Open-access SPINOZA E MCTAGGART*

SPINOZA AND MCTAGGART

RESUMO

Alguns elementos da teoria do tempo do hegeliano inglês John M. E. McTaggart serão aplicados à filosofia de Spinoza para elucidar a diferença que esse último estabelece entre duração e eternidade. O próprio McTaggart encarrega-se de estabelecer essa relação com Spinoza em seu famoso artigo “A irrealidade do tempo” [“The Unreality of Time”]. Por meio da análise da teoria da essência de Spinoza, mostraremos que essa concepção de eternidade bem como a tese de McTaggart sobre a irrealidade do tempo são incompatíveis com a teoria spinozana. O método comparativo aqui proposto será, justamente, o que nos permitirá melhor compreender, por contraste com as teses de McTaggart, a posição de Spinoza sobre o tempo e a eternidade.

Palavras-chave: Spinoza; McTaggart; Tempo; Eternidade

ABSTRACT

Some elements of the theory of time by the English Hegelian John M. E. McTaggart will be applied to Spinoza s philosophy to elucidate the difference that the latter establishes between duration and eternity. McTaggart himself undertakes to establish this relationship with Spinoza in his famous article “The unreality of time ”. By analyzing Spinoza s theory of essence, we will show that the conception of eternity and McTaggart’s thesis on the unreality of time are incompatible with Spinozian theory. The comparative method proposed here will be precisely what will allow us to better understand, in contrast to McTaggart’s theses, Spinoza’s position on time and eternity.

Keywords: Spinoza; McTaggart; Time; Eternity

Introdução: uma definição polêmica

A Definição 2 da Parte II da Ética tem por objeto a expressão “pertencer à essência de uma coisa” [ad essentiam alicujus rei id pertinere]. Eis sua formulação completa:

Digo pertencer à essência de uma coisa aquilo que, dado, a coisa é necessariamente posta e, tirado, a coisa é necessariamente suprimida; ou aquilo sem o que a coisa não pode ser nem ser concebida e, vice-versa, que sem a coisa não pode ser nem ser concebido1.

Muitos já notaram o caráter problemático dessa definição, que enuncia, em uma disjunção inclusiva, duas conjunções que Spinoza queria aparentemente tomar como unindo elementos equivalentes, mas que contêm um elemento (o primeiro elemento da primeira conjunção e o segundo elemento da segunda conjunção) que é recusado por boa parte de uma já então milenar tradição filosófica constituída em torno da noção de essência. De fato, que a essência de algo suponha sua existência é, exceto no caso de Deus, uma tese inusual na metafísica que foi herdada por Spinoza. O procedimento, presente nessa Definição 2, de passar abruptamente de uma tese geralmente aceita para uma conclusão polêmica é frequente na prosa spinozana; assim, por exemplo, E2p1 (“O pensamento é atributo de Deus, ou seja, Deus é coisa pensante”) é sucedida, na Proposição seguinte, pela polêmica tese de que “A extensão é atributo de Deus, ou seja, Deus é coisa extensa”, demonstrada provocativamente em apenas uma linha pela observação: “Procede da mesma maneira que a demonstração da Proposição precedente”. Entretanto, há um problema em se adotar esse procedimento no caso específico das Definições. De fato, que um livro como a Ética, que parte da premissa de que o real é inteiramente inteligível e explicável, adote uma Definição polêmica parece causar mais dificuldades para sua ordem dedutiva do que quando a mesma conduta é adotada no nível das Proposições, as quais justamente vêm acompanhadas de Demonstrações – de tal modo que a Proposição 2 da Parte II pode remeter o leitor para a Demonstração da Proposição 1. Já as Definições estabelecem dogmaticamente um significado para os termos da teoria, sem se darem ao trabalho de refutar compreensões divergentes.

No caso específico da Definição de essência, o problema é ainda maior porque, ao contrário do que ocorre com outras Definições da Ética, que se valem de compreensões tradicionais – geralmente aristotélicas ou cartesianas – dos termos a serem definidos (como é o caso das Definições de Deus, substância, modo, corpo, ideia, e tantas outras), para em seguida subvertê-las argumentativamente ao longo do texto, no caso da Definição de essência é apresentada uma compreensão bastante heterodoxa do definiendum, já realizando, diretamente em si mesma, e não nas Proposições subsequentes, a subversão semântica em relação à tradição2.

Haveria como evitar esse aparente dogmatismo da Definição 2 da Parte II da Ética? Ou ainda: as Proposições que se seguem a ela poderiam de alguma maneira justificar retrospectivamente sua tese heterodoxa? Alguns elementos da teoria do tempo de um hegeliano inglês, mas que também era, a seu modo, um spinozista, John M. E. McTaggart, poderão nos ajudar a elucidar essas questões. McTaggart publicou na revista Mind, em 1908, o famoso artigo “A irrealidade do tempo” [“The Unreality of Time”]; logo no início do seu texto, ele menciona o nome de Spinoza como um seu aliado teórico (“o tempo é tratado como irreal por Spinoza, por Kant, por Hegel e por Schopenhauer” (McTaggart, 1908, p. 457)), o que por si só nos autoriza a investigar as possíveis conexões entre as teses dos dois filósofios. Ao usar conceitos de McTaggart para entender a filosofia de Spinoza, o possível anacronismo dessa operação poderá talvez ser compensado pela contribuição que ela pode lançar sobre pontos difíceis da Ética. Veremos ao final, no entanto, que algumas teses de McTaggart sobre o tempo são incompatíveis com a teoria de Spinoza. Ainda assim, essa incompatibilidade será ela mesma esclarecedora – pelo contraste que ela ilumina – da posição desse último.

Procederemos em três passos: primeiramente, trataremos de determinar o lugar sistemático que E2d2 ocupa na Ética, de modo a preparar nossa investigação com a formulação de algumas de suas premissas fundamentais (seção 1); em seguida, será feita uma exposição de alguns pontos da teoria do tempo de McTaggart, restrita aos aspectos que podem iluminar a filosofia spinozana (seção 2); finalmente, serão apontadas algumas inadequações advindas dessa interpretação das teses de Spinoza a partir do esquema conceitual formulado por McTaggart; a teoria spinozana do tempo e da eternidade poderá então ser formulada a partir do seu confronto com os elementos do esquema conceitual de McTaggart que ela não pode aceitar em seu interior (seção 3).

1. E2d2 e o conceito de necessidade

À primeira vista, a contextualização da Definição de essência no contexto do sistema demonstrativo da Ética não é muito promissora. Com efeito, segundo Martial Gueroult, o fato de a Definição de essência só aparecer explicitamente no começo da Parte II da Ética, apesar de o conceito que ela expõe já ter sido usado na Parte I, seria explicado por razões de economia textual. Spinoza estaria lidando, na Parte I, propõe Gueroult, com a definição tradicional de essência (tal como ela é usada, por exemplo, no “argumento ontológico” de Santo Anselmo), a qual implica uma distância ou um “recuo” em relação à coisa da qual ela é a essência; já na Parte II, Spinoza romperia com essa definição tradicional, ao propor uma codependência entre essência e coisa, o que explicaria que só aí fosse necessário defini-la explicitamente (Gueroult, 1974, p. 27). Mas não fica muito claro, nessa leitura de Gueroult, por que um certo conjunto de premissas (dadas em Proposições da Parte I), em que o termo “essência” tem um sentido tradicional, poderia ser usado para derivar conclusões (expressas em muitas Proposições da Parte II), nas quais ocorreria justamente uma reforma desse sentido tradicional. Esse procedimento parece ir contra a estratégia geral da Parte I, a qual principia pela enunciação de definições reais (de substância, modos, atributos, Deus etc.) e elimina, paulatinamente, todas as projeções imaginativas projetadas sobre elas pela filosofia tradicional, usando o sentido já corrigido dos termos nas suas Demonstrações. Se essa correção inicial não é feita no caso da Definição de essência, parece que seu uso como premissa de argumentos posteriores não está justificado3. Ou seja, a palavra “essência” seria ambígua, o que comprometeria a verdade das conclusões do sistema dedutivo que ela determina4.

Charles Ramond discorda da interpretação de Gueroult, propondo, ao invés disso, que a doutrina das essências de Spinoza visa, desde a Parte I, a uma reformulação da definição tradicional, ao projetar um modelo matemático sobre os entes físicos e reais (Ramond, 1995, pp. 181-188). Por meio dessa reformulação, tratar-se-ia de garantir que a noção de essência não seja explicada por um modelo ontológico que inclua a noção de transcendência (nem ao menos a transcendência da essência com relação à coisa de que ela é a essência). Ou seja, a imanência da essência à coisa seria a expressão do racionalismo radical de Spinoza, que não admitiria nenhuma distância obscura entre elas. Ao contrário da interpretação de Gueroult, porém, a interpretação de Ramond não explica a razão pela qual a definição de essência só aparece (e, como veremos, só pode aparecer) no começo da Parte II da Ética, e não antes.

Se, no entanto, mantivermos a interpretação de Ramond, complementando-a com uma hipótese adicional, podemos remediar essa sua limitação. Essa hipótese pode ser formulada da seguinte forma: os fundamentos para a reformulação explícita da definição tradicional de essência só podem ser formulados após a realização das provas 1 - de que todos os possíveis são necessariamente produzidos por Deus, e 2 - de que eles o são exatamente na ordem em que se seguem uns dos outros. Ora, essas provas só encontram suas conclusões cabais no final da Parte I, onde se mostra a equivalência entre essência e potência divinas – e, portanto, entre a essência e a potência de todas as coisas que se seguem de Deus (não nos esqueçamos de que, para Spinoza, a própria potência de Deus (E1p34) e das coisas por ele produzidas (E3p7) é equivalente à sua essência e (no caso de Deus) à sua existência (E1p11)). Isso não significa, obviamente, afirmar que a essência das coisas finitas implica sua existência (E1a7), mas apenas sustentar a tese mais modesta de que a existência das coisas finitas tem, ela também, um tipo de necessidade – o qual, no entanto, não se explica apenas por sua essência.

Ou seja, E2d2 seria de alguma forma uma conclusão derivada do movimento demonstrativo da Parte I: é só a partir do momento em que a necessidade própria das coisas finitas, característica do nexo infinito das causas finitas, foi inteiramente explicada, no final da Parte I, que se pode, no começo da Parte II, formular uma definição geral de essência, corrigindo assim sua compreensão tradicional. Mas desde a Parte I as deduções da Ética usam apenas o núcleo verdadeiro da definição de essência – embora isso não fosse então claro para os leitores que ainda não tinham deixado para trás seus preconceitos metafísicos herdados da tradição aristotélica-cartesiana –, o qual é finalmente explicitado em E2d2. Torna-se então possível caracterizar as essências por uma propriedade – um certo tipo de necessidade – que, à primeira vista, valeria apenas para a essência de Deus5, estendendo-a também para a essência de todos os demais entes. Note-se, a esse respeito, que E2d2 propõe uma equivalência entre a essência e a coisa (res) da qual ela é uma essência – ou seja, o uso do termo vago “coisa” mostra justamente que o que é definido vale tanto para as “coisas” infinitas quanto para as finitas, para as eternas e para as temporais. Essa propriedade, comum a toda essência, é a propriedade que a essência tem de supor a existência da coisa da qual ela é a essência – embora uma distinção importante ainda seja mantida entre o caso de Deus e o de seus modos, a saber: no caso dos modos, em particular dos modos finitos, é a necessidade das ações de Deus, expressa no nexo infinito das coisas finitas, e não a mera essência da coisa, o que garante a equivalência entre essência e existência. Deixando-se de lado, no entanto, essa distinção, vemos que o que parecia ser um caso excepcional – Deus – revelase, agora, como a regra geral: para todas as essências, elas são inconcebíveis sem a coisa de que são as essências. Afirmar que só existe um único mundo logicamente possível é outra forma de dizer que a série das essências e a série das existências coincidem (embora a ordem do intelecto e a ordem da imaginação sejam distintas, na medida em que são representações incompatíveis da natureza dessas séries). É justamente da sua separação pelo conhecimento inadequado do primeiro gênero que surge a imaginação do tempo.

Ao contrário do que parecia inicialmente, portanto, o lugar sistemático da Definição de essência nos ajuda a eliminar, ao menos em parte, seu caráter dogmático e sua obscuridade. Mas ainda restam pontos obscuros, como, por exemplo: se há uma equivalência necessária – ainda que com fundamentos diversos – entre essência e existência tanto no caso de Deus quanto no caso das coisas finitas, em que medida tais fundamentos distintos modificam o sentido mesmo da equivalência proposta em cada um dos dois casos? Em outras palavras, se a inseparabilidade entre a essência e a existência de Deus é absolutamente necessária, enquanto a inseparabilidade entre a essência e a existência das coisas por ele produzidas é derivadamente necessária (na medida mesma em que se segue da existência de Deus), então se trataria ainda assim do mesmo tipo de relação? Responder essa questão nos ajudará a entender pontos difíceis da doutrina das essências da Ética, tais como: em que consiste a relação entre existência temporal e eternidade das coisas finitas? Qual é o sentido de afirmar que nós, coisas finitas, podemos “passar” para a eternidade, ou que podemos ter uma parte “maior” ou “menor” de eternidade da mente? Em suma, como o conceito de transição do tempo para a eternidade, requerido especialmente pela Parte V da Ética, poderia ser aplicado quando o termo final dessa ação está fora do tempo e não pode, pois, aparentemente, nem ser o ponto final de um percurso temporal qualquer nem ser aumentado ou diminuído, na medida mesmo em que é dado eternamente tal como é?

2. A série C de McTaggart e a “série das coisas fixas e eternas” de Spinoza

Para dar conta dessas implicações obscuras da teoria das essências de Spinoza, será necessário, pois, elucidar alguns elementos de sua teoria do tempo, da duração e da eternidade, uma vez que é a relação de instanciação do eterno no temporal que está envolvida nessas dificuldades. Veremos que há dois sentidos de atualidade que são unificados justamente por E2d2. Vimos acima que McTaggart declara, no preâmbulo de “A irrealidade do tempo”, sua aliança filosófica com Spinoza (via Hegel) no que diz respeito à irrealidade do tempo. Segundo McTaggart, o tempo é uma realidade subjetiva, ou seja, ele não existe independentemente das percepções de uma mente6. Sendo assim, a articulação do domínio temporal ao eterno, isto é, a uma acepção de eternidade que “não pode ser explicada pela duração ou pelo tempo, ainda que se conceba a duração carecer de princípio e fim” (E1d8), envolve o contraste entre uma mera aparência subjetiva e a verdadeira estrutura objetiva da realidade.

Como o texto “A irrealidade do tempo” envolve muitos passos argumentativos, nem sempre inteiramente desprovidos de dificuldades interpretativas, limitar-nos-emos a elencar apenas o mínimo necessário para tentar eliminar as dificuldades assinaladas acima contidas na definição spinozana de essência. McTaggart distingue duas maneiras de representar o tempo: o que ele chama de série A figura cada posição no tempo a partir de sua distinção em termos de passado, presente e futuro; a série B, por sua vez, distingue as posições temporais em termos de anterior e posterior. Como indica o título do artigo, McTaggart pretende provar que o tempo não existe. Para tanto, ele utiliza duas premissas: I - sem a série A, não é possível dar conta da existência do tempo (e, portanto, da série B); II - a série A engendra contradições insuperáveis. Daí se segue a conclusão: III - logo, o tempo não existe. A primeira premissa desse argumento, por sua vez, é provada assim: 1 - a passagem do tempo implica a existência de mudanças nas coisas, e vice-versa (e isso porque um universo no qual todas as coisas permanecessem inalteradas seria, por isso mesmo, um universo atemporal); 2 - considerados em si mesmos, os eventos figurados pela série B são imutáveis: se o evento N sucede ao evento M, então M e N existirão sempre tais como são (nenhum deles pode deixar de existir nem se transformar em outro evento distinto de si mesmo – nas palavras de McTaggart, “Se jamais N veio antes de O e depois de M, ele sempre será, e sempre foi, antes de O e depois de M” (ibidem, p. 459)); 3 - logo, a mudança não pode ser uma das características dos próprios eventos. A conclusão de McTaggart é que “há somente uma classe de tais características – a saber, a determinação do evento em questão em termos da série A” (ibidem, p. 460). Ou seja, o que muda, e apenas o que muda, é o fato de os eventos serem passados, presentes ou futuros. A série B, portanto, só pode existir se a série A existir, pois o sentido de anterior e de posterior depende da ideia de passado, presente e futuro7.

Daí não se segue, diz McTaggart, que, se as determinações da série A forem subtraídas, não haveria mais qualquer série: existiria ainda o que ele chama de série C, isto é, “a série de relações entre si permanentes dessas realidades que, no tempo, são eventos” (ibidem, p. 461). A série C não envolve tempo nem mudança, mas apenas ordenação. Na verdade, a série C não parece8 envolver nem mesmo a direcionalidade do percurso de seus elementos: de seu ponto de vista, a ordem M, N, O, P é tão legítima quanto a ordem P, O, N, M. A série A, ao contrário, deve conter em sua estrutura a direcionalidade inerente à ordenação de seus elementos: se uma, e apenas uma, das posições na série C for caracterizada como o presente, então “essa característica da presentidade deve passar ao longo da série de tal modo que todas as posições de um lado do presente tenham sido presentes, e todas as posições do outro lado dela serão presentes” (ibidem, p. 463)9. O que passa com o tempo é a propriedade de “ser presente”, deslocando-se continuamente ao longo da série C e dando origem, assim, à série B.

Dado esse resumo das teses de McTaggart sobre o tempo, podemos inferir que, para ele, a série C é a que representa mais propriamente a natureza das essências eternas na filosofia de Spinoza, justamente na medida em que, nela, a ordenação das essências se dá fora do tempo. De fato, é esse modelo que parece melhor explicar por que, em E1p33e2, Spinoza afirma que, no eterno, “não há quando, antes nem depois” [in æterno non detur quando, ante, nec post] – ou seja, não há série A e, a fortiori, não há série B. Não examinaremos aqui como o argumento de McTaggart prova sua premissa 2 e mostra como a conclusão se segue das premissas; voltemos a Spinoza, uma vez que, para o que nos interessa, já temos elementos suficientes para elucidar suas teses a partir desse conjunto de conceitos temporais. Trata-se agora de investigar se os conceitos de McTaggart sobre o tempo são adequados à teoria spinozana.

No Tratado da emenda do intelecto, Spinoza afirma que a ciência precisa partir “de alguma essência particular afirmativa”, para dela deduzir “a série das causas, de um ente real para outro ente real”. Essa série, esclarece ele a seguir, não é a “série das coisas singulares mutáveis, mas exclusivamente a série das coisas fixas e eternas [seriem rerum fixarum, æternarumque]” (Spinoza, 2015b, p. 89; G II, 388). Ora, a série eterna das causas apresenta uma direcionalidade única – e um dos principais erros cometidos pelos filósofios e pelo senso comum, não se cansa de repetir Spinoza, é inverter a ordem causal, tomando os efeitos por causas e vice-versa. Se a teoria do tempo de Spinoza fosse descrita nos termos de McTaggart, seria necessário dar conta de como ela preserva a unidirecionalidade da ordenação das “coisas fixas e eternas”, o que pareceria, à primeira vista, ser excluído pela série C, pois, segundo McTaggart, “uma série que não é temporal não tem uma direção por si própria [of its own], embora tenha uma ordem” (McTtagart, 1908, p. 462). Ou seja, a unidirecionalidade da série parece ser tomada, por McTaggart, como uma propriedade meramente subjetiva daqueles que a contemplam10, o que claramente não é o caso na teoria de Spinoza. Com efeito, sem a ordem lógica que parte do fundamento para o consequente, a mera sucessão imaginativa da duração não pode explicar, segundo Spinoza, a assimetria da ordem causal (eu posso imaginar indiferentemente que Y se segue de X ou que X se segue de Y, e é só a ordem do intelecto que poderá determinar a unidirecionalidade dessa relação). Ora, essa ordem unidirecional parece ser dada apenas pelas séries A ou B, que figuram as coisas ordenadas segundo um “antes” e um “depois”, e não pela série C.

Essa impressão inicial sobre a insuficiência da série C é, no entanto, amenizada no final do artigo de McTaggart. Em sua última página, são elencadas algumas perguntas que ainda deverão permanecer em aberto naquele passo de sua investigação, mas que deixam vislumbrar, em algumas das alternativas que elas articulam, uma forma de atribuir unidirecionalidade à série C. As duas questões relevantes neste contexto são as seguintes:

Se há algo como a série C, as posições nela são simplesmente fatos últimos ou são determinadas pelas quantidades variadas, nos objetos que ocupam aquelas posições, de alguma qualidade que é comum a todas elas? E, se for assim, o que é essa qualidade, e é uma maior quantidade dela que determina que as coisas a aparecer como posteriores, e uma quantidade menor que as determina a aparecer como anteriores, ou é o contrário que é verdadeiro? (McTaggart, 1908, p. 474)

Dependendo das respostas escolhidas, McTaggart sugere que poderia haver, na representação do tempo pela série A, algo de verdadeiro, na medida em que ela expressa, ainda que inadequadamente, a série C11. Como essas questões não são respondidas no artigo, deveremos procurar suas respostas em outros lugares.

Para tanto, recorramos à interpretação da teoria spinozana do tempo elaborada por um outro comentador da primeira metade do século XX, Harold F. Hallett, especialmente tal como ela aparece em seu livro Ӕternitas. A Spinozistic Study. Hallett escreve esse livro no mesmo contexto cultural do qual faz parte o artigo de McTaggart. Mas, além de compartilhar com esse último teses substantivas sobre a relação entre tempo e eternidade12, uma vantagem especial do exame das teses de Hallett no presente contexto é que ele as usa diretamente para formular uma interpretação da filosofia de Spinoza, como indica o título de seu livro.

Sem se referir explicitamente às questões mencionadas acima, que encerram o artigo “A irrealidade do tempo”, Hallett aceita que é uma certa “qualidade” presente na série C13 que determina que as coisas apareçam como anteriores e posteriores. De fato, segundo ele, a duração, por si só, não pode explicar a natureza do tempo, uma vez que ela não fornece o fundamento para sua irreversibilidade. Sendo uma ordenação serial de elementos mutuamente exclusivos, qualquer um dos pontos de uma série temporal é equivalente a qualquer outro – nesse sentido, ela é “neutra” quanto à direcionalidade14. É apenas a ordem inclusiva do intelecto, a qual conecta os elementos da série por implicação lógica, que, segundo Hallett, permite explicar a produtividade do real, partindo do fundamento e chegando ao fundado:

a duração se transforma em uma ordem real [a real order] somente na medida em que [in the degree in which] transcende o tempo por sua dependência da qualidade. Só um todo relativo pode durar, e só a duração de um todo relativo é irreversível. Ela escapa da neutralidade como expressão da ordem sistemática (Hallett, 1930, p. 33).

Nesse trecho, identificamos o que poderia parecer uma primeira divergência com McTaggart, na medida em que a série A é dita se “transformar” em algo “real” ao ser associada à série C. Ou seja, ao invés de concluir pela irrealidade do tempo, tal como McTaggart, Hallett parece lhe conceder uma realidade que é superior ao mero “reflexo” obscuro da verdade que McTaggart reconhece nele. Para além dessa divergência, é enunciada nesse trecho uma concordância mais profunda com McTaggart: para ambos os comentadores, é a ideia hegeliana de uma verdadeira totalidade que é suposta por eles ao proporem a existência de uma dependência entre a direcionalidade da série A e a “ordem de inclusão” (Hallett, 1930, p. 32) da série C. A conexão entre realidade e totalidade mostra, finalmente, que a oposição inicial mencionada acima entre os dois autores sobre o estatuto irreal do tempo é apenas aparente, pois Hallett de fato se alinha interamente à interpretação de McTaggart – ele chega a usar, em uma passagem de seu texto, a palavra “transição” entre aspas, como a indicar que ela não deve ser tomada literalmente:

É a distinção entre a transição irreal ou temporal e a ‘transição’ real ou nisus lógico (o qual na exposição analítica aparece como transição falsa [feigned]) que torna clara a natureza essencial da acquiescentia e a beatitude, e sua relação com a alegria. A transição temporal é irreal porque é uma contradição em termos... (ibidem, p. 57).

Segundo essa perspectiva hegeliana sobre a realidade como realidade total, a representação imaginativa do tempo é o reino da separação abstrata. Apenas as séries representadas pelo intelecto puro (o vocabulário aqui é spinozano, e não hegeliano) figuram os eventos singulares como modificações de uma substância única, modificações essas que não se distinguem nem da própria substância nem das suas outras modificações por meio de distinções reais. As relações substância-modo e modo-modo são, do ponto de vista do intelecto, ou seja, da verdade, distinções modais, enquanto as relações representadas pela imaginação figuram as coisas finitas como se fossem substâncias finitas realmente independentes umas das outras. “Para o Intellectus”, conclui Hallett, “o processo no tempo da causa para o efeito [...] dá lugar à sucessão [procession] de fundamentos e consequentes na eternidade” (idem).

A lacuna deixada na nossa citação dessa frase é significativa para avaliarmos a correção da interpretação que Hallett – e, por meio dele, McTaggart – oferece da doutrina de Spinoza. Essa lacuna é preenchida por uma qualificação da palavra “processo”, qualificação essa colocada entre parênteses: o processo em questão é “(a transição berkeleyana de ‘signo’ para ‘coisa significada’: uma descrição que Spinoza poderia, até este ponto, ter aceitado)”. Ou seja, a sucessão temporal limita-se a conexões contingentes entre signos e coisas, enquanto a série das coisas fixas e eternas apresenta as razões das conexões – e, portanto, sua necessidade. Ser é convertível com ser necessário, e a necessidade implica totalidade. “De acordo com Spinoza”, conclui Hallett, “a ordem real é a ordem lógica ou intelectual, a qual não é uma mera ordem temporal corrigida, mas procede em um plano diferente: não há correspondência ponto a ponto entre eventos no tempo e os estágios da ordem lógica” (Hallett, 1930, p. 31)15. Segundo Hallett, o passado e o futuro devem de alguma forma se tornar presentemente dados – justamente, como uma essência eterna16.

Dado esse complemento à teoria de McTaggart pela exposição do spinozismo de Hallett, podemos então examinar se a direcionalidade serial fornecida pelo fundamento, tal como elucidada pelo último, é suficiente para dar à série C a orientação da sucessão causal demandada pela teoria spinozana sobre a série “das coisas fixas e eternas”.

3. Spinoza contra McTaggart: as séries A e B’

Há duas dificuldades centrais na aplicação das categorias formuladas por McTaggart na filosofia de Spinoza. A primeira delas diz respeito à realidade das séries cujos elementos são relacionados pela causalidade transitiva. Como vimos acima, a “série das coisas fixas e eternas” é, segundo Spinoza, idêntica à “série das causas, de um ente real para outro ente real”17. Ou seja, não só a causalidade não é incompatível com a realidade eterna, mas, na verdade, ela a define. Lembremos, a esse respeito, que a Ética começa com a seguinte Definição: “Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a existência, ou seja, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão existente” (E1d1) – o que é a definição mesma de eternidade (“Por eternidade entendo a própria existência enquanto concebida seguir necessariamente da só definição da coisa eterna” (E1d8)). A Ética é escrita sob o signo da noção de causalidade real, a qual parece, portanto, ser irredutível a uma outra relação qualitativamente distinta (por exemplo, a relação entre fundamento e consequência). Sendo assim, a série C – tal como formulada por McTaggart e reformulada por Hallett – não parece poder figurar adequadamente o conceito spinozano de eternidade.

É verdade que McTaggart aceita a realidade da relação causal, ainda que ela deva ser expressa em termos que se distanciam de nossa compreensão usual de causalidade – e também, note-se, da de Spinoza. A aceitação da realidade da relação causal por McTaggart fica clara, por exemplo, em um artigo publicado na mesma revista Mind alguns anos depois de “A irrealidade do tempo”, intitulado “O significado de causalidade” [The Meaning of Causality] (McTaggart, 1915). Uma das caraterísticas menos intuitivas da noção de causalidade aí exposta é justamente aquela que nega que a anterioridade temporal implique a identificação do elemento antecedente no tempo como a causa do elemento consequente, justamente porque isso eliminaria, entre outras coisas, a possibilidade de causação entre coisas que fossem tais que pelo menos uma delas fosse eterna. As relações causais, afirma McTaggart, conectam dois termos, mas não é possível identificar um como causa e o outro como efeito. Uma tal identificação seria, assim, uma espécie de façon de parler pragmaticamente útil, por sua brevidade, mas, no rigor metafísico, inadequada18.

Essa visão sobre a natureza da causalidade, embora possa ser adequada para descrever partes da filosofia de Leibniz19, não se aplica sem problemas à de Spinoza. Para o que nos interessa investigar aqui, a saber, a série das coisas eternas e sua relação com as coisas existentes na duração, bastaria citar E2p7 (“A ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas”), a qual tem uma demonstração universal que vale, pois, tanto para as coisas eternas quanto para as temporais (“É patente pelo Ax. 4 da parte I. Pois a ideia de qualquer causado depende do conhecimento da causa de que ele é efeito”). Para a representação adequada dessas séries causais, é preciso identificar quais elementos da série são as verdadeiras causas e quais são seus efeitos (o que a imaginação não é capaz de discriminar com a mesma acuidade da razão e da intuição intelectual). Ora, como vimos, a identificação de quais itens da realidade são causas e quais são efeitos não só é possível na metafísica de Spinoza, como é ela que lhe permite caracterizar a realidade mais perfeita – Deus. Deus é composto pela nota característica de ser “causa de si” e causa de tudo o que existe “em si”, inclusive causa da realidade (da essência e da existência) das coisas finitas. Portanto, se a série C de McTaggart é compatível com a existência de relações causais, mas não com a identificação dos seus relata como causas ou como efeitos, então sua série C não é uma representação adequada da eternidade e do tempo tais como eles são concebidos pela filosofia de Spinoza.

A interpretação de Hallett sobre a causalidade parece, à primeira vista, adequar-se melhor à filosofia de Spinoza. Como vimos, o processo temporal que vai da causa para o efeito é substituído, segundo Hallett, pela representação adequada do intelecto puro, a qual relaciona os elementos da série C segundo uma espécie de sucessão lógica – isto é, eterna – que vai dos fundamentos às suas consequências. Embora a relação causal seja, como no caso de McTaggart, apenas uma manifestação mais ou menos imperfeita da ordem eminentemente real, Hallett distingue (com Spinoza) dois sentidos de causalidade: a transitiva e a imanente. É apenas a primeira, segundo ele, que está descartada, por supor a exterioridade dos momentos no tempo20. Com essa distinção, portanto, parece ter sido preservada uma ordem causal genuína, na qual os elementos da série podem ser identificados como causa e efeito. Essa primeira impressão, no entanto, não é suficiente para garantir a aplicabilidade das teses de Hallett à filosofia de Spinoza, pois esse último deve manter a realidade de ambas as formas de causalidade, a imanente e a transitiva, sem o que, como veremos na conclusão, não seria possível explicar a passagem do registro temporal para a eternidade. Se as causas transitivas não fossem reais, E1p28 não poderia ser formulada como parte do sistema metafísico da Ética. De fato, lemos aí:

Qualquer singular, ou seja, qualquer coisa que é finita e tem existência determinada, não pode existir nem ser determinado a operar a não ser que seja determinado a existir e operar por outra causa, que também seja finita e tenha existência determinada, e por sua vez esta causa também não pode existir nem ser determinada a operar a não ser que seja determinada a existir e operar por outra que também seja finita e tenha existência determinada, e assim ao infinito.

É porque as séries das causas transitivas são reais que é possível discriminar, em E2p45e, dois sentidos igualmente válidos de causalidade: a determinação das coisas singulares por outras coisas singulares e “a força pela qual cada qual persevera no existir”, a qual se segue imanentemente “da necessidade eterna da natureza de Deus”.

Há uma segunda dificuldade na aplicação da série C de McTaggart (e, sob esse mesmo aspecto, da de Hallett) à teoria spinozana sobre o tempo e a eternidade. Essa nova dificuldade está ligada ao fato de que, para Spinoza, não só a série das causas transitivas é uma série de coisas reais, mas sua representação imaginativa na duração não é ela mesma caracterizada como irreal. Sendo assim, a série das ideias imaginativas não é contraditória, pois nada que é real (ainda que com um grau menor de realidade) pode ser contraditório. Para Spinoza, a série A é apenas disparatada, sem ordem lógica, formada por um conjunto que, por aparecer para as mentes finitas como uma coleção de fatos brutos ou de contingências não conectadas por quaisquer relações lógicas, justamente por isso não envolve contradições entre seus elementos nem no interior de cada um deles. E a imaginação é real não apenas porque (como para McTaggart) ela expressaria inadequadamente certas propriedades da série das coisas eternas, mas porque o “tempo ou duração” (E1d8) não constituem uma ordem do ser realmente distinta do ser de Deus, o ente sumamente real21. As coisas finitas são modos existentes de Deus, ao qual elas são imanentes, e suas imaginações são fenômenos reais.

De fato, Spinoza não chega nem mesmo a negar que a série A seja contraditória, pois ele nem ao menos pode considerar a possibilidade aventada por McTaggart de que haveria uma contradição em se atribuir ao mesmo evento as qualidades de ser passado, presente e futuro. A posição de Spinoza sobre esse ponto, caso ele considerasse uma tal possibilidade, seria provavelmente parecida com a objeção que Richard Sorabji dirigiu contra McTaggart em seu livro Tempo, criação e contínuo [Time, Creation and the Continuum]. Segundo McTaggart, a contradição inerente à série A não seria eliminada se disséssemos que um dado evento era passado no passado, presente no presente e futuro no futuro, uma vez que os predicados de “ser passado”, “ser presente” e “ser futuro” teriam de ser aplicados a cada uma dessas novas instâncias, gerando assim um círculo vicioso nessa tentativa de refutação de seu argumento (McTaggart, 1908, p. 468). A objeção de Sorabji é a de que é possível evitar essa reiteração da suposta contradição assinalada por McTaggart por meio do uso de uma linguagem estática de datas – por exemplo, “presente em 2021”, “passado em 2020” e “futuro em 2022”. Como não se trata, nesse caso, de definir “passado”, “presente” e “futuro”, mas apenas de eliminar a suposta contradição da série temporal mediante uma caracterização dessas qualidades temporais (Sorabji, 1983, pp. 68-69), a linguagem estática dos eventos não constituiria, ao contrário do que propõe McTaggart, uma petição de princípio22.

Denominemos essa representação estática dos eventos por meio de datas de série B’. Esse nome se explica porque ela se parece mais com a série B do que com as séries A e C: porque a série B descreve os eventos temporais segundo o “antes” e o “depois”, ela não se exprime diretamente por meio de um dêitico que situe o enunciador da série no momento presente (tal como na série A, a qual seria mais próxima da imaginação segundo ela é descrita por Spinoza)23 nem, evidentemente, de uma figuração eterna de realidades que, apenas no tempo, são eventos (tal como na série C). As essências são, para Spinoza, eventos eternos24, encadeados entre si segundo uma ordem causal real. Além disso, a duração não é, segundo ele, uma mera aparência: é apenas a medida da duração, ou seja, o tempo, que é um ente de imaginação desprovido de realidade. A noção spinozana de “essência atual” refere-se, justamente, às essências que existem na duração (E3p7).

Se aceitarmos a introdução dessa nova série B’ para descrever a teoria do tempo e da eternidade de Spinoza, veremos que a relação entre tempo e eternidade pode ser reduzida à contraposição (e conjugação) entre as séries A e B’, dependendo se o tempo for figurado, por assim dizer, a partir “de dentro” do fluxo temporal ou “de fora” dele. Na série A, o “presente que passa” é identificado à perspectiva de uma individualidade capaz de representar indexicalmente o tempo desde seu ponto de vista interno. Na série B’, o nexo causal é representado sob o aspecto da eternidade, ou seja, tal como ele existe no intelecto infinito de Deus, fora de qualquer perspectiva particular, como um presente eterno, cujos elementos podem ser identificados por meio de datas. É, portanto, a série B’ que descreve a estrutura última da realidade, embora a série A também seja real a sua maneira – isto é, como uma realidade menos perfeita do que a da eternidade25.

Conclusão: passagem para a eternidade

A comparação das teses de Spinoza com as de McTaggart e Hallett conduziunos a uma dupla especificação de sua teoria em relação à interpretação de seus comentadores: em primeiro lugar, a ordem das coisas eternas é uma série causal que comporta uma dupla determinação, a imanente e a transitiva; em segundo lugar, a duração temporal não é afirmada por Spinoza ser irreal, embora ela seja menos real do que as coisas eternas. Sem essas especificações, alguns elementos importantes do pensamento de Spinoza não poderiam ser explicados. Detenhamo-nos em apenas um deles, o que explica a passagem da duração para a eternidade.

Na verdade, o termo “passagem” é um tanto inexato, pois as séries A, B, B’ e C são descrições de uma só e mesma realidade. Nem McTaggart, nem Hallett, tampouco Spinoza pretendem se referir a dois mundos distintos com as expressões “série das coisas singulares mutáveis” e “série das coisas fixas e eternas”. Trata-se de um único mundo, deste mundo no qual habitamos, visto a partir de duas perspectivas diferentes. Todas essas séries são, portanto, uma só realidade: assim como corpo e mente “são uma só e a mesma coisa, expressa todavia de duas maneiras”, formando “uma só e a mesma ordem, ou seja, uma só e a mesma conexão de causas” (E2p7e), a série B’ é a representação das essências das coisas “sub species ætaernitatis”, enquanto a série A é essa mesma série B’ na medida em que é a representação das existências das coisas “sub species durationis”.

Como vimos acima, a coincidência entre essência e existência, que no caso de Deus ocorre por uma necessidade interna à essência divina, é válida também para as coisas finitas, não pela sua essência, mas pelo nexo infinito das causas que constitui o único mundo logicamente possível. Todas as essências possíveis existiram, existem ou existirão, e sua existência ocorrerá no tempo segundo a ordem representada pela série B’, embora cada um dos modos finitos perceba essa última a partir de seu ponto de vista parcial – ou seja, como constituindo uma série A26. É por isso que, do ponto de vista do intelecto infinito de Deus, as ideias inadequadas e confusas da imaginação “se sucedem com a mesma necessidade que as ideias adequadas, ou seja, claras e distintas” (E2p36). As séries de ideias inadequadas, mutiladas e confusas presentes em cada mente finita são representadas, do ponto de vista de Deus, de forma adequada. Quando, em E5p29e, for afirmado que há duas maneiras de conceber as coisas como atuais, a saber: enquanto as concebemos existir em um tempo e um lugar certos e enquanto as concebemos estar contidas em Deus (ou seja, enquanto são eternas), esses dois sentidos de atualidade são unificados precisamente por E2d2, na medida em que a essência das coisas e sua existência na duração não constituem dois mundos distintos, mas uma só e mesma coisa concebida de duas maneiras diferentes (as implicações dessa coincidência ou dupla implicação entre essência e existência serão desenvolvidas em E2p8).

É porque as duas séries, A e B’, são reais que pode haver uma transição para a eternidade. Assim, quando Spinoza anuncia, no final de E5p20e: “Portanto é chegado o tempo” [tempus igitur jam est] de passar [transeam] àquelas coisas que pertencem à duração da Mente sem relação ao Corpo”, o que é importante aí é menos o último elemento da frase, no qual a consideração de uma mente sem corpo supostamente contradiz o paralelismo enunciado em E2p7, do que seu primeiro elemento, no qual Spinoza se volta metalinguisticamente a seu próprio texto e enuncia a transição de sua teoria para um outro tópico, tópico esse que é, ele mesmo, o modo como se dá a transição para a eternidade. Que essa transição se dê imediatamente, como uma espécie de “salto” na eternidade apenas indica que se trata de um conhecimento intuitivo. Ou seja, o movimento em direção à beatitude é o movimento mesmo da teoria a ser exposta na sequência, o qual envolve, em seu instante crucial, um ato de intuição intelectual. Paradoxalmente, o movimento temporal do ato de leitura da Parte V da Ética é aquele mesmo que deixa para trás todo movimento e nos instala no ponto de vista da eternidade. Dessa perspectiva, ser livre é idêntico a conhecer racionalmente, e o conhecimento verdadeiro é aquele mesmo exposto até esse ponto da Ética. É chegado “o tempo”, diz o texto, e é chegado “agora” o tempo de fazer que a eternidade irrompa do interior da temporalidade – ou, nos termos da série B’, que o tempo seja ele mesmo figurado sob o aspecto da eternidade. Ser e ser concebido, ideia e coisa, são idênticos segundo o parmenidianismo de Spinoza. Conceber-se como eterno é uma condição necessária e suficiente para ser eterno, de tal maneira que a eternidade reside no interior do próprio tempo, na medida em que esse último não é mais concebido como uma sucessão de pontos atômicos, mas como um contínuo inteiramente dado a si mesmo.

Podemos tirar do que foi exposto a conclusão de que a dependência das essências em relação às coisas de que elas são as essências é uma relação que se limita às modificações que, nos indivíduos, são causadas apenas por suas essências individuais – só isso é, a rigor, real e positivo. Já os acontecimentos figurados pela série A são derivados daquilo que, nas coisas, participa de seu não ser, o que inclui todas as modificações que têm origem em causas externas aos indivíduos que têm essas modificações. Ao contrário de Leibniz, segundo o qual as coisas existentes instanciam exatamente suas essências – de tal maneira que tudo o que acontece a um indivíduo no tempo faz parte de sua essência eterna, até os mínimos detalhes, não subsistindo, portanto, nenhuma diferença entre essência individual e seus supostos “acidentes”27 –, para Spinoza, uma essência não pode ser nem ser concebida sem a existência da coisa da qual ela é a essência, embora possa ser e ser concebida sem os acidentes da coisa da qual ela é a essência. Expliquemo-nos melhor: podemos certamente, para Leibniz, distinguir os predicados que descrevem uma essência de seus predicados acidentais a partir da distinção entre predicados permanentes (por exemplo, “ser um animal racional”) e predicados esporádicos (por exemplo, “ser afetado por uma paixão triste hoje”). Mas não podemos distinguir essência e acidentes a partir da oposição entre o necessário e o contingente28: faz parte da essência de x, inscrita em sua natureza desde sempre, o fato de que x seria afetado por uma paixão triste hoje. O ponto em que Spinoza se afasta de Leibniz diz respeito à noção de inscrição29 presente na teoria da predicação desse último. De fato, para Spinoza, nem tudo o que é atribuível a um ente é um predicado constitutivo de seu ser, pois as modificações dos modos de Deus explicadas por causas externas são predicáveis verdadeiramente deles sem fazer parte, por isso, de sua essência individual. Em outras palavras, Spinoza, ao contrário de Leibniz, reconhece que todas as predicações verdadeiras são necessariamente verdadeiras, mas não explica a necessidade das predicações somente a partir do conceito individual de cada coisa, e sim, externamente, a partir do nexo infinito de causas. Em suma, a diferença reside na tese de que, para Leibniz, indivíduos finitos são substâncias individuais, o que é negado por Spinoza30.

Quando, na “Explicação” que Spinoza sentiu necessidade de introduzir após a Definição de eternidade (E1d8), ele diz que, porque essência e existência são ambas percebidas como verdades eternas, elas não podem ser explicadas “pela duração ou pelo tempo” [per durationem, aut tempus], mesmo se essa duração fosse concebida “sem começo nem fim”, o que ele quer excluir é a duração figurada pela série A. Ou seja, o que ele quer excluir é a confusão entre a figuração eterna do tempo dada pela série B’ e a figuração temporal do tempo dada pela série A: enquanto essa última representa o tempo como uma sequência infinita de presentes, a primeira o representa como um todo inteiramente presente em cada uma de suas partes. Assim, se é verdade que, em E3p33e2, Spinoza afirma que, no eterno, “não há quando, antes nem depois”, não devemos nos esquecer de que esse Escólio se segue de uma Proposição que afirma que “As coisas não puderam ser produzidas [produci potuerunt] por Deus de nenhuma outra maneira e em nenhuma outra ordem do que aquela em que foram produzidas [productæ sunt]”. O uso da forma verbal no passado indica bem que a “maneira” afeta a “ordem” precisamente no sentido de uma unidirecionalidade sucessiva e causal – ou seja, de uma ordem temporal figurada do ponto de vista da eternidade pela série B’. O “quando, antes e depois” referemse, pois, apenas à sucessão de presentes figurados pela série A por meio do que Dummett chama de “token-reflexive expressions” (Dummett, 1960, p. 499), isto é, expressões cujo sentido depende da referência que elas fazem a si mesmas e a seu ato presente de enunciação. Em outros termos, a série A é, para Spinoza, idêntica às experiências subjetivas da memória e da imaginação, de modo que criticar a representação do mundo dada pela série A é criticar as representações imaginativas do tempo. A série B’, sendo objeto de uma representação racional, é a única figuração objetiva do real, o que inclui a própria sucessão temporal, na medida em que ela faz parte do real.

Portanto, no contexto da interpretação da obra de Spinoza, a figuração da eternidade das essências a partir da série B’, e não da série C, parece ser o procedimento mais adequado, na medida em que ela preserva a ordem, a direcionalidade e a identificação das causas e dos efeitos. É a série B’ que nos permite entender mais claramente como Spinoza concebia o tipo de dependência das essências em relação à série das coisas existentes. Em suma, se entendermos que as séries A e B’ são “uma só e mesma série”, a equivalência entre “essência” e “coisa” presente na Definição de essência se torna clara: ela é “aquilo sem o que a coisa não pode ser nem ser concebida e, vice-versa, que sem a coisa não pode ser nem ser concebido” (E2d2).

  • 1
    As referências à Ética dadas entre parênteses ou nas notas de rodapé seguirão o seguinte formato: E4p35 = Parte IV, Proposição 35. Referências às Definições e aos Axiomas, Escólios, Corolários de cada uma das Partes e/ou Proposições assumirão a seguinte forma: o Escólio da Proposição 3, Parte II = E2p3e. Seguiremos, em boa parte das vezes, a tradução da Ética realizada pelo Grupo de Estudos Espinosanos (Spinoza, 2015a), coordenado por Marilena Chauí, com modificações pontuais, sempre que julgarmos necessário.
  • 2
    Isso não significa que E2d2 seja a única definição problemática da Ética; neste artigo, vamos nos limitar, no entanto, apenas a ela.
  • 3
    A interpretação de Gueroult introduz, ademais, uma outra dificuldade na leitura de E2d2, a saber: ela identifica três elementos distintos nessa Definição – e não dois ou quatro, como poderia sugerir sua forma lógica, que articula uma disjunção composta por duas conjunções. Esses três elementos seriam, segundo ele, os seguintes: 1 - aquilo que sem uma coisa não pode nem ser, nem ser concebido; 2 - aquilo pelo qual são dados necessariamente o conceito e o ser da coisa; e 3 - aquilo que, sem a coisa, não pode nem ser, nem ser concebido (ibidem, p. 27). Segundo Gueroult, Descartes, por exemplo, aceitaria o elemento 1 como parte de sua teoria das essências, mas não o 2 e o 3. Entretanto, essa nova dificuldade identificada na interpretação de Gueroult talvez se reduza a uma divisão sintática da frase sem consequências para a determinação do seu conteúdo.
  • 4
    Mais adiante no mesmo livro, Gueroult admite que a palavra “essência” tem dois sentidos distintos na Ética, mas ele parece confar que o contexto determina suficientemente em qual deles ela deve ser lida (ibidem, pp. 548-549).
  • 5
    A equivalência entre essência e existência no caso de Deus, estabelecida em E1p11, era reconhecida, pela tradição filosófico-teológica contra a qual Spinoza se voltava, como uma exceção claramente inteligível à regra que as separava.
  • 6
    “Se, de fato, a série A fosse algo de puramente subjetivo, não haveria dificuldades. Poderíamos dizer que M era passado para X e presente para Y, assim como poderíamos dizer que ele era agradável para X e doloroso para Y. Mas estamos considerando tentativas de tomar o tempo como real, como algo que pertence à realidade ela mesma, e não somente a nossas crenças sobre ela, e isso só pode ser assim se a série A também se aplicar à própria realidade. E, se ela o faz, então em cada momento M deve ser presente ou passado. Ele não pode ser ambos” (McTaggart, 1908, p. 472). Todos os textos citados neste artigo, com exceção dos de Spinoza, foram traduzidos por mim.
  • 7
    Segundo McTaggart, as propriedades de ser anterior e de ser posterior, que caracterizam a série B, são claramente determinações temporais; ora, sem a série A, não haveria mudanças e, sem mudanças, não haveria tempo. Logo, a série B pressupõe a série A (ibidem, p. 461).
  • 8
    Essa aparência inicial não é totalmente correta, como veremos mais adiante.
  • 9
    Como afirma Michael Dummett, a série A envolve “token-reflexive expressions” (Dummett, 1960).
  • 10
    “Uma série não-temporal, portanto, não tem nenhuma direção em si mesma [in itself], embora uma pessoa a considerando possa tomar os termos em uma direção ou em outra, de acordo com sua própria conveniência” (McTaggart, 1908, pp. 462-463).
  • 11
    “Fosse isso verdade seguir-se-á que, na nossa percepção dessas realidades como eventos no tempo, haverá alguma verdade tanto quanto algum erro. Através da forma enganadora do tempo, apreenderemos algumas de suas relações verdadeiras. Se dissermos que os eventos M e N são simultâneos, dizemos que eles ocupam a mesma posição na série temporal. E haverá alguma verdade nisso, pois as realidades, que percebemos como os eventos M e N, de fato ocupam a mesma posição em uma série, embora ela não seja uma série temporal” (McTaggart, 1908, p. 473).
  • 12
    No livro de Hallett aqui examinado, ele cita McTaggart em apenas uma ocasião, quando discute o modo como cada parte da Natura naturata “refete” ou “reproduz” sua totalidade, sempre em um grau de perfeição cada vez menor, de acordo com a subdivisão dessas partes em partes de partes etc. (Hallett, 1930, pp. 209-210). Os conceitos de McTaggart são usados por Hallett justamente para exprimir esse ponto (“Portanto, a κένωσις eterna dá nascimento ao tempo, e a imperfeição à transitoriedade; e, portanto, também para cada parte o todo é parcialmente transparente e parcialmente opaco; é parcialmente entendido e parcialmente imaginado; é parcialmente eterno e parcialmente na duração [durational], i.e. sempiterno” (ibidem, p. 211)).
  • 13
    Hallett não usa, em seu livro, as expressões “série A, B ou C”; as empregaremos aqui na medida em que suas teses estão servindo a uma elucidação da teoria do tempo de Spinoza, por meio das teses de McTaggart.
  • 14
    Há aqui um eco das teses de Leibniz sobre o espaço e o tempo expostas em sua correspondência com Clarke.
  • 15
    Deve-se notar que a interpretação de Hallett sobre a teoria spinozana é incompatível com a solução para o problema da contradição da série A proposta por Sorabji. De fato, como vimos acima, esse último propõe que a contradição é eliminada pela linguagem das datas. Segundo Hallett, ao se eliminar a referência ao passado, ao presente e ao futuro, substituindo-a por datas, caímos em outra contradição, pois, segundo ele, datas supõem termos dêiticos temporais: “se os fantasmas do passado e do futuro são resolutamente exorcizados do anterior e do posterior, do antes e do depois, nenhum tipo de datas absolutas em uma continuidade do tempo macroscópico pode permanecer” (Hallett, 1930, p. 30).
  • 16
    Daí por que ele deve criticar a ideia de passado puro defendida por Henri Bergson (ibidem, pp. 59-60).
  • 17
    McTaggart refere-se, em seu argumento, a eventos, enquanto Spinoza descreve os elementos de suas séries como “coisas”. Isso não afeta nossa comparação entre as teses dos dois filósofios, pois as “coisas” spinozanas são elas mesmas, em certo sentido, eventos – isto é, modificações ou afecções da substância única (e o fato de que, em seu texto, é possível intercambiar livremente as expressões “séries de coisas” e “série de causas” é mais um indício dessa assimilação dos entes modais a ações ou eventos). Além disso, como mostra Dummett, a formulação do argumento de McTaggart não é afetada se, ao invés de eventos, ela contivesse a referência a objetos (Dummett, 1960, p. 498).
  • 18
    “Decerto, estou falando aqui do uso filosófico. Na vida ordinária, deve-se sem dúvida dizer que um ato particular de beber álcool é a causa de um estado particular de embriaguez. Mas, filosoficamente, devemos dizer somente que o ato de beber e a embriaguez entraram em uma relação causal um com o outro [stood in a causal relation to one another], uma vez que eram substâncias existentes que entraram em uma relação de implicação [stood in a relation of implication]. Qual implicação, ou ainda, quais implicações elas podem ser, depende das várias características de cada uma” (McTaggart, 1915, p. 338).
  • 19
    No que diz respeito à causalidade no nível fenomênico, Leibniz admite que o vocabulário causal pode ser usado por razões pragmáticas, embora, metafisicamente falando, a rigor não exista causalidade entre as substâncias existentes no mundo (Monadologia, § 51; G VI, 615). O próprio Leibniz, no entanto, não se furta a discriminar causas de efeitos no nível das coisas em si mesmas, tal como no caso da criação do mundo por Deus e da produção de afecções internas pelas mônadas.
  • 20
    “Mas a tese de Spinoza é que toda causação genuína é imanente ou genética em sua natureza real, embora para as partialitas do ser finito ela possa parecer como transitiva e, portanto, como tendo duração (Hallett, 1930, p. 58).
  • 21
    Entre Deus e seus modos não vige uma distinção real nem uma distinção de razão, mas sim uma distinção modal.
  • 22
    Logo após anunciar seu objetivo de estudar a série das “coisas fixas e eternas”, o Tratado da emenda do intelecto é bruscamente interrompido no meio de uma frase, sem jamais vir a ser retomado pelo autor. Muitas explicações já foram dadas para essa interrupção, a mais famosa delas, talvez, formulada por Gilles Deleuze, segundo a qual o instrumento que faltava a Spinoza na época (e que só seria elaborado na Ética) é o conceito de noções comuns (Deleuze, 1968, p. 272). De fato, o texto interrompe-se justamente quando afirma ser preciso “estatuir [...] algo de comum [aliquid commune]” às “propriedades positivas” do pensamento, listadas mais acima, a partir do qual a “essência do pensamento” pudesse ser deduzida. Mas devemos notar que uma outra explicação para a interrupção abrupta do texto também é possível, a partir do que vimos até agora. De fato, a exigência de “algo de comum” é parafraseada, na frase seguinte, a qual encerra bruscamente o texto, como a busca por “algo que, uma vez dado, [faz com que] elas [as coisas] necessariamente sejam dadas, e que, uma vez suprimido, [faz com que] todas elas sejam eliminadas” (Spinoza, 2015b, p. 392). Ou seja, Spinoza esboça, nessa passagem, sua reelaboração da definição tradicional de essência, só formulada claramente na Ética. Portanto, talvez o que falte ao texto seja, justamente, uma nova definição de essência, na qual também as coisas sejam condições necessárias e suficientes de suas próprias essências, transformando, assim, a série C em uma espécie de série B, isto é, em uma “série das causas, de um ente real para outro ente real”. A partir daí, seria possível formular uma definição adequada da “essência do pensamento”.
  • 23
    Embora, como vimos, McTaggart afirme que a série B supõe a série A – o que, segundo Sorabji, não é o caso da linguagem estática de datas, aqui batizada de série B’.
  • 24
    A expressão “eventos eternos” é, no limite, um oxímoro, mas seu uso aqui pretende apenas indicar que, ao aplicarmos a representação estática dos eventos proposta por Sorabji às coisas finitas presentes na metafísica de Spinoza, devemos entender que tais “coisas” não são entes substanciais, mas processos. Ou seja, devemos manter em mente que, ao nos referirmos, do ponto de vista da eternidade, àquilo que, do ponto de vista temporal, designamos como eventos, estamos designando as mesmas coisas (eventos/processos). A passagem para a eternidade não introduz uma modificação na categoria ontológica das coisas finitas (por exemplo, não os transforma de eventos em objetos). Sobre o uso da palavra “evento” neste texto, cf. nota 17, acima.
  • 25
    Toda a Parte V da Ética é estruturada em torno da oposição entre esses dois graus de perfeição da realidade, o tempo e a eternidade.
  • 26
    “Passado e futuro se referem, como disse, antes às relações de seres ativos na duração [enduring active beings] com o tempo. Meu passado é o tempo no qual eu uma vez agi e vivi; meu futuro é o período no qual eu viverei e agirei; enquanto meu presente é a duração na qual apenas eu ajo, e a qual é, pois, o tempo que eu percebo, e no qual eu lembro, percebo e antecipo” (Hallett, 1930, pp. 25-26).
  • 27
    Cf. Discurso de metafísica, § 13 (G IV, pp. 437-438).
  • 28
    Ou, pelo menos, não podemos identificar a necessidade dos predicados essenciais como uma necessidade absoluta ou metafísica: ela é apenas hipotética e, nesse sentido, sua verdade depende do ato divino contingente que criou este mundo atual.
  • 29
    Lembremos que o objeto de E2d2 é o significado da relação “pertencer à essência de uma coisa”.
  • 30
    Como se sabe, Leibniz desenvolve, no Discurso de metafísica, uma série de implicações do conceito de substância individual, partindo da ideia geral de predicação para sua independência epistêmico-lógicoontológica e, daí, pela mediação do Princípio de Razão Suficiente, para a tese de que a substância deve ser o fundamento explicativo de todas as suas predicações verdadeiras. Ao negar a substancialidade às coisas finitas, Spinoza interrompe essa implicação no meio, recusando a independência ontológica – e, daí, a explicativa – aos modos (aliás, também aos modos infinitos).

Referências

  • DELEUZE, G. «Spinoza et le problème de l’expression». Paris: Les Éditions du Minuit, 1968.
  • DUMMETT, M. “A Defense of McTaggart’s Proof of the Unreality of Time”. The Philosophical Review, Vol. 69, Nr. 4, Oct. 1960, pp. 497-504.
  • GUEROULT, M. “Spinoza II: L’Âme”. Paris: Aubier-Montaigne, 1974.
  • HALLETT, H. F. “Ӕternitas. A Spinozistic Study”. Oxford: Clarendon Press, 1930.
  • LEIBNIZ, G. W. “Principes de la philosophie ou Monadologie». In: G. W. Leibniz. Die philosophischen Schriften, Vol. 6. Ed. por C. I. Gerhardt. Olms: Hildesheim, 1962.
  • LEIBNIZ, G. W. “Discours de métaphysique”. In: G. W. Leibniz. Die philosophischen Schriften, Vol. 4. Ed. por C. I. Gerhardt. Olms: Hildesheim, 1962.
  • McTAGGART, J. “The Unreality of Time”. Mind, New Series, Vol. 17, Nr. 68, 1908, pp. 457-474.
  • LEIBNIZ, G. W. “The Meaning of Causality”. Mind, New Series, Vol. 24, Nr. 93, 1915, pp. 326-344.
  • RAMOND, C. «Qualité et quantité dans la philosophie de Spinoza». Paris: PUF, 1995.
  • SORABJI, R. “Time, Creation and the Continuum: Theories in Antiquity and the Early Middle Ages”. London: Duckworth, 1983.
  • SPINOZA, B. “Baruch de Spinoza Opera”. Ed. de Carl Gebhardt. Heidelberg: Carl Winters, 1925. 4 Vol.
  • SPINOZA, B. “Ética”. Edição bilíngue. Tradução do Grupo de Estudos Espinosanos; coordenação de Marilena Chauí. São Paulo: Edusp, 2015a.
  • SPINOZA, B. “Tratado da emenda do intelecto”. Tradução de Cristiano Novaes de Rezende. Campinas: Ed. Unicamp, 2015b.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2021
  • Aceito
    17 Maio 2022
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