagner não calcula jamais como músico, a partir de alguma consciência musical: ele quer o efeito, nada senão o efeito. E conhece aquilo sobre o qual quer agir! (Nietzsche, 1999, p. 26).
Esse conhecimento e autoconsciência do compositor e maestro sobre sua obra, e os usos possíveis que poderia fazer dela, é um dos lugares-comuns da crítica de Nietzsche. A passagem supra também amplia a possibilidade de indagar sobre um possível conservadorismo na postura crítica de Nietzsche, tal como Adorno parece ter compreendido. Não diria que Nietzsche estivesse claramente a par das possibilidades abertas ao racionalismo musical, insinuadas de modo enviesado no interior do wagnerismo. Ao que parece, Nietzsche permaneceu atado a uma dimensão poética, mesmo quando a perspectiva estético-metafísica já não existia. Paolo D'Iorio, ao analisar as notas de Nietzsche na cópia da partitura da Carmen de Bizet, reconstrói momentos fundamentais dos últimos movimentos conscientes de Nietzsche, antes do colapso psíquico. Eis como ele avalia o lugar das reflexões de Nietzsche na polaridade Wagner/Bizet:
Passada a fase metafísica d'O nascimento da tragédia, Nietzsche prefere pedir às artes não mais a revelação de uma dimensão metafísica, mas a força e a precisão da definição psicológica, quer dizer, a capacidade de saber definir com duas notas, os elementos complexos como os da paixão; o amor, a mais complexa das paixões. “Este livro é uma descrição detalhada e minuciosa de todos os sentimentos que formam a paixão que se chama amor”. Aqui ecoa o argumento do livro de Stendhal, Do amor, ao qual Nietzsche se refere nas notas marginais à Carmen e que continuamos a ler: “Faço todos os esforços possíveis para ser seco. Quero impor silêncio a meu coração, que acredita ter muito a dizer. Tremo ao pensar que não escrevi apenas um suspiro, quando imaginei ter demarcado uma verdade” [Stendhal. De l'Amour. Paris: Gallimard, 1980, nota ao capítulo III, capítulo IX]. Stendhal, o “último grande psicólogo”, é um dos autores prediletos de Nietzsche e que ele coloca ao lado de Bizet para opor-se à hipocrisia moral alemã (D'Iorio, 2012, p. 218).
Como se vê, de fato não interessava a Nietzsche, pelo menos aparentemente, um aprofundamento da perspectiva formal e técnica, ou que ele estivesse pensando em qualquer ruptura necessária na linguagem musical, de nada que pudesse se assemelhar a uma antecipação do que o formalismo wagneriano construía, talvez sem o saber, e que desembocaria nas obras em torno da Segunda Escola de Viena; talvez fosse mais correto falar em uma contenção de expressão, uma simplificação que alguns autores chegam a considerar como uma abertura de Nietzsche à música ligeira.5 Desconsiderando o possível exagero dessa ideia, ela pode ser uma forma interessante de pensar nas diferenças mais marcantes entre Nietzsche e Adorno.
Quando Adorno, em 1947, no célebre capítulo da Dialética do esclarecimento redigido por ele, “A indústria cultural”, menciona Wagner, relembra a forma de consumo estabelecida no século XIX e que se estendera ao XX, segundo a qual “quem [...] desembolsava uma certa quantia para ver uma peça teatral ou para assistir a um concerto dispensava ao espetáculo pelo menos tanto respeito quanto ao dinheiro gasto”. Havia, portanto, uma experiência entre o espectador e a obra ainda preservada. O consumidor - burguês - podia inclusive aproximar-se da obra, assim, continua, “as introduções aos dramas musicais de Wagner, por exemplo, e os comentários do Fausto dão testemunho disso. São eles que servem de transição para a embalagem biográfica e outras práticas a que se submetem atualmente as obras de arte” (Adorno, 1985, p. 150). A comparação com Goethe não é gratuita. Nos outros dois momentos em que Wagner é citado nesta obra chave, o contexto parece ser o mesmo. Nesse capítulo, um pouco antes, a televisão é considerada a realização 'escarninha' da Obra de arte total, “A harmonização da palavra, da imagem e da música logra um êxito ainda mais perfeito que no Tristão, porque os elementos sensíveis [...] são em princípio produzidos pelo mesmo processo técnico e exprimem sua unidade como seu verdadeiro conteúdo” (Adorno, 1985, pp. 116-117). Ainda no clássico de 1947, na seção “Elementos do antissemitismo: limites do esclarecimento”, Adorno compara os movimentos de mobilização nacional-socialistas pela via religiosa à conversão “dos cavaleiros do Santo Graal”, e os seguidores do Führer acabam por reproduzir fanaticamente, ainda que sem conteúdo, a nostalgia perdida da salvação eterna, cujos restos estão concentrados no antissemitismo.
Fora a ultima referência, que permite pelo menos duas leituras da herança wagneriana, isto é, o fanatismo é sinônimo de um comportamento e de uma expressão literária e mítica ou simplesmente uma adaptação de um modelo afim aos preceitos antissemitas, as demais, no contexto da crítica cultural, parecem simplesmente isolar Wagner das consequências e das apropriações de suas obras, novamente a comparação com Goethe elimina qualquer dúvida quanto ao lugar de Wagner no quadro geral das artes. Adorno não parece ter vacilado na hora de distinguir o essencial do wagnerismo dos procedimentos da indústria cultural, que tudo nivelam - até mesmo Goethe. Para Nietzsche, entretanto, outras questões precisavam ser consideradas, entre elas a vida em primeiro plano, e só então a arte em sua máxima inventividade:
Carmen é, para Nietzsche, alguma coisa maior do que uma ópera musical. Tal como Wagner é, para Nietzsche, algo mais do que um músico, pois é um incomparável histrio (EH, O caso Wagner, 8), de tal modo que Carmen é algo mais do que uma ópera, é a representação de um estado de ânimo filosófico feito de coragem e fatalismo, de psicologia e de paixão, e sobretudo, privada de sentimentalismo e de “moralina” (D'Iorio, 2012, pp. 224-225).
O significado simbólico da Carmen, personagem de Mérimée, não se reduz à forma, mas, sobretudo, ao conteúdo. Só nesse sentido podemos entender com alguma segurança o que vem a significar vida no contexto da crítica de Nietzsche e, por outro lado, como esse conceito não opera no mesmo sentido em Adorno - não porque lhe falte a vontade de suster a vida, mas porque ele a vê imiscuir-se no nada, que é como Adorno a rigor compreende a modernidade tardia. Em Nietzsche, a arte ainda deve lidar não apenas com seu movimento interno de criação e reinvenção, ela deve, sobretudo, estar apta a renovar nossa capacidade de estarmos presentes no mundo, como indivíduos ativos da cultura. No entanto, as poucas décadas que separam Nietzsche de Adorno foram suficientes para enterrar séculos de humanismo, porque se no primeiro ainda é possível imaginar uma ponte entre arte e vida, uma tentativa, em forma de tarefa solitária, de fazer a vida prevalecer sobre a mendacidade, em Adorno já não há o que manter, a não ser que forcemos a boa vontade e as produções alvissareiras; e ainda assim muito debate virá à tona. Anteriormente afirmei que a posição de Adorno sobre a filosofia de Nietzsche não tem uma unidade, o que em geral deve ser correto, mas em Minima Moralia, de 1951, encontramos possivelmente a mais sólida posição de Adorno a respeito do diagnóstico de Nietzsche sobre a vida moderna.
Já na epígrafe, citando o escritor austríaco Ferdinand Kürnberger (Der Amerikamüde, 1885), Adorno parece prevenir o leitor sobre o núcleo crítico do livro: “A vida não vive” (Adorno, 1993, p. 13). São muitas as passagens desse livro de aforismos em que Nietzsche é citado, e em quase todas Adorno está confirmando o inevitável: a vida moderna se insere em outra compreensão, abissalmente distinta do que até pouco tempo atrás estava ligado à existência plena:
Horroriza-nos o embrutecimento da vida, mas a ausência de todo e qualquer costume objetivamente obrigatório força-nos por toda a parte a modos de comportamento, falas e avaliações que são bárbaros de acordo com o critério do que é humano, e desprovidos de todo tacto, até mesmo segundo o duvidoso critério da boa sociedade. [...] Quando, em face da mera reprodução da existência, de todo ainda se concedem o luxo de pensar, comportam-se como privilegiados; quando se limitam a pensar, declaram a nulidade de seu privilégio. [...] A única coisa que pode ser justificada é a recusa da má utilização ideológica da própria existência e, de resto, conduzir-se em privado tão modesta, discreta e despretensiosamente quanto há muito o exige não mais a boa educação, mas antes a vergonha: de ter ainda no inferno o ar para respirar (Adorno, 1993, p. 28).
Essa seria, por assim dizer, a distinção conceitual forjada por Adorno. Existir não se justifica mais a partir da autoconsciência do pensamento, nulo diante da certeza de um habitat destrutivo e automutilador pós-Segunda Guerra. Adorno também exercita nos Minima Moralia uma crítica do conceito de vida a partir de um procedimento que, salvo engano, foi pela primeira vez operado por Nietzsche. Para o autor d'A gaia ciência, era preciso afastar-se dos chamados grandes temas, voltar-se para os detalhes que transformavam a lida cotidiana e, em consequência, a experiência ampla da vida. Não por acaso, na primeira referência a Nietzsche em Minima Moralia, Adorno está criticando as formas recentes de morar, as habitações, a casa como “coisa do passado”, os apartamentos e a destruição das cidades europeias. É quando ele cita Nietzsche: “'Pertence à minha sorte não ser proprietário de imóvel', já dizia Nietzsche n'A gaia ciência. A isto ter-se-ia que acrescentar hoje: pertence à moral não sentir-se em casa em sua própria casa” (Adorno, 1993, p. 43). Trata-se de uma ponderação arquitetônica, com direito a avaliações do cânone da época, “a diferença entre as oficinas vienenses e o Bauhaus não é mais tão considerável”, afirma Adorno, porque mesmo os proprietários não se sentem mais proprietários, pois, segue ele, “a abundância de bens de consumo se tornou potencialmente tão grande que nenhum indivíduo possui mais o direito de agarrar-se ao princípio da limitação dos bens” (Adorno, 1993, p. 43). Adorno subverte a ideia de uma democratização de espaços, de uma generalização do bem-estar, enfim, de uma partilha das benesses do capitalismo tardio, como o mercado de bens tenta ainda hoje justificar como um processo.
Em 1888, quando Nietzsche se lança no projeto autobiográfico que resultaria em Ecce Homo, seu último ano de atividade produtiva, na seção “Por que sou um destino”, o tema aparece mais que uma centena de vezes, e demonstra que, por trás das descrições sobre a vida urbana, os hábitos alimentares, a dietética e outras questões 'menores', se escondia toda sua obra, subsumida, para não dizer vencida, pela constatação final: “A noção de 'Deus' inventada como noção-antítese à vida - tudo nocivo, venenoso, caluniador, toda a inimizade de morte à vida, tudo enfeixado em uma horrorosa unidade!” (Nietzsche, 1995, p. 116). Nesse livro, Nietzsche apresenta de modo mais direto que n'A gaia ciência citada por Adorno a questão dos temas ditos menores:
- Perguntarão por que relatei realmente todas essas coisas pequenas e, seguindo meu juízo tradicional, indiferentes: estaria com isso prejudicando a mim mesmo, tanto mais se estou destinado a defender grandes tarefas. Resposta: essas pequenas coisas - alimentação, lugar, clima, distração, toda a casuística do egoísmo - são inconcebivelmente mais importantes do que tudo o que até agora tomou-se como importante. Nisso exatamente é preciso começar a reaprender (Nietzsche, 1995, p. 50).6
Se comparamos essa passagem com o comentário de Adorno a partir d'A gaia ciência, a impressão de uma citação 'de memória' parece explicar por que o Ecce Homo 'lhe escapa'. Na verdade, como já mencionado, não é possível identificar um Nietzsche apenas na recepção adorniana - algo que não deixa de ser uma adesão profunda e respeitosa, de resto absolutamente declarada: “[...] seria tão difícil imaginar Nietzsche trabalhando ate às cinco horas num escritório, como uma secretária atendendo na antessala o telefone, quanto concebê-lo jogando golf após um dia de trabalho” (Adorno, 1993, p. 114). Sob certo ponto de vista, não é muito diferente o uso do conceito de vida nos dois autores. Se para Nietzsche a modernidade deslocava o homem de seu lugar, reconduzia o mito em sua pior forma, a salvação cristã, destruindo qualquer possibilidade de uma vida ligada à condenação da morte e, com isso, vivida na tensão máxima de sua corporeidade, uma vida biológica levada às últimas consequências, sem temer sua autodesagregação, em Adorno a vida já sucumbira, já perdera a matéria conceitual, isto é, vida não significa mais vida, nem como conceito, nem como perspectiva, nem como vislumbre estético; logo, como pensar em uma música vigorosa, para retornarmos ao tema deste texto?
Como mencionamos no início, não há nenhuma intenção de mapear aqui o conjunto de referências a Nietzsche na obra de Adorno, uma tarefa que exigiria bem mais tempo e espaço, e talvez não passasse de um elenco de citações cheias de idas e vindas. Mesmo se nos restringíssemos ao wagnerismo como um tema comum a ambos, só o Ensaio sobre Wagner já exigiria um estudo à parte (algo que ainda resta a ser feito). Assim, importa menos identificar apropriações, identificações ou tensões do que perceber o quanto o período que compreende o desaparecimento de Nietzsche e a maturidade intelectual de Adorno se inscreve num quadro de ruptura profunda no campo das artes, entre elas a assimilação do discurso nacionalista na Alemanha e o aprofundamento irreversível da indústria cultural nos Estados Unidos e em todo o ocidente; portanto, houve, em poucas décadas, algo próximo a uma canonização de dois ditames fundamentais do wagnerismo: o vínculo da arte com a política e a integração definitiva entre produção e consumo de bens culturais. As raízes desse processo Adorno não hesita em localizar na obra de Nietzsche.
Nas análises de Nietzsche, a palavra “autêntico” já se apresenta como algo inquestionado, isento do trabalho do conceito. Por fim, para os filósofos do fascismo, confessos ou não, valores como autenticidade, perseverança heroica na existência individual “lançada ao mundo”, situação-limite tornam-se meios de usurpar o pathos religioso-autoritário desprovido de qualquer conteúdo religioso. Isso leva a denunciar tudo o que não é vigoroso o bastante, que não é de boa cepa, ou seja, os judeus; não utilizara já Richard Wagner a germanidade autêntica contra a frivolidade latina, fazendo com isso um mau uso da crítica ao mercado cultural para a apologia da barbárie? (Adorno, 1993, p. 134).
No jogo tenso da recepção, Adorno parece acusar Nietzsche de uma “ingenuidade filosófica”, como se Nietzsche, na ânsia de se desfazer de Wagner a qualquer custo, tenha acabado por ajudar a mascarar exatamente o que ele mesmo desprezava: o antissemitismo em torno de Wagner. Numa das críticas mais profundas a Nietzsche, Adorno o coloca na base de um equívoco de interpretação sobre o que naquela altura poderia ser ainda autêntico, depois de assimilado o wagnerismo ao Estado. Trata-se de uma grave declaração de Adorno, que cobra outras vias de análise, talvez uma confrontação mais dura; por ora, em função de sua gravidade, deixarei em suspenso esse passo seguinte, até porque o assunto não está encerrado:
Que Nietzsche, cuja reflexão penetrou até o conceito de verdade, tenha-se detido dogmaticamente diante do conceito de autenticidade, torna-o aquilo que ele menos gostaria de ser, um luterano, e sua fúria contra o fingimento é da mesma laia do antissemitismo, que tanto o irritava no arquifingidor Wagner. Não é o fingimento que ele deveria ter reprovado em Wagner - pois toda arte, e a música em primeiro lugar, é aparentada com o espetáculo, e em cada período da obra de Nietzsche ressoa o eco milenar das vozes dos retóricos do senado romano -, e sim a renegação da comédia pelo comediante (Adorno, 1993, p. 136).
Estaria Adorno isentando Wagner da crítica nietzschiana, que via no compositor os primeiros lances dos procedimentos ulteriormente incorporados pela indústria cultural? Trata-se de uma crítica puramente estética esta posição sobre a ausência de obras cômicas no conjunto dos dramas musicais de Wagner? Nietzsche teria permanecido preso à uma crítica tradicional e, portanto, muito distante de uma teoria crítica?
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Este artigo é parte de uma pesquisa de pós-doutorado realizada na Universidade de Leipzig (2015-2016) e financiada com o apoio da FAPESP através da Bolsa de Pesquisa no Exterior (BPE).
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Quando não for possível utilizar as traduções em português, cito a partir da edição das obras completas de Adorno em alemão, em tradução caseira, sempre com a abreviatura GS, seguida do número do volume e da página.
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Apud Gatti, 2014, p. 42. Gatti comenta a posição de Adorno sobre o possível fascismo de Wagner: “[...] Adorno também não aceitava a ‘confortável observação’ segundo a qual a forma seria progressiva e o conteúdo regressivo, uma distinção que ele diz encontrar na estética soviética e naqueles críticos vinculados aos partido comunistas. A questão, para ele, não era se autores como Strindberg, Knut Hamsun ou mesmo Wagner poderiam ou não ser taxados de fascistas, mas como tornar esse juízo produtivo para a análise de suas obras e assim ‘salvá-los deles mesmos’. Se Adorno ainda salienta que é na distinção entre progressivo e regressivo, a partir da relação entre forma e conteúdo, que se encontra o problema principal de suas considerações sobre a estética materialista, é possível concluir que sua abordagem de Wagner representava o esforço em fornecer uma solução particular para tais problemas da crítica estética” (Gatti, 2014, p. 43).
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Trata-se do livro Uma nova história da música, reeditado com novo título. Sobre a relação entre Wagner e Meyerbeer, ver o comentário de Peterlevitz (2015, p. 71 ss).
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Ver Sica, 2002. O trecho ao qual Sica se refere foi escrito pelo filósofo italiano Manlio Sgalambro para o encarte do álbum de Franco Battiato, Ferro battuto (Sony Music, 2001). Transcrevo o trecho na íntegra: “Padre mancato della musica dionisiaca, Nietzsche è invece il padre, o parente stretto, della musica leggera, i suoi lieder, bolsi o borghesi, non lo farebbero sospettare, ma il suo scritto contro Wagner è lo spartito in cui scorrono i suoni di Dioniso, promettenti, ma muti. Nietzsche padre della musica leggera. Se è così, essa ha un padre terribile.”
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Na eKGWB, edição eletrônica das obras de Nietzsche, baseada na edição Colli-Montinari, que incorpora as correções filológicas mais recentes, uma frase antecede esta passagem: “é preciso fazer aqui um grande exame de consciência [“An dieser Stelle thut eine grosse Besinnung Noth]” (eKGWB/EH-Klug-10).
Referências
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» http://www2.unifesp.br/revistas/limiar/pdf-nr2/05_Luciano-Gatti_Correspondencias-entre-Benjamin-e-Adorno_Limiar_vol-2_nr-1_1-sem-2014.pdf - NIETZSCHE, F. “Humano, demasiado humano”. Tradução de P. C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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» http://www.sfi.it/archiviosfi/cf/cf10/articoli/sica.htm
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2018
Histórico
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Recebido
27 Jun 2017 -
Aceito
30 Set 2017